F orm ação da C u ltu ra Brasileira*
«A A m érica L atina é um a cultura. N ã o é fácil defini-la n e m sequer descrevê-la. O s escritores foram os que expressaram m elh o r essa realidade fugidia. Mas n e n h u m desses poem as e rom ances é, n em pode ser, u m retrato realista; todas essas obras são im agens ou, mais exatam ente, im aginações do que somos.»
O ctavio Paz (Paz 1993)
«E tem p o do Brasil despegar-se das fórm ulas vagas, p ro cu ran d o ver e observar os seus problem as, em vez de ater-se ao que está escrito nos livros estrangeiros.»
G ilberto F re y re 1
Cabe-nos reavaliar certos m itos fundacionais, cuja análise tem sido pre judicada p o r ideias preconcebidas para com preender m elhor nossas perspectivas para o futuro. A qui - num tem po de incertezas e desafios - viemos exercitar o conhecim ento das origens, reler a tradição em busca do diálogo para com partilhar o trajeto.
N osso objetivo é repensar o processo de form ação da cultura brasi leira, analisar com o decorreu sua génese e seu percurso, num a ótica transdisciplinar (que Edgar M orin denom ina de «pensamento
multidi-Desejo agradecer aos organizadores do Congresso: «Brasil- m odernização e globali zação» p ro m o v id o pela Associação A lem ã de Pesquisas sobre a A m érica Latina (A DLA F) e presidido pelo Professor G erd K ohlhepp e sua equipe e, especialmente, a seu D iretor, o Professor Karl K ohut, T itular de Filologia R om ânica da U niversida de C atólica de E ichstätt, o convite para participar deste evento tão im portante. Seu o p ortuno planejam ento em prom over e divulgar o pensam ento crítico sobre o Brasil fazendo-nos ver o Brasil através do o u tro , dem o n stra a visão sensível dos organiza dores. As conferências e comunicações apresentadas, os propósitos enunciados, além dos debates, representam contribuição a um m elhor conhecim ento da realidade bra- sileira.T am bém Q u e ro agradecer tam b ém aos professores B arbara Freitag e K arl K o h u t p o r suas intervenções, após m in h a exposição oral, que me fizeram desenvol v er alguns p o n to s desta versão escrita.
1 Essas palavras foram pronunciadas p o r G ilberto Freyre, aos 17 anos de idade, ao dei xar, n o Recife, o Colégio A m ericano G ilbreath.
mensional» p o r Edgar M o rin ), pois a globalização cultural que neste fi nal de m ilenio ganha relevancia devido aos avanços tecnológicos, exige um reajuste de pressupostos críticos. N ão é nossa intenção traçar um pa noram a exaustivo da cultura brasileira, realidade m últipla e complexa - mas form ular um a análise com espírito de síntese, abandonando o que nos pareça secundário ou inexpressivo, contribuindo, assim, para um m elhor conhecim ento da questão da identidade nacional e sua constru ção, que im plica em articulação de sistemas.
O estudo da globalização é particularm ente necessário do p o n to de vista da investigação cultural, levando à redefinição das identidades e os enquadram entos da m aioria das coletividades humanas, m ostrando-nos que grande núm ero de problemas atuais não é nacional, mas transnacio- nal. Deixando de considerar as culturas encerradas em territórios nacio nais, reforça-se, assim, a necessidade de repensar os com prom issos so cias, para estruturar novos balanços entre os interesses particulares de di ferentes setores, organizações e indivíduos po r um lado e, por outro, um pensam ento que busque transcender duas vertentes contem porâneas: uma, a visão da sociedade hiper- individualista, que sustenta o respeito da autonom ia individual e da vida privada, mas segundo a qual a esfera pu blica se subm ete à lógica do mercado. A outra, a visão da resistência dos que sonham em reviver o pensam ento macro- social do passado, em bora sem superar os m odelos hiper-integracionistas.
1. Q ue é Cultura?
A cultura é toda a herança de um a sociedade, é um m odo particular de viver, de sentir, de manifestar-se, com usos e costumes característicos, com certa m aneira de instalar-se no m undo, de apropriar-se dele e de apreender todos os comportam entos individuais dentro de um a estrutura social. E o p ro d u to de relações sociais , desde as quais se transm item significados individuais e coletivos. N as suas m últiplas manifestações tem a ver com os m odos de perceber e de sim bolizar o m undo, com os sonhos com partilhados. C u ltu ra é a som a de todos os recursos a que apelam nossos povos para viver, assim com o as múltiplas formas como m anifestam sua existência. A cultura reflete as ideias dom inantes e m er gulha no dom ínio obscuro e fecundo em que se elabora a consciência nacional. C om o processo, tam bém é tradição, isto é, o conjunto de valo res dentro dos quais estamos estabelecidos. Consideramos fundam ental o papel da cultura na form ação de um a nacionalidade, com sua reflexão perm anente do ser na história.
O conjunto orgânico das histórias locais é nossa com um história co lonial. Falando dos habitantes da A m érica Latina, Simón Bolívar, o Li bertador, dizia não conhecer situação mais extraordinária nem mais complexa: «Não somos nem europeus nem índios, pertencem os a um a espécie situada entre os indígenas e os espanhóis.» E acrescenta: «Ameri canos p o r nascimento e europeus po r direito, encontram o-nos com pro m etidos em um conflito que nos leva a disputar títulos de posse aos indí genas e a m anter-nos no país que nos viu nascer, opondo-nos aos inva sores.»
N isto reside a originalidade e a complexidade desta América, nascida da transculturação e não da assimilação,2 como voz alternativa da cultura ocidental. O espanhol e o português são inseridos num subsolo autóc tone, encontrando o equilíbrio entre as novas aquisições e a expressão original, processando um ajuste entre a tradição européiae os estímulos do p atrim ónio indígena, locais.
