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Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008

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Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008

“Tu conhece a moreninha aquela?”: A co-construção da masculinidade na fala situada de um inspetor policial e de um suspeito em uma interação em contexto de interrogatório policial.

Daniela Negraes (UNISINOS); Caroline Rodrigues da Silva (UNISINOS); Ana Cristina Ostermann (UNISINOS)

Masculinidade; Análise da Conversa; Fala situada.

ST 9 - Discursos, políticas e representações no masculino.

Os estudos que problematizam as questões relativas à linguagem e gênero realizados a partir da década de 1990 orientam-se para uma abordagem que procura olhar para a construção lingüística de gênero sob a perspectiva da diversidade (BING & BERGVALL, 1996 apud OSTERMANN, 2006). Nesse sentido, gênero deixa de ser entendido como condição biológica dos seres humanos e passa a ser compreendido como identidades construídas localmente através da linguagem. Em outras palavras, gênero não é característica que os seres humanos possuem a priori, mas uma identidade construída por meio da fala situada e é algo que as pessoas não constroem sozinhas, mas precisam também do reconhecimento e validação do/a outro/a para ser cumprido (ECKERT & MCCONNELL-GINET, 1992).

Sendo assim, as pessoas ‘performatizam’ gênero nas interações face-a-face rotineiramente (BUTLER, 1990). É importante lembrar que as identidades masculinas e femininas bem como todas as outras identidades assumidas pelos seres humanos (mãe, pai, funcionário/a, amante, etc.) não são rígidas, mas flutuantes. Isso equivale dizer que numa interação face-a-face entre mãe e filha, por exemplo, os papéis de uma e de outra ficarão evidenciados através das escolhas lingüísticas realizadas turno-a-turno e nada impede que a filha ‘performatize’ o papel de mãe e vice versa. Esse exemplo remete à noção de enquadre proposta por Goffman (1974) segundo a qual os/as interagentes orientam-se para o que está acontecendo na atividade social na qual eles/as estão inseridos/as no momento, de forma que suas falas (e comportamentos) sustentem o contexto situacional da interação em questão.

O presente trabalho focaliza extratos de uma conversa entre um inspetor da polícia civil e um suspeito realizada em uma delegacia de polícia civil localizada na região metropolitana de Porto Alegre. As conversas foram gravadas em áudio, no segundo semestre de 2004, como parte da metodologia empregada por uma das autoras na realização do seu trabalho de conclusão de curso. Foram gravados um total de cinco eventos interacionais denominados interrogatórios policiais conduzidos por dois inspetores policiais. Os investigadores interrogaram cinco suspeitos por conta de três assassinatos e uma tentativa de homicídio. É importante pontuar que um dos inspetores (Antônio) foi responsável pela condução dos interrogatórios na maior parte do tempo e que o

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segundo inspetor (Chico) exerceu o papel de investigador auxiliar, fazendo intervenções esporádicas ao longo das conversas, embora ambos desempenhassem a mesma função na delegacia. Após a gravação em áudio, as conversas foram transcritas com base nas convenções de transcrição criadas por Jeferson e adaptadas por Cristiane Maria Schnack, Thaís Pisoni e Ana Cristina Ostermann (2005)1. Vale ressaltar que esses dados já foram analisados sob outras perspectivas (ANDRADE & OSTERMANN, 2007).

Na análise que segue, cujos dados foram selecionados a partir de uma das conversas entre um inspetor da polícia civil e um suspeito de tentativa de homicídio, os interagentes ‘performatizam’ suas masculinidades de uma maneira bastante peculiar. Partindo do pressuposto da relação assimétrica que permeia o contexto de uma investigação policial em fase de interrogatório, é interessante observar como os interagentes alinham-se para, mutuamente, corroborarem seus status de macho. Assumindo a idéia de que “gênero tem que ser constantemente reafirmado e publicamente exibido [...]” (CAMERON, 2007), na interação em análise, podemos especular sobre a necessidade que os interagentes demonstram em afirmar e explicitar suas masculinidades através da pronta mudança de enquadre quando o tópico da conversa passa a ser uma possível relação sexual entre o suspeito e ‘a moreninha aquela’.

O tópico da conversa sobre o qual nos debruçamos emerge em duas oportunidades distintas ao longo da interação. Como podemos observar no excerto abaixo, na primeira vez que o assunto vem à tona, a ação do inspetor está focada na necessidade de investigar se e em que grau o suspeito conhece a mulher que, supostamente, era a companheira da vítima de tentativa de homicídio. Perante a resposta afirmativa por parte do suspeito na linha 83 (“conheço.”) frente à pergunta do inspetor na linha 81 e 82 (“tu conhece a: moreninha aquela ali de cima ali? uma que era: amasiada do anderson?”), tendo sido respondido, portanto, se o suspeito conhecia a mulher em questão, o inspetor, procurando averiguar em que grau o suspeito conhece a mulher da vítima, parte para a pergunta da linha 88 (“tá tu conhece? conhece até que ponto?”). A partir daí o que podemos observar, além da desconstrução da assimetria da relação inspetor-suspeito, é justamente o processo de ‘performatização’, afirmação e explicitação pública da masculinidade, tanto do suspeito quanto do inspetor.

