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O cotidiano escolar em cartas que se narram

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Academic year: 2021

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO

SUELI DE PAULA LARANJA DOS SANTOS SASANTOS SASAAAASASASANTOS

O COTIDIANO ESCOLAR EM CARTAS QUE SE NARRAM

NITERÓI/RJ 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO

SUELI DE PAULA LARANJA DOS SANTOS

O COTIDIANO ESCOLAR EM CARTAS QUE SE NARRAM

NITERÓI- RJ 2018

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SUELI DE PAULA LARANJA DOS SANTOS

O COTIDIANO ESCOLAR EM CARTAS QUE SE NARRAM

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação.

Linha de Pesquisa: Estudos do Cotidiano da Educação Popular (ECEP)

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Carmen Lúcia Vidal Pérez

NITERÓI- RJ 2018

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O cotidiano escolar em cartas que se narram

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Carmen Lúcia Vidal Pérez (orientadora).

_________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Patrícia Oliveira de Freitas (UFRRJ)

_________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Marisol Barenco de Mello (UFF).

_________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Luciana Pires Alves (UERJ).

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Agradecimentos

A Deus, toda honra, toda glória e todo louvor! Ele é a minha força e meu defensor. Meu coração Nele confia, também por Ele fui socorrida. É por isso que meu coração está alegre e sai da minha boca louvores de amor e gratidão!

Ao meu esposo, Valdemir Ribeiro dos Santos, um grande companheiro. Presente em todos os momentos, grande incentivador e responsável por me dar as condições para continuar estudando e viver muitos sonhos.

Aos meus pais, Antonio David Laranja e Maria Rosa de Paula Laranja, que não estão mais nesse mundo, mas que estão vivos no meu corpo e nas minhas memórias. Sou grata pela luta, pela resistência e pelo amor aos seus seis filhos. Meus pais, muito obrigada!

Às minhas irmãs Ester e Vanilda que incansáveis criaram condições para que eu pudesse chegar ao final da escrita desta pesquisa. Sem vocês seria impossível continuar. Minha alegria é saber que nossas lutas se dão em torno de um mundo mais justo, solidário e amoroso e que fazem parte da minha vida e me amam de verdade!

Aos meus filhos Gabriel, Israel e Sara que são minhas heranças nesse mundo. Frutos de um amor que transborda nas práticas do cuidado e do servir.

À Iracema Aguiar, diretora da escola que trabalho atualmente. Seu apoio foi imprescindível, hoje escrevo essas linhas com lágrimas de alegrias. Sem sua coragem e sua imensa sensibilidade a oportunidade teria passado.

Aos profissionais da Escola Municipal Ana Nery, obrigada pelas palavras de incentivo, pelas mensagens e visitas. Nosso cotidiano é tão apressado que às vezes é difícil o diálogo, no entanto, o companheirismo foi muito importante e só posso agradecer.

À Maria José e Ivone, amigas incansáveis! Me cobriram de afeto e de orações, me possibilitaram ver além e não desanimar diante das adversidades. Muito obrigada minhas amigasirmãs!

À Bianca Elis, amiga que ganhei durante o Curso na UFRRJ e que foi um grande presente de Deus. Obrigada por me incentivar a estudar, por ler meus textos e estar presente na minha vida.

À Carmen Pérez, minha orientadora, pela oportunidade de aprender. Com você pude experimentar novas leituras, diálogos e descobertas. Pude compreender mais da minha prática educativa e não temer as adversidades.

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Ao grupo de pesquisa GEPEMC, que compartilhou projetos, leituras e escritas contribuindo na escrita deste trabalho e na minha formação. Um agradecimento aos que ficaram mais juntinhos nesse último ano: Adelino, Alessandra, Minna e Marcele.

À Alessandra, amiga que ganhei durante a escrita deste trabalho e que desejo ter ao meu lado para sempre. Seu incentivo, sua força e carinho me deixaram mais viva.

Às professoras da banca examinadora, Patrícia de Freitas, Marisol de Mello, Luciana Alves, muito obrigada. Cada uma, de modo singular, me trouxe questões a pensar. Além disso, tive a oportunidade de aprender (vendo, ouvindo, rindo e chorando) com vocês! Guardarei vocês em minha memória e no meu coração!

Aqui desejo fazer um agradecimento especial. Quero agradecer as crianças que foram meus alunos e minhas alunas, que me instigaram e provocaram meus deslocamentos físicos e de pensamentos. O pulsar de seus corações, de seus pensamentos, de sua maneira de olhar, de sentir, de fazer, de saber é a razão deste trabalho. Obrigada por me retirar do lugar em que estava; por acreditar em mim e me ensinar tantas coisas. Amo vocês!

Agradeço aos amigos e amigas que não citei nesse espaço, mas que contribuíram com a realização deste trabalho. Incluo aqui meus familiares. Peço que me perdoem caso a memória tenha falhado, pois sei que muitas pessoas contribuíram para que essa pesquisa fosse realizada. Saibam que sou grata por tudo e por não desistirem de mim. Com muito amor!

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Resumo

A presente dissertação intitulada O Cotidiano Escolar em Cartas Que se Narram, está inscrita no Campo dos Estudos do Cotidiano da Educação Popular e tem como premissa refletir e discutir as infâncias e as crianças à partir das nossas experiências (das crianças e minhas), dentro e fora da escola pública. Para isso mergulho no cotidiano escolar. O estranhamento da enunciação de uma palavra em um texto científico serviu de dispositivo para o mergulho que transbordou na possibilidade de experimentação do pensamento. Essa é uma experiência que marca a minha história de professora e a experiência aqui é pensada na perspectiva foucaultiana, que de tudo o que nos acontece, somente aquilo que não nos permitir ser do mesmo modo que éramos pode ser chamado assim. O encontro com esse pensamento me permitiu dialogar com professores e professoras através de cartas. Elas permitem que o cotidiano se narre, tomando a complexidade como fio condutor. Situações da rotina diária como a leitura, a escrita, a metodologia fazem parte dos assuntos postos em diálogo. O erro, a vadiagem como metodologia, o amor, o aprendizado e a história individual criam a paisagem dessa tessitura. Há na encarnação de cada palavra diálogos com músicos, poetas, dançarinos, e autores como Paulo Freire, Regina Garcia, Denise Tardan, Walter Kohan, Rubem Alves, Machado de Assis, Renato Russo.

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Abstract

The present dissertation entitled The Scholar Daily Life in Letters That Narrates Themselves is inscribed in the Field of Studies of the Daily Life of Popular Education and its premise is to reflect and discuss the childhoods and the children from our experiences (of the children and mine), inside and out of public school. For that, it was necessary to dive into the school everyday. The strangeness of a word pronunciation in a scientific text served as a starter that guided to diving that overflowed in the possibility of experimentation of thoughts. This is an experience that marks my history as a teacher and the experience here is thought of in the foucaultian perspective, that everything that happens to us, only that which does not allow us to be the same we were in the past can be called that way. The encounter with this thought allowed me to dialogue with teachers through letters. They allow everyday life to be told, taking complexity as the guiding thread. Situations of daily routine such as reading, writing, and methodology are part of the dialogue. Error, vagrancy as methodology, love, learning and individual history create the landscape of this fabric. There are in the incarnation of each word dialogues with musicians, poets, dancers, and authors as with Paulo Freire, Regina Garcia, Denise Tardan, Walter Kohan, Rubem Alves, Machado de Assis, Renato Russo.

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Sumário

Introdução ...10

Aprendendo a dançar...18

O Erro como experiência no cotidiano escolar ... 25

A vadiagem como metodologia de pesquisa com o cotidiano escolar ... 43

O menino Pedro e o idoso Joaquim: falando de amor na escola ... 56

O desejo de saber como gesto de partilha: como as crianças aprendem? ... 69

Compreendendo os caminhos e desvios da vida cotidiana...82

É preciso amar ... 93

Post Scriptum ...101

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Introdução

Quero partilhar esta dissertação com vocês, mulheres e homens, a quem desejo chamar de queridos amigos e queridas amigas e com quem já neste início quero dividir a experiência mundana da amizade. Creio que ela é possível pelo nosso gosto comum de compartilhar nossos ensaios do e no mundo através das pesquisas, das escritas e das leituras de experiências múltiplas da educação.

