Quando seu Lolô...
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Kleber olhou seu irmão de viés. Tantã imitava, a meia-voz, o ruído das portas do metrô: “Piiii... clap”.
Um homem entrou no vagão e se sentou ao lado de Kleber. Segurava pela coleira um pastor-alemão. Tantã se agitou no assento.
– Ele tem um cachorro – disse.
O dono do pastor encarava o rapaz que acabara de falar. Um homem jovem de olhos azuis arregalados.
– Esse senhor tem um cachorro – repetia, cada vez mais agitado.
– Sim, sim – respondeu Kleber, fechando a cara para fazê-lo parar.
– Você acha que eu posso fazer carinho nele? – perguntou Tantã, estendendo a mão na direção do cachorro.
– Não! – latiu Kleber.
O homem olhava os dois irmãos, um após outro, como quem avalia a situação.
... arrebenta
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Marie-Aude Murail
– Eu tenho um coelho – disse o jovem de olhos claros. – Não fale com quem você não conhece – repreendeu Kleber. Em seguida, decidido, voltou-se para o homem com o ca-chorro:
– Desculpe, senhor, ele é deficiente mental.
– Um i-di-o-ta – corrige o outro, destacando bem as sílabas. O homem levantou-se e, sem uma palavra, puxou a guia do cachorro. Desceu na estação seguinte.
– Cuzão – resmungou Kleber. – Xiii... palavrão – disse o irmão.
Kleber deu um suspiro melancólico e olhou a janela. Nela, viu refletida a bela pose de intelectual com óculos redondos de aros finos. Mais calmo, acomodou-se no banco e con-sultou o relógio. Tantã, que observava cada gesto do irmão, puxou as mangas do agasalho, examinando os pulsos com ar preocupado.
– E eu? Eu não tenho relógio.
– Você sabe muito bem o porquê. Merda, é aqui! – Xiii... palavrão.
Kleber se dirigiu à saída e se voltou para trás no instante de descer. Tantã, que a princípio o seguira, estava parado.
– Depressa! – gritou Kleber. – Ela quer me cortar!
Kleber agarrou-o pela manga do agasalho e puxou-o para fora. A porta automática fechou-se atrás deles. Clap.
– Ela não me pegou!
Kleber pegou de novo o irmão pela manga e arrastou-o na direção da escada.
– Por que eu não tenho relógio?
– Você quebrou o seu para ver se tinha um homenzinho dentro, lembra?
– Siiiiiim – disse Tantã com ar extasiado. – E tinha?
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– Não! – urrou Tantã com a mesma alegria.
Ele estancou tão repentinamente diante da escada rolante que duas pessoas atrás dele trombaram e gritaram:
– Mas que coisa! Preste atenção!
Kleber puxou o irmão pela manga mais uma vez para obrigá- -lo a subir nos degraus em movimento. Tantã começou olhan-do apavoraolhan-do para seus pés na escada. Em seguida, mais tran-quilo quanto a seu destino, ergueu a cabeça.
– Você viu? – disse ao chegar ao topo. – Nem estou com medo. Por que é que não tem homininho dentro?
– É “homenzinho” e não “homininho” – corrigiu Kleber que-rendo pôr fim ao rosário dos porquês.
Ouviu seu irmão resmungar: – É homininho, homininho.
A teimosia de Tantã era algo bastante notável. Durante cin-co minutos ficin-cou entoando:
– Mininho, mininho.
Kleber olhou em volta, incerto quanto ao caminho a seguir. Fazia só quinze dias que estavam em Paris.
– Ainda é longe? – Não sei.
Kleber exasperava-se. Não reconhecia mais o bairro. Tantã parou no meio da calçada, cruzando os braços.
– Quero ver papai.
– Papai não está aqui. Ele está na casa dele em Marne-la- -Vallée e a gente vai para a... a...
– Atchim! – completou Tantã.
E começou a rir de sua piada superengraçada. Kleber sorriu. A idade mental de Tantã era de três anos, três anos e meio nos melhores dias.
– Estamos em Paris. Anda, vem, a gente precisa se apressar porque vai escurecer.
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Marie-Aude Murail
– Sim.
– Você sabe que eu posso matá-los com meu vervóler. Kleber abafou um riso de escárnio. Recomeçaram a andar. De repente, Kleber reconheceu a rua em que estavam. Era lá. No número 45 da Rua Cardinal-Lemoine.
– Ah, não – disse Tantã na frente da porta de entrada. – O que foi agora?
– Eu não quero, é a casa da mulher velhola. – Olha, é nossa tia-avó, é a irmã da mãe da... – Ela é feia.
– Ela não é muito bonita. – Ela fede.
Inseguro, Kleber aproximou a mão do painel eletrônico para digitar a senha de entrada.
– Então, é 4... 6...
– 4, 6, B, 12, 1.000, 100 – disse Tantã a toda velocidade. – Fica quieto. 4... 6...
– 9, 12, B, 4, 7, 12...
Kleber ficou olhando o teclado completamente abobalhado. – Aperta, aperta os botões! 9, 7, 12...
Tantã começou a apertar todas as teclas. A porta rangeu e se abriu.
– Ganhei!
Na verdade era uma senhora gorda que saía. Tantã a em-purrou para entrar.
– Não se deve empurrar as pessoas! – berrou Kleber. – Peça desculpas à senhora.
Tantã já havia subido cinco degraus em duas pernadas. Voltou-se e exclamou alegremente:
– Desculpe! A senhora é muito gorda para essa porta! E retomou a correria pelas escadas. Kleber tentou alcançá--lo enquanto berrava:
– É no terceiro! No terceiro!
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Tantã subiu os seis andares do imóvel, desceu mais quatro e subiu um. Finalmente parou diante da porta, com a língua de fora, arfando como um cão. Kleber encostou-se na parede um momento, tomado de grande cansaço.
– Você aperta a campainha?
Tantã, que temia o ruído da campainha, tapou os ouvidos enquanto seu irmão a tocava.
– Bem, eu já jantei – disse a velha senhora que abriu a por-ta. – A sopa dos velhos é às seis e meia. Os jovens talvez co-mam a qualquer hora, mas minha sopa tem hora. É às seis.
– Nhé, nhé, nhé – imitou Tantã, intrigado pelos grunhidos da velha.
– Que é que ele tem? – disse a tia-avó, levantando os braços como se fosse bater nele.
– Deixe, ele não é mau – respondeu Kleber.
– Eu, eu é que vou matá-la. Eu tenho meu vervóler!
Do bolso das calças, Tantã tirou seu revólver de plástico. A velha senhora soltou um grito.
– Uma arma! Ele tem uma arma! – De brinquedo – interveio Kleber.
– É, mas quem olha diz que ela mata de verdade. Cuida-do, quando eu fizer “pam”, você vai morrer. CuidaCuida-do, senhora
velhola!
Tantã apontou calmamente para a tia-avó, que se pôs a berrar de terror.
– Pam!
A velha senhora fugiu para a cozinha. Tantã olhou para seu irmão com um misto de surpresa e orgulho.
– Ela está com medo.
Em seguida, um pouco decepcionado:
– Ela não morreu. Eu, eu tenho uma faca, eu. – Deixa pra matar outra hora.