A A m érica deu um novo sentido a cada traço cultural trazido pelos conquistadores, criando outros de poderosa originalidade: a do encontro de palavras, de conceitos, de idéias e de sonhos, a passagem de um a lín gua em inentem ente oral a um a língua selada sob o signo da escrita, um a e ou tra nutrindo-se m utuam ente em processo dialético de destruições, complementações e ressurreições (Bareiro Saguier 1995). As culturas co loniais sofreram com a perda das referências originais, elaborando e re definindo outras num contexto novo.
A problem ática de um a cultura é, po r vezes, mais artificial que autên tica, po r não alimentar-se de experiências próprias. O desejo de «ser» e «fazer» levou o escritor americano a um a experiência prem atura que não corresponde a sua realidade. É lam entável que haja frequentem ente a tendência a fundam entar opiniões e juízos acerca da Am érica Latina, sua vida e sua cultura, baseados em notícias, estatísticas e inform es m era m ente técnicos. Pouco se sabe sem o conhecim ento de sua produção
ar-2 O term o «transculturação» foi cunhado p o r Fernando O rtiz, em C ontrapunteo cuba no del tabaco y el azúcar. H avana, C onsejo nacional de C u ltu ra, 1963. D izia ele: «ntendem os que o vocábulo transculturação expressa m e lh o r as diferentes fases do processo tran sitiv o de um a cultura para o u tra, p orque esse processo não consiste apenas em ad q u irir um a cultura, que é o que, a rigor, indica a palavra anglo- germ ânica aculturation mas, ao contrário, o processo implica tam bém necessariamen te na perda o u no desenraizam ento de um a cultura precedente, o que poderia ser considerado com o um a parcial desculturação e, alem disso, significa a conseguinte criação de novos fenóm enos culturais que poderiam ser denom inados neocultura- ção».
tística e pouco se sabe do espirito que anim a aos latino-am ericanos e o significado hum ano de seus problem as vivenciais.
2. As Etapas da Busca de urna Cultura Própria
A m érica surge num m om ento de crise. Segundo F o rtu n at Joseph Strowski (1946:124), o século XVI «trabalha num a meia luz; sabe que é a alvorada e onde está o oriente, mas não discerne ainda o co n to rn o das coisas». Pela expansão oceânica, a partir do século XV, a cultura europeia universaliza-se. O pró p rio M ontaigne, em suas reflexões, chegou à con clusão de que a justiça não era o patrim ónio da Europa.
A transform ação do imaginário europeu pelo descobrim ento (ou in venção) da A m érica e do Brasil foi um fato decisivo, provocando p ro funda revolução na ciência, na econom ia e a filosofia européias, contri buindo para as profundas modificações ocorridas na Europa.3 Ao mes m o tem po, a pluralidade de culturas transladadas e invasoras foi m odi ficada ao contato com as culturas vencidas.
E nquanto descobria a A m érica e o Brasil, a Península Ibérica trans form ava a Europa. C om isto não fazemos alusão apenas ao exotism o, mas à manifestação intelectual de aspecto mais profundo. Para os pensa dores europeus, os índios provocaram um a secular questão: o contraste entre natureza e cultura.
A Europa acabava de revalorizar a antigüidade greco-latina de que ex traia poderosas forças que determinaram o chamado Renascimento. Para a reconstrução européia dispunha-se desses m odelos, quando o desco brim ento da A m érica fez nascer nova concepção do m undo. N a antiga tradição da cultura ocidental exaltavam-se as virtudes e as possibilidades hum anas, mas acreditava-se que o hom em não era bom . Para os hum a nistas, a Idade de O u ro existia no passado. As notícias chegadas nas car tas fundacionais do N o v o M undo m udaram aquele estado de espírito. Visões e presságios cum priram -se. Descobrem-se os Eldorados (vide Voltaire), o Eden, o Paraíso p rim itivo que já se considerava perdido. O im aginário europeu, com seus m itos, lendas, o m undo teratológico vai adquirir cidadania na América. Vemos aparecer um a literatura comple
3 O descobrim ento da A m érica foi visto d urante m u ito tem p o com o «o grande feito do h o m em europeu que se tornava irreversivelm ente m oderno e crescentem ente ra cionalista. A p risionando e c o n tro lan d o pela p rim eira vez o espaço do globo, esse h o m em passava a ser sen h o r dos m ares e subjugador das culturas estranhas, im p o n do p o r to d a a parte seu credo, seus hábitos, sua visão de m undo» (Mello e Souza 1998).
tam ente nova, a das utopias e cidades ideais. O fantástico medieval mis tura-se a um fantástico autóctone com seus temas icônicos. O Renasci m ento, que em seu início olhava para o passado, volta-se para o futuro.
A visão da Am érica como terra de inocência segue-se na literatura de viajantes e nas teorias rousseaunianas do «bom selvagem». (Rouanet 1998: 5) «Razão natural», «obediência à natureza» são tam bém fórmulas do século XVIII que deseja ser universal, alim entando os valores do cosmopolitismo. C om o disse Francisco Rom ero: «Até o descobrimento o m undo sofria pela ausência americana».
3. O rigem C om um e Transculturação
A história da cultura na América Latina, em sua complexidade, ainda está po r escrever-se . Seu sentido tem sido buscado em referência à Europa e seus diferentes estímulos desde a época do D escobrim ento. A literatura com eçou p o r ser um noticiário desse m undo mágico, que parecia con firm ar arcádicos sonhos utópicos, e pelo qual se entrava no dom ínio de um futuro sem passado, enviado à expectativa da Europa. E ela se reve lava quase sempre mais voltada para a paisagem do que para o hom em do N o v o M undo, definido em função de dados externos, com m inucio sas descrições, sem penetração da realidade essencial e dos novos tipos de cultura, e falseando em favor dos esquemas mentais europeus. Se em um prim eiro m om ento, a colonização consiste na reduplicação do mes m o, desenvolve-se, paralelam ente, o conceito do outro: «Somos outros sem deixar de ser o que somos e que, sem deixar de estar onde estamos, nosso verdadeiro ser está em o u tra parte» (Paz 1993).