[IP3/3DPSL-2004]

81 Antônio: tu conhece a: moreninha aquela ((levantando o tom de voz)) ali de 82 cima ali? uma que era: amasiada do anderson?

83 Reginaldo: conheço. 84 Antônio: a: nunes né? 85 Reginaldo: ( [ )

86 Antônio: [ sobrenome dela

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88 Antônio: tá tu conhece? conhece até que ponto? 89 Reginaldo: ah dif @[@

90 Antônio: [@@@@ já ficaram pelado não? 91 Reginaldo: não já já fiquei com ela já

Um dos princípios básicos da Análise da Conversa diz respeito ao conceito de pares adjacentes. Esse princípio postula a exigência de uma resposta apropriada a um turno anteriormente proferido, como é o caso de pergunta-resposta, cumprimento-cumprimento, entre outros (LEVINSON, 1983). Sendo assim, podemos verificar, na linha 88, que Antônio profere uma pergunta especulando sobre o grau de intimidade de Reginaldo e a mulher em questão. Na linha 89, turno reservado à segunda parte do par adjacente (resposta), o suspeito começa a proferir uma resposta, marcada por dois componentes lingüísticos que podem sugerir que a resposta à pergunta seja problemática: o marcador “ah” e o riso. O esboço de riso provido pelo suspeito, ao proferir a palavra, opera como forte pista de contextualização (GUMPERZ, 1982) a favor da interpretação realizada pelo inspetor em seu próximo turno. Antônio orientar-se para essa problemática e especula sobre uma possível ligação de fundo sexual entre o suspeito e a mulher da vítima (linha 90), o que é confirmado por Reginaldo (linha 91). O mais surpreendente, no entanto, é observar que a reação do inspetor não só corrobora o riso, mas também endossa a masculinidade do suspeito. Esse alinhamento do inspetor para com o riso do suspeito opera a favor da exibição da masculinidade do próprio inspetor, uma vez que ele dá mostras de prontamente ter entendido o grau de intimidade existente entre o suspeito e a mulher da vítima.

A co-construção mútua da masculinidade dos interagentes aparece fortemente marcada na segunda oportunidade em que o tópico da conversa remete à mulher da vítima de tentativa de homicídio. Por uma questão didática, o excerto que evidencia o foco do estudo foi divido em dois, embora essa parte da interação tenha acontecido sequencialmente. Nessa primeira parte, podemos perceber que diante do conhecimento da existência de uma relação de intimidade entre o suspeito e a mulher da vítima, o inspetor inquire o suspeito, na linha 584, sobre a continuidade dos encontros entre ambos; o uso do pretérito imperfeito cumpre essa função. Da mesma forma, a escolha do pretérito perfeito feita pelo suspeito nas linhas 587/588 opera no sentido de negar a freqüência dos encontros, o que pode ser confirmado na própria fala do suspeito (“mas não que eu estava saindo com ela”):

[IP3/3DPSL-2004]

584 Antônio: tu estava >efetivamente< tu estavas saindo com a:: ex-mulher 585 dele? ex-mulher. ex-companheira:: >aquela<- tiatina que 586 mo[rava com ele lá.

587 Reginaldo: [ah? eu

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589 ela m[as:

O que chama a atenção nesse momento de retomada de tópico são as escolhas lexicais utilizadas para nomear a mulher da vítima. Concernente Cameron (1990), umas das tarefas para a qual a linguagem se presta é a construção de identidades através das atividades de nomeação e categorização. Segundo a autora, os próprios nomes das pessoas não são simplesmente nomes. Nomes de santas, nomes incorporados após o casamento, nomes advindos de certas regiões, por exemplo, têm implicações econômica, política, religiosa e cultural que podem suscitar racismo, dominação patriarcal, etnocentrismo, etc. Nesse sentido, é inegável que a nomeação da mulher da vítima enquanto ‘tiatina’2 opera em um sentido pejorativo. Além disso, essa palavra foi a escolha feita depois de outras duas expressões (ex-mulher e ex-companheira), o que nos leva a pensar que o inspetor encontrou dificuldade de encontrar uma categoria para a mulher que já “havia ficado pelada” com o suspeito, ou seja, uma qualquer.

No excerto abaixo, que, como mencionado acima, é a seqüência da linha 588, o riso que começa como um esboço e termina numa produção sonora bastante audível (linhas 590 e 593), é proferido não pelo suspeito, mas pelo inspetor. Além do riso do inspetor, suas escolhas lexicais (nas linhas 589 e 590) nos levam a pensar sobre o quão confortável ele se sente para quebrar a assimetria da relação inspetor/suspeito em favor da ‘conversa de macho’ que o tópico sugere.

