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Do paleolítico inferior à idade do ferro no concelho de Oeiras : percursos da presença humana

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F I C H A T É C N I C A

© 1998. Câmara Municipal de Oeiras

Câmara Municipal de Oeiras

1.° Ciclo de Estudo Oeirenses: Oeiras - A Terra e os Homens

Primeira edição: Novembro de 1998 Tiragem: I ()()() Exemplares

Revisão de Texto: José Manuel Coelho

ISBN: 972-774-014-6 Depós~o legal: 124994/98

Concepção gráfica e Composição: António Lobo. em caracteres GillSans Light corpo 9

Produção gráfica: Arte Mágica. Centro de Edição Gráfica. Lda. Impresso em Portugal

Ilustração da capa: António Lobo

Resevados todos os direitos para a língua portuguesa. de acordo com a legislação em vigor.

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A F O R M A Ç Ã O D E O E I R A S

DO PALEOLíTICO INFERIOR À IDADE DO FERRO NO CONCELHO DE OEIRAS: PERCURSOS DA PRESENÇA HUMANA

João Luís Cardoso

COORDENADOR DO CENTRO DE ESTUDOS ARQUEOLÓGICOS DO CONCELHO DE OEIRAS -(CMO) DA ACADEMIA PORTUGUESA DE HISTÓRIA

Ao Dr. Isaltino Morais, a quem se devem todos os resultados apresentados neste estudo, ao criar condições objectivas para o conhecimento do passado mais lo ngín-quo de Oeiras.

Resumo

No decurso de um largo lapso de tempo, Iniciado nos primórdios da presença humana no continente europeu, o território ocupado pelo concelho de Oeiras conservou testemunhos de sucessivas presenças humanas, as quais têm vindo a ser, nos últimos anos, objecto de um programa de pesquisas metódicas, conduzido pelo Centro de Estudos Arqueológicos do concelho de Oeiras, da Câmara Municipal de Oeiras. Deste modo, foram investigados diversos sítios de interesse arqueológico, do Paleolítico Inferior ao Período Romano, bem como de épocas ainda mais recentes, cujos resultados os transformam em elementos-chave para a cabal compreensão da evolução das sociedades humanas no espaço geográfico concelhio. Com efeito, os vestígios materiais que ali têm vindo a ser exumados, contribuem decisivamente para a caracterização económica, social e cultural das comunidades que se sucederam, ao longo dos milénios, na ocupação do solo oeirense, realidade que há pouco mais de uma década permanecia ainda quase totalmente por investigar.

Neste estudo serão caracterizados os principais aspectos da sequência ocupa -cional identificada, com base nos vestígios materiais que foi possível recuperar; desta forma, serão abordados, sequencialmente, os seguintes tópicos:

introdução; condicionantes naturais à ocupação humana; os recursos po tencial-mente disponíveis e a posição geográfica de excepção desta parcela do território;

as primeiras indústrias líticas: enquadramento geológico e cronológico. A jazida do Alto de Leião no contexto litoral da Estremadura. O estado da questão a nível europeu;

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as jazidas paleolíticas de ar livre do Complexo Basáltico de Lisboa representadas no concelho de Oeiras: economia e modus vivendi dos bandos de caçadores- reco-lectores do Paleolítico Inferior e Médio;

o Paleolítico Superior: a ocupação solutrense da gruta da Ponte da Lage; os tempos pós-glaciários: o Epipaleolítlco, o Mesolítico e o Neolítico Antigo e Médio;

O Neolítico Final e a Revolução dos Produtos Secundários: evidências materiais observadas na primeira ocupação do povoado pré-histórico de Leceia;

Necrópoles da Pré-história recente: práticas e ritos funerários identificados no territóno oeirense;

O Calcolítico: estratégias de ocupação do território e de exploração dos recur-sos naturais; economia e demografia; relações transregionais e aspectos cultu-rais delas derivados. A complexificação da sociedade. Povoados fortificados. Os primeiros metalurgistas e a emergência das cerâmicas campaniformes: as leituras feitas em Leceia de uma realidade possível;

a Idade do Bronze. O Bronze Final no concelho de Oeiras. Povoados de altura e «casais agrícolas»; a exploração intensiva e extensiva dos solos. Os artefactos do quotidiano e os bens de «prestígio»: evidências da diferenciação social. O comércio 32 transregional de maténas-primas;

a Idade do Ferro: testemunhos matenais no concelho de Oeiras. Os «casais agrícolas» ou a «evolução na continuidade» do Bronze Final para a Idade do Ferro. O comércio fenício e os novos produtos de origem oriental: aspectos da cultura material. O fim da Idade do Ferro: produtos púnicos e itálicos. Economia e organiza-ção social.

I - Introdução

As excelentes condições naturais oferecidas pela região ribeirinha do estuário do Tejo, onde a área correspondente ao actual concelho de Oeiras naturalmente se insere, constituíram desde muito cedo factores propícios à ocupação humana.

Clima ameno, mais frio e seco nos períodos correspondentes ao desenvolv i-mento dos glaciares nas regiões setentrionais de Portugal; solos férteis, sobretudo na margem Norte do estuário, derivados em grande parte de rochas basálticas que aflo-ram de Loures a Oeiras; rede hidrográfica favorável à circulação de produtos e pes-soas até época recente, facilitando as ligações de e com o estuário do Tejo; e, por último, a proximidade do oceano, foram razões determinantes para que. na área

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oeirense, se fixassem, desde os mais remotos tempos, populações humanas, de início exclusivamente recolectoras, depois produtoras e, por último, francamente abertas às trocas de produtos, com base nos recursos económicos que conseguiram armazenar. A caracterização da evolução da ocupação humana do território oeirense, constituindo ensaio datado no tempo presente, corresponderá à síntese dos conhe -cimentos actualmente disponíveis sobre a evolução humana da ocupação da área concelhia desde os primórdios ao fim da Idade do Ferro, com base no inventário e estu-do estu-dos vestígios materiais deixados no terreno pelas gerações que nos precederam na ocupação desta região.

2 - Condicionantes naturais

Na área do concelho de Oeiras, ocorrem afloramentos geológicos e solos, deles derivados, de diversas idades, características e natureza. Boa parte da área em apreço é ocupada por afloramentos e solos pertencentes ao Complexo Básáltico (ou Vulcânico) de Lisboa: trata-se de sucessão de escoadas lávicas, de natureza basáltica, alternantes com tufos e níveis piroclásticos, que documentam importante actividade vulcânica na região, entre o final do Cretácico e o Eocénico inferior. Com efeito, as idades conhecidas. determinadas por métodos experimentais, variam entre 55 ± 18Ma (Ma = Milhões de anos) e

n

± 2 Ma. As rochas resultantes de tal actividade pre-dominam largamente na parte oriental e central do concelho; o relevo que, actua l-mente ostentam, é caracterizado por encostas pouco onduladas, pontuadas por co-linas de topo arredondado, marcando levemente a paisagem, em geral correspon -dentes às raízes de pequenos aparelhos vulcânicos. Neste contexto, sobressai a serra de Carnaxide, onde se observam as maiores altitudes do concelho que não ultrapas-sam, contudo, os 200 m.

Os solos basálticos, de aparência escura, compacta e pesada, de grande aptidão agrícola, foram até à actualidade intensamente agricultados, especialmente por cul -turas cerealíferas, que constituíram um dos aspectos mais marcantes da paisagem e da economia concelhias, até época recente.

O Complexo Vulcânico de Lisboa encontra-se sobreposto, ao longo do seu li-mite meridional, e até perto da linha de costa, por retalhos de depósitos terciários, os mais antigos de origem flúvio-torrencial e continental (trata-se da Formação de Benfica, de idade paleogénica), flúvio-marinha ou mesmo francamente marinha, os mais recentes, já de idade miocénica. São terrenos essencialmente detríticos, ou

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argilo-carbonatados, constituindo, tal como as formações basálticas, relevos suaves e pouco pronunciados, porém, ao contrário destes, de pouco interesse agrícola, facto que, a par da escassez de água, justifica a fraca densidade de vestígios arqueológicos neles detectados.