Intitulei o trabalho de O cotidiano escolar em cartas que se narram e pretendo desde o título refletir e discutir as infâncias das crianças à partir das nossas experiências (das crianças e minhas), dentro e fora da escola pública. Para isso, procurei um caminho, uma metodologia, mas o que descobri é que as pesquisas realizadas com o cotidiano não seguem um roteiro pronto, determinado. Elas vão se configurando a medida que as desenvolvemos.

Essa singularidade se dá porque o cotidiano não é compreendido como inalterável e sim como espaçotempo imprevisível, delicado, complexo, indomável. Mas antes de prosseguir creio que é necessário contextualizar e ampliar o que disse no parágrafo anterior.

As pesquisas com o cotidiano eram desconhecidas por mim. Durante a Especialização em Educação Infantil, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, na aula de Introdução ao Estudo do Cotidiano Escolar, conheci as ideias acerca do Cotidiano, o campo de estudo, teorias, teóricos e produções acadêmicas. Comecei a perceber esses estudos como movimento político e epistemológico.

Busquei a formação e o diálogo com a Universidade Pública motivada pela insatisfação e mal estar provocados pela reprodução de práticas no cotidiano escolar inconciliáveis com minha forma de compreender e viver o processo formador. Ao longo da minha história venho me assumindo como sujeito, desejosa por práticas justas e amorosas e mesmo não sendo reconhecida como pesquisadora, esta atividade sempre fez parte da minha ação como professora.

O desejo me aproximou dos estudos do cotidiano e a realização desta pesquisa se faz como contribuição de suma importância na minha prática educativa, não há indicação neste texto de receitas a serem seguidas por outros professores e professoras porque o que se propõe é um pensar, um anúncio de que é possível tecer outros caminhos na educação.

Assumir o Cotidiano como campo de estudo é sem dúvida romper com a visão do paradigma hegemônico, no qual fui forjada; pois meu aprendizado se deu em torno de ideias que o concebem como lugar de reprodução de conhecimentos e coisa menor.

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Aprendemos que os conhecimentos, produzidos por nós mesmos, pessoas comuns, nas nossas ações cotidianas são de senso comum e por isto mesmo se tornaram de difícil análise (tanto dos processos de sua criação como de compreensão), pois a ciência moderna nos ensinou ser fundamental a separação, para estudo, do sujeito do seu objeto. É preciso questionar o aprendido, indicando as possibilidades de uma ciência que não se aparte da vida.

Retomo, portanto, o posicionamento como professora e como pesquisadora. Uma dicotomização inexistente no Campo do Cotidiano, que compreende a professorapesquisadora, como aquela que imersa na sua prática procura investiga-la a fim de compreendê-la podendo desse jeito, traçar novas rotas, fazer outros caminhos.

A junção das palavras, professorapesquisadora e espaçotempo, é a busca por superação dos vestígios que em nós aparecem devido à formação dentro do modo hegemônico de pensar, representado pela ciência moderna, na qual uma das ações cruciais se faz na divisão dos termos, vistos como pares, mas opondo-se entre si. Ao longo desse trabalho algumas palavras serão escritas desse jeito, portanto, é um ato epistêmico responsável que busca romper com o paradigma hegemônico.

Alguns movimentos foram fundamentais neste processo e se faz necessário dizer que o Campo do Cotidiano ao reconhecer a professora da escola como pesquisadora visibiliza e inclui outros modos de pensar, fazer, dizer, agir, criar, evidenciando o movimento práticateoriaprática, mostrando outras possibilidades, diferentes daquelas aprendidas no nosso processo inicial de formação.

Esse tem sido o meu aprendizado nos últimos anos. Perceber que o meu fazer gera conhecimento e que não posso desperdiçar as experiências, preciso avançar mergulhando no cotidiano escolar em que minha vida passa. E quando digo meu aprendizado, não o encerro em mim porque ele, de modo singular, pode ser o de Maria, José, Fátima, Carlos, Paulo e tantos outros e outras. Eu sou só uma entre muitos e muitas, singularidades que podem contribuir tanto na prática individual quanto na coletiva dos professores e professoras.

Um mergulho que se fez também na escrita de um projeto. Desejava conhecer as crianças da rede municipal de Duque de Caxias, especificamente pesquisando com as crianças da escola em que trabalho atualmente. Mas no meio do trajeto um episódio na vida pessoal modificou os planos iniciais. Como escapar? Compreendi então que o cotidiano é algo que escapa ao meu controle, me altera e me afeta.

E foi essa mudança que me permitiu perceber como as inquietações foram se encarnando no meu fazer. As experiências vividas nos últimos anos no cotidiano escolar é a pesquisa que compartilho nesta escrita e formam uma paisagem. Nela pode se ver como

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venho me constituindo como professora e como a história individual contribui para se pensar a história coletiva.

Mas como mostrar essa paisagem? Como a pesquisa pode ser apresentada às pessoas? Essa é uma longa história que começa com uma proposta de Carmen Pérez e a leitura do livro de Regina Garcia (1995): Cartas londrinas e de outros lugares sobre o lugar da educação. A ideia de escrever minhas experiências em cartas, como quem faz um apanhado de sua história, me soou bem estranho. Havia lido algumas cartas na época do Ensino Médio, mas eram de poetas, escritores de literatura. Não havia lido até então nenhum trabalho acadêmico que assumisse o gênero epistolar.

A leitura das cartas escritas por Regina Garcia foi determinante no aceite à proposta. Há nas cartas da autora não apenas o testemunho de acontecimentos da sua vida pessoal, mas também da vida de seus destinatários. Ao transitar em diferentes lugares, Regina Garcia desloca seus pensamentos para falar da Educação. Tece suas cartas na sensibilidade e no compromisso de fazer da escrita simples, sem cerimônia, um momento prazeroso aos que as lessem. Sua preocupação é que sua escrita pudesse ser compreendida por aquelas que estão alfabetizando na escola, as professoras. Carregam também o desejo da correspondência, da resposta e do diálogo.

Outra carta, a de Franz Kafka (1997), Carta ao Pai, me provocou um sentimento confuso. Confesso que fiquei tensa, sentindo uma responsabilidade doentia, mas ao invés de adotar a leitura como um peso; desvencilhei-me das ideias encarnadas acerca da escrita kafkiana e, busquei ler como experimentação. Não tenho objetivo de falar sobre o conteúdo da carta do autor, mas dizer o quanto foi importante na decisão e eleição pelo gênero epistolar na escrita dessa dissertação.

Os conteúdos de uma carta são diversos, singulares. Uma característica do gênero epistolar é sem dúvida a hibridez. Há uma liberdade na escrita que permite o transbordamento de emoções, de ideias, de histórias, de invenções e talvez esse também seja o objetivo do texto. O de despertar e compartilhar emoções.

A carta é um gênero discursivo repleto de potência. Marisol de Mello (2017), ajuda-me a pensar acerca do gênero e do ato discursivo. Em seus trabalhos assuajuda-me as leituras e estudos da linguagem do russo Mikhail Bakhtin e seu Círculo. Por ela me aproximo de ideias fascinantes, que encantam e desencantam os que estão adormecidos.

Em seu texto: Por que tu me escutas eu existo, a autora tece os princípios de seu trabalho e, o quarto princípio chama minha atenção ao que diz: “O gênero é o modo como o

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autor entra na vida, como penetra no real. Sem o gênero nem perceberíamos o real. Cada gênero é uma fenda ao real, um foco de luz na realidade em uma frequência” (2017, p.150).

Como autora desse trabalho, precisei achar um modo de entrar na vida e foi no encontro com o gênero epistolar que as possibilidades de dizer o mundo se fizeram e proporcionaram o alargamento da minha própria visão.

Minha compreensão, ainda bastante limitada, pois como disse anteriormente venho me aproximando das ideias desenvolvidas por Mikhail Bakhtin, me leva a perceber que o uso de diferentes gêneros na produção acadêmica, pode ser concebido como marca de forças que enfrentam aquelas que desejam manter uma única verdade da experiência de nós mesmos.