Os espanhóis e portugueses descobriram e povoaram o imenso terri tó rio que vai da C alifórnia ao sul do Chile. A empresa das Américas foi um a em presa com um da Ibéria, convertendo o oceano em cam inho de encontros. H ouve portugueses que penetraram na A m érica espanhola e houve gente da Espanha no Brasil colonial. Nesse sentido há m uitos pontos de contato entre a Am érica Hispânica e o nosso processo históri- co-literário. Ligam-nos à Espanha o passado e o futuro: tem os um pas sado com um — as origens ibéricas e, na América, o futuro concretizado na integração latino-americana. Subjazendo às variantes específicas, é vá lido falar de um a tradição igualmente com partilhada num contexto sul- americano. U m processo histórico com um marca a pluralidade sincróni ca dos sistemas literários que nos conform am em suas múltiplas com po nentes. M ovim entos ideológicos chegaram da Europa (enciclopedismo, liberalism o rom ântico, positivismo) e se metamorfoseiam, com ovendo
de m odo análogo o fundo com um de urna cultura e urna alma histórica, assim com o as línguas clássicas sobrevivem nas que se originaram delas, através de um imenso espaço geográfico.
N o século XVI inaugura-se a etapa colonizadora, de expansão do ca pital que caracteriza os inícios da m odernidade. A partir do século XVII enquanto a E uropa entrava nos processos que conduziriam a um a clara separação entre sociedade civil e Estado, entre a esfera pública e a priva da, a Ibéria perm anecia cada vez mais encerrada em um a ordem absolu tista que asfixiava as práticas sociais m ercantis até o po n to em que, em começos desse século, a potência espanhola começou a decair, a pesar da riqueza americana.
N os territó rio s americanos, a situação foi ainda pior. Depois de um século de destruição das sociedades autóctonas, o século XVII consoli- dou-se a um a ordem social despótica mais fechada que na m etrópole. A presença de vasta população indígena e africana reduzida a um a condição servil e dom inada po r um a m inoria de brancos conquistadores, outorga va à ordem social um a quase total ausência das práticas sociais que eram a base para a form ação da sociedade civil na Europa. E n tretanto, longe de ser um a sociedade feudal, a nova ordem americana foi desde o com e ço um p ro d u to genuíno do m ercado.
O descobridor representa, ao m esm o tem po, a soma de idéias, senti m entos coletivos e norm as éticas de um a época de contradições. Encon tra-se n um a encruzilhada de culturas e m arca o passo de um a idade a ou tra. Se, po r um lado, ainda está carregado de essências morais e religiosas da Idade Média, po r outro, no m om ento da grande aventura ultramarina seu conceito do m undo e do destino do hom em , sofreu o im pacto da penetração de novos valores e sistemas de crítica, na Europa. O coloni zador espanhol com o o português encarnaram o individualismo do Re nascim ento.4
Os portugueses eram o resultado de um a m istura de povos - os indí genas da Península Ibérica, os prim itivos iberos - e os povos que se cru zaram em constantes migrações pela Península Ibérica com o os celtas, os gregos, os fenícios, os rom anos, os visigodos, os judeus e os árabes.
Ao contato com a nova terra, o europeu transforma-se, segundo O r tega y Gasset, em «novo hom em ».5 O legado europeu transplanta-se através das missões portuguesas e espanholas - portadoras de im pulsos com uns - a um novo contexto.
4 Portugal, no dizer de G ilb erto F reyre era «uma nação quase não europeia». 5 A raripe Ju n io r concebeu a teo ria da «obnubilação brasílica».
N o m om ento em que os povoadores europeus enraízam no N ovo M undo delineia-se o que será o conflito perm anente da vida cultural da A m érica Latina dividida entre um passado pré- colom biano ou pré- cabralino e a herança ibérica, entre localismo e cosm opolitism o.
4. C om o era a Iberia no Renascim iento
N a época dos descobrim entos m arítim os, Portugal e Espanha estavam m uito pró x im o s, envolvidos na mesma realidade da Península Ibérica - a H ispânia dos rom anos. Através desse acontecim ento, a E uropa se co m unica com outros mundos. O português e o espanhol não eram m uito diferentes, entrelaçando-se com os destinos comuns de seus povos, onde se estabelecia um a sociedade quase à m argem da Europa. N en h u m dos demais países desenvolveu, com o Portugal e Espanha, a cultura da per sonalidade. A falta de hierarquia organizada devem-se alguns dos episó dios mais singulares da história das nações hispânicas (Buarque e H olan da 1983: 5).
O Brasil foi descoberto sob o mesmo signo cultural dos países hispa- no-americanos. Nasceu para a história quando os portugueses aportaram as suas costas e iniciaram o processo de europeização de nossa terra (Bonfim 1940: 52) A pesar dos m atizes divergentes, produziu nos p ri meiros séculos da vida colonial um a das contribuições mais originais à cultura universal. O mesmo projeto colonizador, a configuração de um novo esquema estilístico, irm ana os povos peninsulares em sua arrancada para o futuro.
A A m érica Latina, «nuestra América» (Marti), apresenta variedade e riqueza de universos mas possui significações culturais comuns. Poder- se-ia falar de hom ogeneidade diante de processos de formação tão com plexos? A unidade da Am érica Latina, um «crisol de culturas» parece in dubitável a p artir de sua história: sobre populações e culturas autóctones impõem-se padrões ibéricos comuns que favorecerão a transculturação. E ntretanto, este fato, durante a etapa de form ação das nacionalidades, perdeu-se de vista em função das circunstâncias políticas, económicas e culturais que dom inaram esse processo.
Ao cortar suas amarras políticas com as m etrópoles íberas, a América viu-se subm etida a um a dupla pressão: aceitar o passado fechando toda possibilidade ao fu tu ro ou arrancar-se do passado para poder realizar o sonhado futuro.
