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A questão dos adolescentes no cenário punitivo da sociedade brasileira contemporânea

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A questão dos adolescentes no cenário punitivo da

sociedade brasileira contemporânea

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Introdução: dilemas em relação à juventude no Brasil

Os jovens ocupam uma situação ambígua no âmbito das ações estatais no Brasil2. Por um lado, aparecem quase sempre como possível ameaça à ordem pública, como categoria particularmente inquietante, como potenciais agressores e criminosos, caso não sejam contidos por medidas moralizadoras ou punitivas. Por outro lado, de fato, os jovens são as maiores vítimas da violência no país, a categoria mais vulnerável diante do ambiente de insegurança que envolve ainda a maior parte da sociedade brasileira. Agressores e vítimas na realidade se confundem, o jovem considerado agressor quase sempre emerge de um contexto social marcado pela pobreza e pela privação de direitos e seu destino será marcado também pela violência: a morte precoce no conflito com outros jovens, no enfrentamento com a polícia ou ainda nas mãos de grupos de extermínio, ou mesmo a “experiência precoce da punição” (ADORNO, 1993), quer em instituições de internamento, quer posteriormente nas prisões.

Tal ambiguidade perpassa a história da discussão pública em relação à infância e juventude pobre no país e apenas em anos recentes a legislação e as políticas públicas no Brasil buscaram romper esse círculo vicioso de discursos e práticas que enquadram os jovens no registro do perigo e da desordem social.

1 Aula Magna proferida no Mestrado Profissional Adolescente em Conflito com a Lei

da Universidade Anhanguera de São Paulo, em 15 de março de 2013.

2 Será utilizado, aqui, o termo “criança” para indicar toda pessoa com menos de 12 anos de idade e “adolescente” para indicar toda pessoa entre 12 e 18 anos, conforme o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). O termo “jovem” será utilizado de modo mais amplo, para incluir tanto os adolescentes quanto adultos até 24 anos.

Marcos César Alvarez1

1 Professor Livre-docente do

Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência. Correspondência: mcalavrez@usp.br Al varez , M . C.

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O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) buscou justamente demarcar outro horizonte, voltado para a garantia de direitos desse setor da população. Mas, além das inúmeras dificuldades práticas, próprias de toda tentativa de mudança de ações e de mentalidades, o ECA continua a ser, na atualidade, o alvo principal de movimentos populistas no âmbito das políticas de segurança pública, quase sempre associado à impunidade. É como se, diante dos reais desafios da violência no país, fosse mais fácil simplesmente eleger uma categoria que sintetizaria todos os nossos medos e um diploma legal que fosse a causa de todos os nossos males.

Para além dos problemas concretos que se apresentam hoje na construção de políticas públicas voltadas para a juventude, é certo que esse discurso populista nada tem a oferecer em termos de soluções efetivas, mesmo que viabilize a eleição de políticos e garanta a audiência de programa televisivos de discutível qualidade. As soluções em termos de punição mais acentuada e precoce são limitadas, para dizer o mínimo, como forma de enfrentamento das questões sociais. A única forma de avançar, em termos da construção de políticas públicas para a juventude, implica no aperfeiçoamento dos instrumentos de avaliação das iniciativas institucionais existentes e no aprofundamento da compreensão da situação social dos jovens em condição de vulnerabilidade em nossa sociedade. Creio que essas são duas direções de investigação e ação pertinentes na agenda do Brasil contemporâneo.

Minha entrada no tema, sobretudo em meu mestrado foi na realidade outra. A partir dos anos 80 do século XX, no momento em que o antigo modelo assistencial-repressivo, entrava em crise, busquei reconstituir o modo como a assim chamada “questão do menor” havia sido construída no Brasil, de forma a articular percepções, discursos e experiências institucionais que ainda ecoam na sociedade brasileira contemporânea. Quero, aqui, retomar essa discussão que realizei já há bastante tempo para colocar em perspectiva as questões contemporâneas.

