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O homem e as ciências da natureza

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Academic year: 2021

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O Homem e as Ciências da Natureza

1. Introdução

N a história d o h o m e m sobre este planeta, as ciências da natureza n ã o representam mais q u e u m episódio de ú l t i m a h o r a .

H á várias centenas de m i l h a r de anos q u e o h o m e m se c o n f r o n t a conscientemente c o m a natureza. Mas só há p o u c o mais d e 300 anos pratica as ciências dessa natureza n o sentido q u e lhes d a m o s h o j e .

Isto significa que a racionalidade d o h o m e m , e m cerca de 9 9 , 9 % d o seu t e m p o de existência, e n t e n d e u a natureza, e v i v e u suficien-t e m e n suficien-t e feliz c o m ela, c m f o r m a s q u e h o j e c h a m a m o s n ã o ciensuficien-tíficas o u pré-científicas.

E, m e s m o d e n t r o destes 3 curtos séculos, a visão científica da natureza j á teve, mais q u e u m a vez, d e se desdizer c r e c o m e ç a r . M e s m o assim, este discutível episódio de ú l t i m a h o r a avassala e ameaça h o j e o m u n d o .

P r e t e n d e m o s apresentar alguns c o m e n t á r i o s gerais estruturados e m t o r n o d u m esquema s u m a m e n t e singelo, e q u e apenas considera as relações recíprocas e n t r e os dois t e r m o s d o título:

H o m e m , c i ê n c i a s d a n a t u r e z a

A todos os níveis da história se verifica u m a causalidade m ú t u a e n t r e estes dois t e r m o s . O h o m e m é o c r i a d o r da ciência. M a s esta torna-se, depois, c r i a d o r a d u m n o v o h o m e m (na i m a g e m q u e faz de si p r ó p r i o , e nas novas necessidades q u e lhe cria), o qual, a esse o u t r o nível, cria u m a ciência n o v a , e assim sucessivamente.

H á , deste m o d o e a níveis s e m p r e irrepetíveis, u m constante fluxo c refluxo e n t r e o h o m e m (nos seus pressupostos culturais nos seus

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anseios, m i t o s e medos) e as ciências da natureza (na sua t r i a g e m d e s m i t i f i c a d o r a , na sua operacionalidade, na sua capacidade de criar novas l i n g u a g e n s e i m p u l s i o n a r novas sínteses).

Apesar desta causalidade m ú t u a , o u talvez precisamente através dela e da progressiva intensificação d o seu c o n f r o n t o , é irredutível a d u a l i d a d e dos dois pólos. N e m o h o m e m se p o d e r á j a m a i s explicar t o t a l m e n t e pela ciência, n e m esta p o d e r á ser t o t a l m e n t e absorvida p e l o h o m e m .

T e n t a r e i buscar alguns dados para justificar este esquema.

2. C o m o h o m e m e ciências da natureza entram em confronto

A t é a o séc. xvi, na sua visão holista d o universo e na síntese u n a d o saber, a física aristotélica encontra-se integrada t o t a l m e n t e d o l a d o d o h o m e m . A sua racionalidade está h u m a n i z a d a p e l o r e c o n h e -c i m e n t o d o m a r a v i l h o s o e pela a b e r t u r a i m a g i n a t i v a .

O m é t o d o é a analogia: p o r ela o invisível se t o r n a visível. Faz-se u m a leitura alegórica e simbólica d o l i v r o da natureza n o i n t u i t o de e n c o n t r a r , através dos indícios revelados nas semelhanças dos seres, a intenção e o p l a n o d o C r i a d o r .

A h a r m o n i a d o universo é c o m p l e t a . E o r e i n o da v e r d a d e subconsciente, da e m o ç ã o poética da percepção parabólica, da alegoria, da lucidez intuitiva, d o c o n h e c i m e n t o vivencial, da a m p l i d ã o i m a g i n a t i v a . E o r e i n o d o h u m a n o .

As religiões, c o m as suas cosmologias e c o s m o g o n i a s , t ê m u m p a p e l decisivo neste t i p o d e c o m p r e e n s ã o d o m u n d o : da sua o r i g e m , dos seus males e bens, d o seu destino. A única excepção, p e l o q u e e n t e n d o , é Jesus Cristo, q u e n ã o m o s t r o u q u a l q u e r interesse, na sua m e n s a g e m , p o r explicações deste g é n e r o . M u i t a s teologias cristãs, p e l o c o n t r á r i o , c e d e r a m às pressões culturais e c o n s t r u í r a m c o s m o -logias e m i t o s .

M a s o c e r t o é que, até a o séc. x v i , a física se m a n t e v e intei-r a m e n t e h u m a n a .

N o séc. x v n , a cinemática d e Galileu e a d i n â m i c a d e N e w t o n a r r a n c a m a física à tutela d o h u m a n o e c o n s t i t u e m - n a , c o m estatuto p r ó p r i o e a u t ó n o m o , c o m o ciência da natureza.

E s t i m u l a d a p e l o c o n c e i t o cristão d e q u e o m u n d o foi criado p o r u m Ser s u m a m e n t e inteligente s e g u n d o leis fixas q u e deverão ser inteligíveis ao h o m e m , a ciência da natureza inicia a busca de

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leis constantes e de sistemas de sinais, inteligíveis e m t e r m o s de matemática, g e o m e t r i a e física.

C o m e ç a e n t ã o o m é t o d o científico d i t o «objectivo», q u e deixa de olhar p o e t i c a m e n t e para o céu, a i n t u i r as intenções invisíveis de Deus, e se v o l t a f r i a m e n t e p a r a a terra, a decifrar os seres visíveis e m si m e s m o s , t o r n a n d o - o s inteligíveis à razão h u m a n a .

Esta a u t o n o m i z a ç ã o das ciências da natureza teve d e pagar, inicial-m e n t e , o p r e ç o d o i s o l a inicial-m e n t o das grandes questões culturais e d e ser considerada u m a área m e n o r .

François J a c o b c o m e n t a c o m acerto: «De facto, o início da ciência m o d e r n a data d o m o m e n t o e m q u e as questões gerais f o r a m substituídas p o r questões limitadas; e m que, e m v e z de se p e r g u n t a r : C o m o foi c r i a d o o u n i v e r s o ? D e q u e é feita a m a t é r i a ? Q u a l é a essência da vida?, c o m e ç o u a p e r g u n t a r - s e : C o m o cai u m a p e d r a ? C o m o c o r r e a á g u a n u m c a n o ? Q u a l é o p e r c u r s o d o sangue n o c o r p o ? Esta m u d a n ç a t e v e u m resultado s u r p r e e n d e n t e . E n q u a n t o as questões gerais apenas recebiam respostas limitadas, as questões limitadas c o n d u z i r a m a respostas cada vez mais gerais»1.

P r e s s u p o n d o q u e só é v e r d a d e i r a m e n t e inteligível o q u e f o r interpretável e m t e r m o s d e mecânica, estabelece-se u m m e c a n i s m o apriorista q u e terá de atingir os p r ó p r i o s seres vivos. O estudo da «bomba» d o coração, da «hidráulica» da circulação sanguínea, da «dinâmica» d o v o o das aves, etc., j u l g a m m o s t r a r q u e os seres vivos são redutíveis a p a r â m e t r o s d e mecânica. O a n i m a l cartesiano t e m de ser m á q u i n a para se t o r n a r inteligível, e salvar a u n i d a d e d o universo.

As ciências iniciam, assim, a desmitificação da natureza, a trivialização d o m a r a v i l h o s o , a a t o m i z a ç ã o da p e r c e p ç ã o holista, a m a t e -matização d o simbólico, e a cristalização d o belo nos t e r m o s técnicos da q u í m i c a .

Esta desumanização d o real t o r n a - o operacional, d o m i n á v e l e rentável, e cria u m a e u f o r i a mecanicista.

Mas, passado a l g u m t e m p o , o r e d u c i o n i s m o cartesiano c o m e ç a a manifestar-se i n a d e q u a d o para a explicação d e m u i t o s aspectos dos seres vivos, e s u r g e m , c o m o reacção, correntes vitalistas q u e corres-p o n d e m , d e c e r t o m o d o , a u m regresso saudoso da ciência da vida a o â m b i t o d o h u m a n o .