E n tretan to , a busca de um a filosofia própria para resolver os proble mas do N o v o M undo deve passar pela tradição. Mas ela por si só nunca
legitima «porque ela precisa do olhar crítico, que é plantadam ente histó rico» (Portella 1982). Tem os a responsabilidade de ouvir os ruidos ines gotáveis do passado, o trabalho dos predecessores, entendido com o ele m ento dinámico e irresolvido. A m em oria do passado é útil não para re abrir feridas mas para cicatrizá-las.
A A m érica Latina vincula-se à civilização europeia através dos valo res do pensam ento, da ciência, da cultura. C om estes valores integra-se a um a concepção económica, una ordem política e jurídica e um a nova es tética.
«Q uando se form u laram definitivam ente as pretensões portuguesas e espanholas às terras descobertas, o tratado de Tordesilhas dividiu o m undo de sorte que a Portugal coube a grande saliência da A m érica do Sul, n o A tlán tico e a Castela, o resto do co n tin en te - toda a A m érica do N o rte e a Am érica do Sul, a oeste da linha fixada no m esm o tratad o . O s lim ites entre as extrem as pretensões portuguesas e castelhanas não coincidiam . Pouco im porta, um a vez que para o Brasil ficou quase tudo que era reivindicado p o r Portugal, m uito mais do que de boa m ente lhe concediam os caste lhanos».6
A té 1870, a educação e a cultura das colónias latino-amencanas eram es tritam ente hispânicas, já que as civilizações nativas haviam sido quase to talm ente extintas e todo o comércio e intercâm bio cultural com o resto da Europa eram sistematicamente p ro ib id o s. Perguntar-se pela própria identidade equivale a perguntar-se, plantado na realidade: quem sou? qual m inha origem e m eu destino?
Evadir-se da identidade é desconhecer estas perguntas e criar um a au- to-imagem falsa, ao buscar assimilar-se a respostas alheias.
O processo da identidade constituiu-se em m ovim ento de afirmação e conquista de um caráter nacional em favor de nossas peculiaridades.
«O que cham am os identidade, afirm a O ctavio Paz, e que antes, com m aior proprie dade se cham ava o caráter, a alm a ou o gênio dos povos, não é um a coisa que se possa ter, p erd er ou recuperar [,...].A Am érica Latina não e nem um ente nem um a idéia. E um a história, um processo, um a realidade em perp étu o m ovim ento e m u dança contínua.[ ....].N ã o é fácil defini-la nem sequer descrevê-la» (Paz 1993).
O problem a de identidade para o hom em do N ovo M undo surge desde suas origens. N ão pode ser europeu nem índio. E não pode sê-lo porque os propósitos de resistência dos conquistados, assim com o a decisão, por parte do conquistador, de que o índio se assimilasse integralmente à cul tu ra hispânica, não tiveram êxito. O resultado é a luta que se origina en
6 Nasceu para a vida intelectual, segundo M anuel Bonfim , na insignificancia da m enta lidade portuguesa.
tre os esquemas ordenadores da mentalidade ibérica, que não se adaptam à realidade descoberta e os esquemas explicativos já existentes, produto do livre fluir entre m undo e cosmovisão que ficam marginalizados. Daí um a inadequação entre mentalidade e realidade, o que provoca, po r um lado, as superposições culturais, que dificultam em grau crescente o des cobrim ento da identidade real e, por outro, a busca incessante de identi ficações alheias, igualmente negadoras da possibilidade de reconhecer-se. N o caos produzido pelo choque cultural, na modificação dos esquemas m entais resultante do encontro de cosmovisões diferentes, perde-se a es tabilidade das certezas e surge um a auto-imagem nova. Este é o fato que define toda transculturação. A identidade latino-americana liga-se a um ideário histórico-politico de renovação de projetos de interesse coletivos.
O p o n to de partida para a autenticidade, o chegar a ser, não implica apagar um passado. O conhecim ento do passado deve estar vinculado aos problem as do presente. A velha disputa entre os filósofos do ser e do devir tem com o preocupação a da identidade do ser consigo mesmo.
C om o reconhecim ento dos valores com ponentes do contexto histó rico e cultural e das tradições que subsidiam o processo de formação da identidade nacional brasileira, pode-se chegar à configuração do m undo brasileiro no seu processo de definição que segue o do m undo hispano americano. Assim, será mais bem com preendida essa complexa com uni dade política e cultural que repousa na colonização portuguesa e espa nhola.
Existe um quadro geral, que se convencionou cham ar de latino- americano, delineado em consonancias com uns, originado de influxos europeus comuns em relação com os alimentados pelas raízes diferencia- doras. N u m processo de miscigenação, a Ibéria inseriu-se no espaço au tóctone das várias culturas, recebendo ainda a contribuição de outros contingentes migratórios. Nossa identidade histórica e cultural encontra se na herança comum da pátria latino-americana, sem excluir a alteridade. Superados os exclusivismos, as literaturas da Am érica Latina devem ser pensadas em função do mesmo contexto sul-americano, onde avulta a contribuição espanhola e portuguesa. Essas influências não são divisí veis nem geográfica, nem historicam ente.
A literatura, em seu mais amplo critério, é um a das parcelas universais da cultura, o lugar onde a identidade cultural se organiza e expressa co m o experiência viva. A identidade não deve ser questionada com o uni dade cultural, fixa e m onolítica e, sim, num enfoque transnacional que leve em conta a globalização da economia, os processos m igratórios, en tre outros. E na literatura que mais claramente se registra a idiosincrasia
cultural, onde o individual se entrelaça com o coletivo, onde asubjetivi- dade se relaciona com a realidade empírica. C om o toda obra do hom em , m ostra-o em sua totalidade ética e estética.
A literatura brasileira é o produto mais caracteristicamente brasileiro, o testem unho menos contestável da originalidade do espírito nacional e, desde logo, seu instrum ento de expressão.Teve papel im portante no pro cesso de busca da identidade nacional.
A identidade constitui-se de processos, m odos e formas culturais. A identidade problem ática de nossa realidade origina-se do choque propi ciado pelo encontro de culturas de características diversas e estende-se desde o descobrim ento (ou invenção) da América, passa pela colónia e a vida republicana com partilhadas.