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História do Presente

Trata-se aqui de um certo uso da análise histórica e sociológica para enfrentar as questões da atualidade. Alguns comentários de ordem mais teórico-metodológica precisam ser colocados então aqui. O que está em jogo é a perspectiva da “história do presente”, desenvolvida por Michel Foucault (1977) entre outros autores.

Podemos caracterizar a história do presente como um modo de empregar a pesquisa histórica, juntamente com a análise sociológica de forma a descortinar as condições históricas de existência das quais dependem as práticas contemporâneas.

Ou seja, a narrativa histórica proposta é motivada mais por uma preocupação crítica em relação ao presente do que por uma preocupação estritamente histórica de reproduzir o passado, ao buscar analisar as forças que deram à luz nossas práticas atuais e identificar as condições históricas e sociais das quais elas dependem. O objetivo principal não é pensar historicamente o passado, mas sim, através da história, repensar o presente.

Essa perspectiva da história do presente tem sido por vezes criticada devido aos erros factuais presentes em tais análises, bem como pela seletividade em termos de método, já que não são explicitadas as escolhas, por exemplo, em termos de documentação ou de fontes primárias exploradas.

Meu trabalho sobre a emergência do primeiro Código de Menores do Brasil, de 1927 (ALVAREZ, 1989), ao mesmo tempo que inspirado na perspectiva da história do presente, buscou evitar tais críticas, tanto a partir de um diálogo sistemático com a historiografia do período analisado [na época], quanto pelo uso criterioso das fontes documentais.

O que quero enfatizar é que foram questões da atualidade que motivaram tais análises, o esforço de demarcar continuidades e descontinuidades em relação ao tempo presente sempre foi pautado pela busca do maior rigor teórico e metodológico possível.

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É essa abordagem que quero retomar aqui: a questão atual do equacionamento jurídico e institucional da situação dos adolescentes em conflito com a lei no Brasil, a partir, sobretudo, da edição do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, pode ser colocada em perspectiva a partir da retomada da análise da emergência do primeiro Código de Menores do país de 1927, originalmente realizada em meu mestrado.

A análise histórica da formulação e implementação das legislações voltadas à infância e à adolescência pobre ou em conflito com a lei não buscou simplesmente descrever continuidades históricas, mas colocar em perspectiva os dilemas atuais das intervenções estatais em relação a esse segmento da população brasileira.

No Brasil, mesmo que desde o final do século XIX já surgisse a discussão em torno da necessidade de leis e instituições especiais voltadas para as crianças e os adolescentes, tais discussões acabaram levando à constituição de leis e práticas institucionais especialmente estigmatizadoras que, durante décadas, objetivaram crianças e adolescentes pobres como “menores”, ou seja, como indivíduos potencialmente perigosos e predispostos à delinquência precoce. Desde as primeiras discussões realizadas por médicos e juristas que percebiam a situação das crianças e adolescentes pobres nos grandes centros urbanos ao mesmo tempo como parte da “questão social” mas sobretudo como um problema de “defesa social”, até as discussões que culminaram na edição do primeiro Código de Menores do país, promulgado em 19273, constituiu-se todo um processo de “menorização” desse setor da população, processo este que acabou mais agravando do que resolvendo os problemas sociais que pretendia equacionar.

Em décadas posteriores, instituições como o Serviço de Assistência ao Menor, fundado em 1940 e depois transformado na FUNABEM, seguirão a mesma trilha desenhada por esse modelo institucional, ao

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colocarem igualmente em primeiro plano as preocupações com a delinquência precoce. As instituições para os “menores” funcionarão, assim, ao longo de décadas, muito mais como instrumento de marginalização da população pobre do que como instrumento de ampliação efetiva da cidadania. Mesmo o Código de Menores de 19794, baseado na doutrina da “situação irregular”, apenas prolongou esse processo de criminalização da infância e juventude pobre, ao considerar como em “situação irregular” tanto os infratores quantos os menores abandonados.