Por seu turno, as escoadas lávicas dispersaram-se, a partir de diversos ap are-lhos vulcânicos cujos vestígios são ainda visíveis nalguns locais - Pedreira Italiana, em Laveiras e no Monte do Castelo, a Sul de Leceia - sobre uma antiga superfície topográfica constituída por rochas do Cretácico inferior (Cenomaniano superior). Trata-se de calcários duros, de fácies recifal, aflorando nos locais onde o manto basáltico foi totalmente removido pela erosão, como se observa ao longo das três principais linhas de água que percorrem o concelho: o rio Jamor, a ribeira de Barcarena e a ribeira da Lage, todas elas com orientação geral Norte-Sul. Correspondem, frequentemente, a pequenos escarpados, limitando a parte superior das encostas das aludidas linhas de água onde, graças à difícil acessibilidade, a vege -tação natural, posto que muito degradada e residual, se manteve.

Por sua vez, tais bancadas de calcários duros assentam em depósitos margosos, do Cenomaniano inferior e médio, que ocupam área limitada, entre Porto Salvo e Talaíde; a sua topografia regular favoreceu o seu aproveitamento, tal como os ter-34 renos basálticos, para culturas de sequeiro. Constituem os aflorantes geológicos mais

antigos presentes na área concelhia.

Os afloramentos geológicos presentes na área concelhia mais modernos estão representados por retalhos muito erodidos, actualmente quase totalmente de sapare-cidos, de antigas praias flúvio-marinhas, escalonadas a altitudes decrescentes para o litoral; ao longo deste, observam-se depósitos arenosos actuais, correlativos dos enchimentos que colmatam o fundo dos três principais cursos de água referidos. A fertilidade de tais enchimentos justificou. ao longo dos séculos, o seu aproveit a-mento intensivo para culturas de regadio: hortas e pomares desenvolviam-se aí, de maneira quase contínua, conferindo à paisagem aspecto alegre, colorido e variado, contrastando com a monotonia triste dos terrenos basálticos.

Do que ficou dito, conclui-se que as diversas condições geológicas observadas no território oeirense explicam os próprios recursos agrícolas potencialmente sus -ceptíveis de serem aproveitados pelas sucessivas comunidades humanas que o povoaram sendo, por isso, determinantes na própria estratégia de povoamento - i nti-mamente relacionada com as possibilidades de captação de recursos - adoptadas sucessivamente ao longo dos tempos. É essa realidade que se irá procurar caracter i-zar, nos seguintes tópicos em que se organizou esta apresentação.

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3. O Paleolítico Inferior Arcaico

A jazida do Alto de Leião situa-se no topo de uma plataforma detrítica hoje quase

totalmente desaparecida, correspondendo aos derradeiros vestígios de uma praia

mari-nha, desenvolvendo-se à altitude aproximada de 140-150 m acima do nível do mar actual. Trata-se de depósito constituído por pequenos seixos muito bem rolados, sobretudo de quartzito, denunciando trabalho do mar. Actualmente, tais seixos di s-persam-se à superfície de afloramentos basálticos, que na altura constituíam o

substrato geológico daqueles depósitos, hoje quase totalmente desaparecidos.

A abundância, nos terrenos basálticos, de óxidos e hidróxidos de ferro, conduziu, nas centenas de milhares de anos subsequentes à sua deposição, à forte impregnação dos seixos, conferindo-lhes as belas colorações amarelo-avermelhadas a castanho-escuras, que hoje ostentam.

Neste contexto, de estrito carácter superficial, podem encontrar-se teste-munhos da presença humana de todas as épocas. Porém, entre os materiais mais antigos, contam-se alguns seixos muito frustes, talhados apenas por escassos levanta-mentos, cujas superfícies de lascagem se mostram roladas pelo mar após o talhe, indício de que serão contemporâneos do referido nível marinho, cerca de 150 m acima do nível do mar actual. Por tal motivo, o Alto de Leião foi considerado de época ca-labriana. Com efeito, a ausência de relevos mais elevados de onde os seixos pudessem ter derivado, por gravidade, exclui tal hipótese como explicação para o rolamento que possuem, não sendo, por outro lado, viável a atribuição de tal estado de desgaste a outras causas naturais.

Deste modo, pelas características sedimentológicas e geomorfológicas que se conservaram na paisagem actual, poderemos entrever extensas praias arenosas, na confluência de complexo dispositivo flúvio-deltaico, correspondente à embocadura de um «pré-Tejo» do início do Quaternário, francamente expostas à acção marinha. Em tais praias circulariam, há mais de 1,5 Ma, bandos de hominídeos responsáveis pela manufactura dos referidos artefactos, com equivalentes em depósitos a Norte da serra de Sintra, bem como na península de Setúbal.

A ocorrência de seixos idênticos aos referidos, ao longo das rechãs litorais mais

baixas - e por conseguinte mais modernas - que se observam ao longo do referi

-do trecho litoral, explica-se facilmente por fenómeno de recorrência: a marcada sim -plicidade que tais conjuntos industriais ostentam deve-se, sobretudo, às limitações impostas pela própria matéria-prima disponível, designadamente a forma, o tamanho

e o comportamento mecânico das rochas utilizadas. Com efeito, pequenos seixos

quartzíticos não permitiam a aplicação de apuradas técnicas do talhe da pedra, por 35

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mais experientes que fossem os seus utilizadores. Assim, o único elo entre grupos anatómica, cultural e cronologicamente tão diferenciados, como os que ocuparam o litoral estremenho desde pelo menos 1,5 Ma, até época correspondente à formação da rechã litoral de 5-8 m acima do nível do mar actual, há cerca de 70 000 anos, seria, apenas, o facto de terem recorrido às mesmas técnicas para a obtenção de arte fac-tos, forçosamente frustes e idênticos. Devemos ter presente, ainda, na procura de razões para tal convergência, a hipótese de a ocupação sazonal do litoral, realidade verificada desde os estádios mais precoces do talhe da pedra, ter determinado, de alguma forma, a recorrência a artefactos tão marcadamente elementares. Com efeito se, durante uma determinada época do ano, não se pretendia mais do que a simples e fácil recolha de moluscos, arrancados às rochas, seriam dispensáveis artefactos mais poderosos e elaborados como os utilizados, por exemplo, na caça; desta forma, a aparente «paralisia do engenho» Invocada por H. Breuil, o descobridor destas indús-trias, na década de 1940, conjuntamente com G. Zbyszewski, poderia, ao contrário, dever-se simplesmente a uma inteligente adaptação das formas aos fins pretendidos, traduzindo a pouco exigente vida no litoral.

Em conclusão: as descobertas que acabamos de referir e que transformam o concelho de Oeiras em uma área-chave de pesquisa, fazem recuar, por critérios 36 geológicos, a presença humana no território português para cerca de 1,5 Ma,

encon-trando-se consubstanciada por artefactos situados entre os mais antigos, e não menos polémicos, testemunhos humanos até ao presente identificados em solo europeu. Cremos, porém, que a marcha das descobertas é favorável aos defensores da antigui-dade e autenticidade de tais artefactos: hoje é insustentável o limite «psicológico» de

I Ma, ainda defendido por alguns, para os mais recuados testemunhos europeus de tal presença.

Sem necessidade de recorrermos a argumentos mais longínquos, tanto da Europa Oriental como do Próximo Oriente, relembremos apenas as descobertas que, desde há cerca de vinte anos, vêm sendo feitas no MaCiço Central francês. De um único e duvidoso sítio registado em 1982 - Chillac III, considerado já então anterior a 1,2 Ma - no final da década de 1980 dispunha-se de uma muito mais consistente informação. As datações absolutas, efectuadas em materiais vulcânicos, bem como o estudo das faunas, conjugado com a magnetostratigrafia, fazem recuar ali a presença humana para 2 a 2.5 Ma, ilustrada pela ocorrência de numerosos artefactos, desta maneira tornados ainda mais antigos que os materiais dos sítios calabrianos da costa portuguesa.

Recente mesa-redonda dedicada às mais antigas presenças humanas na Europa. realizada em Tautavel, França, em 1993, evidenciou a complexidade da questão, até

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pela disparidade das afirmações produzidas. Assim, enquanto para os editores das

actas daquela reunião, os primeiros traços seguros de tal presença remontariam

ape-nas a 500 000 anos, já outros admitem uma antiguidade superior a 1,5 Ma para

cer-tas ocorrências, incluindo-se possivelmente entre estas o sitio peninsular de

Orce, Granada, repesentadas por lascas em bruto, lascas retocadas e artefactos sobre

seixo, como os do nosso território.

