• Nenhum resultado encontrado

Notas sobre as possibilidades de pesquisa que se apresentam na análise dos inventários: Rio de Janeiro, 1763-1808

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Notas sobre as possibilidades de pesquisa que se apresentam na análise dos inventários: Rio de Janeiro, 1763-1808"

Copied!
19
0
0

Texto

(1)

NOTAS SOBRE AS POSSIBILIDADES DE PESQUISA QUE SE

APRESENTAM NA ANÁLISE DOS INVENTÁRIOS: RIO DE JANEIRO,

1763-1808

1

Cristiane Fernandes Lopes Veiga2

Demógrafos historiadores e historiadores da população têm se servido há muito das listas de população e dos registros paroquiais para analisarem a constituição das famílias, a ilegitimidade, bem como as taxas de nascimentos, de mortes, a frequência de casamentos, a mortalidade infantil, as relações de parentesco, a idade no casamento, o número de filhos, a frequência de recasamentos entre outros temas relativos à população livre e escrava.

Outros pesquisadores associam estes documentos aos inventários post

mortem para obter mais informações e comparar dados. Da História Social à

Demografia Histórica, os estudiosos têm demonstrado as diversas possibilidades e também os limites dessa fonte manuscrita (VALENTIM; MOTTA; COSTA; 2013). Este trabalho é o resultado de uma reflexão sobre os inventários post mortem utilizados durante a realização do meu doutorado3. O que proponho aqui são algumas ponderações a respeito do que foi analisado durante esse período e do que ainda está por ser explorado, especificamente, nos processos de inventários examinados.

A documentação a qual tivemos acesso concentrou-se nos autos de inventário post mortem do período entre a transferência da capital do vice-reinado de Salvador para a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1763, até a chegada da família real ao Brasil (1808). Nós restringimos o corpo documental aos casais com filhos menores para entendermos como se dava a tutela e administração dos bens dos herdeiros órfãos. Também analisamos documentos de viúvas com ou sem filhos menores. Todos foram iniciados por habitantes das freguesias rurais e urbanas da capitania do Rio de Janeiro no Juízo de Órfãos e Ausentes, no Juízo de Órfãos e Ausentes da 1a Vara, na Casa da Suplicação e no Juízo de Fora. Somando

1

Trabalho apresentado no VIII Simpósio Nacional de História da População, realizado no Nepo/Unicamp, em Campinas, SP, entre os dias 16 a 17 de outubro de 2019.

2

Nossa tese de doutorado pretendia analisar o papel das mulheres viúvas na cidade do Rio de Janeiro entre 1763 e 1808. Tínhamos como principal objetivo observar a atuação das viúvas na sociedade, na economia e nas relações de parentesco no período em questão (VEIGA, 2017).

(2)

um total de 233 processos que incluíram inventários e um edital de venda de propriedade disponíveis no Acervo do Judiciário, depositados no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

Durante a leitura dos processos, observamos que as possibilidades de pesquisa disponíveis são de duas ordens. Em primeiro lugar, podemos complementar muitas das questões relativas à demografia e à população do período lendo a documentação dos juízos, observando o tamanho dos plantéis de escravos e a divisão deles com a partilha; as relações clientelares e redes de parentesco; os recasamentos e o número de filhos de viúvas que contraíram ou não segundas núpcias. Em segundo lugar, outras questões relacionadas a esses temas, certamente complementares e explicativas, estão presentes na documentação, quais sejam: os produtos agrícolas e os produtos disponíveis nas boticas dos inventariantes e inventariados. Há uma descrição pormenorizadas das mercadorias tanto para a comercialização quanto para o consumo nas propriedades e para a cura dos doentes que ainda demandam atenção dos pesquisadores.

OS PLANTÉIS DE ESCRAVOS E AS VIÚVAS

Não é novidade que os historiadores têm utilizado os inventários para estudar os escravos. Para São Paulo, contudo, eles têm à sua disposição as listas de população da capitania e, através delas, estão sendo produzidos vários estudos sobre a população escrava. Na capitania do Rio de Janeiro, no entanto, não se pôde ainda encontrar as listas de população fluminenses, obrigando muitos a utilizarem outras fontes, tais como a documentação paroquial para estudar tanto a população cativa quanto a livre associando-as a outros documentos.

Os inventários post mortem são, nesse cenário, uma alternativa à essa lacuna para essa capitania. Na documentação é possível avaliar a procedência dos escravos, as suas ocupações, a formação das famílias e o número de filhos. Em 1797, quando Tereza de Jesus, mulher de Manoel Luiz Pinheiro, iniciou o inventário do marido, constava da avaliação dos bens 19 escravos: dez homens, cinco mulheres e quatro crianças. Dos dez escravos, oito eram trabalhadores da roça, um era carpinteiro e um sem valor e sem identificação da ocupação. Entre as mulheres, três se dedicavam ao serviço da roça, uma às costuras e outra, em idade avançada, não tinha qualificação nem valor. Quanto às quatro crianças, sabemos que três eram filhas da costureira e outra de uma das trabalhadoras da roça. Quanto à nação ou

(3)

origem4, os escravos foram classificados como angola, benguela, congo, ganguela, mogumbe, pardo, crioulo e cabra (ANRJ, 1797)5. Nem sempre pudemos ter tantas informações sobre os plantéis, mas em muitos casos conseguimos identificar idade, ocupação, filhos e origem dos escravos.

Para nossa pesquisa interessava saber, no entanto, com quem ficavam os escravos do espólio e se isso possibilitava à viúva mais independência em relação aos outros membros da família. Em momentos distintos da vida destas mulheres houve movimentos de contração e de expansão dos plantéis de escravos.

Observamos que, imediatamente após a divisão dos bens, acontecia uma perda de riqueza entre as viúvas. Tal situação foi decorrente da necessidade de se utilizar os ativos durante a partilha - tais como os cativos –, para pagar dívidas do casal. A princípio, como consequência, houve a predominância de plantéis menores depois da partilha. Em média, os casais escravistas possuíam 9,5 escravos, mas com a distribuição dos bens, a média de escravos por viúva caiu para 6,3. Entretanto, examinando os inventários das viúvas escravistas falecidas, observamos que a média de escravos sobe para 10,25 quando de sua morte (VEIGA, 2017, p. 151). Tais números indicam que, imediatamente após a partilha, há uma queda no número de cativos por viúva, porém, à medida que o tempo passava, as mulheres tendiam a recuperar seus plantéis.