Apenas a partir do processo de redemocratização do país foi possível realizar uma crítica mais profunda deste modelo assistencial e repressivo de equacionamento dos problemas da infância e da adolescência no país.

A mobilização da opinião pública que levou à nova Constituição, em 1988, ampliou também o debate em torno dos problemas da infância e da adolescência no Brasil. A iniciativa de militantes políticos, de técnicos de instituições governamentais e não-governamentais e de juristas reformadores, entre outros atores sociais (Alvim, 1995), permitiu finalmente romper com o antigo modelo e, em 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/90).

Atualmente, o Estatuto é considerado, por um lado, uma das leis mais avançadas em matéria de proteção dos direitos de crianças e adolescentes, ao buscar se constituir não como um instrumento repressivo – na antiga tradição dos códigos de menores – mas como um instrumento que considera crianças e adolescentes como seres humanos em formação que também são sujeitos de direitos (Relatoria, 2004). Por outro lado, surgem constantes críticas ao ECA, mesmo que muitas de suas disposições tenham encontrando obstáculos significativos para

4 Lei nº 6.697 de 10 de outubro de 1979. Já no momento de sua promulgação, tal código foi visto como tendo uma estrutura menos perfeita que o anterior (NOGUEIRA, 1985, p. 13).

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sua plena efetivação prática (FALCÃO, 1996; CARVALHO, 1995; RELATORIA, 2004).

Por exemplo, o Estatuto criou o Conselho Tutelar, órgão permanente, autônomo e não jurisdicional que deve existir em todo município para zelar pelos direitos das crianças e adolescentes e voltado para a aplicação de medidas de proteção ou socioeducativas, além de atender e aconselhar os pais e responsáveis. A implantação de tais conselhos nos municípios, no entanto, tem sido repleta de obstáculos, tanto organizacionais quanto culturais.

Pesquisas mostram que, por vezes, os conselheiros tutelares ainda atuam segundo a antiga concepção assistencial e repressiva, sendo que, quando buscam agir de acordo com as diretrizes do ECA, não dispõem, por vezes, de programas nos municípios que garantam um atendimento realmente diferenciado da clientela (LEMOS, 2003)5.

As citadas críticas dirigidas ao ECA desconsideram tais obstáculos e simplesmente denunciam o suposto caráter por demais liberal do Estatuto, o que levaria principalmente à impunidade generalizada dos adolescentes infratores. Tais críticas são sempre acompanhadas por propostas que defendem a necessidade de que o tema volte a ser tratado como um problema de segurança pública, com a necessária repressão policial e a reclusão dos infratores.

Também os meios de comunicação têm dado grande destaque a atos de violência cometidos por (ou mesmo muitas vezes apenas supostamente atribuídos a) adolescentes, geralmente pobres, destaque esse seguido pela defesa da redução da idade penal como principal alternativa frente ao suposto crescimento da criminalidade juvenil.

Como em outras discussões realizadas no Brasil nos anos recentes, que envolvem temas relativos à justiça criminal e às políticas de segurança pública, corre-se o risco de – a partir de um debate pouco qualificado e repleto de argumentos falaciosos – serem tomadas medidas populistas, que podem implicar em retrocesso em relação aos avanços que o país

5 Sobre as ambiguidades das medidas socioeducativas propostas pelo ECA, consultar

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obteve nos últimos anos no âmbito da expansão da cidadania e da consolidação da democracia no país.

No caso dos debates em torno do ECA, uma perspectiva histórica, que recupere como foram formuladas e implementadas legislações e políticas voltadas para a infância e adolescência pobre ou em conflito com a lei, pode ajudar a melhor compreender o que está em jogo no debate atual sobre o tema.

