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NÓS DESENVOLVÍAMOS A IDEIA DE UMA DROGA... ENQUANTO ISSO, NÓS 1

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Academic year: 2021

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NÓS DESENVOLVÍAMOS A IDEIA DE UMA DROGA... ENQUANTO ISSO, NÓS

PRECISÁVAMOS DE UMA PATENTE1♦

Ivan da Costa Marques

Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia Universidade Federal do Rio de Janeiro

imarques@nce.ufrj.br

Resumo

Este artigo adere à “sociologia da tradução” ou a assim chamada “teoria ator-rede” para fazer uma avaliação crítica do filme “O ciclo de vida da inovação”, uma peça de propaganda oficial da empresa Thompson Reuters. O filme faz uma apresentação dramatizada do desenvolvimento de um artefato imaginado de alto apelo emocional, “uma pílula que salva vidas”, como um processo linear que progride de um estágio isolável e bem definido para o próximo. Em meio a esta progressão por etapas, a necessidade de concessão de patentes aparece como uma condição​sine qua non para a criação de conhecimentos científicos e tecnológicos. Resta então a provocação: esse entendimento dos fazeres científicos e tecnológicos divulgado pela Thompson Reuters favorece a ampliação desses fazeres no Brasil?

Palavras chave: divulgação científica, modelo de desenvolvimento científico,

propriedade intelectual, patentes, Thompson Reuters

Introdução

O “Ciclo de Vida da Inovação” produzido pela empresa Thompson Reuters é uma2 peça de comunicação perfeitamente acabada que dramatiza a utilidade das ciências e das tecnologias modernas com a finalidade de apoiar o direito à propriedade intelectual como algo imprescindível para o estabelecimento de conhecimentos 1♦​ Apresentação deste texto será acompanhada da exibição do filme “O ciclo da vida da inovação”

produzido pela empresa Thompson Reuters, disponível em

https://dl.dropboxusercontent.com/u/23492126/Thompson%20Reuters%20Intellectual%20Prope rty%20and%20Science%20%28legendas%20em%20portugu%C3%AAs%29.avi

2 “Como empresa líder mundial no campo de notícias e informação, nós alcançamos mais de um bilhão

de pessoas mundo afora com a cobertura Reuters News e provemos ​insights e notícias atualizadas ao último minuto para todos os profissionais que servimos.” Fonte: http://thomsonreuters.com/ Accesso em 01⁄04⁄2014.

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científicos e tecnológicos. À primeira vista, quem assiste o filme tem dificuldade para exercer um olhar crítico sobre o modelo linear, muito popularizado, que o filme traz. Com efeito, nas ocasiões em que estudantes brasileiros viram o filme em sala de aula, observei que a primeira reação preponderante foi de admiração, confirmação e reforço acrítico das maravilhas da criatividade científica em geral. Em contraste com esta visão, este artigo pretende fazer uma avaliação crítica do filme.

No filme, a representação dramatizada de como se faz e obtém um efeito “mágico” da ciência, uma pílula que salva vidas, incorpora sutilmente o direito à propriedade intelectual como uma condição necessária para a realização dos efeitos benéficos que o desenvolvimento tecnocientífico pode proporcionar. Este artigo recorre à “sociologia da tradução/translação” ou à assim chamada “teoria ator-rede” para3 criticar esta imagem de uma estrada reta que vai de uma ideia a um artefato e o uso desta imagem pela Thompson Reuters para defender certos mecanismos de atribuição de créditos nos fazeres científicos e tecnológicos.

“Sociologia da tradução/translação” ou “teoria ator-rede” são expressões cunhadas na década de 1980 que se referem a abordagens dos estudos de ciências, tecnologias e sociedades que de muitas maneiras resultaram dos “estudos de laboratório” daquela década. Não vou aqui tentar oferecer um quadro mais inclusivo4 das sociologias constituídas após os “estudos de laboratórios”. Eu vou me ater a um ângulo específico destas sociologias, qual seja, um evento acontece ou ações ocorrem quando interesses heterogêneos de diferentes atores heterogêneos são 3 A expressão se origina na língua inglesa (“sociology of translation”) e sua tradução para o português

impõe um problema. A palavra inglesa “translation” tem dois significados: “tradução” e “translação”. Ambos os significados, inseparáveis na mesma palavra inglesa, são igualmente pertinentes para justificar a expressão “sociology of translation”. Por este motivo adotei aqui a forma pouco elegante “tradução/translação”.