As viúvas de casais escravistas com plantéis maiores atrelados a engenhos eram as menos prejudicadas com a divisão dos bens uma vez que, em sua maioria, também ficavam com as unidades de produção. As viúvas, que na partilha formal, tornaram-se proprietárias dos engenhos, herdaram grande parte dos escravos pertencentes ao espólio, pois eles eram a força de trabalho da qual dependia a fábrica. Geralmente, os Partidores do inventário (pessoas encarregados de repartir o espólio) reservavam aos herdeiros o equivalente à sua legítima em dinheiro ou outros bens, evitando, assim, a divisão das unidades de produção. Foi o que ocorreu no inventário do casal de D. Caetana Benedita de Brito e do alferes José Eloi Xavier. A viúva foi indicada em testamento com testamenteira e tutora dos filhos menores do marido falecido. Em seu testamento, o alferes revelava que havia incumbido a

4

Para uma discussão sobre a origem dos escravos no Brasil, ver o trabalho de Karasch (1987) e Slenes (1992).

5

Doravante nos referiremos ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro pelas iniciais ANRJ para fazer referência ao inventário e ano que estão especificados nas Referências ao fim do texto.

(4)

mulher das funções “pela muita capacidade e juízo [ilegível] que sempre a conheci e porque conheço que só nela acharão […]” (ANRJ, 1807b, s.f.).

O legado do casal incluía um engenho em São João Marcos6 que produzia açúcar e aguardente, além de um engenho de farinha de mandioca. Na partilha coube à viúva 33 escravos do total de 53 que havia no espólio no momento da partilha, em 1817; o engenho e seus pertences; um sítio em Araras; alguns bens de raiz; dinheiro e 1.500 pés de café. O engenho estava sendo administrado por seu filho João Batista7, o que não impedia que a viúva soubesse o que ocorria na propriedade e tomasse decisões relativas a ela. Em uma das declarações, a inventariante esclarecia que:

Uma espingarda velha que existia no Engenho avaliada por 4.000 rs foi vendida por meu filho João Batista pela quantia de 6.000 rs cuja quantia despendeu na mesma fazenda, e já foi encontrada nas contas que me deu, e por isso não deve entrar em partilha a dita espingarda, nem o seu valor cujas declarações faço por evitar prejuízo dos herdeiros (ANRJ, 1807a, f. 26v).

Um pouco antes, D. Caetana revelou que algumas “dívidas que deviam a meu falecido as quais cobrei-as como tutora e inventariante pelo falecimento do mesmo” estavam quitadas, outras ainda estavam por receber. Ela acrescentou que havia comprado mais oito escravos e posto no engenho com um dinheiro que recebeu da venda da chácara que estava arrendada a D. Rosa da Câmara, viúva de José Francisco de Oliveira (ANRJ, 1807b, f. 25, 25v e 57v). Por seus depoimentos, temos ciência que a viúva participava ativamente da administração dos bens.

AS DÍVIDAS E A PARENTELA

Como vimos, havia uma tendência em se evitar, sempre que possível, dividir a posse de escravos ou bens imóveis. Porém, caso isso não pudesse ser posto em prática, entregava-se a posse deles a dois herdeiros. Por outro lado, quando necessário, os bens semoventes eram disponibilizados para quitar débitos.

6

São João Marcos fazia parte da Vila de Rezende. Em 1938, foi incorporado ao município de Rio Claro. Na década de 1940, a cidade foi demolida para dar lugar a uma represa. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/rio-claro/historico. Acesso em: 31 jul. 2019.

7

Não conseguimos identificar o ano em que João Batista começou a administrar o engenho, mas no momento da morte do pai ele tinha 22 anos.

(5)

As dívidas eram classificadas em ativas e passivas8. As passivas deveriam ser pagas pelo espólio do casal durante o inventário. Já as ativas, seriam cobradas aos devedores durante a ação de inventário. É importante fazermos aqui algumas considerações. Em primeiro lugar, as dívidas ativas podiam ser de duas naturezas: as que se podiam cobrar e as consideradas „perdidas‟. As primeiras geralmente eram repartidas entre os herdeiros, já as perdidas eram apenas descritas, frequentemente, sem se saber o valor exato, quem era responsável por elas ou o paradeiro do devedor. A maioria das dívidas ativas e passivas do casal de D. Joana Rosa Matildes da Trindade, viúva do Capitão Manoel Francisco Peixoto, foi contraída como consequência do comércio de fazendas secas que o falecido tinha com negociantes de Lisboa e do Porto. Apenas com o credor João Oliveira Guimarães, de Lisboa, os débitos chegavam a 7:811$415. As dívidas “perdidas ou [que] pouco se podem cobrar” eram de 6:386$365 (ANRJ, 1805).

Algumas vezes, no entanto, as dívidas ativas e os bens não foram pagos ou entregues aos legatários, apesar de os Partidores assim o determinarem na partilha. Segundo declarações dos filhos herdeiros de Ana Maria do Bonsucesso, tomadas no inventário dela, em 1801, a viúva falecida deixou de pagar o valor em dinheiro que lhes cabia da legítima de seu pai e 1/6 do valor da botica que deveria ter sido entregue ao filho e herdeiro Antônio Pereira Ferreira de acordo com a partilha do inventário do marido de Ana Maria, feita em 1799 (ANRJ, 1801, f. 45v e 46; ANRJ, 1798b).

Outro tema que pode ser esclarecido pelos inventários post mortem são as relações de parentesco. A documentação analisada nos fornece informações tanto aos arranjos familiares quanto às redes clientelares tecidas entre familiares e seus pares.

A descrição inicial de herdeiros e de seus cônjuges presentes nos autos permite-nos traçar a trajetória de matrimônios entre parentes e entre estes com elementos externos ao núcleo familiar. À medida que se subia na escala social, mais difíceis eram os casamentos com membros fora da parentela ou das redes de sociabilidade do indivíduo. Ao longo dos processos, observamos que os conflitos

8

Na sociedade do período, a obtenção de créditos estava sujeita ao cumprimento de alguns requisitos socialmente aceitos que extrapolavam a concessão simples de empréstimos impessoais. Estes requisitos envolviam a honra, a confiança e o pertencimento a redes clientelares que permitiam aos credores emprestar recursos e aos devedores obter estes mesmos recursos (SANTOS, 2005).