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E é esse vitalismo d o final d o séc. x v i n que, valorizando sufi-c i e n t e m e n t e a originalidade dos seres viventes, justifisufi-ca o estabele-c i m e n t o e o r e estabele-c o n h e estabele-c i m e n t o d u m a n o v a estabele-ciênestabele-cia da natureza — a b i o l o g i a2.

D e s d e e n t ã o a história das ciências da vida p o d e ler-se e m t e r m o s d u m i m p u l s o p e n d u l a r e n t r e correntes mecanicistas e vita-listas, a l t e r n a n d o e n t r e si a níveis s e m p r e n o v o s .

A a t i t u d e mecanicista está g e r a l m e n t e associada à euforia d u m a fase d e a v a n ç o e x p e r i m e n t a l , e alterna c o m p e r í o d o s e m q u e u m d e t e r m i n a d o p a r a d i g m a mecanicista, j á incapaz de satisfazer a neces-sidade d e explicação global da vida e da sua originalidade, ocasiona o surgir d u m a n o v a intuição vitalista, q u e acaba depois p o r construir o m o d e l o p a r a n o v o progresso e x p e r i m e n t a l , c o m a consequente a t i t u d e mecanicista, e assim p o r d i a n t e3.

As fases mecanicistas são operacionais e p r o d u t i v a s , mas desu-manizadoras, desmitificadoras e trivializadoras d o maravilhoso. As fases vitalistas são revitalizadoras, 110 sentido da r e f o r m u l a ç ã o da f o r ç a mítica q u e está n o h o m e m e impulsiona o progresso das ciências.

Esta alternância, para s e m p r e i m p a r á v e l e n u n c a repetível, entre mecanicismos c vitalismos exemplifica a tensão d i n a m i z a d o r a e a inspiração m ú t u a e n t r e o h o m e m e as ciências da natureza. N o esquema desta exposição, os vitalismos estão d o lado d o h o m e m , e os mecanicismos d o lado das ciências da natureza.

A o a u t o n o m i z a r a ciência, o h o m e m passou a d e f r o n t a r - s e c o m u m i n t e r l o c u t o r . A história desse d i á l o g o contará t a n t o c o m o sol d e muitas colheitas, c o m o c o m os fantasmas de muitas noites. E o q u e resta, ao fim e ao cabo, é q u e o h o m e m j á n u n c a mais será o m e s m o .

3. O h o m e m que se projecta nas ciências da natureza

Sugeriu-se, 11a secção anterior, q u e as ciências se a l i m e n t a m da digestão dos p r ó p r i o s m i t o s q u e elas a j u d a m a recriar. E, de facto, os deuses d o O l i m p o t ê m sido engolidos u m a u m pelas

2 JACQUES ROGER, Les Sciences de lit Vie dans la Pensée Française du XVIII' Siècle, Ed. A r m a n d Colin, Paris, 1963.

3 MADELEINE BARTHÎLEMY-MADAULE, L'idéologie du hasard et de la nécessité, Ed. du Seuil, Paris, 1972, pp. 93-110.

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ciências da natureza, que, alimentadas p e l o seu n u m e , t ê m p r o d u z i d o n o v o s p a r a d i g m a s de lógica científica.

As c o s m o g o n i a s primitivas f o r a m desmitificadas e trivializadas 110 «big bang» d e há 15 m i l milhões de anos.

O s m i t o s dos deuses Geo, Eros e Caos, sobre a o r i g e m da vida 110 Planeta, reincarnaram e m moléculas pré-bióticas (bem conhecidas e banais) que, através de a m o r e s electrónicos, g e r a r a m estruturas a u t o - r e p r o d u t o r a s .

O s m i t o s sobre a o r i g e m d o c o r p o h u m a n o f o r a m digeridos e reduzidos, pela biologia molecular, à frieza trivial d u m m e c a n i s m o q u í m i c o de m u t a ç ã o .

Os m i t o s sobre a o r i g e m d o espírito e c o m p o r t a m e n t o h u m a n o s estão a ser desmitificados, pela sociobiologia, e m genes ancestrais de animais b e m despretenciosos.

O s segredos insondáveis da vida f o r a m trivializados n u m a m o l é -cula escorreita de D N A — q u e n ã o t e m mistérios n e m complicações.

O m i t o alquimista da t r a n s m u t a ç ã o universal, assim c o m o as quimeras, os h i p o c e n t a u r o s , os carontes c outras figuras da m e l h o r m i t o l o g i a grega, r e i n c a r n a r a m n u m a e n g e n h a r i a genética que, c o m toda a naturalidade, transfere genes d u m a s espécies para outras sem ter q u e i n v o c a r quaisquer deuses d o O l i m p o .

O m i t o d o m e l h o r a m e n t o o r i e n t a d o da espécie h u m a n a , j á i n t u í d o p o r L i c u r g o e pelos alquimistas, vai realizarse pela e n g e -nharia genética d o f u t u r o .

Os deuses d o a m o r , d o ódio, d o r e m o r s o e d o s e n t i m e n t o , r e i n c a r n a r a m na trivialidade química e na acessibilidade das drogas psicotrópicas.

O mistério ú l t i m o d o p e n s a m e n t o h u m a n o é simplificado pela inteligência artificial, pela simulação d e m o d e l o s cognoscitivos e pela cerebralização robótica da sociedade.

Estes são apenas alguns dos e x e m p l o s de conquistas reducionistas q u e as ciências da natureza f o r a m a c u m u l a n d o q u a n d o , nas voltas da história, passaram pela fase mecanicista.

E, n o entanto, se tivéssemos t e m p o de c o m p a r a r e m p o r m e n o r as feições d e alguns dos m i t o s antigos c o m as expressões das actuais ciências da natureza, e n c o n t r a r í a m o s razão para lhes atribuir u m autor c o m u m . O m e s m o h o m e m q u e constrói os m i t o s é o q u e faz a ciência.

E claro q u e as ciências da natureza i m p õ e m severas constri-ções aos mitos h u m a n o s . E p o r isso, muitas dezenas de séculos d e

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t r a b a l h o á r d u o se t i v e r a m d e suceder p a r a conseguir subjugar a n a t u r e z a a o p o n t o d e ela consentir n a q u i l o que, pela e n g e n h a r i a genética, d e a l g u m m o d o se a p r o x i m a da tese central dos alqui-mistas, o u das q u i m e r a s m i t o l ó g i c a s .

M a s o c e r t o é q u e , das possibilidades imensas e j a m a i s esgotadas da natureza, o h o m e m selecciona j u s t a m e n t e aquelas q u e interessam para u m a ciência q u e é sua.

O s c a m i n h o s trilhados pelas ciências da natureza são os c a m i n h o s d o h o m e m , e q u e da n a t u r e z a só t ê m u m c o n s e n t i m e n t o e x t o r q u i d o . N o e n t a n t o , até m e a d o s d o nosso século, as ciências da natureza n ã o e r a m pensadas assim. A sua história, s o b r e t u d o a da física, era lida e m t e r m o s d u m a sequência linear e c u m u l a t i v a de aquisições progressivas, graduais e s e m p r e objectivas.

A p a r t i r da física d e Galileu e N e w t o n , a mecânica dos fluidos d e Euler, a m e c â n i c a celeste de Laplace, e as sucessivas f o r m u l a ç õ e s da m e c â n i c a analítica de L a g r a n g e , H a m i l t o n e J a c o b i viam-se c o m o a progressão g r a d u a l na elucidação objectiva da natureza e n a cada v e z mais a m p l a extensão d o seu c a m p o d e aplicação. P o r isso o c i e n t i s m o d o século passado acreditava n u m a vitória sem r e t o r n o d o m e c a n i c i s m o reducionista.

Mas, j á depois disso, s u r g i r a m Faraday e M a x w e l l a desbancar, c o m a n o ç ã o d e c a m p o e l e c t r o m a g n é t i c o , os conceitos n e w t o n i a n o s da e l e c t r o d i n â m i c a d e A m p è r e . Einstein revoluciona, depois, os c o n -ceitos clássicos d e espaço e t e m p o r e l a c i o n a n d o - o s e n t r e si na relativi-d a relativi-d e espacial. Essa relativirelativi-darelativi-de converte-se relativi-depois n u m a o u t r a mais geral, e recebe u m a c o n f i r m a ç ã o espectacular d u r a n t e o eclipse d o sol de 1919. E d d i n g t o n anuncia, na R o y a i Society, q u e Einstein tinha razão e N e w t o n n ã o . F i n a l m e n t e v e m , e m 1928, a g r a n d e r e v o l u ç ã o da m e c â -nica quântica, q u e p õ e e m questão a p r ó p r i a objectividade da física.