4 Os agora clássicos estudos de laboratório são Knorr-Cetina, K. (1981). ​The manufacture of knowledge

: an essay on the constructivist and contextual nature of science​. Oxford ; New York, Pergamon Press., Latour, B. and S. Woolgar (1986). ​Laboratory life : the construction of scientific facts​. Princeton, N.J., Princeton University Press., Lynch, M. (1985). ​Art and artifact in laboratory science : a study of shop work and shop talk in a research laboratory​. London ; Boston, Routledge & Kegan Paul. and Traweek, S. (1988). ​Beamtimes and lifetimes : the world of high energy physicists​. Cambridge, Mass., Harvard University Press.. Dentre outros textos muito influentes sobre o assunto estão Callon, M. (1986/1999). Some Elements of a Sociology of Translation: Domestication of the Scallops and the Fishermen of St. Brieuc Bay (1986, abridged 1998). ​The Science Studies Reader​. M. Biagioli. New York, Routledge​: 67-83. e Law, J. and J. Hassard (1999). ​Actor network theory and after​. Oxford [England] ; Malden, MA, Blackwell/Sociological Review..

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“traduzidos/transladados” para uma mesma proposição. Em um exemplo ilustrativo de uma tradução/translação, Bruno Latour escreve sobre uma série de deslocamentos aninhados, um no outro, ao redor de derrota francesa na guerra franco-prussiana no século XIX. Em 1871 ofereceu uma nova alternativa para a explicação do desastre militar: Os franceses foram derrotados pelo melhor estado de saúde dos soldados alemães. O colunista então explicou que esta saúde melhor era devida à superioridade científica da Alemanha que por sua vez derivava do melhor financiamento às ciência e tecnologias na Alemanha. Na continuação, o colunista diz ao seu leitor que a assembleia francesa estava, naquele momento, cortando fundos para a ciência básica. Assim, nenhuma vingança seria jamais possível sem dinheiro, dado que não há ciência sem dinheiro, não há soldados sadios sem ciência e não vingança sem soldados sadios. O colunista conclui sugerindo ao leitor o que fazer: escreva ao seu parlamentar para fazê-lo mudar o voto. Latour conclui que “o mesmo leitor que estava pronto para pegar sua arma e marchar para a fronteira para bater os alemães, estava agora, ​com a mesma energia e sem ter se afastado do seu objetivo

​ , escrevendo uma carta indignada ao seu parlamentar!” (Latour

1987:116-117). (ênfase no original)

A seguir realço as diversas traduções/trnslações que o filme mobiliza e uma tradução/translação que é especialmente digna de nota, sintetizada na frase “nós desenvolvíamos a ideia de uma droga... enquanto isso, nós precisávamos de uma patente”.

“O ciclo de vida da inovação” exibe uma sequência de discurso linearmente encadeada de uma “paciente” para “pesquisador” para uma “especialista em P&D” para um “desenvolvedor de drogas” e finalmente para um “advogado especialista em propriedade intelectual”. A paciente começa dizendo que antes de salvar a vida dela a pílula foi fabricada por uma empresa farmacêutica depois que um cientista a descobriu, e que antes disso a pílula era uma ideia. A paciente então convida quem assiste o filme a ver o que aconteceu no trajeto entre a ideia e pílula. O cientista entra em cena para explicar que a pílula era uma ideia que ele teve quando descobriu uma proteína na saliva de um sapo da Amazônia. Depois o cientista então apresentou a sua descoberta em um simpósio onde uma especialista em P&D

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estava na audiência. O cientista e a especialista em P&D entraram em contato, ela verificou o potencial da ideia e pediu ao departamento de desenvolvimento para averiguar se outra companhia estava trabalhando com a mesma ideia. Esta tarefa foi executada não pelo cientista, que sai de cena, mas pelo desenvolvedor de droga que estudou a competição antes de desenvolver a pílula, e ao mesmo tempo se deu conta de que eles precisavam de uma patente, o que é ecoado pelo advogado especialista em propriedade intelectual. Exceto a paciente, todos os outros personagens são representados como profissionais desempenhando funções especializadas muito bem definidas no trajeto que vai de uma ideia até um produto bem sucedido no mercado. Ao final, a paciente entra novamente em cena para realçar que a disponibilidade da pílula salvou sua vida.