Mais adiante, no mesmo texto de Marisol de Mello, o sexto princípio diz que o ato discursivo é singular e que pode se repetir com palavras outras. A enunciação é a resposta singular de um sujeito “que organiza um projeto de dizer com acabamento estético na interação com o movimento inconcluso (diálogo infindo). Feixe de relações ideológicas concretizadas no gênero” (2017, p.150).

Aprendo com este princípio que na escolha do gênero para tecer o ato discursivo, que vai além do que está sendo escrito, imprimo marcas no meu projeto de dizer. Marcas políticas e éticas, também marcas estéticas, que anulam qualquer possibilidade de neutralidade da minha parte. Assim, meu projeto, mesmo que seja na repetição singular do que digo, traz a aceitação da diferença em mim mesma.

Organizar um projeto de dizer, neste caso o que está sendo feito por mim, essa dissertação, é experimentar a liberdade no ensaio de poder dizer, de debruçar sobre mim mesma como marco na própria existência.

O gênero epistolar pode ser uma forma de fazer uma dissertação como uma escrita acadêmica outra, em contraposição ao pensamento formatado que se encaixa aos moldes instituídos. Por ser uma escrita que se estabelece em uma visão não de um paradigma dominante e sim de um paradigma que compreende o comum como significante e imprescindível, elege o saber, a categoria a qual pertence: o saber de todos e não de alguns.

Escrever uma dissertação outra cujas palavras não são novas se faz como oportunidade de se abrir às novas infâncias e reinventar a escola, não mais a encaixar na vida, porque ela também é a vida.

O trabalho de Denise Tardan (2017), “Cara Carta”: (co)respondências de uma professora, cria uma teia de afetações. A pesquisa da autora é tecida em cartas e sua defesa é clara quando afirma que é possível realizar uma dissertação no gênero epistolar, mostrando que a dissertação acadêmica é um gênero textual, desse modo, não se mostra inerte,

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inalterável ou pronto. Com ela aprendo que o gênero epistolar, a carta, está sempre direcionado ao outro e que a marca potente deste gênero é a procura pelo diálogo. E o gênero dissertação, será que não tem essa intenção?

Abro um espaço para dizer que a proposta de escrever a dissertação em cartas foi pensada desde o seu início como coletiva e dialógica, a intenção era de co-respondências. O movimento pensado foi no sentido de partilhar os assuntos e temas com o envio das cartas e assim que as respostas chegassem, novas escritas se dariam. Infelizmente o tempo não acompanhou as intenções iniciais e as respostas que chegaram trazendo muitas novidades ficaram sem resposta. Essas cartas não são vistas como anexos desse trabalho, elas fazem parte de um movimento coletivo, são importantes e precisam ser conhecidas.

À medida que lia as cartas de autores como Regina Garcia, Franz Kafka, Denise Tardan e Paulo Freire; comecei a perceber como eram narrativas densas, vivas, potentes. Assim, a necessidade de dizer que a proposta de escrever a dissertação no gênero epistolar foi encarnando em meus pensamentos. Como em um mosaico, as cartas, fragmentos repletos de fragmentos, criam uma paisagem, em uma estética simples, mas não simplória. Se narram porque dispõe de liberdade e coragem no seu fazer. E liberdade essa também compreendida como compromisso com o que se faz e com o rigor exigido.

Ao longo deste trabalho, tecido em cartas que se narram, teremos o prazer de dividir nossas conversas com leituras de Regina Garcia, Franz Fafka, Denise Tardan, Rubem Alves, Walter Kohan, Carlos Skliar, Marisol de Mello, Michel de Certeau, Simon Rodriguez, Carlos Brandão, Carmen Pérez, Paulo Freire, José Pais, Nilda Alves. Conversas que são dispositivos para as narrativas das cartas que dizem com o cotidiano escolar.

Assim, a carta que segue a esta escrita foi endereçada ao Grupo de Estudos e Pesquisas Escola, Memória e Cotidiano, GEPEMC-UFF. Busco dialogar com o companheiro e companheiras do grupo, tecendo as ideias sobre a difícil tarefa de escrever. Trago a dor e a experimentação como potências da tessitura e no gesto de exposição revelam as redes que se formaram para que a experiência da escrita na Academia acontecesse.

Endereçada à professora Patrícia Oliveira de Freitas, escrevo uma carta recheada de assuntos. Nela há uma vadiagem pela experiência da leitura das palavras invertidas. Mas como não temos a possibilidade de puxar vários fios na conversa, fiz a eleição de um tema e procurei deixar algumas pistas para que pudéssemos pensar juntas no Erro como experiência no cotidiano escolar.

Em outro movimento escrevo a José Machado Pais, teço minha dúvida e desconfiança a partir do estranhamento de uma palavra até então encarnada como maldita: vadiagem. Com

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o professor busco dialogar acerca da possibilidade: A vadiagem como metodologia no cotidiano escolar. Em uma escrita leve exponho as fragilidades teóricas de uma professora em formação. Fragilidades que não a impedem de dizer que a perspectiva foucaultiana acerca da experiência, como algo que marca de tal modo que impossibilita o sujeito de continuar sendo o que era, é a raiz de sua inquietação.

Na carta, à professora Alessandra Gomes de Castro a história do menino Pedro é o caminho encontrado para se falar de amor. Na escrita de O menino Pedro e o idoso Joaquim: falando de amor na escola busco usar palavras amorosas; creio que, desde o início do trabalho, mas nessa o empenho foi maior. Sinto falta de uma palavra que ainda não foi escrita. Mas, quem sabe até o final ela aparecerá. Imersa na história de Pedro vou à escola e penso nos nossos assuntos de professoras, no que conversamos. Me espanto, pois percebo como falamos pouco de amor às crianças. Esse movimento desloca meus sentidos ao que nos acontecia em diferentes cotidianos, tento imprimir nesta escrita um pouco dessa viagem. Termino falando de um idoso, Joaquim, de um ônibus, de uma fila, de pessoas comuns, de solidariedade e gestos de amor.

A escrita de O desejo de saber como gesto de partilha: como as crianças aprendem? foi pensada na relação de duas professoras. Escrita à professora Ester de Paula Laranja tem um significado diferente, pois envolve a relação de irmãs e de professoras em processo de formação, (permitam que o silêncio esteja presente, pois nem sempre é fácil escrever sem lembrar e sentir). Em uma visita ao passado trago o gesto da partilha como movimento de emancipação, de consciência e pesquisa. Busco rememorar nossas conversas que se iniciaram há mais de vinte anos e marcaram nossas trajetórias como professoras de escolas públicas que atendem crianças de classes populares. Uma pergunta foi marcante nas nossas histórias e serviu não de porto seguro, mas de uma viagem incerta, conhecíamos a vadiagem sem conhecer as ideias de José Machado Pais. A pergunta que atravessou nossas histórias foi: “como as crianças aprendem?” E dessa questão procuro conversar não acerca das respostas, mas dos caminhos que o gesto de partilhar nos proporcionou.

Recebo uma carta, não pude deixa-la de fora. Ela me surpreende, pois encontro indícios da outra que fui; em outras latitudes da vida. Escrita por Sueli (a mulher, mãe e esposa que sou) é tecida por trechos das cartas que compõem essa dissertação. Há provocações que podem levar a reflexão dos nossos distintos tempos de viver e de narrar nossas histórias. Dialogamos no sentido de compreender como as relações acabam influenciando nos atos de nossa vida cotidiana e podem determinar a paralisação da ação criativa e ao mesmo tempo motivar a saída da inércia.

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Em resposta a carta de Sueli, a professora (eu) resolve mexer mais uma vez no seu baú de memórias. Encontra alguns bilhetes, cartões de aniversários, confidências e fotografias. Nele há uma foto que a faz refletir e perceber como as relações dentro da escola podem ser diferentes. A imagem da professora e da estudante abraçadas, com sorrisos largos, trazem a escola dos sonhos e assim a história de Guilherme é narrada em detalhes. As crianças, as vozes e a novidade. Os caminhos de atos amorosos e responsáveis compartilhados sem arrogância e vaidades.