Como dizia Breuil, há mais de meio século, o berço da Humanidade gira sobre

rodas; a cronologia das indústrias do Maciço Central françês, quase tão antigas como

as mais antigas indústrias da África Oriental, parece ilustrar tal afirmação. E que p en-sar das recentes escavações efectuadas na Yakoutia, Sibéria, onde, segundo o esca-vador, se recolheram mais de 20 000 artefactos in situ, em camada cuja cronologia,

por critérios geológicos e paleomagnéticos, foi datada entre 2,5 e 1,8 Ma? Motchanov

vai ao ponto de concluir que tal região poderia constituir uma alternativa europeia à

hipótese africana para berço da Humanidade. A última palavra ainda não foi dada a

tal propósito. Para tal, concorrerão, decisivamente, os resultados dos trabalhos em

curso nos locais mais promissores do continente europeu. Entre eles incluem-se,

certamente, os identificados na Estremadura portuguesa e em particular no concelho

de Oeiras, constituindo--se tal espaço como contribuinte, ainda que modesto, para

uma procura que, provavelmente, jamais terá fim.

4. O Paleolítico Inferior e Médio

Boa parte do concelho de Oeiras encontra-se ocupado, como atrás se disse, por

ter-renos basálticos. Mercê das suas caracteristicas, tais terrenos são favoráveis à

retenção da água em toalhas superficiais, de que resulta a ocorrência de numerosas

nascentes. A abundância de água, facilmente disponivel, conjugada com relevo pouco

acidentado, em parte resultante da disposição tabular das próprias escoadas lávicas, justifica a antevi são de ambiente natural cuja cobertura vegetal tornaria semelhante à

actual savana africana, e onde abundaria a caça. Reuniam-se, assim, condições

favoráveis à circulação de grupos de caçadores-recolectores, no decurso de largo lapso temporal de muitas centenas de milhares de anos, até a plena afirmação do Homem moderno na região, o que só viria a acontecer há cerca de 28 000 anos antes

do presente.

Tão largo intervalo de tempo explica a extraordinária abundância de materiais

liticos recolhidos, constituindo os referidos terrenos um notável palimpsesto arqueo

-lógico. Com efeito, as estações paleoliticas mais importantes da região oeirense

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Linda-a-Pastora, Leião Norte e Fontainhas - tal como acontece na generalidade das suas homólogas desta extensa mancha paleolítica, onde se inventariaram mais de uma

centena de locais, acusam sucessivas ocupações, ainda que de curta duração, vistas separadamente. Os materiais mais antigos remontam ao Acheulense Antigo, estando representados o Acheulense Médio e o Superior, além do Paleolítico Médio (indús -trias mustierenses). O auge da ocupação humana por parte destas tribos de

caçadores-recolectores deve ter-se verificado, a julgar pela distribuição dos res pec-tivos materiais, no decurso do Acheulense Superior e do Mustierense. Nessa altura,

que poderemos situar entre a segunda metade da glaciação rissiana e o início do Würm recente, há cerca de 30 000 anos, os terrenos basálticos teriam funcionado como território privilegiado para a caça, cuja presença era favorecida, para além dos factores antes referidos, pelo clima pouco rigoroso, explicado pela baixa latitude e

proximidade oceânica, contrastando com o verificado em outras regiões peninsulares e além-Pirinéus, nesse mesmo lapso temporal. Foi, com efeito, a existência de clima globalmente benigno, que determinou a preferência por acampamentos de ar livre, dispensando o abrigo de grutas: apenas na gruta da Ponte da Lage foram identifica

-dos escassos artefactos de sílex, susceptíveis de se considerarem como mustierenses. Não obstante os vestígios recolhidos nesta vasta região basáltica serem, excl

u-38 sivamente, de superfície, a sucessão tecno-industrial e cultural é coerente, desde as estações mais ocidentais, no concelho de Cascais, até às mais orientais, situadas já no concelho de Loures, passando pelo núcleo de maior densidade de vestígios, na região da Amadora. Deste modo, é lícita a designação de tal conjunto de estações -que constituem uma das manchas paleolíticas mais importantes da Europa - por «Paleolítico do Complexo Basáltico de Lisboa», expressão detentora de significado cronológico e cultural bem definido.

Por outro lado, mercê de estudo de conjunto recentemente efectuado, reconheceu--se nítida dependência entre a natureza das matérias-primas utilizadas e as fontes onde se encontravam naturalmente disponíveis. Assim, nos domínios mais ocidentais,

próximos dos afloramentos de calcários cretácicos, onde o sílex era abundante, sob a forma de nódulos, é esta matéria-prima que predomina; a zona média e também nuclear deste grupo de estações parece constituir termo de transição entre o uso desta rocha e o recurso ao quartzo, sob a forma de seixos rolados. Tal facto explica --se pela maior distância que teria de ser percorrida até às fontes de sílex; não obstante, a sua presença, ainda dominante, demonstra que foi objecto de procura, exploração e transporte, para os locais onde, ulteriormente, foi transformado. Enfim,

nas estações paleolíticas mais orientais, é o quartzo filoneano, directamente obtido nos depósitos detríticos grosseiros do Cenozóico, aflorantes na região limítrofe, que

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constitui o grosso da utensilagem. Tais factos ilustram, expressivamente, o papel das condicionantes geológicas nas características industriais das referidas associações líticas.

Apesar das dezenas de milhares de peças recolhidas desde os inícios deste século, época em que tal domínio começou a ser sistematicamente prospectado,

trata-se sempre de materiais de superfície, situação extensiva à cerca de trintena de

sítios identificados no território de Oeiras. As limitações inerentes a tal situação,

somadas ao facto de se tratar, em geral, de colheitas antigas, e por certo selectivas,

isto é, não abarcando a integridade do material, em terrenos há muito destruídos pela

ocupação urbana, impede a aplicação de métodos de análise tipológica mais finos,

designadamente o «método de Bordes»; ficam, deste modo por esclarecer questões

já hoje clássicas, como a do real estatuto destes conjuntos no âmbito do «Complexo

Industrial» mustierense, tal como foi definido noutros lugares.

A região ribeirinha do antigo estuário plistocénico do Tejo foi também preferi

-da por estes mesmos grupos de caçadores-recolectores dada a abundância dos recur

-sos aí disponíveis e facilmente colectáveis. Um dos testemunhos mais interessantes situava-se na área do reduto de Renato Gomes Freire - Alto da Barra. Ali, a existên

-cia de um nível de depósitos de praia plistocénica é de há muito conhecida, inte -grando-se no conjunto das praias tirrenianas que acompanham a linha de costa, a 39

altitudes de 20 a 25 m acima do nível do mar actual, do Guincho à foz do Tejo.

A sucessão estratigráfica observada em antiga saibreira hoje totalmente desaparecida, comportava na base um nível de areias finas argilosas, sobrepostas por areias gros -seiras e seixos, alguns deles afeiçoados e recolhidos in situ. No decurso da construção do complexo habitacional ali existente, na primeira metade da década de 1970, novos cortes foram executados, permitindo a observação directa de outras áreas do referido depósito em profundidade. Os materiais recolhidos e entretanto estudados correspondem a uma indústria sobre seixos de quartzito; algumas peças tipologicamente mais definidas indicam idade acheulense, o que está de acordo com a época atribuída, por critérios geológicos, ao referido depósito.

5. O Paleolítico Superior

Exceptuando-se alguns escassos vestígios de superfície, correspondentes a peças

inte-gráveis nas séries mais recentes da sucessão de indústrias paleolíticas dos terrenos basálticos, e um pequeno conjunto pouco abundante e de idade indefinida, reco-Ihido em pequena rechã litoral junto a Fontainhas, Paço de Arcos, compreendendo

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raspadeiras carenadas de aspecto aurignacense, o único testemunho da presença

humana do Paleolítico Superior do concelho de Oeiras foi observado na gruta da

Ponte da Lage.