Metodologias

“O ciclo de vida da inovação” apresenta um modelo linear de construção ou entendimento de como os conhecimentos científicos e tecnológicos são estabelecidos. Toda uma gama de “estudos de laboratórios” desde a década de 1970 mostra que este modelo de desenvolvimento tecnocientífico é uma idealização

bastante insatisfatória de como se dá a criação de conhecimento

científico-tecnológico. A divisão do processo em fases paradigmáticas de fronteiras identificáveis como, por exemplo, descoberta, desenvolvimento e uso, adotada no filme, é vigorosamente criticada. Este modelo linear é, com efeito, uma construção sociotécnica que marca fronteiras para definição de indivíduos (pessoas, empresas, instituições), funções e méritos nos fazeres científicos-tecnológicos. O modelo linear ainda preponderante mais serve a uma certa maneira de administrar e distribuir recursos do que ao entendimento de como se dá a criação do conhecimento tecnocientífico. E será que esta maneira favorece a ampliação dos fazeres científicos e tecnológicos no Brasil?

Diante dessa pergunta, é relevante realçar que atualmente há amplo reconhecimento de que o modelo linear é por demais reducionista. As atividades

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científicas-tecnológicas não acontecem desta maneira tão simplificada. A metáfora visual ou ideia prevalecente para a construção de conhecimentos tecnocientíficos modernos nos estudos recentes de ciências-tecnologias-sociedades (​Science

Studies

​ ) não é a de uma linha reta (forma linear) que parte de uma ideia e chega a

um fato ou artefato, nem mesmo a de uma árvore (uma forma estrutural), mas sim a de um rizoma. A construção de conhecimento científico e tecnológico é densamente5 aderente ao terreno onde se processa, aproveitando todo acidente que seja parte deste terreno onde o que é dito social (parte da chamada Sociedade) e o que é dito natural (parte da chamada Natureza) forma uma rede sem costura. Contudo, apesar das críticas vigorosas e das numerosas citações perfunctórias, especialmente de seu autor mais conhecido, George Basalla, o modelo linear ainda organiza muitos, se não a maioria, das expressões sobre ciências e tecnologias.

Resultados

O cenário do filme traduz/translada o modelo linear em tipo de galeria que lembra uma estação de metrô onde atores profissionalizados se sucedem na cena um após o outro como se houvesse fronteiras sucessivas naturalmente bem demarcadas entre campos especializados.

✓ Inicialmente, uma mulher jovem e bonita traduz/translada a salvação de sua vida para uma pílula, um artefato tecnocientífico.

✓ Completando a tradução/translação individualizada da mulher, um cientista traduz/translada uma proteína que ele encontrou na saliva de um sapo da Amazônia para a salvação de milhões de vidas.

✓ Um especialista em P&D traduz/translada a salvação de milhões de vidas para uma oportunidade de negócio.

✓ Um desenvolvedor de drogas traduz/translada a oportunidade de negócio para uma pílula.

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✓ O advogado especialista em propriedade intelectual traduz/translada a pílula para uma marca, uma propriedade intelectual, um conhecimento científico e tecnológico de propriedade e privada, e sutilmente afirma que esta tradução/translação é necessária.

✓ A mulher jovem e bonita volta para encerrar e amarrar a tradução/translação da pílula, ​um artefato tecnocientífico agora necessariamente patenteado​, para a salvação de sua vida.