Também escrevo às crianças, não poderia fazer um trabalho sem elas. Tudo que foi e ainda será escrito tem sido por pensar nelas. Não penso na minha profissão como missão. Meu trabalho é intencional e por isso preciso enunciar às crianças o que desejo e luto para que elas tenham. Nesta carta falo um pouco de mim, nas cenas de minha história, procuro ver como foi meu processo de aprendizagemensino e nas mãos de Maria Rosa chego à escola como estudante. No entrelaçamento de muitas histórias satisfaço a curiosidade da menina Alice que desejosa por me conhecer, me cercava de mimos, afetos.

Na tessitura de cada carta, escrevo, apago, reescrevo. Leio, re-leio, marco, resumo e ao resumir escolho palavras que não serão ditas. E nesse trabalho de formiga, estou lutando entregando o melhor de mim. Mas não apenas isso, estou experimentando, fazendo da escrita um marco na minha formação, desejosa por poder cooperar na tessitura de uma prática coletiva.

Com esse trabalho costuro minha história às histórias de tantas outras professoras e crianças. A história de uma mulher, mãe, esposa, professora, pesquisadora. Uma pessoa amorosa. E é com amor e compromisso que reconheço que há muito mais a ser dito. Porque sempre há. O diálogo, uma vez iniciado, não finda. Ele nos deixa a espera de respostas que geram outras perguntas, pois somos seres inacabados e em constante transformação.

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Aprendendo a dançar

Ao Grupo

de Pesqu

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Rio de Janeiro, 13 de maio de 2018.

Querido professor Adelino e queridas professoras Marcele, Alessandra e Minna,

usco nesta carta inaugurar um diálogo com vocês, meu querido companheiro e minhas queridas companheiras do Grupo de Estudos e Pesquisas Escola, Memória e Cotidiano (GEPEMC-UFF), e bem sei que realizarão a leitura com muito afeto. Assim, creio que a melhor maneira, a mais sensível e coerente com o pensamento amoroso que se faz, quer na palavra escrita ou dita, é mostrar que este trabalho começou muito antes do meu desejo.

Se vocês movimentarem as páginas, no sentido que possam ver o que vem escrito antes, lerão que todo estudante, ou seja; todos que realizam uma formação no nível de Mestrado, precisam apresentar um trabalho, o resultado de uma pesquisa. Isso garante o título de Mestre em Educação e cumpre o objetivo da Academia de formar pesquisadores em temas específicos da área. Essa é uma etapa decisiva e obrigatória, não há escapatória.

Mas, por que iniciar por algo que, vocês já sabem, até porque estão imersos nesse universo? Para dizer que este texto é resultado desse ritual?

Não, não há malícia nessas palavras, acredito, inclusive, que esta palavra (malícia) aparecerá muito pouco neste trabalho, embora haja muito para se pensar acerca dos rituais de passagem na Academia e de tudo que provocam na vida dos estudantes.

Escrever uma dissertação na Academia e dialogando com amigos, não reduzindo a amizade a intimidade ou privacidade; não foi e nem está sendo um desafio. Tem sido uma experimentação, algo que provoca e deixa marcas. Tem sido uma experiência dolorosa, mas não somente isso; tem se feito amorosa também.

Talvez meu amigo e minhas amigas, vocês pensem não ser este o canal para falar sobre este ou aquele assunto, afinal parece que tudo que aqui está escrito poderá ser compreendido como uma autobiografia, um olhar pessoal e íntimo.

Poderão pensar não ser possível escrever uma palavra tão feia como esta (dor) em um texto que se pretende que seja e se afirma como científico. Mas repito e não se assustem com a minha insistência: experiência dolorosa.

B

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Dolorosa: nefasta palavra que revela a dor. Dela desejava fugir, manter distância, pois conheço bastante da sua face impiedosa. No entanto, como impedir a vida e o movimento que se faz na experimentação da escrita?

Uma escrita que pode e precisa ser lida e re-lida por mim, por vocês, como possibilidade de um fazer crítico sobre o que se propõe, abrindo caminhos para uma escrita melhor, animando o pensamento e estimulando a escrever o ainda não escrito.

E foi o gesto de ler o que havia escrito, no momento em que a escrita ainda se faz, que deslocou meu corpo no sentido de perceber e não apenas olhar e observar o que havia ao meu redor. Senti uma brisa gostosa tocando minha alma nas vozes suaves dos companheiros e companheiras de vida, que teimam em me animar e insistem para que não desista da escrita, da Academia, da formação, das lutas por uma escola justa e democrática, dos sonhos possíveis.

Foi imersa na leitura do que escrevi acerca da experiência dolorosa que compreendi a beleza da rede de solidariedade que se criou para que eu pudesse viver a história da minha pesquisa e dessa escrita. E ela não é mais só minha, é de vocês também, no entanto, a responsabilidade deste fazer me conduz ao compromisso político com outras tantas pessoas com quem compartilho minhas experiências. Compromisso que se faz no partilhar de um processo humano em que a vida não é compreendida como inalterável, ou seja, fixa.

Admito nesta escrita minhas fragilidades teóricas, citar autores que realizei algumas leituras e que ainda preciso de um aprofundamento em suas obras, não afirmar verdades sabendo que são mentiras. Não posso dizer falsas palavras, dispondo de um conhecimento que não tenho, porque a ignorância não é vergonhosa, pode ser superada.

Uma das exigências da escrita deste trabalho se fez no gesto de ler o escrito, nele poderia me dobrar e deixar que a experiência vista inicialmente apenas como experiência dolorosa se mostre em sua plenitude, só que luto contra o prazo, contra o tempo, contra as dificuldades que me impedem de avançar. E apesar da cena pintada, é possível dizer que a experiência não é somente dolorosa, também é amorosa, faz-se nas ações da família, dos amigos e amigas, dos companheiros e das companheiras de jornada e lutas.

E, antes de desistir da leitura, querido amigo e queridas amigas, peço que insistam no movimento e na possibilidade, e não imposição da verdade, do que digo: este é um trabalho científico.

Na estrutura apenas voos de aves, não tão livres, como sonhamos, mas que se lançam; se assim não fosse não poderia ousar. E a ousadia nos remete a dor; pois é necessário remover

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tudo o que antes grudado às ideias se fazia como única existência. Às vezes, é necessário deixar morrer para que no novo que nos trás a morte ressurja na força e na beleza a vida.

A dor de ver, a dor de ouvir, a dor de sentir, a dor de dizer, a dor de calar, a dor de ser, a dor de existir. Sim, a dor de escrever a dor. De quem se vê frente as folhas brancas e tem medo de se fazer presente. A dor de quem precisa criar, mas não mais dentro de modelos e modelagens e que por mais que experimente as ofertas de um olhar compreensivo, ainda não vê. Por mais que tente percebe que nem sempre é possível.

E a dor trás o medo. De que? De quem? Ficaram curtas as questões, o silêncio aqui se fez necessário.

Experimento uma resposta: talvez o medo da leitura de uma escrita que não é estruturada, nem desestruturada. De não fazer igual ao modelo existente e de não fazer diferente. De não ter lugar, não ser lugar, viver só, na escrita de algo que não pode dizer por não saber como. De me perder na distância entre o que faço e o que digo.

Escrever é desafio. Li, ouvi e compartilhei várias vezes essa ideia. E o que é um desafio? Colocar alguém a prova? Desarticular, encher de velho o que novo nunca será?

Sim, meu amigo e minhas amigas, o texto começa assim. Cheio de medo, de dor, de incertezas. Indagando, sussurrando, quase gemendo, com os olhos baixos para não enfrentar o riso daqueles que dirão: este é o seu trabalho? É isso que chamas Ciência?

Mas não se enganem, porque a malícia sempre se faz presente. Mesmo que não haja palavras. Os olhares, os beijos, os cumprimentos nos corredores, os buchichos!