Da Roda dos Expostos ao Código de Menores6

É já no final do século XIX que começa a surgir no Brasil uma preocupação mais sistemática com o destino da infância e da adolescência pobre nas grandes metrópoles e com o papel que o Estado deveria desempenhar com respeito a este setor da população.

Anteriormente, na Colônia e no Império, já existiam iniciativas institucionais voltadas para amparar as crianças rejeitadas pelas famílias, chamadas na época de “expostos” ou “enjeitados”, pois eram geralmente deixadas na “Roda dos Expostos”  aparelho de madeira

que garantia a manutenção do segredo da identidade daquele que abandonava a criança (GONÇALVES, 1987).

As primeiras Rodas foram instaladas em Salvador e no Rio de Janeiro por volta de 1700, embora as primeiras referências aos expostos sejam do século XVII (MESGRAVIS, 1972; GONÇALVES, 1987).

O mecanismo da Roda e os asilos que dela se utilizavam configuravam um tipo de assistência privada à infância, inspirada na caridade religiosa e voltada sobretudo para a regulação dos desvios da organização familiar colonial.

Essa forma de equacionamento institucional do problema da infância entrará em crise ao longo do século XIX, quando passa a sofrer o ataque principalmente da medicina higiênica, que então se consolidava no Brasil. Os higienistas denunciam principalmente as altas taxas de

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mortalidade dos enjeitados nas instituições que se serviam das Rodas (GONÇALVES, 1987).

Paralelamente às críticas levadas a cabo pelo saber médico, as mudanças nas condições de vida das crianças e adolescentes pobres nos grandes centros urbanos no final do século XIX colocavam novas urgências que escapavam totalmente aos objetivos perseguidos pela assistência caritativa e religiosa.

A abolição, a imigração e o acelerado processo de industrialização aumentaram significativamente o contingente de crianças e jovens pobres que se lançavam nas ruas das grandes metrópoles à procura de atividades que lhes garantissem o sustento próprio ou o de suas famílias. No trabalho industrial, por exemplo, a utilização da mão de obra infantil e juvenil é bastante intensa desde o advento da República. Com o avanço da industrialização, nas décadas seguintes, o emprego dessa mão-de-obra torna-se generalizado (PINHEIRO, 1981).

Principalmente na indústria têxtil, a mão de obra menor e a mão de obra feminina cada vez mais ocupam lugar de destaque na composição da força trabalho industrial (MOURA, 1982), o que não só aumentava o exército industrial de reserva, mas também representava uma dificuldade a mais para a organização dos trabalhadores (HARDMAN, 1982).

A imprensa operária passa então a denunciar principalmente a incompatibilidade entre as terríveis condições de trabalho na indústria nacional e a natureza ainda frágil e desprotegida da infância (BRAGA, 1993) e a reivindicar a necessidade de o Estado regulamentar as condições do trabalho infantil.

As prioridades das elites republicanas no mesmo período são, no entanto, outras. A maior presença de crianças e adolescentes pobres na cena urbana, além de renovar a preocupação com a necessidade de assistência aos “abandonados”, traz uma nova preocupação, compatível com o temor cada vez maior das elites em relação ao crescimento urbano acelerado – a preocupação referente ao aumento da criminalidade precoce (ADORNO, 1990).

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Tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, as autoridades republicanas passam a temer não apenas que haja um crescimento da criminalidade infantil e juvenil, mas também que esse aumento da delinquência precoce leve a uma progressiva degeneração social. Em São Paulo, o jurista e senador Paulo Egídio (1842-1906), por exemplo, que na última década do século XIX irá propor uma ampla reforma penitenciária, que serviria de base para um projeto mais ambicioso de reorganização da própria sociedade, coloca como uma das preocupações centrais referentes à manutenção da ordem social a questão caracterizada como da “vagabundagem infantil” que poderia levar à delinquência (EGÍDIO, 1893, p.588).