[IP3/3DPSL-2004]

589 Antônio: [@ já ficaram pelado uma vez ou outra [ho@je >não tem< 590 mais na:@da@@@

591 Reginaldo: [@@@

592 Chico: cinqüenta vezes só [(.)saíram juntos

593 Antônio: [@@@@

594 (0.03)

595 Chico: ( ) saiu:?(.) saiu? 596 Reginaldo: a@h não

597 Chico: (foram fora não) 598 Reginaldo: (.) @@

599 Chico: ( [)

600 Antônio: [>qual é o nome dela<? 601 Reginaldo: Suzane

602 Antônio: Suzane?

603 (0.19) ((Antônio relata fatos))

604 Antônio: só que- (.) >o Anderson não ficô brabo contigo com essa 605 situação<?

607 Reginaldo: (.) que ele tivesse me falado não=

608 Antônio: =não?

O que chama a atenção é que a construção da masculinidade opera em favor das estratégias de investigação utilizadas por Antônio, tendo em vista que averiguar o grau de intimidade entre a

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mulher e o suspeito pode implicar a aproximação do suspeito com a vítima. Podemos perceber isso pelo turno das linhas 604 e 605, em que Antônio cogita a possibilidade de um desentendimento entre a vítima e o suspeito por conta da relação entre Reginaldo e a mulher da vítima.

Face às análises aqui apresentadas, podemos considerar que a construção de gênero vai além da simples definição do que é masculino ou feminino. No caso dessas interações, vimos que ela se presta para mascarar a assimetria que institucionalmente existe numa situação de interrogatório por meio de uma espécie de solidariedade e informalidade que constroem uma base da acessibilidade mútua através da qual os indivíduos podem reconhecer um ao outro como membros de um mesmo grupo especial (GOFFMAN, 1963). É interessante observar como a masculinidade é construída não somente com base nessa solidariedade e informalidade, mas também através da maneira pejorativa com que se referem à mulher da vítima, por meio de categorização negativa (tiatina, a moreninha aquela, a amasiada do Anderson) e pelo tom de deboche, observado pelo riso dos participantes. Cameron (2007) aponta que é relevante atentar para o papel que a ‘performatização’ do gênero desempenha nas interações. Em resumo, nesse caso, podemos dizer que a co-construção da masculinidade na conversa situada equacionou a relação inspetor-sujeito em direção a um balanceamento da assimetria ao mesmo tempo em que operou no sentido de construir uma imagem pejorativa da “moreninha aquela”.

Referências

ANDRADE, Daniela N. P.; OSTERMANN, Ana C. O interrogatório policial no Brasil: a fala institucional permeada por marcas de conversa espontânea. São Leopoldo: Calidoscópio, v.5, n.2, 2007.

BING, J. M.; BERGVALL, V. L. The question of questions: Beyond binary thinking.1996. In: HEBERLE, V. M. OSTERMANN, A. C; FIGUEIREDO, D. de C. Linguagem e Gênero no Trabalho, na Mídia e em Outros Contextos. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.

BUTLER, J. Gender Trouble: Feminism And The Subversion of Identity. New York: Routledge, 1990.

CAMERON, Deborah. The Feminist Critique of Language: A Reader. London: Routledge, 1990. CAMERON, D. The Myth of Mars and Venus: Do Men and Women Really Speak Different Languages? New York: Oxford University Press, 2007.

ECKERT, P.; MCCONNELL-GINET S. Think Practically and Look Locally: Language and Gender as Community-Based Practice. Annual Review of Anthropology. 21, 461-90. 1992.

GOFFMAN, E. Behavior In Public Places. New York: The Free Press, 1963. GOFFMAN, E. Frame Analysis. New York: Harper & Row, 1974.

GUMPERZ, J. Discourse strategies. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. LEVINSON, S. C. Pragmatics. Cambridge, England: Cambridge University. 1983.

SCHNACK, Cristiane; PISONI Thaís D.; OSTERMANN, Ana C. Transcrição de fala: do evento real à representação escrita. Entrelinhas, v. 2, n.2, 2005.

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Notas

1 As convenções de transcrição utilizadas estão resumidas a seguir: :: alongamento de um som

:hh inspiração audível (.) pausa

. entonação descendente ? entonação ascendente

((parênteses duplos)) anotações do/a transcritor/a ou pesquisador/a fa- interupção abrupta da fala

[ ] falas sobrepostas (dois ou mais falantes produzem fala simultaneamente) = fala colada, indicando que não há espaço entre as falas dos/as interlocutores/as LETRAS MAIÚSCULAS fala produzida em volume mais alto

(parênteses simples) transcrição tentativa @ risadas

2 O termo “tiatina” origina-se da palavra “tiatino”, que designa uma pessoa sem rumo na vida, sem residência fixa, uma palavra muito freqüentemente empregada por moradores do Rio Grande do Sul.

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