Retorno ao que escrevi e novamente usarei a frase: muitos dirão. Dirão o que querem ou o que precisam dizer. E estragam o texto, o transformam na forma, no conteúdo, no conceito e na ciência que acreditamos neles conter. Observem também me incluo; creio que esta atitude é a única possível, pois sou o „resultado‟ dessa pedagogia controladora. Porque me proponho a escrever, sei que a responsabilidade é de um fazer cuja exigência ética se faz no autoconhecimento, reconhecendo assim os próprios limites.

E a ousadia? A quem pertence?

Enfrento o medo e quebro a regra ao escrever esta dissertação porque a linha de pesquisa ao qual me filiei pensa a vida cotidiana, em como as pessoas estão vivendo e o que lhes acontece e não se deixa engessar pela forma do pensar dominante, buscando alternativas de pesquisar e de fazer ciência.

Uma ciênciavida: ciência comprometida com a vida, com modos outros de viver, coletiva e solidariamente. Junto aqueles e aquelas que têm um pensamento revolucionário, assumo que pensar a escrita de qualquer trabalho é um gesto de experimentação, é uma

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experiência que se faz no campo político, epistemológico, teórico e metodológico. Não posso me fazer ausente.

Experimento nesta dissertação, tecida com muitas mãos, com muitas vozes, com muitos gestos amorosos, na amizade e na contramão da violência, a difícil tarefa de quem se propõe a escrever, a partir da exposição.

E assim, de uma semente, lançada em meu ventre pelas doces e sorridentes palavras do menino Guilherme, em uma gravidez encantadora, nasce na escrita, a escrita de uma vida, nela estou, não há a menor possibilidade de reduzi-la dizendo que existe apenas o meu dizer ou o meu existir. As palavras do menino poderão ser lidas mais adiante, na carta que escrevi ao professor José Machado Pais.

As sementes quando são lançadas no solo, se em condições favoráveis, germinam ou morrem e a germinação é um dos processos naturais mais lindos de se observar, seria maravilhoso que todos pudessem ter essa oportunidade. De uma pequena semente, ou seja; de uma vida, nasce outra planta, plena e inigualável. Também singular. É por isso que desconfiei da incerteza de Guilherme, porque ele apostou e plantou, parecia saber bem o que estava fazendo.

E as palavras desse pequeno menino se tornaram ideias dançarinas. A cada dia, a cada leitura, de um novo ou de velhos textos, passos de danças ainda a aprender, cada uma mais diferente que a outra. Não havia lugar determinado ou uma definição para os ensaios, passaram a acontecer a minha revelia. No ímpeto e na força criaram coreografias ousadas, quase uma imposição.

E quando Carmen Pérez, minha orientadora, me questionava: “o que você deseja tratar na sua pesquisa? Como pensa a sua dissertação?”, as palavras me abandonaram e em uma encruzilhada desafiaram a todo instante a tão sonhada decisão. Tudo o que mais desejava era ter respostas e dizer de modo claro, sem rodeios minha intenção.

Não soube responder, apenas tinha a semente no ventre, mergulhada nas crises, nos estranhamentos, não percebi que a semente estava em processo de germinação.

E as ideias dançarinas trouxeram a solidão e a dor. Quase sem forças, comecei a ler tudo que me indicavam e passei a comparar minha pouca escrita com as escritas das companheiras da linha de pesquisa e com os textos que lia. Sentia falta de um modelo, de uma base que sustentasse meus pensamentos e passei da comparação a constatação: como é possível que eu não tenha aprendido a escrever?

Constatei o que antes era suspeita, diante da lágrima e da choradeira, senti o silêncio da infância, da criança que não mais sou.

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Por que não sei escrever? O que me faltou? O que me falta? Sim, sou eu que não me encaixo, não pertenço a este mundo acadêmico, não sei dizer, me falta ousadia, sou um ser sem criatividade, sim, o que sou?

Avisei desde o início que apesar da palavra, malícia, não fazer parte do trabalho poderia aparecer. É que gosta de se travestir, às vezes recebe até um nome bonito: „generosidade‟.

Digo isso porque do mesmo modo que encontrei no deslocamento do corpo a solidariedade nas ações da família e das companheiras de pesquisa, encontrei a malicia em mãos „generosas‟, que com voz doce criavam o jogo de sedução, assim como o Lobo fez com Chapeuzinho Vermelho, mas vamos prosseguir.

Comecei com uma ideia, um projeto, desejava fazer uma pesquisa com crianças da escola em que trabalho. Não sabia como, nem por onde iniciar a pesquisa. Queria muito conhecer a infância revelada pelo menino Guilherme. Mas o caminho, até então indefinido, foi sendo direcionado pela vida, pela invenção de outra ideia. Não contava que no percurso fosse ser surpreendida. Dedicada ao projeto, meu corpo se fixou a torna-lo real, no entanto a vida não é determinada, altera nossas intenções em frações de segundos.

Impossível afirmar que segui um único método, o próprio caminhar, ou melhor dizendo, o vadiar pelas experiências, que se fez.

Depois de tentativas frustradas e frustrantes, na busca pela teoria na teoria, me reencontro com minha prática. Sim, a prática da professora, a experiência que até então não percebia como semente, e em processo de germinação.

Sinto como se o menino Guilherme com suas mãos pequenas e quentes acariciasse meu rosto neste momento. Instantes em que escrevo na solidão de um quarto, em que sua imagem, seu cheiro e sua essência estão diante de mim.

Para não mais enfadar vocês, meu amigo e minhas amigas, quero nesta escrita apresentar uma maneira mais criativa de fazer ciência; comprometida com os homens, com a partilha, a solidariedade, a liberdade e o amor. Uma ciência em que a subjetividade é a própria beleza, pois revela a diferença, que transfigurada ou encarnada em palavras nos faz crer em um mundo outro.

É firmada nesse compromisso que penso e teço esta dissertação em cartas, porque sei ser impossível fazer só. Quero compartilhar, conversar com os outros, dividir as ideias dançarinas. Assim como, quero ouvir, suas ideias e críticas, seu sentir o mundo, seu fazer, seu viver. Quero sentir o mundo que nos une; nossas preocupações e limitações.

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Encerro aqui, desejosa por conhecer as ideias de vocês e tecer quem sabe novas escritas. Um abraço afetuoso,

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O Erro como experiência no cotidiano

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Rio de Janeiro, 25 de outubro de 2017. Querida professora Patrícia,

á certo tempo que não conversamos o que me trouxe um acúmulo no desejo de compartilhar as experiências vividas no Mestrado em Educação que iniciei, em 2016, na Universidade Federal Fluminense e que tem me possibilitado pensar, pensamentos outros, acerca da escola e da educação.

Pensamentos que incentivaram a leitura de teóricos que conhecia apenas de ouvir falar, como: Rubem Alves, Franz Kafka e Michel Foucault e de outros que desconhecia como: Michel de Certeau, Walter Omar Kohan, Jorge Larrosa e José Machado Pais.

Uma dessas leituras, depois de muita procura e uma dose exagerada de paciência, encarnou-se com a aquisição de um exemplar do livro Vida Cotidiana: enigmas e revelações, de José Machado Pais (2003).

Autor e ideias conhecidas inicialmente com você, Patrícia, no seu gesto de dar a ler aos estudantes. Uma leitura fracionada, em que apenas alguns capítulos do livro mencionado acima seriam estudados e compartilhados nas nossas conversas.

Mesmo que todos os estudantes tivessem acesso aos capítulos disponibilizados por você, a maioria de nós optou em ler apenas o determinado a cada grupo. Na época, compreendi que essa opção tinha sido feita pelas professoras do grupo em que eu estava inserida, pelas dificuldades de conciliação das atividades desenvolvidas pela Academia e pelo trabalho. As professoras do meu grupo trabalhavam em mais de uma escola e enfrentavam rotinas em que o tempo para o estudo era pouco.

Desse modo, que no curso de Especialização em Educação Infantil, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que teve seu início em maio de 2015, tive a oportunidade de te conhecer Patrícia. Você como professora da disciplina de Introdução ao Cotidiano, eu, uma estudante e professora da Educação Infantil da Rede Municipal de Duque de Caxias. Junto à você, querida professora, pude ouvir falar de ideias mais próximas às realidades experimentadas por nós, professoras da Educação Básica, nos diferentes cotidianos escolares.