5. Sob o Signo do Barroco
Os inícios da literatura brasileira processam-se em plena crise do hum a nism o renascentista, época de contradições e mascaramento dividida en tre o sagrado e o profano.
D escobertos durante o Renascim ento e colonizados pela C ontra- Reform a, o Brasil e os países hispano- americanos apresentam os fun dam entos de sua cultura e, portanto, suas raízes, no âm bito do universo barroco, prim eiro estilo da cultura ocidental m oderna e o prim eiro pro nunciam ento de autenticidade espiritual registrado na trajetóna cultural do hom em americano. N u m estágio m aduro da cultura, plasm ou um a nova estética centrada no hom em com o valor suprem o. Episódio do m ovim ento renascentista, a arte barroca, substância e princípio de nossa expressão literária, constituiu-se de um vigor inventivo de fantasia e agu da inteligência, buscando a sensação imediata, o efeito surpreendente e o impulso vital dionisíaco. Representa, em sua essência, um a ânsia de liber tação c ontra o gélido molde classicizante do Renascimento, que confor m a a sua criação. A rte sobrecarregada até o tu m u lto , que se apresenta com o um a das conquistas mais poderosas do barroco. Contribuições di ferentes das diversas individualidades criadoras fazem com que a arte perca seu caráter unitário, constituindo-se a partir de elementos contradi tórios e conflitantes. N o grande teatro do m undo, instala-se o postulado do conflito e da transitoriedade, a vocação híbrida de sua heterogeneida de. C om sua magia transfiguradora, o barroco, expressão universal do descentramento do hom em , deu um a linguagem crítica ao Brasil, comum a to d o o C ontinente, através da influência de Quevedo em G regorio de M atos, espírito dom inado pela transgressão ao discurso da m etrópole,
m anifestada no barroco entre valores terrenos e carnais, religiosidade e m aterialism o.
Processa-se, então, entre os satíricos do C ontinente, em sua poesia ir reverente, um a fonte com um . Tam bém se constata na poesia academicis- ta dos séculos XVII e XVIII a presença do elem ento barroco. Quevedo personificou o polifacetism o, a denúncia de realidades, a filosofia pessi m ista envolta em sátira dolorosa. Intuiu o aniquilam ento do hum ano na contradição entre o hom em e o m undo, com um a visão transfiguradora na cultura ocidental. C om esse clima espiritual, a Am érica Latina, espa nhola ou lusa, insere-se a um a m edida universal e encontra seu apogeu nas obras de G regorio de M atos, do A leijadinho e do padre Vieira.
O prim eiro golpe de im portância contra o barroco foi o da ideologia do positivism o (adotada pela classe m édia emergente). E não porque chegasse às massas, mas porque modificou a instrução pública e conquis to u a classe dirigente através das Universidades. Q ueria resolver o pro blem a brasileiro com formulações européias, soluções engendradas po r outras realidades. O positivismo, filosofia do auge europeu e capitalista, penetrou no país não com o um «método de investigação» mas como um m odo de pensar em pírico, um a filosofia social, política e religiosa (Aze vedo 1964: 623), que substituía a idéia de liberdade pela de ordem .
Os liberais rom ânticos de 1840 transformaram-se, p o r volta de 1870, nos positivistas que, em seus diferentes matizes, desempenharam papel fundam ental, em bora não decisivo, no processo que culm inou com a Proclamação da República. N o Brasil, a doutrina de Com te confundia-se com a idéia utilitária da ciência, em prim eiro lugar, porque o positivismo concedia à ciência um caráter de exatidão, tentando livrá-la de qualquer caráter metafísico. Em segundo lugar, por sua proposta de construção de um a sociedade científica absorvida pelo projeto republicano de constru ção de um a nova sociedade no Brasil.
A Constituição de 91 e o Código Civil são inspirados no positivismo. A p artir de 1890 inicia-se o declínio de sua influência.
U m liberalismo vago, proveniente da França e da Inglaterra, havia-se to rn ad o im portante m arco da política brasileira desde a Independência de 1822. Esta favorece o prolongam ento de um a tradição barroca cujo imaginário perdura, contraditoriam ente, até o século XX, a custa da per sistência de situações de fronteira.
A evolução política que começa com a Revolução Francesa é na A m érica guerra pela Independência; o liberalism o luta contra o poder eclesiástico mas não transform ou a sociedade; a industrialização não é maciça e a aglomeração hum ana limitada a determinadas grandes cidades.
Ao longo do século X IX define-se um a consciência de diferenciação num prem aturo nacionalism o. Cada país tentava adaptar-se a formas e sistemas modernos. O s saltos históricos que diferenciam nosso processo nacional do europeu faziam com que estas formas de nacionalismo não tivessem a longa gestação m ilenária da E uropa (Picon Salas 1977).
6. R om antism o e Consciência N acional
D atam do rom antism o os prim eiros estudos de caracterização das litera turas nacionais e o caso brasileiro não foi exceção.7 O R om antism o, pri m eira tentativa de descrever os problem as brasileiros do ponto de vista brasileiro, procura esclarecer a realidade nacional e suas form as vivas, buscando um a genealogia nacional. Abandonam-se as convenções clássi cas, mas a terra brasileira ainda é vista sob a ótica m itificadora europeia, entre outras, a discussão sobre a natureza do índio8.
O m odelo deixa de ser Espanha e Portugal. Esta liberação implicava a celebração de laços económ icos e culturais com a França e a Inglaterra, im périos emergentes, em busca de novas referências e num a redefinição das relações com a Europa.
O Brasil, que constituía um a sociedade assentada num a econom ia ca pitalista de tipo colonial, ao sofrer influência do rom antism o francês, re age contra o racionalismo cartesiano. A filosofia da Ilustração alimenta va, sem dúvida, os m ovim entos emancipadores. A idéia de Am érica co m o «terra de felicidade» contrastava com as discórdias religiosas da Eu ropa, no desejo de conciliar os preconceitos nacionais do Velho M undo. Ê o que inspira o pensam ento de Bolívar e Jefferson.