Trata-se de uma cavidade cársica existente em pequena cornija de calcários sub-cristalinos do Cenomaniano Superior, profundamente fracturados, a

meia-encos-ta do lado esquerdo do vale da ribeira da Lage, junto à povoação do mesmo nome, cerca de 2 km a Norte de Oeiras. A sua abertura, voltada para a ribeira, em forma

de arco abatido sugeriu, pela sua regularidade, afeiçoamento, no decurso do

Neolítico ou do Calcolítico, época em que a cavidade foi também frequentada pelo

Homem, que a aproveitou como necrópole. As primeiras explorações remontam a

1879, sob a direcção de Carlos Ribeiro; os materiais então exumados, conjuntamente com os obtidos na década de 1950, em nova intervenção dirigida por

o.

da Veiga Ferreira, guardam-se no Museu do Instituto Geológico e Mineiro. O interior da cav

i-dade, que se encontrava então muito entulhado, foi totalmente limpo, tendo-se v

eri-ficado que o depósito arqueológico fora já quase totalmente removido. Ao longo da

galeria principal, detectou-se a existência de delgada camada estalagmítica e, abaixo desta, uma outra, fortemente concrecionada, com muitos carvões e alguns elementos atípicos, de aspecto «mustieróide».

Em Setembro de 1993, o signatário retomou ali os trabalhos de campo, com o objectivo de reconhecer eventuais sectores da gruta que ainda não tivessem sido objecto de exploração. Complementarmente, pretendia-se efectuar revisão sistemát

i-ca dos materiais anteriormente atribuídos por diversos autores ao Paleolítico supe-rior; com efeito, tais materiais, no conjunto dos que constituem o espólio da estação,

eram os que mais careciam de reapreciação. Tais materiais foram divididos por

H. Breuil. em 1941, em três conjuntos, a saber:

o primeiro, mais antigo, suposto do Solutrense;

o segundo, atribuível ao Magdalenense;

o terceiro e último, considerado próximo do Mesolítico.

Vejamos a composição essencial de cada um deles. O grupo do Solutrense

inte-graria um fragmento de folha de loureiro; na verdade, trata-se de porção de peça foliácea muito mais moderna, do Neolítico final ou do Calcolítico, das vulgarmente

designadas por «elementos de foice» sobre lâminas ovais, de retoque cobridor. Da

mesma forma, um furador sobre lâmina, integrado por Breuil na série solutrense,

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o

grupo do Magdalenense integraria, entre outras peças, doze lâminas: porém, não há qualquer razão para serem consideradas como tal, na ausência de peças de recorte tipológico definido ou particular à época em causa. Apenas três peças per-tencentes a este conjunto são seguramente do Paleolítico Superior, mas não forçosa-mente magdalenenses: trata-se de uma ponta de La Gravette, incompleta, e de dois buris diedros, um de eixo outro de ângulo.

Enfim, o terceiro grupo de artefactos, considerado por Breuil próximo do

Mesolítico é constituído por oito peças, predominando a debitagem laminar, das quais

algumas não são trabalhadas. A que ostenta trabalho mais apurado, é uma lamela Dufour, com retoque contínuo sem i-abrupto em ambos os bordos laterais, num deles por levantamentos inversos.

Considerando a tipologia das peças mais características, verifica-se que, tanto as pontas de La Gravette como as lamelas Dufour ocorrem em diversas culturas do Paleolítico Superior. Por outras palavras: a atribuição específica das indústrias em causa ficaria prejudicada - visto não se confirmar a atribuição ao Solutrense da única peça tipologicamente mais significativa - não fora a identificação, de entre os

mate-riais publicados por O. da Veiga Ferreira e colaboradores, de uma ponta de belo e

cuidado trabalho bifacial, pedunculada, com esboço de aletas laterais, de sílex cinzen-to, que até à revisão por nós efectuada havia passado despercebida, confundida com 41

simples ponta de seta neolítica. Tal equívoco é, porém, desculpável por, à data da sua publicação, ainda serem desconhecidas em Portugal peças solutrenses desta tipologia. Trata-se, efectivamente, de uma ponta de arremesso absolutamente típica do Solutrense, cuja presença, só por si, é suficiente para aceitar a presença na gruta de pequeno grupo de caçadores solutrenses, que ali encontraram abrigo temporário. Sem embargo, a estreita afinidade desta ponta pedunculada com três exemplares exu-mados na gruta das Salemas, no concelho de Loures, atesta o elevado grau de estandardização que tais artefactos atingiram no Solutrense Superior da Estremadura, onde são conhecidos outros tipos de pontas de arremesso desta época, idênticas a exemplares do Solutrense Superior de fácies levantina, bem representados pelo co n-junto da gruta de Parpalló.

Esta ponta reveste-se, em consequência, de importância determinante na

atribuição ao Solutrense Superior de, ao menos, um momento da presença do Homem paleolítico na gruta em apreço, integrável no seu fácies mediterrâneo ou le-vantino, ao qual correspondem outras ocorrências da Baixa Estremadura: Furninha, Casa da Moura e Salemas: Encontrar-se-ão, deste modo, corporizadas as relações do

povoamento solutrense da Estremadura com o verificado em regiões mais

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de 21 000 e 14 000 anos antes do presente. Tal intervalo cronológico abarcou o momento de maior rigor climático da última glaciação: não obstante a posição geográ-fica privilegiada da área correspondente ao concelho de Oeiras, a ocupação desta cavidade como abrigo, poderá sem dificuldade relacionar-se com tal episódio de degradação climática.

6. O Epipaleolítico Neolítico Médio

Os materiais líticos mais modernos recolhidos nas estações paleolíticas do Complexo Basáltico pertencem já a tempos pós-paleolíticos, embora a falta de recorte tipológ i-co torne difícil o estabelecimento da sua cronologia precisa.

No decurso do Neolítico Antigo ou Médio, ainda tão mal caracterizado na Baixa Estremadura, a estação de Barotas, perto de Leceia, terá funcionado como ofi -cina de talhe de sílex, tendo em vista a obtenção desta matéria-prima, a ser ul terior-mente exportada para diversos habitats. Embora o funcionamento de tal oficina se tenha prolongado pelo menos até o Neolítico Final, a presença de uma ponta de flecha transversal sugere ocupação do local em época anterior.

7. O Neolítico Final

No decurso da segunda metade do IV Milénio a. C. assiste-se, na Estremadura, à ocu -pação progressiva de sítios de altura, com boas condições naturais de defesa. Em Leceia, plataforma constituindo esporão debruçado sobre o fértil vale da ribeira de Barcarena, distanciada cerca de 4 km da foz do TeJO, e defendida de dois dos seus

lados por escarpa calcária com cerca de 10m de altura, estabeleceu-se então vasto

povoado aberto, sobre as bancadas de calcários duros e sub-recifais, do

Cenomaniano Superior, então aflorantes, aproveitando os espaços existentes entre elas como abrigos. A localização deste já então notável povoado - cUJa importância se viu acrescida ulteriormente - foi evidentemente determinada pelas condições geo -morfológicas oferecidas pelo local e recursos naturais potencialmente disponíveis na região envolvente. Para além das propícias condições de defesa, a existência do próprio vale, configurando via privilegiada de penetração e de circulação de pessoas e de bens de e para o «hmterland» da península de Lisboa, a partir do estuário do

Tejo, deve ser valorizada. Acresce que o referido vale constituía não apenas zona

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A F O R M A Ç Ã O O E O E I R A S

agrícolas e da exploração pastoril de campos e prados, mas também área de captação

de recursos naturais, especialmente junto à confluência com o Tejo. De facto, é

admissível que, no decurso do Neolítico e do Calcolítico, o nível médio das águas do mar se situasse cerca de 5 m acima do actual criando, naquele local, uma enseada

abarcando toda a zona baixa de Caxias e até o Murganhal, rica de recursos aquáticos, facilmente recolectados. Por outro lado, a navegabilidade da ribeira de Barcarena, até

à zona do antigo povoado pré-histórico, seria então uma realidade, a partir de

peque-nas embarcações fluviais.

As oito datas de radiocarbono disponíveis para a primeira ocupação

pré--histórica de Leceia, depois de tratadas estatisticamente, para uma probabilidade de

50%, situam-na cronologicamente entre 3350 e 3040 anos a. C. e, para uma

proba-bilidade de 95%, entre 3510 e 2900 anos a. C.