Hoje rememoro a experiência de debruçar-me na leitura do capítulo escolhido para o meu grupo e percebo como era tão diferente das tantas outras que estava acostumada a fazer.

Imersa na leitura do Capítulo I: Nas rotas do quotidiano, do livro apontado no começo desta carta, experimentei o estranhamento tentando ver o que se passa no cotidiano escolar mesmo quando nada se passa. Experiência que compartilhei com você, lembra como foi

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Patrícia? Acredito que sim, ainda sinto o seu entusiasmo ao me ouvir enunciando cada palavra. No mesmo dia que te contei o que havia acontecido na escola e do menino Guilherme, você, durante a sua aula não se conteve e pediu que dividisse com as amigas da Especialização a história, o que fiz com relativo acanhamento. Quase no final da minha narrativa você me provocou ao dizer “vejo nascer um projeto de Mestrado”. Isso realmente aconteceu e sua participação nesse processo foi e ainda tem sido fundamental na minha jornada.

Como é bom compartilhar leituras, como é bom sentir desejo de ler, como é maravilhoso ler, concorda Patrícia? Parece um daqueles milagres que aguardamos todas as manhãs quando abrimos as janelas de nossas casas e lá está, o sol, anunciando o novo. Vivo o que flui deste milagre na emoção do reencontro com a leitura, por isso vibro a cada descoberta.

Passados quase dois anos de nosso encontro, querida Patrícia, tenho em outro texto, que também me deram a ler, a oportunidade de diálogo e assim alargar minha visão. O trabalho é de Fernanda Lima (2009) e me convocou, a começar pelo título, O olhar do estranhamento: Narrativas sobre as diferentes formas do fazer, ser e pensar da criança. Senti um desejo frenético de ler, de ouvir as histórias, de pensar e de conhecer as crianças que estariam ali. Essa publicação foi compartilhada na disciplina de Avaliação em Educação, ministrada pela professora Maria Teresa Esteban, no segundo semestre do Mestrado, quase no final do ano de 2016.

Para compartilhar a leitura foi necessário digitalizar o texto de Fernanda Lima e envia-lo aos e-mails das estudantes, tarefa realizada por uma das companheiras de turma. O título, como já disse, era bem sugestivo, nele percebia um apelo que gerou um estado de ansiedade, vislumbrei respostas, algumas questões que me provocavam poderiam encontrar naquela tessitura o repouso necessário.

Assim, apressei em preparar a mesa, buscar caneta, lápis e caderno. Tudo organizado para o momento da entrega, a obra seria aberta, e os olhos percorreriam as linhas, um ritual acompanhado pelos sons que vinham de dentro do corpo e anunciavam o tempo do encontro.

Comecei a leitura tateando... Busquei, nos outros sentidos, acalmar minha inquietação e dessa maneira saborear as palavras sem captura-las em meus achismos. A leitura era tão prazerosa que pressentia cada vez mais as intenções iniciais, a caminhada no escrito seguia tranquila e envolta por desejos de querer mais.

Lia e fazia paradas curtas e outras mais longas. Caminhava sem antecipar ou fixar minhas impressões. Até que minha caminhada no trabalho parou. As palavras estavam

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escritas, algo ainda a ser lido, mas nas últimas quatro páginas as palavras do texto estavam invertidas.

Pensei de imediato se tratar de um erro ocorrido na digitalização das páginas, mas por algum motivo também duvidei do meu pensamento, o que aguçou minha curiosidade e também a indignação. O estudo era necessário, o prazer na leitura não era descompromissado.

O desejo de ler e conhecer o que estava escrito naquela última história exigia uma escolha. Como é difícil tomar certas decisões, não é mesmo Patrícia? Mas precisei agir. De início pensei em abandonar as palavras do texto e me contentar com o que já havia encontrado, mas os ouvidos tiraram minha paz. Eles me inquietaram e me fizeram escrever uma mensagem à aluna responsável pelo envio da obra, onde questionava o suposto erro.

Aguardei a resposta, porém a impaciência e ansiedade se fizeram cúmplices e não resisti, escrevi nova mensagem, à outra amiga de turma. Dessa vez, a resposta chegou ligeira e nada atraente. Ela dizia em sua resposta que não havia erro, que o texto havia sido escrito assim: invertido.

Confesso que no momento em que li a afirmação de minha amiga de turma fiquei ainda mais curiosa, mas o aborrecimento também ficou estampado em meu corpo. Considerei absurda a ideia de se escrever assim, com as letras invertidas, porque contradiz as normas tradicionais da escrita, de onde vem o meu saber. O tempo também era meu inimigo. Fui envolta por sentimentos antagônicos como repulsa e atração.

Mas as vozes que ecoavam do texto me instigaram. Precisava ler... precisava ler... precisava ler. A novidade oferecia um risco e alterava o curso da leitura e da minha suposta certeza. Afinal, Patrícia, não é tão fácil se desprender de um modo de fazer ou saber, que, diga-se de passagem, era o único que eu tinha.

A necessidade dessa leitura foi dominando meus sentimentos e me impulsionou a buscar um modo de ler. Se Fernanda Lima havia escrito seu texto invertido, precisava descobrir o que estava escrito para compreender o sentido da inversão.

A curiosidade de mãos dada ao desejo saiu vitoriosa. O que acha de te enviar o texto da Fernanda Lima, do jeito que recebi Patrícia? Conhecendo um pouco mais de você, sei que deve estar bem curiosa.

Investi no pensamento e lembrei-me do espelho, achei um pequeno dentro da bolsa. Coloquei-o junto à tela do computador e saboreei cada palavra que nele se refletia. No entanto, o espelho era muito pequeno e a dificuldade da e na leitura ainda era grande. A minha forma de ler, a única que conhecia até o momento me impedia de prosseguir. Abandonei a ideia.

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Até que levantei do meu lugar de conforto, a cadeira estofada em tom azul escuro, ela escondia o suor e a aflição daqueles longos momentos. Fui à busca de um bom lugar para ler, achei o banheiro e um espelho maior, posicionei a tela do notebook e finalmente consegui ler as duas primeiras páginas invertidas.

Feliz pelo espelho, mas agoniada pelas lembranças e memórias que brotavam daquele lugar, até então despercebido como um bom lugar para ler e distante do meu desejo. As imagens da escola iam e vinham, assim como as salas de aula. Não havia mais espaço no meu corpo para pensar em mim, ou nas intenções primeiras.

O deslocamento, Patrícia,exigia desprender-me de um modo de pensar, ser e fazer. E como raízes expostas após o corte, as certezas, sobre o meu modo de escrever e de ler, eram provocadas e o conhecimento herdado das ciências criadas e desenvolvidas na modernidade, que nos habituamos a ver como direção, pode ser visto como limite.

Depois de feita a leitura de duas, das quatro páginas invertidas, prossigo para as duas restantes e descubro que além da inversão das palavras, havia outra alteração, a posição da página era de ponta a cabeça.

Querida Patrícia, precisei novamente buscar naquele lugar (o banheiro), que já via com outros olhos, uma maneira outra de ler. Ler o invertido do invertido. E nesse momento experimentei a dor daqueles que afirmamos ser fracassados, daqueles que se colocam diante das folhas, das palavras, das letras e não leem. Daqueles que carregam a cruz do fracasso, que crucificados são todos os dias pelas leituras quem sabe invertidas, pela impossibilidade de ler.

No espelho não via mais as palavras, saltava-me aos olhos meninos e meninas, com suas histórias e sonhos.

Passei a sentir a dor daqueles que se tornam alunos, alunas. Estive no lugar com eles e elas por alguns minutos. A agonia de querer ler, de precisar cumprir a tarefa solicitada, de ter que compartilhar com os outros a compreensão do texto rompeu o silêncio e as lágrimas num movimento inesperado foram guardadas, a vergonha se fez mais forte.

Durante os deslocamentos, no interior da minha residência, os moradores da casa não notaram meus movimentos. Tudo passou despercebido, estive invisível na visibilidade, um sentimento de esquecimento me devorou.