A política e as letras estiveram ligadas nos prim eiros passos da vida independente do país. Foi essa coincidência histórica que levou muitos
7 A prim eira h istória a m encionar escritores brasileiros foi a Geschichte der Portugie sischen Poesie un d B eredsam keit de 1805 de F riedrich Bouterw ek. D istinguindo os traços nacionais dos autores que cita A n to n io José da Silva, apenas cognom inado o Ju d eu e C laudio M anuel da Costa B outerw ek assinalou o to rn popular das comedias do p rim eiro em especial na Esopaida e a contribuição brasileira à poesia portuguesa acredita no m esm o, nos Sonetos do segundo, «ouvir o to m ingénuo de antigas can ções portuguesas» (Cesar 1978: 8).
8 E m seus Ensaios (Des cannibales e Des Coches), M ontaigne ap o n ta as falhas da so ciedade europeia, criticando sua suposta superioridade.
de nossos escritores a julgar que o rom antism o era inerente à alm a na cional.9
C apistrano de A breu (1954) não om itiu ou evitou certos movimentos de opinião, lutas sociais que prepararam e form aram a con sciência nacional. A guerra dos emboabas, a derrota dos holandeses e as lutas dos mascates em Pernam buco têm o destaque que m erecem nesta h o ra de agitação. Os interesses reinóis e coloniais bifurcaram-se e torna- ram-se antagónicos. O s representantes das novas elites são a expressão de nova modalidade de burguesia, acentuando o antagonismo económico em relação aos tradicionais propietarios de terra .
A persistência dos velhos padrões coloniais viu-se ameaçada em vir tude dos acontecim entos que sucederam à migração forçada da família real portuguesa para o Brasil em 1808.
A chegada de D. João VI abriu novos horizontes à vida do país (Aze vedo 1964: 377). O crescente cosmopolitism o de alguns centros urbanos não constituiu perigo im inente para a supremacia dos senhores agrários, apoiada na tradição mas iniciadora de novos caminhos. M uitos não sou beram conform ar-se com as mudanças e com eçou a patentear-se a dis tância entre o elem ento «consciente» e a massa.
M arcada pela europeização, a inteligência brasileira volta-se para os diferentes m ercados da Europa. A nova cultura nacional diversifica os modelos europeus. A França pediram-se figurinos literários e filosóficos (de 1800 a 1860). Esta influência continuou a fazer-se sentir fortem ente até o começo da Prim eira G uerra mundial, sem impedir a filtração de ou tras literaturas e correntes do pensamento: à Inglaterra pediu-se o ritual do parlam entarism o e à Alemanha, a metafísica clássica e novas orienta ções científicas.
C om o advento da Independência, há um a febre de nacionalism o e im portação das novas ideias românticas. Aos rom ânticos coube atarefa de erigir literaturas nacionais dentro de um a ideologia nacionalista das classes dom inantes que justificavam a independência política e literária, superando a submissão a um cânone externo. Os escritores pertenciam a essas classes ou identificavam-se com elas. O Rom antism o passou do in dianismo nacionalista ( inspirado na sublimação do «nobre selvagem» de Rousseau) e do plácido «costumbrismo» enxertado em ingénuas histórias de am or ao âm bito da cidade, estabelecendo um percurso de
«reconhe-9 D iz Sergio Buarque de H olanda: «O ro m an tism o é, pois, u m m o m en to e não um a constante da história espiritual do Brasil», em: «Prefácio literário». O bras Completas de D .J.G onçalves de M agalhães, vol. II, p. XII).
cimento» que recobriu pouco a pouco grande parte do espaço geográfico e do «espaço temático» americano, mitificando o indio porque se encon trava m etaforicam ente m orto, m era lem brança do passado (Ortiz 1992). (O projeto d ejó se de A lencar, de fazer urna literatura nacional dentro das preocupações dos iniciadores do rom antism o brasileiro, incluía e exi gia esse percurso pelo territo rio nacional.).10 M achado de Assis inscreve sua produção no âm bito da burguesia urbana. N arradores regionalistas vão preenchendo outros vazios e criando um a literatura que ultrapassa o rom antism o para inscrever-se em algo m uito próprio de nossa América, o «realismo nacionalista».
A elite pensante funda em 1838 o Instituto H istórico e Geográfico Brasileiro e foram enviados convites a pesquisadores de renom e a apre sentarem ensaios sobre um plano para escrever-se a história do Brasil. O ensaio do etnólogo alemão Karl Friedrich Phillip von M artius, «Como se deve escrever a H istória do Brasil» (1845) foi prem iado como a m elhor proposta, em bora houvesse permanecido silenciado até ser redescoberto po r G ilberto Freyre.
E ntre 1830 e 1850, ocorrem lutas entre republicanism o federalista, m onarquism o constitucionalista que dividem as elites intelectuais do Bra sil. Som ente durante a G uerra do Paraguai e na campanha abolicionista começou a surgir o sentim ento de identidade nacional e o envolvimento popular na vida pública. O s anos de 1870 a 1889 assistiram ao declínio do Im pério. O Brasil foi vitorioso na G uerra contra o Paraguai (1865-70) mas o im perador d.Pedro II enfrentou crescente oposição por parte do m ovim ento republicano. Em 1889, os militares depuseram o monarca.
A p artir de 1890, sobretudo, após a abolição do trabalho escravo, e a implantação do regime republicano, o m ovim ento operário desenvolveu- se com o increm ento da imigração de trabalhadores assalariados. Esses anos viram o rápido crescim ento do café, com o o principal produto de exportação do país. C om o declínio do açúcar e do algodão no Nordeste, a econom ia brasileira concentrou-se mais no Sul.