(6)

que surgiram entre os membros das famílias também nos ajudam a descortinar estas relações e as implicações para a economia e a sociedade da época.

As irmãs Francisca Maria da Conceição e Antônia Maria da Conceição são um bom exemplo de como os processos podem nos elucidar conflitos e arranjos familiares do período. D. Francisca Maria da Conceição casou-se com o capitão Antônio dos Santos, cavaleiro da Ordem de Cristo (ANRJ, 1799), e sua irmã D. Antônia Maria da Conceição com o capitão Antônio Ribeiro de Avelar (ANRJ, 1794). Ambas pertenciam à elite colonial9, sabiam ler e escrever e foram tutoras dos filhos menores, por indicação em testamento dos maridos, negociantes de grosso trato na capital do vice-reino10.

O capitão Antônio dos Santos havia sido caixa em um contrato de arrematação de dízimos e sócio do cunhado, capitão Antônio Ribeiro de Avelar, no engenho Pau Grande e em um sítio em Cantagalo11. Segundo informações do genro Maximiano José Coelho, no momento da morte do marido de D. Francisca, o espólio do casal incluía: a participação no navio Nossa Senhora da Lampadosa, metade do bergantim São Joaquim e uma sumaca, uma sociedade em Lisboa com José Rodrigues Pereira de Almeida – já falecido -, uma chácara no Rio Vermelho e várias casas alugadas12. Já descontadas as dívidas passivas, o monte partível somava, 119:688$419. Maximiano, foi caixeiro da casa de negócios Antônio dos Santos & Companhia, e também desposou duas das filhas de D. Francisca, D. Ana Silveira Matildes dos Santos e, após a morte desta, D. Maria Angélica Maurícia das Dores.

D. Antônia Maria da Conceição se tornou inventariante de Antônio Ribeiro de Avelar em 1794. No espólio do marido constavam várias casas e escravos na cidade; escravos na Fazenda Cabuçu, em Bacaxá e em Cantagalo, a terça parte do

9

Antônio dos Santos e Antônio Ribeiro de Avelar apareciam no Almanaque da cidade de 1792 como negociantes de venda no atacado, localizados na Rua dos Pescadores (NUNES, 1965, p. 207).

10

Sobre a presença e constituição dos negociantes de grosso-trato na praça do Rio de Janeiro, ver Fragoso (1992).

11

O engenho Pau Grande se localizava na freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Alferes, hoje Paty do Alferes. Antônio dos Santos e José Rodrigues Cruz eram proprietários do engenho desde 1785. Em 1788, venderam 1/3 da propriedade a Antônio Ribeiro de Avelar em função de uma dívida que José Rodrigues da Cruz tinha com o comprador. Depois de 12 anos, o alferes Luiz Gomes Ribeiro, sobrinho e genro de D. Antônia Maria da Conceição, adquiriu a terça parte pertencente ao casal de D. Francisca e Antônio dos Santos. Em 1797, D. Antônia continuava como proprietária do engenho( ANRJ, 1794, fs. 79 a 85v).

12

D. Francisca Maria da Conceição estava entre os grandes proprietários de imóveis urbanos da cidade do Rio de Janeiro segundo Nireu Cavalcanti. Entre 1808 e 1810, o autor lista 52 imóveis locados tendo a viúva como proprietária (CAVALCANTI, 2004).

(7)

Engenho Pau Grande e um trapiche em Inhomirim. D. Antônia ainda declarou que tinha negócios em Minas com o sobrinho e genro Luis Gomes Ribeiro. Este último havia comprado a parte do engenho Pau Grade de D. Francisca e do marido, em 1797. Entretanto, até a data da abertura do testamento de D. Francisca, em 1818, o alferes não havia pagado o montante de 29:381$690 referente à compra de um terço da propriedade.

Por tudo o que foi exposto acima, notamos como se delineavam algumas redes de sociabilidade e as relações de parentesco em algumas das famílias da elite fluminense do período. Entre as pessoas das camadas mais abastadas estes laços tendiam a se estreitar e os arranjos matrimoniais e comerciais se fizeram em círculos restritos. No caso das irmãs Antônia e Francisca o caso se complica, pois havia uma dívida que não havia sido paga por um dos membros da família, que só foi reclamada pelos herdeiros depois da morte dos genitores. Os negócios se faziam em família e os casamentos tendiam a manter a fortuna circunscrita ao entorno próximo do núcleo familiar. Nem D. Antônia nem D. Francisca casaram-se novamente depois da morte de seus maridos, mas ambas tinham filhos menores no momento em que ficaram viúvas.

A TUTELA DOS ÓRFÃOS E AS SEGUNDAS NÚPCIAS

A escolha dos inventários, como já dissemos, obedeceu a um critério que foi definido para estudar o papel das mulheres durante o período em foco, qual seja: identificar mulheres que ficaram viúvas ou viúvas que morreram e tinham filhos menores de 25 anos. Pretendíamos examinar a participação feminina nas atividades econômicas, assim como de que maneira a presença de filhos influenciariam essa participação e a maneira como seria feita a partilha de bens. Ao analisarmos o número de filhos e a idade destes no momento da morte de um dos cônjuges, chegamos a outro elemento importante para entendermos a sociedade do período: a tutela dos herdeiros menores.

Os inventariantes eram obrigados por lei a dizer se havia herdeiros, se o matrimônio era legal, o montante de bens e as dívidas do casal. Na existência de herdeiros com idade inferior a 25 anos, fossem filhos, netos ou qualquer outro menor indicado como herdeiro do inventariado, era nomeado um tutor. Este último, podia ter sido indicado pelo inventariado em testamento ou pelo Escrivão dos Órfãos, mas deveria ser aprovado pelo Juiz de Órfãos. Cabia ao tutor administrar com zelo os

(8)

bens dos órfãos e prestar contas do que fazia com a herança quando solicitado. O Curador Geral dos Órfãos fiscalizava a boa administração do legado. Em caso de má gestão, a legislação previa que o tutor fosse responsabilizado e mandava que se restituísse o prejuízo à legítima do menor. Se houvesse ameaça aos bens dos herdeiros a cargo do tutor ou o abandono do inventário pela viúva inventariante era pedido o sequestro dos bens.