Discussão

A série de traduções/translações passo a passo é organizada para sustentar a proposição, nunca explicitamente enunciada, que as patentes são necessárias para a existência de pílulas de salvação. A primeira tradução/translação, uma pílula salvou minha vida, é muito vaga e deixa espaço para muitas leituras e apropriações. Ele não é incompatível com fabricantes farmacêuticos estatais, por exemplo. Assim o filme faz outras traduções/translações para completar um quadro referencial mais especificado. A noção de descoberta é invocada e ela facilita a atribuição de mérito, e se você tem mérito atribuído a uma entidade individualizada isolada, seja uma pessoa, empresa ou instituição, então você está a um passo de conceder uma propriedade àquela entidade isolada. Está montada a situação apontada por Bruno Latour: “o vencedor ganha tudo”. 6

Conclusão

Da mesma maneira que o colunista francês traduziu/transladou o desejo de vingança do povo francês para mais verbas para pesquisa científica, Thompson Reuters traduz/translada o desejo de salvação presente em cada um de nós na necessidade de direitos à propriedade intelectual. Assim como faz o texto do

6 Veja “o mecanismo secundário de atribuição de crédito” (“the secondary

mechanism of attribution of credit”) em Latour, B. (1987). ​Science in action : how to follow scientists and engineers through society​. Cambridge, Mass., Harvard

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colunista, “O ciclo da vida da inovação” faz com que o interesse por uma pílula curativa seja alinhado com o interesse na concessão de patentes aos desenvolvedores de drogas. As patentes são uma maneira específica de ordenar o acesso ao conhecimento. Não se pode dizer que as patentes são boas, ou que elas sejam más, mas certamente se pode dizer que elas não são neutras. Elas participam ativamente de distribuições de acesso a conhecimentos que facilitam ou dificultam diferenças muito relevantes no espaço e no tempo. Recentemente, Marijn Dekkers, um executivo chefe da Bayer, disse que essa empresa farmacêutica “não desenvolveu sua droga contra o câncer, Nexavar (sorafenib), para a Índia e sim para pacientes ocidentais que podem pagar por ela.” 7

As patentes são entidades sociais, políticas e históricas, mas este tipo de tradução/translação contribui para que as patentes pareçam entidades “naturais”, de modo que, aos poucos, outras formas concorrentes de ordenar o acesso a conhecimentos têm sua existência dificultada. Agora, como (MacKenzie 1990) insiste, as pessoas não se mobilizam em oposição ao que elas veem como entidades naturais com a mesma energia com que elas se mobilizam contra o que elas veem como situações políticas ou sociais com as quais elas não concordam.

Referências

Callon, M. (1986/1999). Some Elements of a Sociology of Translation: Domestication of the Scallops and the Fishermen of St. Brieuc Bay (1986, abridged 1998). ​The Science Studies Reader​. M. Biagioli. New York, Routledge​: ​67-83.

Deleuze, G. and F. Guattari (1995). ​Mil Platôs 1 - Capitalismo e Esquizofrenia​. Knorr-Cetina, K. (1981). ​The manufacture of knowledge : an essay on the constructivist and contextual nature of science​. Oxford ; New York, Pergamon Press. Latour, B. (1987). ​Science in action : how to follow scientists and engineers through society​. Cambridge, Mass., Harvard University Press.

7 LaMattina. 2014. Does Pharma Only Develop Drugs For Those Who Can Pay? Disponível em:

http://www.forbes.com/sites/johnlamattina/2013/12/05/does-pharma-only-develop-drugs-forthose -who-can-pay/ (acesso em 15⁄04⁄2014)

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Latour, B. and S. Woolgar (1986). ​Laboratory life : the construction of scientific facts​. Princeton, N.J., Princeton University Press.

Law, J. and J. Hassard (1999). ​Actor network theory and after​. Oxford [England] ; Malden, MA, Blackwell/Sociological Review.

Lynch, M. (1985). ​Art and artifact in laboratory science : a study of shop work and shop talk in a research laboratory​. London ; Boston, Routledge & Kegan Paul. MacKenzie, D. A. (1990). ​Inventing accuracy : an historical sociology of nuclear missile guidance​. Cambridge, Mass., MIT Press.

Traweek, S. (1988). ​Beamtimes and lifetimes : the world of high energy physicists​. Cambridge, Mass., Harvard University Press.

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