Desde o início da campanha abolicionista quase toda a produção lite rária nacional se fazia no R io de Janeiro ou voltada para ele. A capital centralizava os principais acontecimentos até a consolidação da Repúbli ca. Sua posição de proem inência consagrou-se em 1897 com a inaugura ção da Academia Brasileira de Letras.
7. A Im agem a partir de D entro
N a A m érica Latina, a emancipação do discurso literário antecede a e- mancipação política e passa a gerar sistematicamente formas de relação com seus modelos que vinham insinuando-se desde o período colonial e que se originam de sua peculiar situação de cultura periférica.
O M odernism o hispano-am ericano (que corresponde ao nosso Sim bolism o e Parnasianismo) não incorporou em sua duplicidade (regiona lismo e cosmopolitismo) a apologia feliz do M odernismo brasileiro. Este foi a resposta à m odernização social do Brasil nos inícios da industriali zação, com binado a um a vontade de renovação expressiva da literatura. O M odernism o Brasileiro e a Vanguarda histórica dos anos 20 na A m é rica Hispânica desenvolveram um a consciência crítica, contra o academi cismo, buscando um perfil diferenciador, em bora a vanguarda, além de assum ir o novo com o n orm a estética, negando o passado e afirm ando o futuro, tenha sido, muitas vezes, ambiguamente, m em ória do passado e tenha im itado sem criar verdadeiram ente. A consciência ideológica da oligarquia rural une-se à revolução burguesa, questionando as instituições tradicionais na tentativa de redescobrir o país. O m odernism o recuperou o negro com o elem ento irreverente, «produto da estética populista de seu criador».11
Em 1942, M ario de A ndrade escreveu: «A transform ação do m undo com o enfraquecim ento gradativo dos grandes im périos, com a prática européia de novos ideáis políticos, a rapidez dos transportes e m il e um a outras causas internacionais, bem com o o desenvolvimento da consciên cia am ericana e brasileira, os progressos da técnica e da educação, im pu nham a criação e m esm o a rem odelação da Inteligência nacional» (An drade 1942: 13).
O M anifesto Antropofágico com sua fórm ula «Tupi or not tupi - that is the question» serve para ilustrar a busca de identidade e sua abertura em direção do O u tro . Essa busca de um perfil diferenciador toca, ao m esm o tem po, o problem a fundam ental da cultura brasileira, que se de bate entre suas raízes «indígenas» e a tradição européia. O sw ald de A n drade ten to u um a interpretação triunfalista de nosso atraso. P ropunha um a postura de galhofa, m etaforizada na deglutição do alheio, de «devo- ração» da cultura européia. C om sua conscientização antropofágica, foi
11 O negro gan h o u status nas obras de M achado de Assis, Jo rg en de Lim a e Jorge A m ado (B rookshaw 1986).
paródia da cultura oficial e recuperou o negro como elemento irreveren te.
A unidade espiritual e cultural com a Europa, representada por alguns escritores latino-americanos no século XIX, que ainda utilizavam mode los de expressão im portados, em bora trabalhando com um conteúdo de fundo nacionalista, rompe-se e da polem ica instalada no in terio r dessa unidade, surgem os -ísmos latino-americanos. Vinculada com a realidade sócio-cultural, a vanguarda, em nosso continente, foi um a resposta à no va situação . Seu grande papel foi possibilitar as mediações para que a pa lavra poética não fosse apenas diferente da encontrada em séculos ante riores, mas, de fato, nova pelo aproveitam ento de todas as possibilidades criadoras do idiom a.
O projeto cultural contem porâneo, no Brasil, passa pelo «romance social do Nordeste» que, reunindo Rachel de Q ueiroz, José A m érico de Alm eida, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Am ado, irá am pliar o espaço do regionalismo com seu realismo vertical. A busca da rea lidade explícita, isto é, a necessidade de referir a paisagem com o força de vida é a expressão de busca de um a identidade nacional (característica da cham ada «novela de la tierra» (hispano-americana) e será substituída, no Brasil, pela busca da realidade im plícita.
Depois da Prim eira G uerra M undial, o pensamento brasileiro entrou em processo de renovação. O s bens culturais m etropolitanos são trans form ados no sentido de afirmação da cultura nacional e um discurso de resistência impõe-se na constituição de novos paradigmas.
8. A partir dos A nos 30
G rande parte do m odelo científico vigente nos anos 20 no Brasil era de corrente do projeto de modernização, implantado principalmente a partir da Proclamação da República, em 1889, objetivando prom over um surto de desenvolvim ento e transform ação do país. Esse projeto incluía a ex pansão da agricultura para o mercado m undial, urbanização das cidades, extinção das doenças infecciosas que infestavam a cidade e os portos, demarcação e interligação do territó rio nacional através de estradas de ferro, rodovias, telégrafo e um a intensa atividade geológica e geográfica. A ciência e a técnica assumiram um papel preponderante nesse processo de m odernização, fornecendo os conhecim entos e meios necessários a sua realização. Elas eram valorizadas em especial enquanto detentoras de um saber prático e utilitário que perm itia a realização desse projeto. N um período de poucos anos foram criados vários institutos de pesquisa com
o objetivo de dar suporte à agricultura e debelação de doenças, escolas e faculdades de nível superior, com nítida inclinação para a esfera produti va (Schwartzman 1979). De form a sem elhante, instituições científicas criadas anteriorm ente, na época do Im pério, tiveram suas funções rede finidas no sentido de responder a essa demanda utilitária, como o Impe rial O bservatório, rebatizado de O bservatório Nacional, que redirecio- nou suas atividades para a demarcação de fronteiras e pontos geográficos do território nacional, a determinação da hora certa e o serviço m eteoro lógico. As escolas politécnicas ganharam im portância, form ando enge nheiros capazes de responder às demandas nacionais e assumir tarefas na construção de estradas de ferro, iluminação pública, contrução de gran des avenidas, urbanização das cidades.
