ÉTICA NA PESQUISA QUALITATIVA: ALGUMA COISA DE PARTICULAR?
Por Rui Tavares Maluf*
Ética e moral são dois conceitos da Antiguidade greco-romana que moldaram em larga medida o mundo no qual vivemos, mas parecem ter assumido contemporaneamente uma dimensão incomum em comparação a qualquer época anterior. Parece compreensível que tais conceitos ocupem um espaço muito maior na atualidade devido à interação entre os povos ter alcançado uma grandeza jamais vista em decorrência de ao menos três (3) fatores: 1) maiores e mais frequentes migrações pelo mundo levando junto culturas e tradições; 2) desenvolvimento das comunicações e tecnologias a esta relacionadas; e, 3) pessoas mais longevas aumentando o contato intergeracional. Tudo isso acarreta conflitos e a questão da ética a aparece justamente quando há divergências, enfrentamentos, dissabores causados por diferentes ângulos de se examinar uma questão.
Ora, se ética e moral se referem aos valores que temos sobre as mais diferentes questões da vida e particularmente do que se entende por justo e injusto, do que é certo ou não fazer, parece mais do que compreensível que esta tenha uma necessidade muito grande para todo o campo da atividade humana voltada para o conhecimento, pois em princípio o conhecimento está diretamente ligado ao novo, ao que ainda não é conhecido, e, portanto, pode acarretar (verdadeiramente ou não) a ideia de ruptura. Considerando a atividade de pesquisa o meio pelo qual se obtém grande parte do conhecimento e que em suas mais diferentes modalidades os indivíduos são as unidades geradoras dos dados, questões éticas estarão sempre presentes. E se os pesquisadores responsáveis não estiverem atentos às possíveis questões éticas, problemas sérios poderão advir comprometendo o próprio sucesso do empreendimento. É por isto que as entidades ligadas à pesquisa dispõem de códigos de ética, ou manuais1, que definam e recomendam como determinadas ações podem ou não ser desenvolvidas.
A pesquisa qualitativa apresenta uma particularidade em relação à quantitativa nesse assunto, se é que possível fazer uma rigorosa distinção entre ambas, porque a qualitativa envolve um maior contato entre pesquisadores e pesquisados, ainda que sob
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- A necessidade de códigos de ética, ou manuais, vale tanto para a pesquisa chamada científica como para as de outra natureza (de opinião pública e de mercado), podendo ter nomes variados tais como Guia de Boas Práticas etc.
esta denominação haja muitos métodos e técnicas. Por que a qualitativa envolve maior contato? Porque em geral os trabalhos desta área são mais demorados e o contato adquire uma personalização que na pesquisa quantitativa não se verifica. O pesquisador que precisa conhecer determinados hábitos de uma família sobre saúde eventualmente precisará acompanha-la em algumas de suas atividades domiciliares. Isso envolve um grau de disposição, de colaboração, diferente de alguém ser parado em uma esquina para responder a um questionário com perguntas fechadas que durará cerca de 10 minutos.
Três Momentos Envolvendo Ética
Ao menos três (3) momentos de uma pesquisa envolvem a observância de questões relacionadas à ética. Acompanhe: 1) O primeiro está na própria concepção da pesquisa, em seu problema e como abordá-lo. Os pesquisadores precisam antever as possíveis implicações do tema que abordarão; 2) no contato com a(s) pessoa(s) que será(ão) pesquisada(s), isto é, no trabalho de campo; 2.1) no perfil do entrevistador; 3) na forma como os dados (informações obtidas) serão tratados e divulgados. O terceiro item pode ser subdividido em dois (2), a saber: 3.1) em relação ao cliente (demandante da pesquisa); e, 3.2) os indivíduos e/ou organizações, instituições que foram entrevistados e/ou cederam arquivos e outros documentos relevantes para a pesquisa2. Se o pesquisador ou cliente ao divulgarem a pesquisa identificam um entrevistado ou outro dado por ele(a) entregue sem a sua autorização expressa trata-se de um embaraço que poderá gerar dissabor e até mesmo conflito3.
A quem diz respeito Ética na Pesquisa?
Mas a questão Ética abrange não apenas a relação com os entrevistados e sim com todos agentes envolvidos na pesquisa e, assim posto, o instituto de pesquisa tem de assumir a responsabilidade sobre os limites de sua ação. Isso significa ter eventualmente
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- Estes dois subitens podem ser em boa medida previstos na concepção e planejamento da pesquisa
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- A Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa (ABEP) deixa isso muito claro em seu Guia das Boas Práticas já em suas primeiras recomendações. Importante ressaltar que o documento não está fazendo referência à divisão pesquisa qualitativa e quantitativa.
de rejeitar a realização de uma solicitação caso tenha conhecimento de que isso pode ferir a legislação em vigor e/ou questão de outra natureza que acarrete danos a terceiros.
A concepção e o problema da Pesquisa
A concepção da pesquisa é essencial para que todos os passos seguintes possam ser dados com o menor grau de dificuldade possível, assegurando que o conhecimento esperado possa ser obtido de forma eficiente. Embora a concepção seja em tese um ato do contratante, é raro que este tenha total clareza do que precisa. E assim, cabe ao pesquisador (seja este acadêmico, empresa ou alguma outra entidade) contribuir fazendo a problematização de forma a assegurar um problema de pesquisa4. Ora, o problema de pesquisa proporcionará a formulação de perguntas que precisarão ser respondidas, algumas das quais na própria definição do problema, e, portanto, com a ajuda do contratante. Estas e novas questões estarão presentes na própria pesquisa e servirão para estabelecer um objeto de pesquisa e um (ou mais) objetivo(s) da pesquisa. No momento em que se define o objeto da pesquisa ficará mais claro o(s) método(s) a ser empregado e aí é haverá condições de se ter clareza das implicações éticas da pesquisa.