Embora não se tenham identificado em Leceia, como em qualquer outro

povoa-do povoa-do Neolítico Final da Estremadura, estruturas defensivas, a evidente preferência

pela ocupação de sítios de altura pressagia a existência de situações potenciais de

confl ito, arqueologicamente não detectáveis até então; com efeito, só se defende

quem tem algo (para além da sua pessoa ... ) a defender. Que bens seriam então esses,

que teriam obrigado comunidades até então pacíficas e essencialmente sedentárias, a

subirem as encostas, procurando maior segurança no alto das colinas da região?

Cremos que seriam os resultantes da acumulação de excedentes da produção

agrícola, propiciados pela melhoria das tecnologias de produção, designadamente a

introdução do arado, do carro e da força de tracção animal, aproveitando a atrelagem

de bovídeos, como sugestivamente é ilustrado pela associação de bucrânios àqueles

dois presumíveis elementos, no santuário rupestre exterior do Escoural,

Montemor--o-Novo, atribuído ao Neolítico Final. Trata-se, afinal, dos mais frisantes

represen-tantes da chamada «Revolução dos Produtos Secundários» (RPS).

Entrevê-se, pois, mercê das melhorias tecnológicas introduzidas na produção de

alimentos, a existência, pela primeira vez, de excedentes, os quais estariam na origem

da instabilidade e tensão social intergrupos, tão bem documentada em Leceia, a qual

iria caracterizar todo o milénio seguinte na região estremenha e muito para além dela.

Outros povoados então ocupados na área oeirense, como o existente em Carnaxide,

debruçado, a meio da encosta esquerda, sobre o rio Jamor, evocando implantação

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A F O R M A Ç Ã O D E O E I R A S

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idêntica à de Leceia, documentam e confirmam a constância do padrão de

povoamento caracteristico no Neolitico Final regional.

8. As Necrópoles

Outra realidade que importa mencionar é a existência de sepulcros colectivos no Neolitico Final, ilustrando a prática de crenças mágico-religiosas ligadas ao «mundo

dos mortos». Na área concelhia, avulta o aproveitamento de grutas de origem cársi -ca, existentes nos calcários cretácicos aflorantes ao longo dos principais vales da região. Um dos exemplos mais relevantes é constituido pelas grutas de Carnaxide.

Tais grutas tornaram-se precocemente conhecidas no seguimento da descoberta ocasional de uma delas, em inlcios do século XIX, à qual se associou, imediatamente, uma crença religiosa, de indole mariana, das mais interessantes que, no nosso Pais se encontram relacionadas com estações arqueológicas. A imediata publicidade que se deu do facto, garantiu, assim, uma generalização imediata do culto, que imediatamente se associou às descobertas, tendo ulteriormente justificado a construção de templo importante, junto do rio Jamor, sob cuja capela-mor se localiza a gruta pré-histórica. Os acontecimentos que conduziram à sua descoberta foram relatados na altura 44 em que ocorreram, tendo sido publicados, nesse mesmo ano de 1822, dois folhetos anónimos, atribuidos a Frei Cláudio da Conceição, cronista do Reino. Julgamos ter

interesse apresentar a descrição dos factos, tal como nos é relatada num dos folhetos, até por corresponderem à primeira vez em que as condições de achados arqueológ i-cos pré-históricos se descreveram em Portugal:

«Nas margens do Rio Jamor ( ... ) descobrio o accaso huma rara maravilha da natureza. Succedeo no dia 28 de Maio de 1822( ... ), andarem sete rapazes nadando no dito Rio, quando vendo hum melro, o quizerão apanhar; porém fugindo este, desco-brirão hum coelho, que fugindo-lhe, se metteo em huma tóca: cuidárão logo os rapazes em o apanhar, fazendo que huma cadella entrasse pela tal tóca, o que fez com violencia por ser o buraco muito pequeno ( ... ). Tendo estes trabalhado por apanhar o coelho até ao meio dia, e não o podendo conseguir, vendo que tocava á Missa ( ... ) tapárão a tóca, deixando dentro o coelho, e a cadella, e forão ouvir Missa á sua Freguesia de S. Romão de Carnaxide.

Voltando da Missa, troxerão huma alanterna, e huma vella; e cavando mais, fi-zerão o buraco tão grande, que o tal Nicoláo pôde entrar com a alanterna sózinho; e achando huma casa, gritou pelos outros, que também entrárão: levantárão huma

lage que virão, procurando o coelho, e acharão debaixo da lage duas caveiras, e

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A F O R M A Ç A o D E O E I R A S

cesto, e hum lenço, que levou o Juiz de Fóra de Oeiras. e outros estão por varias casas, que os levárão outras muitas pessoas. Acharão tambem varios pedaços de louça, e algumas pedras lizas e redondas. Finalmente apanhando o rapaz Nicoláo o coelho, o trouxe para 'sua casa muito contente. e nella o conservou até o dia 3 de Junho, em que elle mesmo o foi entregar a S. M. o Sr. D. João VI, na companhia de Francisco Xarola. que Igualmente lhe levou huma pedra das achadas, e que parecia ser rara: o que tudo S. M. benignamente acceitou».

A descrição apresentada é clara, no respeitante à natureza arqueológica dos achados. O autor passa seguidamente à descrição da gruta, a qual despertou desde logo muito interesse por parte da população, «que de toda a parte concorria a vêr aquella raridade». Estavam, pois, criadas as condições no imaginário popular para que, em torno da descoberta, se associasse o milagre e, com ele, o culto cristão: logo cor-reu a notícia da aparição, «na concavidade da rocha, que fica à mão esquerda de quem entra. deitada sobre huma pedra ( ... ) huma pequena Imagem de Nossa Senhora da Conceição, com hum manto de seda muito velho, côr de obrêa desmaiada, e huma espiguilha de prata à roda já muito velha, cujo manto estava pegado à pedra». Existem diversos registos populares alusivos às vicissitudes da descoberta, representando invariavelmente a referida imagem mariana.

Este é, na verdade, um dos mais expressivos exemplos portugueses relacionan- 45

do o aparecimento da imagem da Virgem a recintos subterrâneos: outros se pode-riam citar. como a Senhora da Arrábida. a Senhora do Cabo e a Senhora da Nazaré.

Leite de Vasconcelos salienta a importância do culto da Senhora da Rocha de

Carnaxide no próprio povoamento da região envolvente, tendo culminado com a conclusão, cerca de 1886. do imponente templo. sede de importante romaria anual -mente ali realizada. até à actualidade.

Além da gruta que celebrizou o local, Leite de Vasconcelos menciona a existência de outras nas proximidades, em ambas as margens do rio Jamor, tendo tam-bém fornecido artefactos pré-históricos, alguns deles recolhidos em época anterior. por Carlos Ribeiro. Também Mesquita de Figueiredo procedeu a sondagens em três delas, tendo-lhe duas fornecido espólio. Alguns materiais arqueológicos conservam-se

no Museu Nacional de Arqueologia, tendo sido recentemente estudados pelo

si-gnatário. Trata-se de uma pequena colecção, de feição dolménica - presença de taças em calote lisas - atribuível ao Neolítico Final. A ocorrência de cerâmicas do mesmo tipo em grutas naturais da Estremadura é bastante frequente: nesta região, foi esta a forma de necrópole mais frequente, substituindo, em larga medida, os monumentos

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A F O R M A Ç Ã O D E O E I R A S

A utilização funerária, no decurso do Neolítico Final, das pequenas grutas ou abrigos naturais existentes ao longo das margens do rio Jamor, perto de Carnaxide, esteve certamente relacionada com a existência do povoado pré-histórico Já referido, explorado por J, J. F. Gomes, G. M. Andrade e

o.

da Veiga Ferreira e mais tarde so n-dado pelo signatário. Com efeito, é importante nesse local a presença de materiais coevos, do Neolítico Final, particularmente documentados por taças carenadas e vasos de bordo denteado, em tudo idênticos aos recolhidos em Leceia. Aliás, a relação entre povoados pré-históricos e grutas naturais utilizadas como necrópoles, encontra-se ilustrada por outros exemplos oeirenses.

Na base da corniJa calcária que delimita do lado oriental a plataforma onde se implantou o povoado pré-histórico de Leceia, localiza-se pequena cavidade natural, totalmente explorada por Carlos Ribeiro, a qual continha numerosos restos humanos. Um crânio, braquicéfalo, foi estudado pelo pioneiro da Antropologia Física portugue-sa, Francisco de Paula e Oliveira. Com efeito, pese embora o estado de intenso remeximento verificado na disposição dos restos humanos, estes apresentam-se pouco fracturados, facto pouco condizente com a hipótese de violação do sepulcro.