Estas repetidas desilusões acerca da «verdade» das ciências l a n ç a r a m u m a justificada suspeita d e falibilidade sobre as mais sólidas conquistas das nossas actuais e f u t u r a s ciências da natureza.

T a m b é m na biologia o d a r w i n i s m o r e v o l u c i o n o u a visão d o m u n d o v i v o , da o r i g e m das espécies e d o p r ó p r i o h o m e m .

E talvez se esteja a p r e p a r a r u m a m u d a n ç a d e p a r a d i g m a b i o l ó g i c o ainda mais drástica. U m c o n h e c i d o cientista inglês p u b l i c o u u m l i v r o4, q u e d e f e n d e a existência de «campos m o r f o g e n é t i c o s »

4 R . SHELDRAKE, A Neii> Science of Life. The Hypothesis of Formative Causation, Blond & Brigs, London, 1981.

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q u e g o v e r n a m a organização das células, tecidos, órgãos e o r g a n i s m o s através d u m a ressonância m ó r f i c a q u e se t r a n s m i t e à distância d e uns organismos p a r a o u t r o s p o r u m a v i a n ã o q u í m i c a .

Esta n o v a hipótese n ã o n e g a q u e o D N A especifique q u i m i c a -m e n t e a c o -m p o s i ç ã o das proteínas. Só q u e , se os testes a c o n f i r -m a r e -m , o p a r a d i g m a actual da biologia m o l e c u l a r p e r d e r á t e r r e n o e m m u i t a s das suas actuais generalizações r e m o t a s , e debater-se-á c o m u m m o d e l o q u e é mais d o t i p o vitalista.

D a necessidade d e explicar este r e p e t i d o colapso d e d o g m a s científicos surgiu, nos m e a d o s d o nosso século, a g r a n d e r e v o l u ç ã o epistemológica, liderada p o r T h o m a s S. K ü h n e pela sua n o v a historiografia das ciências5.

Nesta n o v a c o n c e p ç ã o o progresso histórico das ciências n a t u -rais verifica-se através da sucessão de «paradigmas» diferentes.

D a extrapolação e síntese d u m a a m p l a v a r i e d a d e d e resultados experimentais esparsos e e m c o n e x ã o c o m o c o n t e x t o cultural e científico d e cada época, surge p r i m e i r o u m a hipótese d e t r a b a l h o o u m o d e l o , q u e t e m d e se s u b m e t e r aos testes e x p e r i m e n t a i s possí-veis na época. Se daí sair a p o i a d o c o m suficiente generalização, esse m o d e l o é aceite, pela c o m u n i d a d e científica, c o m o «paradigma». Entra-se e n t ã o na fase da «ciência n o r m a l » q u e c o n c e n t r a t o d o s os seus esforços e m solucionar «puzzles» d e n t r o da lógica d o p a r a d i g m a , e p o r isso t o m a e m relação a ele, u m a a t i t u d e a t r o z m e n t e d o g m á t i c a , apesar da sua falibilidade.

P o r isso, nós l a v a m o s o c é r e b r o aos nossos j o v e n s estudantes, controlamos-lhes as leituras, e só d a m o s boas notas, bolsas de e s t u d o e o privilégio de se t o r n a r e m nossos colaboradores, àqueles q u e a d e r e m ao nosso esquema e f u n c i o n a m nos t e r m o s d o nosso sistema m e n t a l . Mais t a r d e , c o m e ç a m a a c u m u l a r - s e anomalias a o p a r a d i g m a , e ele entra a vacilar e a p e r d e r credibilidade. V e m a fase r e v o l u c i o n á r i a da «ciência extraordinária», q u e levará a n o v o p a r a d i g m a e n o v o d o g m a t i s m o . E o processo r e c o m e ç a .

Esta n o v a epistemologia das ciências, apesar d e m u i t o c o n t r o -vertida n o p o r m e n o r , c o m e ç a a ser g e r a l m e n t e aceite nas suas linhas gerais, p o r c o r r e s p o n d e r d e f a c t o à e s t r u t u r a das recentes r e v o l u ç õ e s científicas.

I m p o r t a n t e é n o t a r q u e ela m o d i f i c a a racionalidade das ciências, t r a n s f e r i n d o a sua f u n d a m e n t a ç ã o d u m a base lógica p a r a o u t r a q u e

3 T. KÎÎHN, The Structure of Scientific Révolutions, U n i v . Chicago Press, 1962.

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p o d e m o s c h a m a r valorativa. D e s t e m o d o , t o r n a - a mais p r ó x i m a da racionalidade típica das ciências d o espírito, e p o r t a n t o mais h u m a n a . N o nosso e s q u e m a geral, este é u m f a c t o r que, nos m e a d o s d o nosso século inclina as ciências da natureza mais para o l a d o d o h o m e m .

C o m o disse H e i s e n b e r g : « W h a t w e observe is n o t nature itself b u t n a t u r e e x p o s e d t o o u r m e t h o d o f questioning». T a m b é m a b i o -logia, s e g u n d o François J a c o b , há m u i t o desistiu de buscar a v e r d a d e . T r a t a , sim, d e c o n t r u i r a sua v e r d a d e , n u m critério de o p e r a c i o n a -l i d a d e6.

A f i n a l , a natureza n ã o é u m l i v r o escrito p o r D e u s na nossa língua. N ã o está escrito e m n e n h u m i d i o m a . O h o m e m é que f o r m u l a as p e r g u n t a s na sua p r ó p r i a l i n g u a g e m , a qual varia m u i t o ao l o n g o dos t e m p o s . E a n a t u r e z a vai r e s p o n d e n d o , c o m o p o d e , e m cada u m a dessas línguas.

Para estudar a natureza, o h o m e m projecta sobre ela a sua p r ó p r i a s o m b r a . E, p o r isso, a n a t u r e z a talvez seja, mais d o q u e u m t e x t o a ler, u m a língua a falar.

M a s este «homem» q u e se p r o j e c t a n a n a t u r e z a n ã o deve ser e n t e n d i d o , n o caso das ciências naturais, c o m o u m i n d i v í d u o , mas sim u m a e n t i d a d e supra-individual.

E que, c o n t r a r i a m e n t e ao q u e sucede e m arte e literatura, a criação científica t e m u m a dependência apenas í n f i m a da p e r s o n a l i d a d e i n d i -vidual d o seu c r i a d o r . E c e r t o q u e o p r o g r e s s o científico se deve, antes d e t u d o , à i m a g i n a t i v a e originalidade d o cientista e m conceber u m m o d e l o de inteligibilidade d o real. Mas o sucesso desse m o d e l o n ã o se m e d e pela sua genialidade, m a s sim pela sua o p o r t u n i d a d e .

C o m o diz François J a c o b , « U m a das maiores qualidades d u m cientista consiste e m saber j u l g a r quais os p r o b l e m a s q u e estão a m a d u r e c i d o s para a análise, decidir q u a n d o é altura de explorar de n o v o u m a velha área e r e t o m a r questões p o u c o t e m p o antes consi-deradas resolvidas o u insolúveis. E, e m g r a n d e parte, à segurança de j u l g a m e n t o neste d o m í n i o q u e c o r r e s p o n d e a criatividade da ciência»1.

Q u a n d o , s e g u n d o o r i t m o p r ó p r i o da ciência, o t e m p o está m a d u r o para u m a dada descoberta, o q u e se verifica é que são

6 F. JACOB, A Lógica da Vida, Pub. D o r a Quixote, Lisboa, 1971, p. 30. 7 F. JACOB, O Jogo dos Possíveis, Ed. Gradiva, Lisboa, 1981, p. 26.

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O H O M E M E AS C I Ê N C I A S 1)A N A T U R E Z A 35

vários a apresentá-la simultânea e i n d e p e n d e n t e m e n t e , sem q u e tenha g r a n d e i m p o r t â n c i a o perfil i n d i v i d u a l dos descobridores.