Havia três maneiras pelas quais a viúva poderia tornar-se tutora dos herdeiros: por desejo da mãe viúva, má gestão dos tutores escolhidos pelo Juízo de Órfãos ou recomendação paterna em testamento. Em 33% da documentação consultada (37)13 as mães se tornaram tutoras dos filhos, dentre estas, quase 2/3 foram indicadas pelo marido em testamento (VEIGA, 2017, p. 153). O restante das tutelas coube a pessoas sem parentesco informado, tios, avôs, irmãos, cunhados, padrastos, testamenteiros, padrinho e parentes, respectivamente. Entre estes, pouco mais de 2 a cada 5 autos de inventário apontavam homens como tutores em fortunas com mais de 1:000$000, sendo que nenhum deles administrou montantes maiores que 100:000$000 - como aconteceu entre as viúvas.

Nos casos em que as mães assumiram a tutela dos menores, 4 em cada 5 delas tornaram-se responsáveis legais pelos herdeiros cujo monte-mor superava 1:000$000. (VEIGA, 2017, p. 155). Quando o capitão Manoel Francisco Peixoto morreu, em 23 de julho de 1805, soube-se, na abertura do testamento, que ele havia nomeado sua esposa, D. Joana Rosa Matilde da Trindade, tutora dos seis filhos legítimos e um natural14. Os bens do casal ultrapassavam o total de 20:000$000, sendo que pouco mais da metade, estava comprometida com o pagamento de dívidas. O testador justificava a escolha da esposa “pela muita capacidade que ela tem para a dita tutoria [...]” (ANRJ, 1805, s.f.).

A tutoria da mãe cessava quando ela se casava novamente. Segundo as Ordenações do Reino, a mãe que contraísse novo matrimônio perdia a tutela dos filhos e deveria entregar as legítimas dos órfãos a um novo tutor que fosse

13

Do total de 233 processos 130 não foram computados aqui, pois eram casos em que havia filhos maiores com inventário por dependência; existiam netos e filhos naturais; herdeiros que não eram filhos do casal; não foi informado ou não foi possível identificar; não houve partilha ou os autos não tiveram prosseguimento.

14

Maria Tereza de Jesus, de 10 anos; Joaquina Teodora do Carmo, de 9 anos; Francisca Rosa de Jesus, com 6 anos; Justina Tereza do Amor Divino, de 4 anos; Albino Francisco Peixoto, com 18 meses; Manoel, póstumo, de 5 meses e o filho natural, Anacleto Francisco Peixoto.

(9)

determinado pelo Juiz de Órfãos (ALMEIDA, Livro 4, Título 102, p. 1000). O “recasamento”15

não foi uma prática adotada com frequência pelas viúvas nas nações europeias do Antigo Regime ou nas colônias da América. Contudo, entre os viúvos as novas núpcias eram práticas menos raras.

Segundo estudos de Corsini e Van Poppel, em algumas regiões da Europa, tais como a Toscânia ou Holanda, o segundo matrimônio se mostrava mais frequente e acontecia mais rapidamente após a morte da esposa (CORSINI, 1981; VAN POPPEL, 1995). No Brasil, Marcílio observou que, na cidade de São Paulo entre 1771 e 1809, 14% dos homens ingressavam em um novo casamento, contra 7% das mulheres (MARCÍLIO, 1972, p. 191). A mesma autora aponta que o intervalo médio entre viuvez e recasamento variava segundo o gênero. Em Ubatuba, entre 1770 e 1830, os homens contraíam novo matrimônio entre 0 a 1 ano após a morte da esposa (59 dos 105 casos estudados), enquanto as mulheres o faziam geralmente um ano depois da perda do marido (12 dos 30 casos pesquisados) (MARCÍLIO, 2006, p. 174-178).

Como vemos, em regiões onde ainda não está disponível a documentação tradicionalmente utilizada para o estudo da população, tais como os registros paroquiais ou as listas de habitantes, a análise dos inventários pode ser uma valiosa fonte de informação sobre o segundo casamento. Em nosso caso, esse corpo documental não nos forneceu a data de quando ele aconteceu. Porém, temos dados quanto ao número de filhos e ao novo consorte.

Nos processos consultados no Juízo de Órfãos, 34 mulheres viúvas haviam contraído novas núpcias na capitania do Rio de Janeiro. Em média, elas tinham 2,23 filhos enquanto que as viúvas que não se casaram novamente, eram mães de 3,87 (VEIGA, 2017, p. 168). Entre as primeiras, 2/3 delas tinham pelo menos um filho menor de 10 anos (VEIGA, 2017, p. 169), como aconteceu com Luíza Rosa do Espírito Santo. Em março de 1806, Bernardo José de Andrade faleceu deixando ela com duas crianças menores: Joaquim Bernardo, de 11 anos, filho de Bernardo com sua primeira esposa, e Demetildes, de dois anos, fruto da união com a inventariante. Em julho de 1807, Joaquim Antônio da Costa, segundo esposo da viúva e ex-sócio das duas vendas de seu falecido marido, assinava termo de tutor dos herdeiros.

15 Alguns autores empregam o termo “recasamento” para definir um segundo ou terceiro matrimônios

(10)

Pertenciam ao casal, além das vendas, uma na rua dos Ourives e outra na Praia, oito escravos; prata e ouro; duas moradas de casas de sobrado e uma térrea; trastes de madeira; uma mula com carroça, selas e roupas (ANRJ, 1806a).

No exemplo acima observamos que a viúva com filhos pequenos e dois negócios para gerir, optou por casar novamente como uma alternativa que lhe seria útil para criar os menores e manter o negócio da família, uma vez que o novo marido deveria ser hábil na condução do comércio, e também lhe garantiria a proteção em uma sociedade tradicional. Entretanto, muitas viúvas não se casaram novamente. Poderíamos apontar algumas explicações para a manutenção da viuvez, tais como: opção das mulheres por continuar suas vidas sem a supervisão de um marido que lhes tolhesse a liberdade ou lhes prejudicasse financeiramente; falta de pretendentes à altura da qualidade da esposa ou, talvez, a existência de filhos dificultasse a uma nova união.