Desta forma, as características aludidas são compatíveis com a hipótese de depósito mortuário secundário (ossuário), idêntico a outros, de idade neolítica, como o da 46 gruta da Furninha, Peniche, para dar só um exemplo. Assim sendo, carece de funda

-mento, até por não estar de acordo com a realidade arqueológica da época, a hipótese de Joaquim Fontes, segundo a qual um aluimento de terras teria sido o responsável pelo isolamento de uma família que ali vivesse. Os rituais funerários adoptados neste como em outros casos, escapam-nos quase completamente. Convém reter, porém, a observação de Carlos Ribeiro acerca das abundantes cinzas associadas a estes restos humanos, que também se reconheceram em outros sepul -cros portugueses. Talvez se possam relacionar com práticas purificadoras realizadas nos recintos fúnebres. No caso vertente, tratando-se de depósito secundário, ver-dadeiro ossuário onde se acumularam restos de diversos indivíduos, importaria co -nhecer o local de deposição primária, de onde tivessem provindo, o qual não poderia situar-se muito longe.

Datação de radiocarbono efectuada sobre amostra aleatória destes restos int e-gra-os na última fase de ocupação do povoado, o Calcolítico Pleno, correspondendo --lhe o intervalo, com 95 % de probabilidade, de 2580 - 2150 a. C.

Outra gruta natural aproveitada como necrópole pré-histórica foi a da Ponte da

Lage. Tal como sucedia em Carnaxide e em Leceia, também esta se poderá relacionar como povoado pré-histórico, de pequenas dimensões, situado no outeiro de Penas Alvas. Alguns dos materiais humanos recuperados por Carlos Ribeiro, aquando da primeira

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A F O R M A Ç Ã O O E O E I R A S

exploração da gruta, em 1879, foram sumariamente inventariados em 1957 por

G. Zbyszewski e colaboradores. As escavações foram retomadas no ano seguinte, sob

a direcção de

o.

da Veiga Ferreira. Incidiram apenas sobre a entrada da gruta, o único local deixado intacto pelas escavações anteriores. Por debaixo dos entulhos, depararam os exploradores com pequena sepultura, assim descrita: «Aproveitando as

sinuosidades da rocha do lado direito e, completando o espaço para se deitar um

esqueleto dobrado, foi feita do lado esquerdo e cabeceira, uma pequena parede com

blocos de calcário de pequenas dimensões. Os restos do esqueleto que encontrámos tinha as pernas metidas dentro de dois buracos naturais abertos na parede rochosa.

O espaço ocupado pela sepultura é muito pequeno e por isso pensamos que o

esqueleto estava dobrado. A meio das pernas do indivíduo sepultado havia dois vasos

cerâmicos, um dentro do outro e voltados ambos com a boca para baixo. Do lado

direito do corpo havia uma machado de anfibolito de tipo primitivo. Completava o

espólio, uma ponta de seta de sílex com rudimento de aletas, dois fragmentos de lâminas de sílex, um elemento de dente de foice e algumas contas discóides de

calaíte».

As características deste espólio levam a situar a sepultura no Neolítico Final,

época em que se generalizou o enterramento individual em grutas naturais; a lapa da

Galinha, Alcanena, e a lapa do Bugio, Sesimbra, são apenas dois exemplos conhecidos 47 de necrópoles constituídas por enterramentos individualizados no interior de grutas, daquele período. Assim sendo, é provável que a gruta da Ponte da Lage tivesse constituído uma mais vasta necrópole, a que se deverão reportar os materiais

humanos recolhidos no seu interior, a qual foi parcialmente destruída pelas sucessivas

ocupações ulteriores ali efectuadas, de época campaniforme, da Idade do Bronze e da Idade do Ferro.

A última necrópole pré-histórica até ao presente identificada na região oeirense

situava-se no sopé do Monte do Castelo, cerca de 800 m para Sul do povoado pré

--histórico de Leceia, pequeno outeiro de formato cónico, correspondente a resto de antiga chaminé vulcânica de idade fini-cretácica. Pela sua implantação, entre o estuário

do Tejo e aquele povoado, constituindo elevação isolada na paisagem, Carlos Ribeiro considerou-a como atalaia dos habitantes de Leceia, situação com paralelos noutros

povoados fortificados calcolíticos peninsulares, como o de Los Millares, Almería. Tal

facto encontra-se atestado pela ocorrência de materiais arqueológicos na base da elevação, alguns deles coevos da ocupação do Calcolítico inicial de Leceia, recolhidos

em área atingida pela lavra de antiga pedreira, de grandes dimensões, hoje totalmente entulhada.

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48

A F O R M A Ç Ã O O E O E I R A S

Foi, precisamente, a exploração dessa pedreira que provocou a destruição de uma sepultura colectiva pré-histórica. Aquando da sua localização, apenas subsistia pequena parte do chão da câmara sepulcral, constituindo pequena plataforma na frente de exploração. Tratava-se de uma gruta artificial. escavada nos calcários bran-dos do Cretácico Inferior que ali afloram, idêntica a outras existentes na região (Alapraia, Cascais; Carenque, Sintra e Quinta do Anjo, Palmela). Os escassos despo

-jos humanos recolhidos, que constituiriam um todo coerente, atribuível aos fundadores do monumento, utilizado durante curto lapso de tempo, foram datados pelo radioca r-bono. O intervalo obtido, para uma probabilidade de 95%, foi de 3509 - 3147 a. C.

A construção e utilização do sepulcro seria, pois, contemporânea da fase mais antiga da ocupação de Leceia, integrável. como se disse, no Neolítico Final da Estremadura. Dada a proximidade do povoado pré-histórico, é lícito considerarmos esta sepultura como pertencente àquela comunidade. Por outro lado, a datação obtida vem demons-trar que os sepulcros do tipo «hipogeu» começaram a ser construídos ainda no Neolítico Final, evidência já sugerida pela tipologia dos espólios recolhidos nalguns

deles. avultando, entre todos, a câmara ocidental do monumento da Praia das Maçãs, Sintra.

9. O Calcolítico

o

progresso dos conhecimentos no faseamento do povoamento na Baixa

Estremadura, na passagem do Neolítico para o Calcolítico e no decurso deste último período, fica a dever-se, sobretudo, aos resultados obtidos nas escavações de Leceia, objecto de publicação regular. Com efeito, neste arqueossítio detectou-se e caracte-rizou-se sucessão estratigráfica de excepcional interesse, constituída, essencialmente, por três camadas arqueológicas, com significado cultural específico. Assim, a primeira ocupação, datada do Neolítico Final, encontra-se representada pela Camada 4, se pa-rada da seguinte por superfície de erosão, correspondente a período de abandono do povoado, o qual poderia não ter sido total. Camada seguinte - Camada 3 - corres -ponde a nova fase cultural, o Calcolítico Inicial; encontra-se, por sua vez, separada da Camada 2 por novo momento de abandono menos marcado que o anterior. Esta úl ti-ma corresponde ao Calcolítico Pleno, e ao Campaniforme, representado no topo da mesma por escassos materiais cerâmicos.

O espólio arqueológico recolhido em cada uma destas camadas - muito espe -cialmente a cerâmica, pelas formas e decorações que ostenta - suporta a referida diferenciação cultural: as dezenas de milhares de peças cerâmicas compulsadas ao longo

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A F O R M A Ç Ã O D E O E I R A S

de toda a sequência estratigráfica têm vindo a confirmar, ano após ano, aquela proposta sequencial. Neste aspecto reside uma das contribuições científicas mais inte -ressantes de Leceia, ao permitir demonstrar, de forma inequívoca, a estreita corre-lação existente entre as três camadas estratigráficas identificadas, o seu conteúdo arqueológico e as respectivas fases culturais que corporizam, as quais, por seu turno, puderam ser relacionadas com a própria evolução arquitectónica do dispositivo defensivo, ao longo da sua própria existência entre cerca de 2800 e 2500 anos a. C .. Com efeito, a cerâmica decorada por impressões ovalares, organizadas em dois motivos principais - a «folha de acácia» e a «crucífera» - é exclusiva da Camada 2 (Calcolítico Pleno), sendo, por conseguinte, totalmente desconhecida na Camada 3 (Calcolítico Inicial). Tais motivos decorativos ocorrem, essencialmente, em grandes vasos globulares, ditos «de provisões». Por seu turno, a Camada 3, embora mais ant i-ga, é caracterizada por um tipo de recipiente muito mais cuidado, de forma cilíndr i-ca, de pastas finas e depuradas, com decoração obtida por ténues caneluras feitas a punção rombo, logo abaixo do bordo e junto ao fundo: trata-se da forma clássica do «copo», recipiente pela primeira vez identificado e descrito por Afonso do Paço, com base em materiais por ele recolhidos em Vila Nova de São Pedro, Azambuja.