E significativo q u e seja u m P r é m i o N o b e l (a q u e m p o r t a n t o foi r e c o n h e c i d o u m p a p e l d e r e l e v o n o p r o g r e s s o da ciência) a a f i r m a r 8 que se D a r w i n tivesse ficado a f o g a d o , j o v e m , n u m dos seus cruzeiros, Wallace teria a n u n c i a d o o m e s m o e v o l u c i o n i s m o a q u e h o j e c h a -m a -m o s d a r w i n i s -m o . E q u e se Einstein tivesse sido o canalizador q u e disse preferiria ser p o r profissão, teríamos h o j e a m e s m a teoria da relatividade q u e de facto t e m o s .

Aliás, basta consultar a lista dos P r é m i o s N o b e l . E n q u a n t o o de Literatura é e v i d e n t e m e n t e c o n c e d i d o , e m cada ano, a u m a só personalidade, o de M e d i c i n a e Fisiologia é s e m p r e a t r i b u í d o f o r ç o -samente a várias.

E q u a n d o há u m génio, c o m o M e n d e l , que, s e g u n d o o c a l e n -dário d o progresso científico, faz u m a descoberta c e d o d e mais, ela é i g n o r a d a pela ciência d u r a n t e vários decénios, e n ã o c o n t r i b u i para o seu progresso. A ciência t e m os seus m e c a n i s m o s e r i t m o p r ó p r i o s de evolução, os quais n ã o se a l t e r a m n e m v e r g a m p e r a n t e u m h o m e m isolado, m e s m o q u e seja g é n i o e possa ter razão.

O fazer da ciência, apesar d e ser o b v i a m e n t e u m processo h u m a n o , parece estar assim d e p e n d e n t e d u m a n o r m a supraindividual. N ã o é a expressão livre d o cientista. N ã o é criação q u e reflicta p r i m o r d i a l m e n t e a sua personalidade. E m u i t a s vezes criação i m a g i -nativa, mas s e m p r e f o r t e m e n t e c o n d i c i o n a d a à censura d e p a r a d i g m a s científicos.

4. As ciências da natureza que se projectam no h o m e m

Se é v e r d a d e , c o m o a c a b á m o s d e considerar, q u e o h o m e m se projecta nas ciências da natureza, n ã o é m e n o s v e r d a d e q u e estas c o n s t a n t e m e n t e se p r o j e c t a m sobre o h o m e m e lhe m o d i f i c a m a i m a g e m q u e ele t i n h a de si p r ó p r i o .

As ciências da natureza f o r a m a l t e r a n d o p o r c o m p l e t o a r e p r e -sentação q u e o h o m e m t i n h a da sua o r i g e m , da sua posição n o cosmos, da sua natureza, d o seu c o m p o r t a m e n t o especificamente h u m a n o e d o seu r e l a c i o n a m e n t o c o m os o u t r o s seres vivos. I g u a l m e n t e m o d i f i c a r a m a sua a t i t u d e p e r a n t e o seu p r ó p r i o c o r p o

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36 D 1 D A S K A L I A

c p e r a n t e a d o e n ç a , assim c o m o p e r a n t e a m a n e i r a de utilizar, na sua vida, certos seres vivos c o m o os m i c r o r g a n i s m o s .

As ciências da natureza c r i a r a m , n o h o m e m , necessidades n o v a s e n o v o s anseios q u e antes n ã o sentia. E f o r a m responsáveis p o r i m p o r t a n t e s m o d i f i c a ç õ e s sociais na família, nos costumes, na d e m o -grafia, na indústria, na e c o n o m i a , n o direito, e na convivência inter-nacional 9.

O h o m e m entende-se, a g o r a , c o m o mais r a d i c a l m e n t e inserido na t e r r a d o q u e antes j u l g a v a o u até gostaria de se i m a g i n a r . N ã o há, n o seu c o r p o , u m só e l e m e n t o q u í m i c o original, q u e n ã o existisse j á , m u i t o antes dele, n o c o s m o s C o m p a r t i l h a , c o m os o u t r o s seres vivos, a m e s m a l o n g a história evolutiva. A análise m o l e c u l a r da biologia h u m a n a n ã o revela nele qualquer diferença básica e m relação aos o u t r o s p r i m a t a s . O seu c o m p o r t a m e n t o , m e s m o n a q u i l o q u e ele considerava mais g e n u i n a m e n t e espiritual e h u m a n o , radica-se, afinal, c o m o nos ensina a Sociobiologia, e m genes ances-trais d o r e i n o a n i m a l .

M a s o c e r t o é que, n o m e i o d o o r g u l h o e v o l u t i v o das espécies, que, p e r a n t e a selecção natural, todas l u t a m p o r serem as mais fortes e as mais dotadas, o homo scientijicus parece ter sido o único animal q u e teve a h u m i l d a d e d e confessar a trivialidade da sua o r i g e m e da sua c o n t e x t u r a .

E n o dia e m q u e as ciências da natureza c o n s e g u i r a m final-m e n t e desintegrar o o r g u l h o filosófico d o hofinal-mo sapiens até a o ú l t i final-m o á t o m o d o l o d o bíblico d o n d e p r o v e i o e d o «pó levantado» q u e ele é, nesse dia f o r a m dados, a essas ciências da natureza, o p o d e r e o d o m í n i o sobre os mistérios da vida. D e p o r m e n o r e m p o r m e n o r , d e reacção e m reacção, n u m a sequência rigorosa da o r d e m pela qual as pesquisas t i n h a m de ser conduzidas, a b i o q u í m i c a foi desven-d a n desven-d o , u m a u m , os m e c a n i s m o s químicos desven-da videsven-da. E a biologia m o l e c u l a r conseguiu, nos ú l t i m o s 30 anos, identificar e caracterizar q u i m i c a m e n t e e n a sua estrutura física, os m u i t o s genes q u e são os d e t e r m i n a n t e s das várias características dos seres vivos. E ao analisar e m p o r m e n o r o seu f u n c i o n a m e n t o , e n c o n t r o u a explicação da p e r p e t u a ç ã o , expressão e regulação da vida n o nosso planeta.

Este c o n h e c i m e n t o dos m e c a n i s m o s moleculares da vida c h e g o u , mais r e c e n t e m e n t e a tal p o r m e n o r , q u e p e r m i t i u passar à fase sintética da c o n s t r u ç ã o de novas f o r m a s d e vida.

9 F . GROS, F . JACOB e P . R O Y E R , Sciences de la vie et société, «La D o c u m e n t a t i o n

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O H O M E M E AS CIÊNCIAS 1)A N A T U R E Z A 37

É j á possível sintetizar alguns genes p o r p u r a q u í m i c a orgânica, e introduzi-los depois n u m o r g a n i s m o d e m o d o a q u e aí f u n c i o n e m c se p e r p e t u e m . D e s t e m o d o se c o n s e g u i r a m , e j á estão c o m e r c i a -lizadas, bactérias q u e p r o d u z e m , e m condições a l t a m e n t e económicas,

insulina h u m a n a e outras h o r m o n a s h u m a n a s de interesse t e r a p ê u t i c o e comercial.

É possível, p o r u m a cirurgia genética e x t r e m a m e n t e precisa, que se c h a m a e n g e n h a r i a genética, transferir genes d e u m ser v i v o para o u t r o tão d i f e r e n t e dele c o m o u m a bactéria o é d u m h o m e m . Está a ser possível, p o r estas técnicas, t r a n s f o r m a r h e r e d i t a r i a -m e n t e plantas e ani-mais de a c o r d o c o -m interesses da p r o d u ç ã o e da indústria.

Vai ser possível, 110 ano 2000, fazer terapia genética n o caso de algumas e n f e r m i d a d e s h u m a n a s , i n t r o d u z i n d o genes b o n s e m células d u m i n d i v í d u o q u e os t i n h a deficientes.

Através da e n g e n h a r i a genética, m u i t o s c o m p o s t o s d e e n o r m e interesse comercial e industrial estão j á a ser p r o d u z i d o s , e m c o n d i -ções a l t a m e n t e económicas, p o r bactérias e o u t r o s m i c r o r g a n i s m o s .

Esta n o v a r e v o l u ç ã o biológica implica g r a n d e s reconversões da Indústria, acarreta i m p o r t a n t e s m o v i m e n t a ç õ e s e c o n ó m i c a s e sociais internacionais, levanta n o v o s p r o b l e m a s legais e éticos, o b r i g a a Sociedade a opções f u n d a m e n t a i s , e constitui-se n u m a n o v a f o r m a de P o d e r q u e está a f o r ç a r os g o v e r n o s dos p o v o s a investir nesta área e a definir u m a política científica e t e c n o l ó g i c a .