Podemos situar o período fundacional das histórias nacionais e litera turas hispano-americanas quando ocorre um a visão «progressista conser vadora» e racionalista da história privilegiada a partir das influências eu ropeias e dos debates em to rn o das idéias ligadas às teorias evolucionistas de Spencer, o darwinismo biológico e social, o materialismo filosófico e político e o positivismo de Augusto C om te. Este últim o se fazia presente mais pela sua concepção de ciência do que pelos conceitos matemáticos propriam ente ditos. E possivel encontrar artigos contrários a esses con ceitos escritos po r professores da Politécnica ligados ao pensam ento po sitivista, com o de O tto de Alencar, que frequentou p o r m uitos anos o A postolado positivista, rom pendo posteriorm ente com ele ou Licínio C ardoso, um reconhecido defensor do positivism o.12
A p artir de final do século X IX e prim eiras décadas do século X X começaram paralelamente, a penetrar no Brasil as novas teorias surgidas nas áreas de física e da matemática, que iam m udando a feição da ciência. A parentem ente sem utilidade prática imediata, o interesse vinha acom panhado de um discurso em prol da ciência pu ra e desinteressada, vista não apenas com o um m eio para a reform a social e económ ica mas era, muitas vezes, ambígua e contraditória, diante do impasse em que se viam m uitos cientistas causado pela absorção das novas teorias dentro de um ambiente acostumado à idéia utilitária da ciência Exigiam locais específi cos para sua realização com o as Faculdades de Ciências ou m esm o as
12 E m artigo publicado na Revista da Escola Politécnica RJ, 1897, escreve Cardoso: «O vu lto p o rten to so de A ugusto C om te inspira-me grandíssimo respeito mas na m inha qualidade de hum ílim o professor que sou, não posso ensinar o contrário do que pen so. T am bém não julgo im prudente apontar-se o engano em que p o r ventura tem caí do o gênio: errar é atributo dos hom ens. E rro u Aristóteles, erro u Descartes e insânia é julgar infalível quem quer que seja» (Lins 1964: 268).
Universidades, visto a vocação em inentem ente utilitaria dos cursos ñas Faculdades e escolas técnicas. Em 1920 foi criada a Universidade do Dis trito Federal, reunindo as já existentes Escola Politécnica, Escola de Me dicina e Faculdade de D ireito mas m antendo as características tradicio nais de cada urna. Em varias ocasiões durante a visita de Einstein (março de 1925) (Tolm anskin 1996) foi evidenciado esse debate em to rn o da ciencia pura. De form a semelhante, o próprio Einstein fez referencia ao problem a da ciencia pura na Am érica do Sul durante um almoço com va n o s dentistas.
A Segunda G uerra m undial isola a Am érica Latina da Europa. A era industrial começa e constituem-se enormes m etrópoles que favorecem a imigração dos habitantes das zonas rurais aos centros urbanos.
Desde os anos 60, começa-se a repensar a cultura (principalm ente a literatura) sob nova ótica, com o in tu ito de descolonizá-la. São os anos do questionam ento dos nacionalism os (o conceito de classe social im- põe-se ao de nação, da teoria da dependencia frente ao desenvolvimento, da emergencia do fem inismo.
9. Conclusão
C om o estamos longe da afirmação de Flegel: ’’P o r conseguinte, a A m éri ca é o país do porvir. Em tem pos futuros mostrar-se-á sua im portancia histórica, talvez na luta entre a Am érica do N o rte e a Am érica do Sul. É o país de nostalgia para todos os que estão enfastiados do museu históri co da Velha E uropa.” (Hegel 1928)
Quase cinco séculos depois do descobrim ento, o latino- am ericano criou urna cultura própria em resposta aos desafios específicos que o meio ambiente e contatos hum anos determinados propuseram a sua tra dição. Mas «a interpretação de nossa realidade com esquemas alheios só contribui a fazer-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez m enos li vres, cada vez mais solitarios». (Garcia M árquez 1982: 4-5)
A cultura latino-am ericana foi o resultado da inserção da cultura ra cionalista do Renascimento ao universo mágico dos índios. Ela soube fi gurar dinamicamente a sim ultânea heterogeneidade de nossas realidades onde as peculiaridades surgiram sem perder o traço da origem com um . Vivemos sob a ênfase dada às noções de pluralidade e alteridade, quando a ratio filosófica em inentem ente unificadora humaniza-se e restaura a m ultiplicidade.
A literatura brasileira adquiriu finalmente sua maioridade. Ja existe um m odelo intelectual criado no Brasil com o resultado de sua origem e de
sua história. Podem os adotar a afirmação de A lfonso Reyes, «já existe uma humanidade americana característica, existe um espírito americano». (Reyes 1979)
Ao final do seculo XX, a Am érica Latma parece encerrar um passado e colocar-se em nova ordem económica e política mundial. Abre frontei ras, internacionaliza-se e postula ao mesmo tem po sua modernização po lítica e cultural. Pensar esses anos na Am érica Latina no Brasil, é pensar a questão do plural e do enfrentam ento das diferenças.
Presenciam os o começo de novos tem pos, um novo século se apro xima. O hom em latino-am ericano conscientiza-se da necessidade de re pensar sua origem , para revelar um ser que se havia calado. T enta o res gate do verdadeiro rosto da América., espaço em constante transform a ção, na luta pela construção de projetos nacionais próprios em função de m em órias particulares e especificidades históricas.
O Brasil em ergiu de um longo processo ditatorial. N ossa esperança reside na consolidação da democracia política que trará consigo o desen volvim ento socioeconómico. Vinculados ao pensam ento ocidental, em preendem os a m archa para um futuro de criação e independência, que tem com o objetivo um a form a de conhecim ento integral do hom em , num m undo unificado por um a hegemonia que deixe de ser imediatista.
Cabe-nos enfatizar um sentido de pertinência sem m enosprezar o ser nacional, reconhecer a realidade pluricultural da América, num a indaga ção pela latinoam encam dade. A o abrir espaço à liberação das diferenças, cum pre averiguar nosso ser no tem po e no espaço, abandonar a aliena ção para sermos nós mesmos.
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