Do restante espólio, ao nível dos artefactos de pedra lascada e de pedra poli

-da, transparece marcada continuidade tipológica ao longo de toda a sequência estrati- 49 gráfica: nada nos indica, pois, a existência de «sobressaltos» na evolução económica e social destas populações, na passagem do Calcolítico Inicial para o Pleno.

Do ponto de vista da cronologia absoluta, Leceia pode considerar-se o povoa

-do pré-histórico português melhor caracterizado. De facto, uma das prioridades cien

-tíficas assumida desde o início dos trabalhos de campo, em 1983, foi o estabele ci-mento de uma cronologia absoluta para as diferentes fases culturais identificadas, fazendo uso da datação pelo radiocarbono de diferentes materiais orgânicos -carvões, ossos e conchas. Os resultados foram sendo publicados à medida que os la -boratórios os forneciam e constituíam, em 1994, um conjunto de dezasseis datas, abrangendo todas as fases culturais ali registadas. Embora este número já fizesse de

Leceia uma das estações arqueológicas melhor caracterizadas sob este aspecto do território português, julgou-se necessário prolongar o programa encetado, dada a importância da estação, a boa definição das camadas arqueológicas e, sobretudo, a controvérsia que tem rodeado quer a cronologia absoluta das diversas fases culturais do Calcolítico da Estremadura quer a idade da transição Neolítico-Calcolítico, questões que o conjunto então disponível não permitia resolver cabalmente. Para o efeito, um lote de vinte amostras, relativas a todas as fases culturais identificadas e oriundas de diversos locais da área escavada, foram submetidos a datação.

(22)

50

A F O R M A Ç Ã O O E O E I R A S A> ' ,

Os resultados relativos à Camada 4, do Neolítico Final, foram anteriormente apresentados.

No respeitante à Camada 3, do Calcolítico Inicial, as nove datas obtidas situam

estatisticamente a ocupação do sítio, para uma probabilidade de 95%, entre 2870 e

2400 anos a. C. Comparando estes resultados com os apresentados para o Neolítico

Final, verifica-se que o período de abandono da estação entre as duas ocupações

ascendeu a algumas dezenas de anos. Por outro lado, se tomarmos como representa

-tivos estes resultados para toda a região estremenha, não parecem restar dúvidas que

esta fase cultural se inicia muito antes no Alentejo, quando em Leceia florescia ainda

o Neolítico Final.

Ao Calcolítico Pleno correspondem dezoito datas; para uma probabilidade de

95%, a ocupação decorreu entre 2850 e 1950 anos a. C. Desta forma, apesar de se

observar certa sobreposição ente as datas correspondentes ao Calcolítico Inicial e ao

Calcolítico Pleno - facto que se fica a dever, sobretudo, às imprecisões de calibração

do método, actualmente existentes - é possível estabelecer uma data à volta de 2600

anos a. C. para a transição entre o Calcolítico Iniciai e o Calcolítico Pleno, na

Estremadura, resultado inédito e de importância científica com grande relevância, no

âmbito da investigação pré-histórica regional.

Tendo em consideração os resultados expostos, conclui-se que a construção da

imponente fortificação de Leceia se efectuou logo nos primórdios do Calcolítico Ini

-ciai, cerca de 2800 anos a. C. Trata-se de dispositivo defensivo constituído por três

ordens de muralhas, construídas simultâneamente, integrando entradas, bastiões,

caminhos, etc. Os espaços entre muralhas eram ocupados por estruturas comunitárias, como currais (identificou-se um de planta quase circular), eiras, casas e grandes sup

er-fícies la'geadas, talvez destinadas a reuniões comunitárias ou à concentração de

pes-soas e de bens, do segmento populacional que viveria extramuros, em épocas de

maior instabilidade social. O todo construído denuncia uma concepção prévia do

espaço edificado, assumindo características proto-urbanas e onde a preocupação pela

salubridade era já evidente, denunciada por uma estrutura de planta circular desti

na-da à acumulação de detritos produzidos no interior do espaço habitado. Porém, o

período de florescimento e apogeu desta «cidade fortificada» foi efémero. Ainda no

decurso do Calcolítico Inicial se observa Já o declínio do povoado, o qual se acentua

notoriamente no Calcolítico Pleno: nessa altura, o dispositivo defensivo encontrava

--se quase ou mesmo totalmente desactivado e em franco estado de degradação.

O povoado sofreria também uma redução muito significativa no número dos seus

habi-tantes: de cerca de duzentos, calculados para uma área construída de aproxim

(23)

mediterrâneos da mesma época, a área habitada contrai-se, em torno do núcleo central da fortificação, no Calcolítico Pleno. As estruturas habitacionais evidenciam, por

seu turno, degradação da qualidade construtiva, acompanhando o declínio do povoa

-do: de construções de alvenaria argamassada, circulares, por vezes de assinaláveis dimensões, no Calcolítico Inicial. como uma cabana com cerca de cinco metros de diâmetro, no Calcolítico Pleno apenas se reconheceram estruturas perecíveis, feitas de materiais vegetais, de planta irregular, por vezes aproveitando troços de panos de muralha que ainda se mantinham de pé.

Porém, é neste contexto, de aparente e generalizada decadência, que o cobre faz a sua aparição, não tendo, pois, qualquer relação com a construção da fortificação. A demonstração cabal desta evidência, plenamente confirmada em Leceia, constitui outro dos contributos mais interessantes, a nível científico, proporcionados pela escavação da estação.

Importa, ainda que muito sumariamente, no âmbito e objectivos deste estudo, mencionar a traços largos as bases de subsistência, a vida económica, as caract erísti-cas sociais e os aspectos relacionados com o mundo mágico-simbólico das sucessivas gerações que habitaram a plataforma rochosa de Leceia; vejamo-Ias, sucessivamente. As catorze campanhas arqueológicas anualmente realizadas em Leceia, desde 1983, sob nossa direcção, conduziram a copioso conjunto de materiais estratigrafa -dos, bem como a numerosas observações de campo, que constituem a mais com -pleta referência para o estudo do processo de calcolitização da Estremadura. O re-gisto obtido evidencia a evolução «in loco», ao longo de mais de mil anos, de uma sociedade dinâmica e crescentemente complexa, explorando de forma cada vez mais aperfeiçoada os recursos naturais disponíveis, dos quais dependia, em última instância, a sua sobrevivência. Foi a aptidão agro-pastoril dos terrenos envolventes, rentabili za-da pelas melhorias progressivamente introduzidas ao nível das tecnologias de produção, que viabilizou a obtenção de excedentes económicos susceptíveis de s

upor-tar diversificada rede de permutas de matérias-primas com outras regiões. Trata-se,

pois, de uma comunidade economicamente aberta, sedentária e circunscrita a deter

-mi-nado território.

A caça, a pesca e a recolecção de moluscos - a captura do veado e do javali,

excepcionalmente do urso e do lince, documenta a existência de manchas florestais

(bosque mediterrâneo), pontuando espaços abertos, ocupados por pastagens

natu-rais, propícias à circulação de manadas de auroques e de cavalos selvagens, também

presentes nos inventários faunísticos.

Diversos anzóis de cobre, bem como numerosos restos de douradas e de par

-gos, comprovam a pesca à linha, no litoral do estuário do Tejo, em pequenas embar

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cações ou a partir da praia. O uso de redes é sugerido pela presença de diversos pesos de pesca, embora estes pudessem ser usados somente na pesca à linha.