D. Ana Maria de Jesus é um caso relevante a ser mencionado. Ela permaneceu viúva do capitão João Pereira de Lemos até sua morte. Em 1779, ela aparecia nas Relações do Marquês do Lavradio como proprietária de dois grandes engenhos: Sapopemba (ou Sacopema) em Irajá, e Capoeiras, em Campo Grande (LAVRADIO, 1915, p. 319-327). Quatorze anos mais tarde, de acordo com seu testamento, deixava os bens desembaraçados das dívidas existentes quando da morte do marido e ainda havia aumentado seu patrimônio, comprando escravos. Consta do documento, que ela não administrou sozinha os engenhos, teve a ajuda dos filhos, mas foi sobretudo o capitão João Pereira de Lemos, homônimo do pai, a quem ela deixou o engenho Sacopema com a fábrica, que agradecia o empenho na condução dos negócios. Coube aos outros herdeiros o engenho Capoeiras (ANRJ, 1795). Sabemos que ela não se casou, mas também somos informados que a ajuda do filho foi de grande valia para a recuperação dos engenhos e para a manutenção dos herdeiros. Apesar de ter tido sucesso com as fábricas, D. Ana Maria de Jesus não sabia ler nem escrever, como constava do testamento.

LER E ESCREVER

A documentação analisada permite-nos tecer algumas observações a respeito de um aspecto pouco estudado sobre as mulheres do período: o conhecimento da leitura e da escrita. Nos inventários, essa informação, geralmente resume-se à declaração da inventariante se ela “sabia ler e escrever” ou se alguém

(11)

assinava a seu rogo. Porém, comparando-se com outras informações disponíveis nos processos podemos conhecer melhor estas mulheres.

Em 174 autos estava registrado se a inventariante sabia ler e escrever. Dentre elas, 78 liam e escreviam (45%) e 96 (55%) não, ou seja, alguém assinava por elas. Entre as alfabetizadas16, temos que ¾ dessas viúvas pertenciam aos grupos com montes-mores maiores de 1:000$000, e uma viúva tinha monte superior a 100:000$000. Já pouco mais da metade das viúvas não alfabetizadas possuía montes-mores maiores de 1:000$000 e nenhuma delas tinha mais de 100:000$000 (VEIGA, 2017, p. 140).

Não há nenhuma novidade no fato de que a maioria das viúvas sejam analfabetas17, mas é importante notar que a diferença, entre alfabetizadas e não alfabetizadas, não é grande em nossa documentação18. O conhecimento das letras era uma vantagem que aumentava as chances de melhor administrar um patrimônio que podia incluir negócios com a metrópole, casas de aluguel ou o comando de um engenho.

Os índices de alfabetização das viúvas devem ser vistos à luz de um momento singular na história da educação no período colonial. Ao assumir a Secretaria de Estado da Guerra e Negócios Estrangeiros, o Conde de Oeiras implementou uma série de medidas visando a tirar Portugal do atraso político e econômico que muitos atribuíam ao Reino. Por conta disso, Sebastião José de Carvalho e Melo propôs uma série de mudanças na educação, que procuravam atingir desde a nobreza até os comerciantes (VILLALTA; MORAIS; MARTINS, 2015, p. 451-498). As mulheres não eram o principal público ao qual se destinavam essas mudanças, estas últimas estariam circunscritas apenas a habilitá-las ao bom governo do lar e à educação dos filhos.

16

Entendemos aqui alfabetização como a capacidade de ler e escrever. Não nos ativemos à diferença entre alfabetização e letramento, na qual se diferencia a alfabetização como o conjunto de competências cognitivas de leitura e escrita de um indivíduo, e letramento como a capacidade de leitura e escrita associada à habilidade de interpretação e produção de textos que servem a uma função sociocultural. Em nossas fontes, não podemos fazer essa diferenciação, apenas constatamos, pela declaração da inventariante ou pela sua assinatura na documentação, o conhecimento da escrita (SOARES, 1999; UNESCO, 2006).

17

Gonzalbo Aizpuru, em seu livro sobre a educação feminina na Nova Espanha, salienta o grande número de analfabetos na América espanhola (AIZPURU, 1987, p. 35).

18

Alcântara Machado, em período anterior ao nosso em São Paulo, encontrou apenas duas viúvas que assinaram seu nome em 450 inventários da vila de São Paulo (MACHADO, 1980, p. 103).

(12)

O resultado da análise quantitativa das fontes esclarece que 45% das viúvas que pudemos identificar nos autos de inventários assinam o nome e, portanto, “sabiam ler e escrever”. Esses números são significativos, pois dizem respeito, sobretudo, à última década do século XVIII e aos oito primeiros anos do século seguinte. O resultado obtido pode ser relacionado à tendência da elite, como apontado por Muriel Nazzari, em alfabetizar as mulheres pertencentes a seu grupo, uma vez que a muitas das que assinavam o nome estavam nos inventários com mais recursos (NAZZARI, 2001)19.

Nos inventários era comum a existência de roças de alimentos que visavam atender as necessidades da população e serviam para incrementar os rendimentos de muitas mulheres. Sabemos, todavia, que raras vezes os habitantes da colônia conseguiram ter víveres suficientes para serem alimentados, bem como medicamentos para a cura dos enfermos.

ALIMENTAÇÃO E CURA

A cultura alimentar na cidade do Rio de Janeiro e seus sertões se mostrou bastante diversificada. Os produtos disponíveis nas fazendas, nas vendas e nas ruas variavam de frutas, milho, feijões, arroz e mandioca até a carne-seca, a carne de porco e o bacalhau. Nas boticas, as mercadorias disponíveis poderiam ser hoje tanto encontradas em farmácias quanto em supermercados ou açougues, como é o caso das nozes ou da língua de vaca. Muitos destes produtos, entretanto, parecem ter saído de antigos rituais de magia20.

As frutas mais comuns presentes nos autos são laranja, limão, abacaxi e banana. Em seguida estão a goiaba, o caju, a jabuticaba, fruta do conde, grumixama, araçá, manga, jambo, figo, romã, maçãs e pêssegos. Mais raras, contudo ainda presentes, foram o cacau, o tamarindo, a tangerina, o côco, as árvores de produção do dendê e as vinhas. Atualmente algumas destas árvores são

19

Segundo a autora, houve o crescimento da alfabetização feminina em São Paulo nos anos finais do século XVIII. Nazzari, entretanto, relaciona esse fato ao crescimento do individualismo e à diminuição do controle patriarcal sobre as filhas que iam para longe da família. Para ela, saber ler e escrever diminuía as chances das filhas da elite serem enganadas por seus maridos. O aumento da alfabetização seria, portanto, uma forma de proteção das fortunas (NAZZARI, 2001, p. 90-91).