Patrícia, outras questões se colocam e contar a você essa experiência requer uma ruptura com o aprendizado acerca da leitura, da escrita e das práticas que estamos imersas no cotidiano escolar. O que direi da leitura, da escrita e o que chamarei de erro a partir de agora? O pensamento repensa a escola dada, a escola que me deram a ver, sentir, viver. Assim pensa o suposto erro, o erro como suposto, e se repensa. O que pode um erro? O que é

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um erro? Seria o erro uma praga? Um malefício? Algo que devemos temer? Ou podemos ousar pensar no erro de modo outro?

Quero dividir com você, Patrícia, esse tema. Anseio conhecer suas ideias acerca do que trago, mas saiba que não tenho a intenção de responder as questões que estão sendo pensadas, mas pensar nas questões quem sabe, como percursos e alternativas na alfabetização que pratico. Também não há propósito de explicar ou criar artifícios que satisfaçam nossas crenças pedagógicas. Não almejo me isolar e ficar pensando sozinha, ficarei aguardando sua carta-resposta que tenho certeza chegará em breve.

Posso dizer minha querida, que o erro das folhas digitalizadas ao contrário por minha companheira de turma foi um bom lugar para ensaiar meus pensamentos. Esse erro me possibilitou a experiência e ensaio meus pensamentos na perspectiva foucaultiana: “uma experiência é algo do qual a própria pessoa sai transformada” (FOUCAULT apud KOHAN, 2005, p.13). Como posso continuar sendo a mesma de antes, Patrícia?

Acredito que você, minha querida, me diria que há nessa narrativa, a leitura de uma experiência, da qual saí transformada e com desejo de comunicar não mais as mesmas ideias, mas pensamentos outros. A experiência impulsionou a tessitura, não a conformação. Pode ser solitária, contudo reclama a partilha. Que a dificuldade de ler, ou seja, a impossibilidade de ler motivou o deslocamento e a busca por modos outros de leitura e agora se mostra como um indício. Sabe Patrícia, nossas conversas e suas mensagens via email é que me fazem crer que seriam essas as suas palavras, porque você procura não apenas compartilhar e ser solidária, mas também deixar provocações que me levam a uma reflexão mais crítica.

Mas por que a dificuldade de ler pode ser um indício?

Aprendi com Carmen Sanchez (2003) que existe o paradigma indiciário e que ele se mostra, na maioria das pesquisas com o cotidiano, o mais ajustado, por concentrar-se nos detalhes, em dados marginais, em resíduos considerados como pistas, indícios, vestígios, sintomas e sinais. “As leituras realizadas a partir dos indícios são as leituras possíveis” (SAMPAIO, 2003, p.26). Como estou na linha de pesquisa Estudos do Cotidiano da Educação Popular, que pensa a vida cotidiana, a problematização desse impedimento animou o pensamento a pensar também nas práticas de alfabetização.

Mas antes de prosseguir, é necessário compartilhar que a dificuldade de ler impulsionou não apenas a busca por um modo outro de leitura, mas também por uma pesquisa outra com fontes diversas, rica em possibilidades. Um movimento, que ainda em processo, me levou a reler alguns autores como Sonia Kramer e Paulo Freire, que pensam de modo outro a leitura e a escrita.

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Minha querida, Paulo Freire (2006) ao enunciar acerca da importância da leitura, em seu livro A importância do ato de ler em três artigos que se completam mergulha na sua experiência existencial na tentativa de fazer uma arqueologia de sua compreensão do complexo ato de ler. Uma ação que foi compartilhada por ele com a releitura de sua prática em momentos guardados na sua memória, em que as experiências da infância, da adolescência e da mocidade possibilitaram a compreensão crítica da importância do ato de ler.

Na releitura de suas práticas, o autor compartilha o processo que viveu através do seu esforço de re-criar e re-viver na infância duas experiências: a primeira se dá no momento em que ainda não lia a palavra; a segunda, em que a leitura da palavra foi à leitura da palavramundo. A primeira pensa uma leitura que precede a leitura da palavra. A leitura do mundo. Mas, Patrícia o que é ler o mundo?

As pistas nas práticas de Paulo Freire possibilitam nos aventurarmos nas respostas, deixarei a minha, que acredito ser provisória e aguardo conhecer a sua Patrícia, afinal dirijo a pergunta a você.

Penso que a leitura do mundo é experiência, aprendizado, ensinamento e conhecimento em que a compreensão do contexto em que se está inserido se abre à leitura crítica de tudo que se mostra em constante movimento e mudança.

Esse pensamento, dentro da escola pública, da qual faço parte, parece ainda ecoar com desconfiança, pois o que está posto na escola é o conhecimento do mundo, de um mundo pronto. A leitura se iniciaria com apropriação desse conhecimento, portanto desse mundo.

Ler o mundo sem ainda ler a palavra é inverter a lógica imposta no cotidiano escolar, reconhecendo que a leitura não se tece apenas com a decodificação de letras, sílabas ou palavras.

A complexidade desse processo se inaugura com o reconhecimento por parte da escola do primeiro mundo das crianças, o mundo em que se movimentam, onde são feitas as primeiras descobertas, relações se estabelecem e as leituras se encarnam em gestos, objetos, animais, sentimentos, fazeres, pensamentos.

Com Carlos Brandão (2002), pude conhecer A Educação como Cultura e vivenciar no diálogo com o autor o alargamento das ideias trazidas por Paulo Freire. Em seu estudo, Carlos Brandão apresenta quatro cenários da vida sociocultural. Esses cenários ao serem expostos mostram a conexão dos espaços em que adultos e crianças compartilham a vida e o trabalho. Os cenários são: o mundo da família, o mundo da comunidade, o mundo da escola e o mundo do trabalho.

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O autor, Patrícia, nos faz pensar nas crianças que fomos e que ocupam hoje um lugar no mundo dos adultos e que viveram ao sabor de uma “aventura do habitar entre adultos dentro de um mundo feito por eles e, em maior medida, quase sempre para eles” (BRANDÃO, 2002, p.197).

Perguntamos hoje sobre os caminhos que trilhamos nessa aventura e como conseguimos nos diferenciar dos adultos. Observamos suas invenções e, diante dos nossos olhos meninos e meninas experimentam entre eles próprios, entre eles próprios e para eles próprios as vivências germinais de quase todas as interações que, adiante; irão criar e reproduzir os campos cotidianos e históricos da vida social dos seres até aqui considerados como da cultura: os adultos.

Cenários em que a vida se efetiva com trocas de vivências, de saberes, de fazeres, de sentires. Espaços que são alargados, que começam no interior de uma família, avançam para comunidade, para o trabalho e a escola. Mundos existentes dentro de um único mundo, submetido a um modelo de racionalidade hegemônico. Interconectados, interferem e sofrem interferências, mostrando a total dependência das partes.

Na releitura da sua infância, da adolescência e mocidade, Paulo Freire,também circula por esses cenários e faz diferentes leituras e na medida em que vai se tornando íntimo desses mundos a leitura é mais crítica que a leitura anterior.

A segunda experiência pensa, que a leitura da palavra não se dá com a ruptura da leitura do mundo. À medida que a compreensão do seu primeiro mundo se dá como experiência nas crianças, a leitura da palavra flui naturalmente desse mundo. Esse movimento faz com que Paulo Freire considere esse um dos aspectos centrais do processo de alfabetização, antes mesmo que as crianças realizem a leitura da palavra, elas já leem o mundo.

O ponto de partida nessa perspectiva não é a leitura da palavra e sim o que a precede, a leitura do mundo. Um mundo que começa no cenário familiar e que se amplia para os outros cenários da vida. A leitura da palavra vem do mundo e da leitura que cada um de nós faz desse mundo. Através da nossa prática consciente, vamos escrevendo e reescrevendo esse mundo, transformando-o, pela leitura e aqui, ouso repousar em seu pensamento, ansiosa por conhecer suas ideias Patrícia.