Produtos Femininos de Beleza
Suponha uma empresa multinacional de produtos femininos de beleza que deseja ingressar em pais de religião islâmica no qual Estado e Religião continuam praticamente interligados e no qual as mulheres cobrem praticamente todo o corpo e precisam de autorização de seus maridos, irmãos, pais ou outros responsáveis para poder se encontrar com pessoas desconhecidas. A multinacional e a instituição de pesquisa contratada são originárias de país no qual os homens e as mulheres são iguais em direitos e deveres e não estão acostumados a realizar trabalhos em países com tais características. Questões éticas estarão seguramente presentes em muitas etapas da pesquisa e se os responsáveis por leva-la adiante não tiverem grande cuidados o
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- Há seguramente uma diferença entre a pesquisa desenvolvida estritamente no âmbito da academia, sem qualquer vínculo com um contratante institucional, e a que é realizada sob contrato com instituição governamental e/ou da iniciativa privada. Os tempos de disponibilidade e as possibilidades de exigências tendem a ser diferentes.
empreendimento poderá fracassar. As questões que os responsáveis deveriam se colocar seriam as seguintes: 1) é possível fazer a pesquisa com razoável dose de sucesso? 2) Será necessário uma pesquisa exploratória? 2.1) Qual a probabilidade do contratante entender a necessidade de uma pesquisa exploratória e o impacto disso em termos de tempo e custos? 3) será possível abordar o público feminino direta e abertamente? 3.1) Em caso negativo, quais as alternativas? 4) Qual(is) o(s) melhor(es) método(s) para desenvolver a pesquisa (quantitativa ou qualitativa)? 4.1) Em caso da opção qualitativa, qual(is) seriam estes?
A questão Ética
Independentemente do breve exemplo que dei no parágrafo anterior, é importante ter presente que elementos da Ética impactam de forma clara a realização de qualquer pesquisa e, especialmente, a de caráter qualitativa.
Vamos acompanhar: 1) ética é alguma coisa que diz respeito a certo ou errado, justo ou injusto? 1.1) Certo ou errado, justo ou injusto é algo a ser entendido estritamente na lei vigente no local no qual a pesquisa seria realizada? 1.2) Questões relacionadas às noções de certo ou errado, justo ou injusto teriam relação direta com questões de gênero, etnia, religião, orientação sexual; 2) Existe em um dado objeto de pesquisa algum aspecto que afronte a legislação? 2.1) Em caso positivo da pergunta anterior, em que grau de importância a afronta se daria? 3) Haveria outros aspectos tão ou mais fortes do que a lei estatal a serem levados em conta, como, por exemplo, tradição? 3.1) Será que as próprias entidades que organizam (ou pretendem organizar) o mercado de pesquisa teriam de ser levadas em conta? 4) O grau de cooperação necessário do respondente é alguma coisa que tem a ver com a ética?
Reflexões
Parece fácil perceber que a ética é uma dimensão de razoável grandeza na pesquisa, mas talvez não seja tão fácil perceber que a ética seja sempre observada ou levada em conta em termos práticos da pesquisa. E talvez seja uma contradição da parte de quem escreve este texto afirmar que nem sempre uma questão ética deverá ser um fator a impedir a viabilização de uma pesquisa, mesmo que uma análise preliminar indique que a mesma estará presente. O que acabo de escrever é outra forma de afirmar que inexiste uma ética universal, ou uma lei geral a submeter todos humanos e suas
sociedades às mesmas regras. Por outro lado, parece necessário refletir e procurar responder se é possível viver sob uma relativização da ética, isto é, cada lugar (cada país, organização, etc) teria seu próprio código de ética. Ora, não será a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), e de outras instituições internacionais e multilaterais um passo na direção de uma ética universal? Ou ao menos de uma intenção nesta direção? Mais: sem que haja alguma disposição para enfrentar determinadas questões éticas é difícil que algum conhecimento avance. Por fim, haverá outra questão a ser respondida em outro momento, mas vale fazer mais uma pergunta: será que isso deve valer para toda e qualquer pesquisa que se julgue como proporcionando um conhecimento novo?
*RUI TAVARES MALUF – Cientista político. Professor da FESPSP. Fundador de Processo & Decisão Consultoria. Doutor em ciência política (USP, 2006). Mestre em ciência política (UNICAMP, 1993).
PALAVRAS-CHAVES (TAGs): - Certo, código de ética, costumes, errado, ética, justo, injusto, métodos qualitativos, moral, pesquisa de mercado, pesquisa qualitativa.
Referências Bibliográficas e outras Fontes de Informação
ABEP. Guia das Boas Práticas. Sugestão para divulgação de pesquisas. In.
http://www.abep.org ;
FLICK, Uwe. Introdução à Pesquisa Qualitativa. Boobkman. 3ª edição. Porto Alegre. 2009.
MALHOTRA, Naresh – Pesquisa de Marketing. Uma orientação aplicada. Bookman. Porto Alegre. 2001.
ZAMIL, Ahmad m Ahmad e KHRAIM, Hamza Salim. Marketing in Islamic
Countries: Challenges and Opportuinites. In. Research Gate.