20

Jean Louis-Flandrin argumenta que muitos alimentos e especiarias tinham não apenas uma função de nutrir, mas também de equilibrar os organismos e, até mesmo, servir de medicamento (FLANDRIN, 1998).

(13)

pouco conhecidas, como é o caso da grumixameira, árvore originária da Mata Atlântica.

Ao lado das espécies comuns para o consumo local, observamos a presença de cultivos de exportação que se tornariam importantes para o Brasil na segunda metade do século XIX. Na chácara do Catete de Dona Maria de Sá Freitas, viúva do Capitão Joaquim da Silva Lisboa, havia laranjeiras, limoeiros, cacaueiros, romeiras e bananeiras que dividiam o espaço do terreno com 316 pés de café (ANRJ, 1798a).

Entre as culturas com presença certa e destinadas à alimentação da população destacamos o feijão, o milho, o arroz e a mandioca. Em muitas propriedades, inclusive nas menores, alguns pés de café e de cana de açúcar dividiam o espaço com culturas de alimentos. No inventário de Maria Francisca, seu genro, Antônio Lourenço de Ávila, ficou responsável por dar partilha aos bens que a viúva tinha em Itaipu. Na localidade havia uma casa de fazer farinha, com roda de ralar mandioca, ananaseiros, algodoeiros, romeiras, açafrão, cabaceiro, carás, bananeiras e roças de feijão, milho, café e mandioca (ANRJ, 1807c). Nas propriedades maiores, como a de D. Caetana Benedita de Brito e do alferes José Eloi Xavier (ANRJ, 1807b) ou como na chácara do casal de D. Francisca Maria da Conceição no Barro Vermelho e no sítio de Cantagalo também observamos esta prática (ANRJ, 1799).

A alimentação dos escravos era suprida também pelas roças plantadas nas propriedades. Em 1806, D. Maria dos Santos Ribeira esclarecia que 12 alqueires de feijão, 150 alqueires de farinha e 150 alqueires de mandioca produzidos na propriedade não haviam entrado no monte por terem sido utilizados na alimentação dos escravos (ANRJ, 1806b). Sabemos por Thomas Ewbank que, em alguns locais, além destes produtos, a criação de porcos servia tanto para alimentar os cativos quanto os senhores nas fazendas, mesmo nas pequenas (EWBANK, 1976, p. 273-274).

Além dos suínos, outros animais são comuns na descrição dos bens. O

gado vacum – comum na alimentação – aparece ao lado dos bois e cavalos usados

no trabalho do engenho. Os carneiros representavam outra fonte de proteína e, talvez, de renda para quem os criasse. O casal de Dona Maria dos Santos Ribeira e José Teixeira possuía 52 carneiros e 30 porcos no sítio de Itaguaí – na fazenda de

(14)

Santa Cruz. Bovinos somavam 124, mais os 33 que tinham em sociedade com Joaquim Antônio (ANRJ, 1806b).

Eram comuns nos processos escravos pescadores e os pertences de pescaria. Afora a função de transportar produtos e conduzir passageiros, as canoas e seus condutores se dedicavam à atividade pesqueira. A geografia da cidade e da capitania do Rio de Janeiro favoreciam tanto a pesca quanto a navegação de cabotagem (RUSSELL-WOOD, 2014, p. 139 e 153).No caso de Catarina Maria de Jesus era a pesca que sustentava ela e seus três filhos Januário, de oito anos, Florentina, de sete, e Bernardo, com três. Em 1809, entre os nove escravos declarados, oito foram descritos como pescadores. Também faziam parte do espólio três canoas e uma bangula. Os pertences de pesca incluíam velas e cabos (ANRJ, 1808).

Os alimentos produzidos nas propriedades rurais e os animais de criação eram vendidos nas ruas por escravos ou em lugares específicos para o seu comércio, já os peixes podiam ser vendidos tanto nas praias quanto em mercados. Na cidade do Rio de Janeiro, a Praia do Peixe era uma área popular de comércio. Ali, se instalou o antigo Mercado, demolido em 1906, onde se vendiam vários produtos de consumo (COARACY, 1955, p. 509). Espalhadas pela cidade e seus sertões ficavam as vendas de secos e molhados. Nestes locais era possível encontrar produtos tanto da colônia quanto das mais variadas regiões do império.

O café, em grão ou moído, estava à venda nos estabelecimentos da cidade. Assim como o açúcar branco ou mascavo para adoçá-lo. O mel, presente em muitos doces, também podia ser encontrado neles em tonéis. A aguardente do Reino dividia espaço com a aguardente e a cachaça coloniais. Outras bebidas comuns nestes locais eram a consertada21, os vinhos ordinários e os do Porto. Qualquer um destes produtos variavam de preço, dos mais caros aos mais baratos, dependendo de sua qualidade ou origem.

O bacalhau, comida apreciada pelos portugueses, estava à disposição dos reinóis da cidade. Assim como a carne-seca e a erva-mate que vinham do continente de São Pedro para as vendas fluminenses. O queijo de Minas era presença constante nestes armazéns. Para auxiliar na preparação das refeições

21

A consertada hoje é uma bebida tradicional em Bombinhas, Santa Catarina, cujos principais ingredientes são café, açúcar, aguardente ou cachaça, gengibre, cravo e canela.

(15)

podia-se comprar toucinho, banha, manteiga ou azeite de oliva. O tempero ficava a cargo de cebolas e alhos. A farinha de mandioca, o milho, o feijão e o arroz faziam parte das mercadorias disponíveis para quem quisesse comprá-los, assim como o chocolate, o sal, o pão e o polvilho. A pimenta-do-reino e a erva-doce também eram encontradas nesses estabelecimentos.

Outros produtos, porém, que consideramos especiarias ou temperos, e hoje os achamos normalmente em mercados, eram artigos comercializados apenas nas boticas. O açafrão da terra, o açafrão de Castilha, a canela de Macau, o cravo da Índia, a menta, o chá da Índia e as nozes só podiam ser adquiridos com os boticários. Alguns itens, pouco comuns em nossos métodos modernos de cura, faziam parte do estoque dos proprietários de boticas, tais como: a água da Inglaterra, o pau santo, o óleo de cravo doce, os olhos de caranguejo, o incenso, a mirra, o sândalo, dentes de javali, entre outros.