A leitura do mundo, que precede a leitura da palavra se dá no movimento e no diálogo. O pensamento se funda na percepção desse movimento não como troca e sim como exigência do encontro daquele que ao dizer a palavra, pode pronunciar o mundo.

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Algumas ideias e filosofias cristalizadas teimam em paralisar essa escrita e modificar a rota desse texto, mas correrei o risco na exposição, fundamentando as ideias na experiência da leitura invertida para alargar as possibilidades de diálogo com Paulo Freire e Carlos Brandão.

Na impossibilidade de ler o texto escrito inaugurou-se um diálogo, uma infância. O encontro daquela que diz a palavra no texto escrito e daquela que o deseja ler. Duas mulheres, que não se conheciam, mas que mediatizadas pelo mundo, pela escrita e pela leitura, buscam pronunciá-lo. As palavras invertidas no texto teimaram, ainda teimam, em se enunciar. Ainda que na impossibilidade do outro ler se fizeram ser lidas. Abriram mão da sua vaidade, do desejo de conquista, se entrelaçaram na generosidade da partilha.

O diálogo, portanto, é uma exigência existencial, caminha com a leitura do mundo, não se faz na imposição, é ato, de criação e recriação do mundo, daquele que ao enunciar a palavra reconhece sua própria ignorância. Como tem sido importante o meu diálogo com você, Patrícia, como esse ato tem modificado minha prática cotidiana, dentro e fora da escola.

O primeiro mundo, experimentado na infância por Paulo Freire, encontrou nos cenários trazidos por Carlos Brandão a possibilidade de ampliação do pensar compreendendo como esses cenários são compartilhados pelas crianças das classes populares, sendo desconsiderados pela escola. Qual a dificuldade da escola em reconhecer o primeiro mundo das crianças das classes populares? Por que suas experiências são desconsideradas no complexo processo de alfabetização? Como você percebe e compreende essa situação, Patrícia?

As questões que surgem do pensamento evidenciam a necessidade de conhecer a infância, de buscar quem são as crianças que estão sendo alfabetizadas na escola pública. Quem são as crianças que estão sendo alfabetizadas?

Estimulada pelas ideias de Paulo Freire percebo que há uma ação a ser tomada: mergulhar no cotidiano escolar e reler algumas experiências em momentos diversos da minha história como professora alfabetizadora da escola pública, buscando responder a questão pensada, ainda que as incertezas exponham as fragilidades de um pensar que se repensa. O mergulho é ato que se faz da exigência daquele que deseja dialogar, de conhecer e comprometido está com a transformação do mundo.

Patrícia, antes de continuar preciso esclarecer que a discussão compartilhada não se postula como desmerecimento do modo de pensar, ou de fazer dos professores e professoras, em cujo grupo me incluo. Há no estímulo aceito a responsabilidade de, ao mergulhar no cotidiano escolar da escola pública que trabalho, não desconsiderar o que nele é pensado, sentido e feito.

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Também é importante dizer que na eleição do cotidiano escolar como espaço e tempo privilegiado de produção de conhecimento, abandono a ideia de que nele exista apenas reprodução, repetição e mesmice. O abandono se sustenta na experiência que vivi ao experimentar a leitura invertida, assim me abro ao diálogo com outros autores e outras possibilidades de pensar, fazer e sentir o cotidiano escolar.

Sabe Patrícia, o abandono das primeiras ideias veio com o trabalho de pesquisa. Assim, ao ler o artigo de Inês Barbosa (2008): Estudos do Cotidiano, Pesquisa em Educação e Vida Cotidiana: O desafio da Coerência; compreendi que a escola é um espaçotempo de complexidade da vida social e não apenas espaçotempo de repetição e mesmice. O texto trouxe um significado novo à minha maneira de praticar as leituras com as crianças. Por que ficar presa a leitura do acervo escolar? Será que as crianças desejam ler as histórias que inventam e que dificilmente colocamos no papel?

As crianças que chegam à escola e precisam ler a palavra são pensadas de diferentes modos: como inocentes e puras ou indomáveis e travessas, nada sabem e por isso precisam ser preenchidas com o saber do adulto ou até elaboram ideias do mundo, mas precisam experimentar e aprender para mudar esses pensamentos. Ainda existe no cotidiano escolar das crianças das classes populares correntes filosóficas que as veem como miniaturas de adultos, algo que imaginava ter sido superado.

É comum ouvirmos nas reuniões pedagógicas referências de condutas dos membros das famílias das crianças associadas aos seus comportamentos: “Ele é tão mal quanto o pai, só no tamanho que difere, porque no resto...”. Algumas formas de pensar e ver as crianças foram tecidos com o que foi historicamente pensado e vivido em relação a esses temas e circulam sem que se dê conta do que as fundamentam.

Uma primeira leitura das enunciações pode até conduzir ao erro de pensar assim, de criar julgamentos, talvez as possibilidades de ver estejam ligadas à compreensão do que miramos; corre-se sempre o risco.

As ideias da reprodução do comportamento como herança genética ainda se faz presente em diferentes espaços sociais e a camuflagem dificulta nossa percepção, assim não se coloca como absurda na escola. Se é necessário compreender para ver, a resposta pode vir do retorno a algumas questões. Como vemos as crianças? Como vemos as crianças que serão alfabetizadas? O que veem as crianças? O que vê quem não é visto?

Enquanto escrevia, saltou-me aos olhos: quem são as crianças que estão sendo alfabetizadas? Na questão formulada, que é recorrente nesta escrita, há uma pista, uma

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oportunidade de ver as crianças, de compreender na ideia que esconde a possibilidade de dizer quem são as crianças, como é nossa compreensão.

Foi o emprego do verbo na frase que chamou minha atenção, Patrícia, que ficou evidente a posição das crianças e o lugar que ocupam no processo. Elas sofrem a ação, não participam diretamente, assim, a alfabetização é pensada sobre as crianças e não com elas.

As práticas voltadas para alfabetização pensam na ação sobre o outro, sobre as crianças, porque nosso olhar forjado em padrões fixos de desenvolvimento estabeleceu a crença que, as crianças na fragilidade aparente de seus corpos físicos ainda não são. Falta a esses pequenos indivíduos as experiências necessárias para dizer „eu sou‟. Desse modo, as práticas educativas se mostram potentes instrumentos, capazes de socializar, domesticar o corpo indisciplinado, moldar, para que um dia elas se tornem alguém.

Na impossibilidade de pensar por si só, na imposição da lógica adultocêntrica, as crianças são desconsideradas nos seus modos de pensar, agir, fazer, sentir. Cabe ao adulto o papel de conduzir seus passos, à escola caberia o papel da instrução. Assim, acostumamos a pensa-las como aquelas que não pensam. O que é atribuído como falta, ausência, impossibilidade, se torna argumento, teoria, para nossas investidas em captura-las e de modo ordenado formAtar sua incapacidade, pois um dia elas se tornarão um adulto.

Não é difícil observar essas ideias, basta um olhar sensível e uma escuta atenta que veremos nas práticas de alfabetização em diferentes cotidianos escolares os vestígios dessa certeza da incapacidade das crianças.

E por que pensamos e agimos assim? Temos muito a refletir, o que você acha Patrícia? Sei que você nutre um interesse pelos estudos das infâncias e poderá compartilhar; se assim desejar, um pouco do seu aprendizado. Mas vamos retornar.

A questão leva a pensar no surgimento da ideia de infância que passa por diferentes estudos em diferentes campos do saber. Em sua pesquisa acerca da Infância e da Educação, Sônia Kramer (2001) esclarece que as classes hegemônicas universalizaram a ideia de infância da sociedade moderna com base no seu modelo de criança. Padrão criado a partir de critérios que levavam em consideração a idade e a dependência ao adulto. Os estudos da autora auxiliam na busca por respostas a questão.

Fomos formados nessa escola, não é Patrícia? Essa verdade que não é a única, mas que se tornou única e hegemônica atravessa nossas histórias e tem servido aos interesses políticos, que ampliam cada vez mais as práticas de subalternização e exclusão, fortalecendo-as nas práticas de leitura e de escrita. É difícil desprender-se desse modo de pensar, uma tarefa que

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