Por sua vez, Cândido Mota (1870-1942), que desempenhou entre outros cargos o de delegado na capital paulista no governo Campos Sales, comparando os dados acerca da criminalidade na capital entre os anos de 1894 e 1895, manifesta espanto com o grande aumento de “menores” criminosos.

Preocupado com esta situação, Cândido Mota se empenhará numa cruzada pela criação de instituições especiais para menores moralmente abandonados e criminosos, campanha que levou à criação do Instituto Disciplinar em 1902.

O Instituto foi ampliado em 1906, dentro da campanha de combate à vadiagem levada a cabo pelo secretário de Justiça, Washington Luiz (FAUSTO, 1984, p.41) e, em 1915, os resultados alcançados pela instituição em termos de implantação do ensino profissional para os menores eram avaliados positivamente pelas autoridades (CRUZ, 1987, p.126)

Deste modo, na virada do século XIX e início do século XX, vão se constituindo discursos e práticas que equacionam a situação de vida das crianças e adolescentes pobres das grandes cidades do país sobretudo como um problema referente à “defesa social”. A criação de leis e mecanismos institucionais voltados para esse segmento da população se colocava como uma urgência devido ao perigo potencial do crescimento da criminalidade precoce.

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No interior desse discurso, as ações ilícitas de crianças e adolescentes, ou mesmo a simples presença das crianças pobres nas ruas, apontam todo o tempo para a ameaça de um crescimento incontrolável da criminalidade futura, de uma desagregação social progressiva, fruto da ausência de uma política preventiva voltada para as crianças e jovens moralmente abandonados. As questões da educação e da regulamentação do trabalho de crianças e adolescentes, em contrapartida, são deslocadas para segundo plano.

O discurso dos juristas da época acerca do problema da menoridade privilegia, portanto, não a extensão do direito à educação para o conjunto da população pobre, nem a abolição ou regulamentação do trabalho precoce, mas sim a criação de leis e de instituições “assistenciais e protetoras” que teriam por objetivo maior impedir o desenvolvimento da criminalidade.

Consolida-se paulatinamente um novo modelo jurídico de “assistência e proteção aos menores” e, igualmente, um novo tipo de institucionalização da infância e da adolescência por parte do Estado brasileiro.

Uma institucionalização muito mais ampla do que as antigas formas (como a dos expostos), e que passa a visar todos os menores em estado ou em perigo de abandono, o que aumenta efetivamente a clientela visada para todo o contingente das crianças e adolescentes das classes pobres e, virtualmente, para todas as crianças e adolescentes da sociedade.

Uma institucionalização que tem em seu horizonte não apenas assistir gratuitamente os desafortunados, mas, sobretudo, combater a delinquência, fruto do abandono, e criar, assim, cidadãos saudáveis, tanto moral como fisicamente.

O Código de Menores de 1927 será a cristalização de todo esse processo, ao definir principalmente um tratamento jurídico-penal especial para certos segmentos da população considerados potencialmente perigosos, aos quais eram reservadas medidas disciplinares e moralizadoras.

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Assim, o Código estabelece medidas de proteção e assistência, dirigidas para uma clientela ampla, formada por crianças e adolescentes que, devido à ausência ou deficiência dos cuidados dos pais ou responsáveis, se encontram em estado de abandono moral ou material. Essa clientela inclui: as “crianças de primeira idade”, que estão fora da casa do pai ou responsável; os “infantes expostos”, encontrados em estado de abandono; os “menores abandonados”, quer aqueles que não tenham habitação certa, sem meios de subsistência ou em estado de vadiagem, mendicidade ou libertinagem, quer os maltratados pelos pais ou responsáveis, ou que tenham os mesmos condenados pela justiça ou incapacitados; os “vadios, mendigos e libertinos”, refratários ao trabalho ou a educação, ou que exerçam ocupações imorais ou proibidas, sem domicílio fixo e vagando pelas ruas. Todas as crianças e adolescentes que se enquadrem em alguma dessas categorias, passam a ser alvo da tutela do Estado, que assume, através da assistência pública e do juízo de menores, a proteção da vida, da saúde e da moralidade desses indivíduos.