Para justificar estas últimas a f i r m a ç õ e s n ã o se t o r n a necessária u m a l o n g a exposição, pois os factos são b e m c o n h e c i d o s1 0. L i m i -t e m o - n o s a e n u m e r a r os mais salien-tes q u a n -t o às influências das ciências da natureza.

á) na r e p r o d u ç ã o h u m a n a e família: j á há mais d e 30 000 rapazes e raparigas q u e f o r a m o r i g i n a d o s n ã o p o r u m acto sexual m a s p o r u m acto científicotecnológico; mães h o s p e -deiras; experiências e m e m b r i õ e s ;

h) n o a m b i e n t e : i n t r o d u ç ã o deliberada, n o a m b i e n t e , de m i c r o r -ganismos, plantas e animais, m o d i f i c a d o s p o r e n g e n h a r i a genética; equilíbrios ecológicos; n o v o s p r o d u t o s p o t e n c i a l -m e n t e -m u t a g é n i c o s ;

c) n o d o m í n i o jurídicosocial: n o v o direito de patentes; r e f o r -m u l a ç ã o d o d i r e i t o de sucessão, p a t e r n i d a d e , d i r e i t o dos

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38 D I D A S K A L I A

nascituros. N o v o s equilíbrios U n i v e r s i d a d e - I n d u s t r i a e inves-tigação básica-invesinves-tigação aplicada. E x p l o r a ç ã o social dos p r o b l e m a s d e s e g u r a n ç a ;

d) e m E c o n o m i a : r e v o l u ç ã o bio-industrial, novas empresas e absorção p o r multinacionais; p r o b l e m a s da conversão de tecnologias p r o d u t i v a s , desequilíbrios e c o n ó m i c o s i n t e r n a cionais, neocolonialismos industriais e m o n o p ó l i o s t e c n o -lógicos. Alterações na repartição e c o n ó m i c a , na p r o d u ç ã o de m u i t o s bens, sua t r a n s f o r m a ç ã o , transporte, troca e custo, assim c o m o na distribuição de postos de trabalho. N o v a s políticas económicas;

e) n o p o d e r político: k n o w - h o w genético passou a significar P o d e r . P l a n o francês 1983-1985 investe, e m biotecnologia, 2 , 5 % d o p r o d u t o nacional b r u t o . Necessidade, para cons-t r u i r E u r o p a u n a , de invescons-tir na periferia e m invescons-tigação científica;

/ ) e m Ética: n o C o n s e l h o da E u r o p a : «Ad h o c C o m m i t t e e o f experts o n ethical a n d legal p r o b l e m s relating t o h u m a n genetics». N a O . C . D . E . : «Ad h o c g r o u p o n safety and regulations in Biotechnology». Várias comissões i n t e r n a -cionais e na-cionais d e Bioética.

P a r a lá de t o d o s estes f a c t o s q u e t ã o p r o f u n d a m e n t e afectam a vida social d o h o m e m , há o u t r o s q u e v ã o d i r e c t a m e n t e m o d i f i c a r a sua v i d a biológica d o f u t u r o .

U m deles t e m a v e r c o m o serem transferidas para as possibi-lidades da técnica (e, p o r t a n t o , para o d o m í n i o d o h o m e m ) muitas opções q u e até a g o r a e r a m e x c l u s i v a m e n t e t o m a d a s pela natureza. D e e n t r e os vários e x e m p l o s , o u j á dados o u q u e se p o d e r i a m acrescentar, fixemo-nos n a capacidade d e interferir na evolução f u t u r a da espécie h u m a n a .

Para a l é m dos casos j á citados de terapia génica (em q u e se a l t e r a m genes p a r a erradicar u m a doença), p o d e pensar-se n u m a e n g e n h a r i a genética d e «melhoramento», q u e r e d u z a as limitações h u m a n a s o u a u m e n t e capacidades daqueles q u e n ã o são p r o p r i a m e n t e e n f e r m o s (apesar da e n o r m e d i f i c u l d a d e e m d e m a r c a r c o m exactidão o n d e acaba u m a e n f e r m i d a d e e o n d e c o m e ç a u m a limitação).

O i m p o r t a n t e é que, para a definição d a q u i l o q u e p o r v e n t u r a signifique «melhorar» a nossa espécie, vai a p o p u l a ç ã o h u m a n a dividir-se necessariamente, s e g u n d o as tão diferentes concepções c o m

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O H O M E M E AS CIÊNCIAS 1)A N A T U R E Z A 39

respeito ao sentido, significado, e destino d a vida h u m a n a . Essas diferenças passarão, nos anos 2000, d o a c a d e m i s m o dos filósofos c d o segredo pacífico das intenções, p a r a a rua, p a r a as g r a n d e s deci-sões sobre quais, e c o m q u e características, v ã o ser os seres h u m a n o s

d o p r ó x i m o século.

J á há bancos de espermatozóides h u m a n o s congelados, e óvulos h u m a n o s recém-fertilizados in vitro, t a m b é m congelados, à espera de m o d i f i c a ç õ e s p o r e n g e n h a r i a genética. Pela sua p o s t e r i o r i n t r o -d u ç ã o e m mães hospe-deiras, p o -d e r i a vir a ser m o n t a -d a u m a in-dústria de fabricação de seres h u m a n o s c o m as características consideradas desejáveis. Q u a i s serão elas, é o g r a n d e p r o b l e m a .

N ã o é i m p e n s á v e l , p o r e x e m p l o q u e a l g u é m estivesse interessado e m lançar u m t i p o de h o m e m , fisicamente são e c o m apetência para o trabalho, mas d i m i n u í d o nas capacidades de decisão e d e p r o t e s t o . Seria u m a neo-escravatura de desenho b i o l ó g i c o . N o p ó l o o p o s t o , eugenismos de t i p o racista e c o m agressividade h i p e r t r o f i a d a seriam, p r o v a v e l m e n t e , t a m b é m p r o g r a m á v e i s , e p o d e r i a m , p r e c i s a m e n t e p o r essa hiperagressividade, e l i m i n a r as outras raças e d o m i n a r o planeta. M u i t o s o u t r o s cenários d e v e m t a m b é m ser considerados.

Para discutir c tentar regular estas e outras situações, estabele-ceram-se comissões internacionais n o C o n s e l h o da E u r o p a , O . C . D . E . , c outras instituições. M a s q u e m as f r e q u e n t a , c o m o eu, c o n h e c e a dificuldade e m vencer a força d o c h a m a d o a u t o m a t i s m o t e c n o l ó g i c o que t e n d e a q u e t u d o o q u e se t o r n a t e c n i c a m e n t e viável seja executado, antes m e s m o de os juristas t e r e m t e r m i n a d o as suas longas discussões sobre novas explicitações dos D i r e i t o s d o H o m e m1 1.

T e n t a n d o resumir, talvez pudéssemos dizer q u e as ciências da natureza, ao p r o j e c t a r e m - s e sobre o h o m e m , a c a b a r a m p o r transferir, para ele, m u i t o s p o d e r e s q u e p e r t e n c i a m só à natureza.

D e r a m - l h e o p o d e r de desintegrar o á t o m o , e de r e i n t e g r a r a sua energia e m n o v o s p r o g r a m a s energéticos.

D e r a m - l h e o p o d e r de desintegrar os genes, e d e os r e i n t e g r a r , pela e n g e n h a r i a genética, e m novas f o r m a s r e c o m b i n a d a s d e vida.

D e r a m - l h e o p o d e r de desintegrar o processo da r e p r o d u ç ã o h u m a n a , e de r e i n t e g r a r alguns dos seus e l e m e n t o s e m bébés p r o v e t a que, d o u t r o m o d o , n ã o existiriam.

11 Ver todo o numéro 195 da Revista Project: Vers la «procréatique» — une société

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4 0 D I D A S K A L I A

D e r a m - l h e o p o d e r d e desintegrar a b r i c o l a g e m lenta da e v o l u ç ã o das espécies (incluindo d o p r ó p r i o h o m e m ) , e d e reintegrar os seus e l e m e n t o s , pela e n g e n h a r i a genética, n u m a evolução arti-ficial m a i s r á p i d a e o r i e n t a d a .