O que nos chamou a atenção nos autos em que os falecidos possuíam boticas foram os livros. Muitos se referem à ocupação dos seus proprietários, outros, contudo, eram livros de cunho menos específico. Quando o boticário Antônio Pereira Ferreira morreu, em 1798, os avaliadores descreveram a existência de 37 livros no espólio do casal (ANRJ, 1798b). Havia exemplares ligados ao exercício da profissão de boticário, tais como: a Polianteia de Curvo22, a Farmacopeia Lusitana e Vigo de cirurgia23. Contudo, existiam alguns livros, como os de devoção, que provavelmente pertenceriam à esposa. Outros teriam uma função erudita, como um volume da genealogia da casa Real de Portugal, ou até um livro de álgebra foi mencionado e pode ter servido na educação dos filhos do casal (ANRJ, 1798b, fs. 18 e 19).

Em meio às folhas amareladas e carcomidas dos autos de inventário, surgem as boticas de navios e de fazendas. Anibal de Castro relata que desde o século XV, existem descrições de boticas em navios. Elas supriam a necessidade de tratamento dos doentes nas longas viagens oceânicas (CASTRO, 2000). A cura, porém, exigia conhecimento, que muitas vezes não era privilégio apenas de físicos, cirurgiões ou boticários, mas também daqueles que perdiam a liberdade ao

22

O médico português João Curvo Semedo (1635-1719) obteve sucesso na cura de seus pacientes, ganhando fama em Portugal e em outros lugares. Ele destacou-se entre seus pares por promover

uma terapêutica que conciliava o saber tradicional com a inovação, ou seja, o galenismo com a iatroquímica (LOURENÇO, 2016, p. 14).

23

Na Biblioteca Nacional de Portugal encontramos os seguintes exemplares de: Santo Antonio (1725) e Vigo (1581).

(16)

cruzarem o Atlântico. Fernanda Fagundes salienta a importância do saber dos negros para curar seus companheiros de viagem enfermos e como as boticas disponíveis nos navios foram importantes (FAGUNDES, 2016).

Sabemos, pelos avaliadores da câmara, que o capitão Sebastião Gil Lobo, comerciante de escravos em Benguela com negócios em Buenos Aires, possuía três navios. Em um deles, o bergantim Vênus, havia uma botica avaliada em 59$700 (ANRJ, 1807a, f. 54-65v). Já, pelo inventário do casal de D. Antônia Maria da Conceição, somos informados dos remédios que estavam à disposição dos doentes na fazenda Pau Grande, cujo montante chegava a 222$335 (ANRJ, 1794). Além dos costumeiros artigos já citados, havia pomadas, unguentos, sementes, raízes, incensos e vários produtos que certamente exigiam a presença de uma pessoa que soubesse o que fazer com eles. A distância de centros urbanos e o grande número de escravos, talvez, tenham obrigado os proprietários a formarem uma botica bastante complexa como a da fazenda para socorrer os enfermos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na capitania do Rio de Janeiro os inventários post mortem servem como documentação primária para o estudo da população na falta de outras mais específicas, tais como as listas nominativas. Mas, estes documentos não se restringem à produção de dados quantitativos. Neles podemos obter informações que nos remetem ao cotidiano das pessoas, aos sofrimentos dos escravos, aos arranjos e vantagens negociados entre senhores e cativos, entre pais e filhos, maridos e mulheres.

Pelo que foi exposto, fica ainda por serem feitas várias pesquisas tendo como fonte de consulta os inventários. Por eles podemos entender como são feitas as partilhas, como se dão os conflitos clientelares, por que escolher ou não as mães viúvas como tutoras, o que levava uma viúva a ingressar em um segundo casamento ou por que era importante saber ler ou escrever em um período que não valorizava a alfabetização dos homens tão pouco das mulheres.

Neles conhecemos o que se come, o que se planta, com o que se cura, quanto custava um litro de azeite ou um queijo de Minas. Neles sabemos que se podia comprar resmas de papel nas vendas e quanto uma costureira cobrava o feitio de um vestido para o luto, ou mesmo que tecidos eram os mais usados nesses momentos. Ler esta documentação é aprofundar-se na gama de conflitos e afetos

(17)

que envolvem a parentela e seus negócios. São histórias tecidas entre oceanos e continentes, entre vivos e mortos.

REFERÊNCIAS

AIZPURU, P. G. Las mujeres en Nueva Espanha: educación y vida cotidiana. Cidade do México: El Colegio de México, 1987.

ALMEIDA, C. M. (ed.). Ordenações Filipinas. Rio de Janeiro, RJ: Typographia do Instituto Philomathico, Livro 4, 1870.

ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Inventário de Catarina Maria de Jesus e Francisco Ferreira Moreira. Processo 6452, maço 365, 1808.

ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Inventário de Ana Agostinha Luíza Xavier da Silva e Sebastião Gil Vaz Lobo. Processo 6980, caixa 611, galeria A, 1807a.

ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Inventário de Caetana Benedita de Brito e José Eloi Xavier. Processo 8740, caixa 458, galeria B, 1807b.

ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Inventário de Luíza Rosa do Espírito Santo e Bernardo José de Andrade. 1806a.

ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Inventário de Maria dos Santos Ribeira e José Teixeira. 1806b.

ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Inventário de Maria Francisca e Antônio Lourenço de Ávila. 1807c.

ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Inventário de Joana Rosa Matildes da Trindade e Manoel Francisco Peixoto. Processo 8601, maço 450, galeria A, 1805.

ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Inventário de Ana Maria do Bonsucesso e Antônio Pereira Ferreira. Processo 9307, caixa 1126, galeria A, 1801.

ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Inventário de Francisca Maria da Conceição e Manoel dos Santos Portugal. Processo 9054, caixa 4124, 1799. ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Edital, Maria de Sá Freitas. Processo 5724, caixa 35, 1798a.

ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Inventário de Ana Maria do Bonsucesso e Antônio Pereira Ferreira. Processo 8384, maço 434, galeria B, 1798b.

ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Inventário de Teresa de Jesus e Manoel Luiz Pinheiro. Processo 8940, caixa 1117, galeria A, 1797.

ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Inventário de Ana Maria de Jesus e João Pereira de Lemos. Processo 10, caixa 3636, 1795.

ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. Inventário de Antônia Maria da Conceição e Antônio Ribeiro de Avelar. Processo 9606, caixa 1135, galeria A, 1794.

(18)

CASTRO, A. Físicos, cirurgiões e boticários nas naus dos descobrimentos. Arquipélago – História, Portugal, 2. série, v. IV, n. 2, p. 535-550, 2000.

CAVALCANTI, N. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão até a chegada da corte. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2004. (E-book Kindle).

COARACY, V. Memórias da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: José Olímpio, 1955.

CORSINI, C. A. Why is remarriage a male affair? Some evidence from Tuscan villages during the eighteenth century. In: DUPÂQUIER, J. et al. Marriage and Remarriage in populations of the past. London: Academic Press, 1981. p. 385-395.

EWBANK, T. A vida no Brasil. Belo Horizonte, MG: Itatiaia/São Paulo, SP: EdUSP, 1976.

FAGUNDES, F. R. R. Boticas, funcionários do ultramar e intermediários do tráfico a serviço da cura: América Portuguesa e Angola (século XVIII/XIX). 2016. 233f. Dissertação (Mestrado) – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, 2016. FLANDRIN, J. L. Tempero, cozinha e dietética nos séculos XIV, XV e XVI. In FLANDRIN, J. L.; MONTANARI, M. (ed.). História da alimentação. São Paulo, SP: Estação Liberdade, 1998. p. 478-495.

FRAGOSO, J. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro, RJ: Arquivo Nacional, 1992.

KARASCH, M. C. Slave life in Rio de Janeiro (1808-1850). Princeton: Princeton University Press, 1987.

LAVRADIO, M. Relações parciais apresentadas ao Marquês do Lavradio. Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, Rio de Janeiro, RJ, tomo 76, parte I, p. 319 e 327, 1915.

LEWKOWICZ, I.; GUTIÉRREZ, H. Mulheres sós em Minas gerais: viuvez e sobrevivência nos séculos XVIII e XIX. In: SILVA, G. V.; NADER, M. B.; FRANCO, S. P. História, mulher e poder. Vitória, ES: EdUFES, 2006.

LOURENÇO, T. S. O médico entre a tradição e a inovação: João Curvo Semedo. 2016. 177f. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, 2016.

MACHADO, J. A. Vida e morte do bandeirante. Belo Horizonte, MG: Itatiaia; São Paulo, SP: EdUSP, 1980.

MARCÍLIO, M. L. Caiçara, terra e população. São Paulo, SP: EdUSP, 2006.

MARCÍLIO, M. L. La ville de São Paulo: peuplemente et population (1750-1850). Rouen: Université de Rouen, 1972.

NAZZARI, M. O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil 1600-1900. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2001. NUNES, A. D. Almanaque da cidade do Rio de Janeiro 1792. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, v. 266, p. 159-290, 1965.

(19)

RUSSELL-WOOD, J. Portos do Brasil Colonial. In RUSSELL-WOOD, J. Histórias do Atlântico português. São Paulo, SP: Ed. da UNESP, 2014. p. 125-176.

SANTO ANTONIO, D. C. Pharmacopea Lusitana augmentada methodo pratico de preparar os medicamentos na fórma galenica, & chimica. Lisboa Ocidental: Officina de Francisco Xavier de Andrade, 1725.

SANTOS, R. F. “Devo que pagarei”: sociedade, mercado e práticas creditícias na Comarca do Rio das Velhas – 1713-1773. 2005. 196f. Dissertação (Mestrado) – CEDEPLAR, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2005. SLENES, R. W. Malungu, n‟goma vem! África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, São Paulo, SP, n. 12, p. 48-67, 1992.

SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 1999.

UNESCO. Alphabétisation et alphabétisme, quelques définitions. In: UNESCO. Rapport mondial de suivi sur l’éducation pour tous. Paris, 2006. Disponível em: http://www.unesco.org/education/GMR2006/full/chap6_fr.pdf. Acesso em: 03 mar. 2017.

VALENTIN, A.; MOTTA, J. F.; COSTA, I. N. Distribuição e concentração da riqueza com base em inventários post-mortem na presença de casos de riqueza líquida negativa. História, São Paulo, SP, v. 32, n. 2, p. 139-162, 2013. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/his/v32n2/a08v32n2.pdf. Acesso em: 09 ago. 2019.

VAN POPPEL, F. Widows, widowers and remarriage in nineteenth-century netherlands. Population Studies, London, v. 49, n. 3, p. 421-441, 1995.

VEIGA, C. F. L. Vida após a morte: mulheres viúvas nas malhas do Império Luso – Rio de Janeiro (c. 1763-1808). 2017. 284f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2017.

VIGO, J. Libro, o pratica en cirurgia. Zaragoça: Juan Soler Impressor de Libros, 1581.

VILLALTA, L. C.; MORAIS, C. C.; MARTINS, J. P. As reformas pombalinas e a instrução (1759-1777). In: FALCON, F. C.; RODRIGUES, C. (org.). A “Época Pombalina” no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro, RJ: Editora da FGV, 2015. p. 451-498.

Referências

Documentos relacionados

Neste sentido, surge o terceiro setor como meio eficaz de preenchimento da lacuna deixada pelo Estado, tanto no aspecto da educação política quanto no combate à corrupção,

Although Knight-Piesold considers that Maximum Design Earthquake for the Pebble dam design to be the Maximum Credible Earthquake, an examination of Table 3.1 of the report reveals

Os roedores (Rattus norvergicus, Rattus rattus e Mus musculus) são os principais responsáveis pela contaminação do ambiente por leptospiras, pois são portadores

libras ou pedagogia com especialização e proficiência em libras 40h 3 Imediato 0821FLET03 FLET Curso de Letras - Língua e Literatura Portuguesa. Estudos literários

(CESGRANRIO) Tendo em vista as regras de concordância, assinale a opção em que a forma entre parênteses NÃO completa corretamente a lacuna da frase:.. a) São bastante _________

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

Para verficar esses dados, propõe-se o cruzamento dos exemplares do Almanak Laemmert, dos anos de 1850 e 1870, — o qual possibilitou o le- vantamento do número de anunciantes

Foram analisados a relação peso-comprimento e o fator de condição de Brycon opalinus, em três rios do Parque Estadual da Serra do Mar-Núcleo Santa Virgínia, Estado de São