Mas é a questão da delinquência que dá unidade às categorias anteriormente citadas, pois todas trazem em comum a possibilidade do desenvolvimento do vício e do crime. E frente aos menores delinquentes, a própria ação penal deve ser, segundo o Código, profundamente modificada.

O aspecto a ser ressaltado em relação às mudanças definidas pela nova legislação, no entanto, é que apesar de garantir algumas medidas de caráter mais assistencialista para a população pobre e regulamentar o trabalho de crianças e adolescentes, o Código de 1927 não rompia com a tendência de restrição dos direitos de cidadania para o conjunto da população. Pelo contrário, o que o Código definia era um tratamento jurídico-penal especial para certos segmentos da população considerados potencialmente perigosos, aos quais eram reservadas medidas normalizadoras e moralizadoras.

Os desdobramentos posteriores da legislação da menoridade não deixam dúvida a este respeito pois, quando a questão do trabalho dos

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menores deixou de ser regulada pelo Código, passando à Consolidação das Leis de Trabalho em 1943 (BRAGA, 1993, p.160), permaneceram apenas os aspectos relativos ao abandono e à delinquência que, como foi percebido já nas décadas seguintes, não retiravam os menores do campo penal7 mas implicavam sobretudo na estigmatização da infância e juventude pobre, institucionalmente condenada, desde então, à possibilidade da delinquência.

Muito mais, portanto, que uma lei que garantisse direitos à população pobre, o Código reuniu principalmente um conjunto de dispositivos legais a partir dos quais o Estado poderia tutelar as crianças e adolescentes que potencialmente poderiam se tornar criminosos, ao garantir, em contrapartida, procedimentos penais especiais, mais adequados a evitar a impunidade e obter a necessária recuperação moral desses indivíduos.

O Código de Menores de 1927 se constituiu, portanto, muito mais como um novo instrumento de defesa social do que como um instrumento de ampliação efetiva da cidadania.

Considerações Finais

A legislação sobre a menoridade, que esteve em vigência durante grande parte do século XX no país, configurou-se como um verdadeiro instrumento de controle social, ao estigmatizar crianças e adolescentes pobres e ao condená-los ao círculo vicioso que levava do abandono familiar à delinquência precoce.

E, como já foi afirmado, o Estatuto da Criança e do Adolescente buscou justamente romper com esse modelo assistencial e repressivo, ao colocar em primeiro plano os direitos das crianças e dos adolescentes.

7 Ruy Pinho, por exemplo, ao comentar a questão várias décadas depois, afirma que o Código de 1927, embora tivesse pretendido livrar os menores de qualquer ação penal, na verdade continuava a tratar a questão em termos de direito penal (PINHO, 1958, p. 11).

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As críticas atuais ao Estatuto desconsideram esse percurso histórico e também não desenvolvem uma avaliação mais sistemática das políticas adotadas para a infância e juventude no país nos últimos anos8.

Com relação ao tratamento dado aos jovens em conflito com a lei, corre-se o risco inclusive de um retrocesso ainda maior pois muitas das atuais propostas de revisão da legislação defendem um tratamento puramente punitivo da questão, tratamento este que foi criticado mesmo pelos juristas reformadores que criaram o antigo modelo assistencial e repressivo.

Por exemplo, entre 1993 e 2004, foram apresentadas mais de vinte propostas de emenda constitucional (PECs) propondo a redução da idade da inimputabilidade penal, sendo que tal idade varia, nestas propostas, entre os dezesseis e os quatorze anos de idade (CAMPOS, 2005).