D e r a m - l h e o p o d e r d e desintegrar órgãos (ou p a r t e deles) d o c o r p o a n i m a l o u h u m a n o , e d e os r e i n t e g r a r , através de transplantes, n o u t r o s o r g a n i s m o s .

D e r a m - l h e o p o d e r d e desintegrar os processos cognoscitivos, a l i n g u a g e m e a m e m ó r i a , e d e r e i n t e g r a r os seus elementos i n f o r -m a t i v o s e -m siste-mas c o -m p u t o r i z a d o s de linguagens -mais rápidas e m e m ó r i a s mais eficientes.

M a s , ao m e s m o t e m p o q u e a ciência transfere para o h o m e m t o d o este p o d e r da n a t u r e z a ensina-lhe t a m b é m que, n o seu p r ó p r i o interesse, o seu d o m í n i o n ã o deverá ser despótico m a s sim respeitador dos delicados equilíbrios ecológicos, orgânicos e celulares q u e caracte-r i z a m a v i d a sobcaracte-re a tecaracte-rcaracte-ra. O f o g o d o O l i m p o , caracte-r o u b a d o violenta-m e n t e , trará grilhões a P r o violenta-m e t e u . O h o violenta-m e violenta-m n ã o é o S e n h o r absoluto d a n a t u r e z a , e t e r á q u e se abster d e c o m e r os f r u t o s d u m a dada á r v o r e , se n ã o quiser ser expulso d o Paraíso.

O s cientistas são m u i t o mais conscientes e m u i t o mais c u i d a -dosos destes aspectos d o q u e pensa c e r t o p ú b l i c o e certos jornalistas. Só q u e , p a r a e n t e n d e r isto m e s m o , seria preciso u m p r o f u n d o c o n h e -c i m e n t o d e espe-cialização -científi-ca e u m l o n g o t r e i n o laboratorial q u e desse a i m a g e m d e c o m o se faz a ciência. E essas actividades s e r i a m desmobilizadoras da exploração jornalística dos grandes m e d o s ancestrais e das grandes ignorâncias públicas, q u e são atitudes m u i t o m a i s p o p u l a r e s .

P o d e r i a j u l g a r - s e q u e aqui ficasse e s g o t a d o este capítulo sobre a p r o j e c ç ã o das ciências naturais sobre o h o m e m — sobre a sua i m a g e m d e c r i a d o r , sobre o d o m í n i o das suas c o o r d e n a d a s sociais e d o seu f u t u r o genético.

M a s h á mais. E isso refere-se às pretensas incursões libertadoras q u e as ciências da natureza a n u n c i a m , p a r a lá d o h o m e m , na p r ó p r i a área das ciências h u m a n a s , c o m o sociologia, ética, e até religião.

O f u n d a d o r da Sociobiologia, E d w a r d O . W i l s o n , diz, quase t e x t u a l m e n t e , q u e os filósofos, sociólogos, teólogos, e moralistas p o d e m p e d i r a r e f o r m a e ir descansar e m paz, p o r q u e os p r o b l e m a s q u e eles l o n g a m e n t e p r o c u r a v a m resolver c o m os seus m é t o d o s

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O H O M E M E AS C I Ê N C I A S 1)A N A T U R E Z A 41

primitivos, v ã o a g o r a ser cientificamente explicados a p a r t i r da herança h u m a n a d e genes animais q u e e v o l u í r a m s e g u n d o leis h o j e conhecidas. Só u m a o u o u t r a citação para e x e m p l o : « W e h a v e c o m e t o t h e crucial stage in t h e h i s t o r y o f b i o l o g y w h e n r e l i g i o n itself is subject t o t h e explanations o f t h e n a t u r a l sciences. As I h a v e tried t o s h o w , s o c i o b i o l o g y can a c c o u n t f o r t h e v e r y o r i g i n o f m y t h o l o g y b y t h e p r i n c i p l e o f n a t u r a l selection acting o n t h e genetically e v o l v i n g m a t e r i a l structure o f t h e h u m a n brain»1 2.

«I believe t h a t religious practices can be m a p p e d o n t o t h e t w o dimensions o f genetic a d v a n t a g e a n d e v o l u t i o n a r y c h a n g e »1 3.

E p a t e n t e q u e esta e u f o r i a p a n - b i o l o g i z a n t e n ã o está a ter n e m vai ter a adesão universal dos q u e p e n s a m e m p r o f u n d i d a d e os g r a n d e s p r o b l e m a s . M e s m o assim, a Sociobiologia t e m , na p e n a d e W i l s o n , a t r e m e n d a força de ser l i n d a m e n t e descrita nos t e r m o s d u m a fascinante épica l i b e r t a d o r a q u e se constitui e m m i t o .

A l é m disso, a Sociobiologia terá p r o v a v e l m e n t e u m l u g a r v á l i d o e n t r e as ciências d o a n o 2000. O estudo científico d o c o m p o r t a m e n t o animal, q u e t e m p r o g r e d i d o espectacularmente nos ú l t i m o s dez anos, p õ e e m r e l e v o q u e m u i t o s tipos de c o m p o r t a m e n t o h u m a n o q u e se j u l g a v a serem apanágio da espiritualidade da nossa espécie, e n c o n -t r a m flagran-tes paralelos n o c o m p o r -t a m e n -t o animal.

A p a r t i r desse paralelismo, e d o c o n h e c i m e n t o da base genética de m u i t o s c o m p o r t a m e n t o s animais (por ter sido e l i m i n a d a a possi-bilidade de a p r e n d i z a g e m o u imitação), a Sociobiologia a r g u m e n t a que os nossos genes de o r i g e m a n i m a l t ê m , e m contraposição a o a m b i e n t e social, u m a acção d e t e r m i n a n t e d o nosso c o m p o r t a m e n t o g e n u i n a m e n t e h u m a n o m u i t o m a i o r d o q u e aquela q u e nós j u l g a -ríamos o u gosta-ríamos q u e tivessem.

5. H o m e m e ciências da natureza e m interprojecção: o futuro

Para m a i o r clareza de exposição, separei e m capítulos diferentes (os dois anteriores) a q u i l o q u e , na realidade, se passa e m subtil simultaneidade. S o b r e t u d o aos níveis mais recentes desta c o n f r o n -tação, h o m e m e ciências da natureza estão e m interacção t ã o constante

»2 E. O . WILSON, OU Human Nature, Harvard U n i v Press U S A , 1978 p. 192.

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42 D I D A S K A L I A

e c o n j u n t a , q u e p o r vezes é difícil distinguir os dois sentidos dessa influência m ú t u a .

Q u a n d o a ciência, n o decurso d o seu c a m i n h o p r ó p r i o d e e v o l u ç ã o (a q u e j á aludi) o b t é m resultados que, i n d e p e n d e n t e m e n t e d o o b j e c t i v o q u e os m o t i v o u , d ã o esperanças de serem aplicáveis à satisfação d u m anseio ancestral e p r o f u n d o (mas talvez inconsciente) da h u m a n i d a d e , há e n t ã o u m a f o r t e pressão h u m a n a para inflectir a ciência nesse sentido. E e m consequência da viabilidade técnica, o anseio torna-se necessidade.

A descoberta das enzimas de restrição, p o r e x e m p l o , fez-se n u m c o n t e x t o científico q u e não visava q u a l q u e r engenharia genética. Visava sim a análise mais fina d o material genético c a busca, para isso, de enzimas q u e cortassem o D N A e m p o n t o s específicos. Mas q u a n d o se v e r i f i c o u o m o d o c o m o algumas dessas enzimas c o r t a m o D N A , v i s l u m b r o u - s e a possibilidade d u m a operação diferente, que é a de transferir genes de u m o r g a n i s m o para o u t r o . E c o m o isso estava inscrito n u m anseio ancestral de construir novas f o r m a s d e vida, l o g o a ciência f a t a l m e n t e inflectiu para a e n g e n h a r i a genética. O m i t o t o r n o u - s e ciência, c o anseio necessidade.

Foi sobre possibilidades entrevistas pelas ciências médicas que interesses da indústria e da p u b l i c i d a d e a c t u a r a m de m o d o a trans-f o r m a r trans-finalmente o desejo d e saúde n o r e c o n h e c i m e n t o público d o «direito à saúde».