O uso de moluscos na alimentação encontra-se bem documentado. Estes eram

facilmente recolhidos na enseada então formada pela confluência da ribeira de Barcarena com o estuário do Tejo e ao longo do litoral deste. Apesar da diversidade dos biótopos explorados, não seria necessário percorrer mais de 5 km, ao longo da costa, para se obterem todas as espécies de molucos identificadas.

A exploração de matérias-primas - Na zona do povoado e suas imediações, explorava-se o sílex cinzento, a céu aberto ou através de pequenos poços e galerias, permitindo produção diversificada de numerosos artefactos, desde pontas de seta a lâminas, raspadores, furadores, buris, denticulados e outros. Os basaltos, também

localmente disponíveis, permitiam o fabrico de picaretas, machados, mós e

percu-tores. Os calcários, que constituem o substrato geológico na área de implantação do povoado, foram usados sobretudo como materiais de construção. enquanto que as argilas, também disponíveis localmente, serviram não só para a indústria cerâmica, mas também como ligantes, em alvenarias argamassadas.

A captação e armazenamento da água - Desconhecem-se estruturas de ca p-tação, condução ou armazenamento da água. O local não era favorável à existência

52 de poços. A água seria obtida tanto na ribeira de Barcarena como, sobretudo, em nascentes situadas a pouco mais de duzentos metros do povoado, a uma cota supe-rior a Este, situação que permitiria, eventualmente, a sua canalização.

A agricultura - Três eiras de planta circular, das quais subsistiu o embasamento, feito de lages de pedra cuidadosamente ajustadas entre si, bem como a frequência de mós manuais e de elementos de foice de sílex, documentam a importância da agri -cultura cerealífera, potenciada pelo aproveitamento da tracção animal, que permitiu, talvez pela primeira vez, o uso dos férteis solos basálticos, muito pesados, partIcu lar-mente adequados a tais culturas, que desde então os caracterizou.

Ao longo do vale da ribeira de Barcarena cultivava-se a fava e o linho, espécies que, embora não reconhecidas em Leceia, foram referenciadas em outros povoados calcolíticos, como no de Vila Nova de São Pedro, por Afonso do Paço e A. R. Pinto da Silva. A horticultura é também sugerida pela presença de sachos de pedra polida, cUJos gumes atestam pancadas violentas, resultantes da cava do solo pedregoso.

Pastagens e animais domésticos - Os machados eram usados na criação de clareiras, destinadas a pastagens e a campos agrícolas. Apascentavam-se rebanhos de ovinos, caprinos e bovinos, os quais, conjuntamente com varas de porcos, se disper-savam pelos campos em redor do povoado, denunciando a plena manipulação de todas as espécies domésticas que actualmente são a base da nossa própria

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alimentação. Ao cão, também presente, cabia a função de guardador de rebanhos,

ainda que, esporadicamente, também pudesse servir de alimento. Alguns animais

domésticos forneciam também leite, tranformado em lacticínios, recorrendo-se a ci

n-chos de barro, apenas conhecidos no Calcolítico Pleno.

O comércio e as trocas de matérias-primas - A variedade de matérias-primas

identificadas, ilustra a pUjança económica das comunidades sediadas em Lecela. cUJos

excedentes de produção agro-pastoril, além do sílex. suportavam o estabelecimento

de permutas a curta. média e longa distância. favorecidas pela própria localização

geográfica do povoado. Dali dominava-se uma das prinCipais vias de penetração na

Estremadura. a partir do estuário do Tejo e. ao longo do grande rio peninsular, ace-dia-se tanto ao interior. como ao litoral oceânico adjacente.

Arenitos e granitos. obtidos na região de Belas ou de Sintra-Cascais. eram

utilizados para o fabrico de mós manuais. De região mais afastada, até Mafra. pro

-vinham rochas duras para a confecção de artefactos de pedra polida: dioritos. sieni

-tos, andesitos e gabros e ainda quartzo. feldspato e micas. utilizados como desengor-durantes na indústria cerâmica.

O sílex. abundante em Leceia. seria permutado em larga escala por anfibolitos.

disponíveis no Alto Alentejo e também nas Beiras, através da importante via

comer-ciai que era o Tejo e os seus afluentes. pressupondo vias de abastecimento estáveis e 53

duradouras. O abastecimento de matéria-prima tão específica. então estratégica.

oriunda de longa distância. configura um dos exemplos mais notáveis de comércio

trans-regional a longa distância. à escala europeia.

O cobre proviria, sobretudo. do Baixo Alentejo. sob a forma de pequenos li

n-gotes. transformados nos povoados por processos metalúrgicos primitivos. Com

efeito. a escassa disponibilidade de tal metal na Estremadura não permitia satisfazer

todas as necessidades.

Outros materiais duros seriam importados. de várias centenas de quilómetros de distância. como pequenos núcleos de quartzo semi-hialino. para o fabrico de lamelas.

além de lascas em bruto, estas da região de Rio Maior. transformadas em Leceia em

lâminas foliáceas e de pontas de seta de sílex jaspóide, oriundas do Alentejo. vindas

talvez por acréscimo com as rochas anfibolíticas. dali maciçamente importadas.

Usaram-se matérias-primas exóticas na confecção de adornos, como as apre

-ciadas contas de minerais verdes (variscites). importadas de centenas de quilómetros

de distância. A fluorite é outro mineral raro. usado para aquela finalidade. susceptível

de se obter em pegmatitos graníticos das Beiras ou do Norte do País. Enfim. o marfim.

representado em Leceia por objectos de adorno e de carácter ideotécnico. é de evidente

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comércio de matérias-primas de origem extra-peninsular, visto ser inviável admitir outras alternativas, como a de se tratar de marfim fóssil, de elefantes plistocénicos peninsulares.

Os artefactos do quotidiano - O sílex local. explorado em diversas oficinas

iden-tificadas a escassas centenas de metros do povoado, serviu para a preparação de

numerosos artefactos de pedra lascada: lâminas, furadores, raspadores, buris, ras

-padeiras, denticulados e micrólitos. Todos estes tipos ocorrem no Neolítico Final, persistindo ao longo do Calcolítico, embora com variações de frequência. As pontas de seta são sempre escassas, contrastando com a grande abundância em outros povoados fortificados. As grandes lâminas foliáceas surgem já no Neolítico Final, tor-nando-se abundantes no Calcolítico Inicial e, sobretudo, no Calcolítico Pleno; correspondem a tipo de artefacto com uso múltiplo, destacando-se o seu aprove

ita-mento como elementos de foice; assim sendo, o acréscimo verificado no Calcolítico

Pleno está de acordo com o processo de intensificação da produção, então verificado a

todos os níveis. Tais lâminas eram acabadas nos povoados, sobre lascas importadas

em bruto, ao contrário das peças de menores dimensões, cujos núcleos, ali encon-trados atestam, com frequência tal conclusão.

Observam-se maiores afinidades entre o conjunto de pedra lascada do

54 Neolítico Final e o do Calcolítico Pleno que entre este e o do Calcolítico Inicial. Deste modo. parece lícito concluir-se que os dois primeiros se encontram, res

pecti-vamente, nos ramos de desenvolvimento e de declínio de curva correspondente à

evolução das indústrias líticas lascadas representadas em Leceia, cUJo ponto culmi-nante seria ocupado pelo conjunto do Calcolítico Inicial.

Os artefactos de pedra polida encontram-se representados por machados, enxós, formões, escopros e cunhas, a maioria dos quais (cerca de 70%) fabricados em rochas importadas, de tipo anfibolítico. Alguns machados mostram reaproveitamento como percutores; outros, dificilmente se podem diferenciar dos sachos, a não ser pelos vestígiOS de pancadas violentas que ostentam. De salientar a presença de martelos de anfibolito com extremidades ocupadas por estreitas superfícies polidas, substituindo os gumes, destinados a trabalhos de precisão, entre os quais se poderá

considerar a martelagem do cobre.

Os artefactos de osso correspondem a abundante e diversificado conjunto, constituído por furadores, sovelas, agulhas, escopros, punhais e goivas. Os artefactos maiores deixam perceber os segmentos anatómicos e as espécies (boi, ovelha e cabra e, mais raramente, veado) de que foram obtidos. Excepcionalmente,

aproveitaram-se ossos de aves, com destaque para o ganso-patola, para o fabrico de

Referências

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