Algumas propostas recuperam a própria noção de “discernimento”, já que, de acordo com os argumentos apresentados, os adolescentes no mundo contemporâneo teriam plena capacidade de compreender os atos que cometem. Ora, a noção de discernimento foi questionada pelo jurista Tobias Barreto já no final do século XIX pois ele considerava que, em relação aos menores, não se deveria apenas indagar a responsabilidade ou não do criminoso mas igualmente o meio no qual estava inserido, além do que tal noção seria juridicamente por demais arbitrária (BARRETO, 1926).

Foi a partir de tal questionamento que os juristas brasileiros começaram a discutir a necessidade de uma legislação especial para os “menores”, discussão esta que culminou com a edição do Código de Menores de 1927. Ao retomar a noção de discernimento, os legisladores contemporâneos correm, deste modo, o risco de retroceder mais de um século no que diz respeito à legislação em torno da infância e da adolescência no país.

8 Como exemplo de pesquisas recentes acerca das políticas voltadas para a infância e adolescência no Brasil, consultar Oliveira (2004) e Sales (2004).

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Na verdade, valores mais amplos estão em jogo neste debate. Caldeira (2000) mostra como, a partir do início dos anos 80 do século XX, em resposta ao processo de democratização do sistema político e da expansão dos direitos da cidadania no país, alguns grupos começaram a organizar uma crítica sistemática aos direitos humanos, que passaram a ser definidos como “privilégios de bandidos”.

Assim, em reposta às diversas iniciativas que buscavam restabelecer o estado de direito, ao propor, entre outras discussões, o controle dos abusos policiais e a melhoria das condições de encarceramento dos presos comuns, os adversários dos direitos humanos passaram a reivindicar punições mais severas para os criminosos em geral, aí incluindo também a defesa da pena de morte, das execuções sumárias e mesmo da tortura como formas de combater o crescimento da violência na sociedade.

No contexto da transição para a democracia, todo um ideário de oposição aos direitos humanos emergiu como “resistência à expansão da democracia para novas dimensões da cultura brasileira, das relações sociais e da vida cotidiana” (CALDEIRA, 2000, p.375)

Pode-se argumentar que, a partir da promulgação do ECA, esses mesmos adversários dos direitos humanos elegeram igualmente a nova legislação como um dos alvos privilegiados de suas críticas. A denúncia da suposta impunidade, decorrente do Estatuto, passou a ser parte do repertório de determinados políticos e de setores da imprensa, obtendo inclusive certo respaldo em setores da sociedade. No entanto, tal discurso pode simplesmente realimentar o ciclo de violência institucional a que estão submetidos as crianças e os adolescentes pobres em nossa sociedade.

Em contrapartida, estudos mais aprofundados sobre as políticas adotadas para os jovens em conflito com a lei no país, bem como sobre as trajetórias tanto sociais quanto institucionais desses jovens podem contribuir para que o debate público sobre tais problemas seja mais qualificado, evitando-se propostas demagógicas que dificilmente darão resposta adequada a tais questões.

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A criminalidade contemporânea ganhou novos contornos, com economias ilegais mais diversificadas e lucrativas que recrutam crianças e adolescentes em processos ainda pouco estudados no Brasil, exceto, em parte, em relação ao tráfico de drogas.

Se, numa ponta do espectro social, crianças e adolescentes “de rua” ocupam um pequeno papel na criminalidade comum, e, na outra, as infrações e os “desvios” de comportamento dos jovens pertencentes às classes médias e altas só muito raramente são selecionados pelas agências de controle social, há então um espaço a ser problematizado. Trata-se de compreender diferentes aspectos das dinâmicas sociais que interpelam os adolescentes na atualidade, conformadas pelas atividades e oportunidades econômicas (legais e ilegais), pelas complexas redes de sociabilidades que atravessam os vínculos familiares, a vizinhança e a convivência com agentes do crime (individuais ou coletivos) e pelas instituições do sistema socioeducativo e da justiça criminal.

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Referências

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