Foi sobre a antevista viabilidade científica d e sintetizar c o n t r a -ceptivos químicos, q u e o anseio de limitação da natalidade desen-c a d e o u a investigação nessa área e apressou o desen-c a m i n h a r para o direito à p a t e r n i d a d e responsável e à libertação da m u l h e r .

Foi p e r a n t e fertilizações in vitro e m animais, q u e o i n c o n f o r m i s m o h u m a n o e m face da infertilidade i m p u l s i o n o u a intensa investigação c o n d u c e n t e a o b é b é p r o v e t a . U m a vez q u e este se t o r n o u tecni-c a m e n t e possível, vai-se t r a n s f o r m a n d o e m netecni-cessidade e «direito» o anseio dos inférteis de t e r e m u m filho.

B a s t e m estes p o u c o s e x e m p l o s para inculcar a ideia de q u e as influências m ú t u a s e n t r e h o m e m e ciências da natureza são múltiplas, subtis, e se d ã o p o r vezes e m cadeia.

Seria i n g e n u i d a d e pensar r o m a n t i c a m e n t e q u e o principal m ó b i l d o p r o g r e s s o das ciências naturais fosse h o j e o desejo cândido de c o n h e c e r o m u n d o . M u i t o s progressos das ciências da natureza vão despertar n o coração d o h o m e m u m desejo a d o r m e c i d o , c trans-f o r m á - l o e m necessidade.

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O H O M E M E AS CIÊNCIAS 1)A N A T U R E Z A 43

M a s sucede q u e n e m s e m p r e esses anseios ancestrais estão isentos de crítica.

O s ódios da g u e r r a , os interesses e c o n ó m i c o s e x a c e r b a d o s m u i t o para lá da justiça m í n i m a , as concorrências desleais, são alguns dos m u i t o s e x e m p l o s d e anseios ancestrais que, p o r u m lado, t ê m sido potenciados p e l o p r o g r e s s o científico e, p o r o u t r o , t ê m i m p u l s i o n a d o i m p o r t a n t e s descobertas da ciência.

H o j e , q u e a investigação científica c m áreas de f r o n t e i r a é u m e m p r e e n d i m e n t o m u i t o dispendioso, a l t a m e n t e sofisticado e m a p a r e l h a g e m , t r e m e n d a m e n t e exigente c m p r e p a r a ç ã o e k n o w h o w , e f o r t e -m e n t e c o -m p e t i t i v o , cada vez se t o r n a -m e n o s viável q u e o fazer da ciência seja u m processo individual, isolado e i n d e p e n d e n t e .

Só e possível dar u m a válida c o n t r i b u i ç ã o científica t e n d o u m a f o r t e inserção 110 c o n t e x t o social da c o m u n i d a d e científica i n t e r n a -cional e da sua m a q u i n a r i a . E preciso ter e n t r a d o nos seus «clubes».

E p o r q u e a ciência t e m h o j e fortes repercussões sociais a vários níveis, c interessa p o r vezes a o P o d e r e às multinacionais, a c o m u n i d a d e científica está cada vez mais e n r e d a d a na política científica e nas suas estratégias. E estas estão f a t a l m e n t e entretecidas d e t o d o s os cultos pagãos d o nosso t e m p o , c o m o o e g o í s m o , o interesse, o c u r r i -culismo, a a m b i ç ã o , a ganância, a c o r r u p ç ã o d o p o d e r , o o r g u l h o d e m u d a r a face da T e r r a e d o m i n a r o m u n d o .

Apesar da rectidão de m u i t o s indivíduos, e da inocência d e classes inteiras que, absorvidas pela intensidade d o t r a b a l h o d u r o , n e m sequer p o d e m pensar nestas coisas, a e s t r u t u r a d o m i n a n t e está viciada, n o alicerce das suas m o t i v a ç õ e s , p o r este i m p é r i o d o M a l q u e reina, subterrâneo, n o coração d o h o m e m .

O q u e acontece é q u e o r á p i d o d e s e n v o l v i m e n t o científico-- t e c n o l ó g i c o das últimas décadas veio, mais d o q u e a elucidar a natureza, a revelar o h o m e m e desenterrar os seus anseios subcons-cientes. F. essa revelação n ã o foi p r o p r i a m e n t e lisonjeira.

E p o r isso, c e r t o p ú b l i c o reage, rejeita esta v e r d a d e d o h o m e m , e investe e m anti-cientismo. E entra e m pânico.

Mas o m a l n ã o está na ciência, n e m devia estar e m q u e se diga a v e r d a d e . O m a l está n o h o m e m .

O f u t u r o n ã o parece brilhante. C o m e ç a a entender-se q u e o d e s e n v o l v i m e n t o científico desencadeia u m apetite d e bens m a t e -riais q u e não p o d e saciar. A ciência cria mais necessidades d o q u e aquelas que p o d e satisfazer.

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44 D I D A S K A L I A

A lógica d o «quanto mais melhor» é u m a c o r r i d a i m p a r á v e l . A c u m u l a r - s e - á . E a a c u m u l a ç ã o alimenta a c o m p u l s ã o a c o n s u m i r . N u n c a chegará o m o m e n t o e m que, e m vez d e c o m p e t i r , se c o m p a r t i l h e .

As tecnologias d e p o n t a t e n d e m a acentuar a desigualdade e c o n ó m i c a . Esta converte-se n o s í m b o l o da diferenciação individual, c o p o d e r d e possuir sobrepõe-se a t o d a a p r o c l a m a ç ã o académica de i g u a l d a d e .

A lógica da tecnologia leva a situações e m q u e a pessoa fica sacrificada à sociedade, a criatividade aos p r o g r a m a s , o t e m p o v i v i d o ao t e m p o m e d i d o , a i m a g i n a ç ã o ao d o m í n i o d o p e r i t o , o signifi-c a d o à f u n ç ã o , a v i d a v i v i d a à v i d a g a n h a .

T e m e - s e a cerebralização r o b ó t i c a da sociedade e a aporia radical da tecnologia.

E c o m este m u n d o técnico — o «Tecnocosmos» 1 4— t o r n a d o a u t ó n o m o e d o m i n a d o r q u e o h o m e m se vai c o n f r o n t a r n o n o v o m i l é n i o q u e j á desponta.

C o n c r e t a m e n t e , os factos passam-se, e m geral, de a c o r d o c o m o e s q u e m a seguinte:

1. O s progressos científicos e técnicos t o r n a m viável, p o r e x e m p l o , a r e p r o d u ç ã o h u m a n a artificial.

2. E m face dessa exequibilidade, há q u e m requeira, nos h o s p i -tais, q u e essas técnicas lhe sejam aplicadas. O u inseminação artificial c o m o e s p e r m a d o m a r i d o d e f u n t o . O u m u l h e r e s solteiras q u e r e i v i n d i c a m o «direito» à m a t e r n i d a d e s e m i n t e r v e n ç ã o directa d u m c o m p a n h e i r o m a s c u l i n o . O u m u l h e r e s q u e p r e t e n d e m u m filho sem p o d e r e m o u q u e r e r e m passar pela g r a v i d e z e p a r t o .

3. O s m é d i c o s i n t e r r o g a m - s e , e m consciência, sobre as razões q u e p o d e r ã o aduzir para se n e g a r e m . U m a vez q u e se trata, n o s e n t i d o a m p l o , d u m s u p r i m e n t o d e infertilidade, e há viabilidade técmca, a c e d e m .

4. S u r g e e n t ã o u m a n o v a área de interesse e c o n ó m i c o para i n t e r m e d i á r i o s , q u e r a p i d a m e n t e se apresentam a conquistar esse m e r c a d o .

5. M u i t o mais tarde, apela-se e n t ã o para comissões de ética, legislação a p r o p r i a d a e n o r m a s morais. M a s , e n t r e t a n t o , j á alguns

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O H O M E M E AS C I Ê N C I A S 1)A N A T U R E Z A 45

factos c r i a r a m precedentes e se t o r n a r a m práticas c o m u n s , e n q u a n t o , p o r o u t r o lado, velhos princípios e disposições j u r í d i c a s p e r d e r a m aplicabilidade.

P e r a n t e raras situações consideradas gritantes pela sociedade, passam-se c o n d e n a ç õ e s o u até penalizações. Mas e m t o d o s os o u t r o s casos, o q u e c o n d u z a e v o l u ç ã o das sociedades n ã o são «princípios» estabelecidos n u m passado q u e n e m sequer suspeitava das realidades actuais. O q u e a c o n d u z é a viabilidade técnica, a o p e r a c i o n a l i d a d e d o T e c n o c o s m o s , e m realizações q u e c o r r e s p o n d e m a desejos ances-trais e p r o f u n d o s da h u m a n i d a d e . O s princípios só v i r ã o mais tarde, c o m o racionalização das reacções da sociedade à c o n f r o n t a ç ã o d o T e c n o c o s m o s c o m o sentido p r o f u n d o d o h u m a n o .

E esta a g r a n d e c o n f r o n t a ç ã o q u e se d e b a t e agora.

O h o m e m , depois de d u p l a m e n t e reflectido na desmitificação científica e na remitificação técnica, recebe de si m e s m o e d o seu p r ó p r i o olhar u m a i m a g e m n o v a , mais c o m p l e x a e a u t ó n o m a . A sua i m a g e m assumiu alteridade. M a s o d i á l o g o n ã o é fácil, p o r q u e as linguagens são basicamente diferentes. U m a , e x p r i m e a p e r c e p ç ã o imediata que o h o m e m i n e v i t a v e l m e n t e t e m de si. A o u t r a é mediada p e l o T e c n o c o s m o s .

O s axiomas d o n o v o m i t o são, e n t r e outros, os seguintes: « T u d o o q u e f o r t e c n i c a m e n t e viável será realizado», m e s m o a q u i l o q u e o h o m e m diga q u e n ã o l h e é útil o u q u e as Comissões de Ética r e p r o v a r a m . E «tudo, a seu t e m p o , será t e c n i c a m e n t e viável», desde q u e se espere s u f i c i e n t e m e n t e e se tenha a paciência cósmica de q u e a evolução nos dá e x e m p l o .

C o m o todos os axiomas, t a m b é m estes n ã o se p r o v a m n e m se j u s t i f i c a m . Eles i m p õ e m s e . São u m f a c t o . Esta fatalidade e a m o r a -lidade essenciais d o T e c n o c o s m o s , m o s t r a m c o m o ele n ã o p o d e ser inserido n u m a n t r o p o l o g i s m o i n s t r u m e n t a l i s t a1 5, e mais f a c i l m e n t e devia ser considerado, na expressão d e j . B r u n1 6, c o m o «manipulação ontológica» da v i d a e d o h o m e m .

O T e c n o c o s m o s estrutura-se, l o g o à p a r t i d a , c o m o e x c l u i n d o o simbólico, o i n t e r p r e t a t i v o e o axiológico. T o r n a - s e , d e e s t r u t u r a básica, afilosofante.

15 M . HEIDEGGER, Die Frage nach der Technik, in «Vorträge und Aufsätze», Pfullingen,

Neske, 1967.

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46 D1DASKAL1A

T o m a n d o a sério, e até ao fim, esta sua essência n ã o v e j o q u e seja possível elaborar u m a filosofia a p a r t i r d o interior m e s m o d o T e c n o c o s m o s , q u e esteja m i n i m a m e n t e n o p r o l o n g a m e n t o da sua estrutura. Isto é, n ã o creio q u e o T e c n o c o s m o s possa ter u m p a r a -lelo d o q u e t e m sido a filosofia das ciências.

E q u a l q u e r discurso q u e i n c o n s c i e n t e m e n t e se tornasse e m ficção logoteórica e axiológica a o serviço d o T e c n o c o s m o s , levaria e m g e r m e u m desenlace suicida dessa filosofia!

P o r o u t r o lado, q u a l q u e r a n t r o p o l o g i s m o instrumentalista que, v i n d o de f o r a , tentasse integrar o T e c n o c o s m o s e constituir-se e m n o r m a e p a d r ã o a q u e ele devesse ficar sujeito, n ã o estaria a e n t e n d e r o p r o b l e m a , n e m a lidar c o m a m e n t a l i d a d e tecnocien-tífica real.

O T e c n o c o s m o s é necessariamente refractário às elaborações culturais e filosóficas q u e lhe são anteriores o u exteriores. Ele criou o seu p r ó p r i o universo de p e n s a m e n t o , a sua lógica, a sua sintaxe e a sua l i n g u a g e m . Ele r e e l a b o r o u , através da lenta mas segura a c u m u l a ç ã o de dados científicos, u m a n o v a e insuspeitada i m a g e m das questões d e f u n d o , c o m o a «natureza» d o h o m e m e da vida, a sua o r i g e m e finalidade, a ética da sua convivência c o m o resto d o Planeta e d o cosmos, a biologia evolutiva da m e n t e consciente c a base genética d o m a l .

E o p r o b l e m a está e m q u e essa i m a g e m n ã o p o d e ser correcta-m e n t e perspectivada de f o r a d o sistecorrecta-ma, correcta-mas só d o seu interior. O seu c o n t e ú d o n ã o é p o r isso d i a l o g a n t e n e m dialogável c o m as filosofias e culturas tradicionais, c o m o b e m se n o t a de cada vez q u e u m a comissão reúne, a alto nível, cientistas e pensadores. Mas apesar disso, e tal c o m o t e m o s a c e n t u a d o , é o T e c n o c o s m o s e n ã o a cultura tradicional q u e h o j e arrasta os factos e os hábitos (que u m dia se t o r n a r ã o costumes), e leva atrás de si, e m elaboração lenta, os moralistas, os juristas, e os pensadores.

Apesar de n ã o se v i s l u m b r a r , deste m o d o , u m p o n t o de partida n e m f o r a n e m d e n t r o d o T e c n o c o s m o s , p o d e esperar-se q u e u m h u m a n i s m o n ã o p r o p r i a m e n t e antropologista mas vivencialista v e n h a a ser, nesta c o n f r o n t a ç ã o , u m m e d i a n e i r o c o n s t r u t i v o d e diálogo.

Ele terá, p r i m e i r o , de v i v e r na p r ó p r i a carne, a experiência da aniquilação d o h u m a n o na fidelidade ao a n a x i o l ó g i c o e assimbólico d o T e c n o c o s m o s . P e r a n t e esse ser lançado para f o r a d o h u m a n o , b r o t a r á então u m i n c o n f o r m i s m o essencial, o qual irá p ô r e m evidência, identificar e reelaborar aquela zona d o h u m a n o q u e n ã o

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O H O M E M E AS CIÊNCIAS 1)A N A T U R E Z A 47

c absorvível p e l o T e c n o c o s m o s . Essa zona clamará e n t ã o pela trans-cendência salvadora d u m n o v o h u m a n i s m o .

Esse, n ã o p o d e r á ser acusado de vir n e m de f o r a d o T e c n o -cosmos, pois resultou da experiência vivencial da sua tutela, n e m de d e n t r o dele, na m e d i d a e m q u e se rebela c o n t r a a coerência interna d o sistema. Ele b r o t a d o interior d o h o m e m c o n c r e t o , t o t a l m e n t e e x p o s t o e e n t r e g u e à vivência tecnocósmica. Mas, p a r a isso, terá de p e r c o r r e r , p o r d e n t r o d o sistema tecnocientífico, todos os m e a n d r o s da sua lógica e da sua l i n g u a g e m . T e r á q u e assumir os seus pressupostos e i n c o r p o r a r o seu universo. N ã o p o d e r á b r o t a r da inflexão t e r m i n a l d u m o u t r o h u m a n i s m o , pela c o n f r o n -tação superficial c o m as novas técnicas. T e r á q u e fazer p o r extenso t o d o o circuito da p r o j e c ç ã o m ú t u a e n t r e h o m e m e ciências da natureza que aqui se esquissou.

Isto significa, a nível f o r m a t i v o , q u e as ciências e as técnicas t e r ã o de ser transferidas da posição de e l e m e n t o adicional e c o m p l e -m e n t a r n o -m u n d o d o p e n s a -m e n t o e da cultura para o l u g a r de alfabeto básico, q u e t e m de ser a p r e n d i d o c o m as p r i m e i r a s letras, assimilado c o m profissionalismo, e c o n d u z i d o até ao b r o t a r d u m a reflexão h u m a n i s t a q u e possa salvar o h o m e m d o p r ó x i m o m i l é n i o .

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