9261
C81%M8
THE
LIBRARY
OF
THE
UNIVERSITY
OF
CALIFÓRNIA
(^
^
Jaíi^t
(orteào
/
Joeiíja
ícroico
Em
Preparação:
cJai/ae
Cortesão
A
Morte
da
Águia
Poema
heróico
em
Vilcantos
1910
Livraria Editora
GUIMARÃES
&
C.^
68,
Rua
de
S.Roque,
70
Lisboa
CANTO
Io
despertar
de
um
deus
Nasceu
a ÁguianaMontanha.O
ninho foihórrida brenhaNuma
caverna exposta aos ventos,—
Hirta e petrificada boca,Por onde
uma
Sibila de voz roucaPredizao
Mundo
os novossofrimentos.-Átrio doCeu, assenta
numa
rocha,Que
arranca daMontanha
e desabrochaComo
uma
florem
plena imensidade;Do
pétreocalix,das entranhasvirjens,Sái
um
perfumetal, que dávertijens.12
O
DESPERTAR
DE
UM
DEUS
Nicho decatedral, abandonado,
E
penhascosobaldaquinoarmado,Sem
queum
pobresantinho aliseacoite;Ou
dondefojealgum lijeiro santoTentado pelo Céu, e vôa tanto
Que
só recolhelá poralta noite.Átrio do Ceu, pra que entre esaia o Dia
;
E' lá que aAurora se atavia
Para mostrarao
Mundo
o clarorosto;Átrio do Azul quea
Madrugada
escolhe,Também
ali se acolheO
derradeiro raio do Sol-posto.De
tam alto,sublime, etéreo assento,Com
que arrebatamentoO
olharagudo se estendiaao largo:
Píncaros, vales, azulados, montes. . .
Líquidos horizontes. . .
O
volutuosoabraço do Mar-largo. . . !Mal
aÁguianasceu.Fitou logo a Montanha, o
Mar
e oCeu
:A
Morte
da
Agu
a
13Que
nuncao seu profundo coraçãoSentiu Desejo, Dôr, ou
Comoção,
Que
envergonhasseaquele espaçoimenso.Olhar d'um deus que acorda
De
tristeehumano
sonho, e que recordaA
sua gloriosa, eterna Vida,E
ao versua divina Creação, Dentro desiretineacomoção
De
toda a imensidade comovida.Abismos,onde as cataratassoam,
Vales emontes. Mar, nuvens que voam,
Ninguém
vosso desejo imenso acalma;Nenhum
de vós, erguendoamesma
prece,A
simesmo
ouaos outros seconhece:Só
osdeuses entendem a voss'alma.Águiadivina,que entendeste o
Mundo,
Tu
vistecomo
oCéu
eraprofundoE
oMar
inesgotável.Que
tudo éVida etoda a vidaéLuta,E, que arrancandoa cada coisa viva
14
O
DESPERTAR
DE UM
DEUS
Em
ti retinisteas forçasmais extranhas,Tal a firmeza
duma
rocha bruta,A
vontade tenaz d'arvorealtiva,O
arranco vitorioso das montanhasE
o ímpetodum
rio oudum
vulcão.Ah
! quandoo abismo mais era insondável. Maisteu Desejo tinha de aflição,Te
erguia o vôo, te crispava a garraNum
supremo
transporte ;Como
um
navio que ao soltar daamarraToma
orumo
da Morte,Vira arobusta proaá imensidade
E
largatoda a velaáTempestade,A
quantos ventosha do Sulao Norte,Para que ao
menos
roto, espedaçado.Algum
destroço, indaanimado Daqueleanceio etéreo,Vá
sobre asaguas a boiar,E
emfimpossa aportarCANTO
IIHino
á
Montanha
Ai! a
Montanha
! que sublime esforçoLhe
agitao formidável dorsoE
faz que altíssima seeleve,Rasgando
atodaalturao horizonte,Té
que lhe cinja a majestosa fronteUm
diademapuríssimo de neve!As
cúpulas^ as grimpas arrojadas.Flechas eguais ás línguasdas espadas,
Agulhas,obeliscos,coruchéus
Vestiram-sedenítidasalvuras
E
sequiosos das alturas20
Hino
á
Montanha
Montanha, arripiadafera hirsuta,
Inda raivosa
duma
antigaluta,Tu
sufocaste^ derradeirogrito,E
tu petrificaste, jestohorrendoDa
Terratodaem
fogo percorrendoAs
frijidasstepas do Infinito.Passaramanos, séculos, edades,
E
semprechuvas, neves, tempestades, Granizos, avalanches, cataclismosForam
aqui rasgando, abrindo brechas.Alierguendo pontes e altasflechas
E
aqui, ali, alémcavando abismos.Assim
aTerra, a Agoa, oFogo, os Ventos,Todos
osbravos elementos.Com
o cinzel eo estroda loucuraDeram-lheo rasgo, a inspiraçãosuprema,
O
ritmod'um bárbaropoema
Ou
duma
desvairadaarquitetura.Ah
!...quem
de perto vissee penetrasseO
atónitofulgor da pétreaface,A
Morte da
Águia
21Quem
ouvissepulsar-lhe o coração,Soubesse quesublime
comoção
Perturba oseio da calada esfinje...?!
Eu
quando poisoo pé sobre aMontanha
E
avisto oCéu
eoMar
deerguida penha,De
súbito estremeço,Fico
mudo
de espanto, empalideçoE
logo grito,canto, choro erio,Tremo
como
seum
ventome
abalasse.Ou
aMontanha
á voltame
enviasseO
seu calafriante desvario.Ás
vezes no caóticotumultoDos
acidentesdaMontanha
Algum
arranca ovulto,Projeta asombra extranha
Na
faucedoInfinito.Em
torno anoiteescura;Só
o relâmpago fulguraNo
torvo Céu, onde não brilham astros;E
um
navio—
fantasma, a todo o pano,Varrido pelo vento e pelo Oceano, Por Velas nuvens, píncaros por mastros.
^22 Hino
á
Montanha
E
naufraga por fimdesarvoradoNalgum
abismoignoto!
Ou
formidável catedralBaqueia, treme^ abate-seafinal
Nas
torvas convulsõesdum
Terramoto!•
Toda
aMontanha
oscila defurorQuando,
como
coléricofulgorDa
pupilado Céu,Algum
relâmpago ilumina o espaço,Que
o raio atravessa-lhe oespinhaçoComo
um
agudoarpéu.E
nessa luzlívida efriaO
leviaíanenorme
ondula,E
numa
hórrida agoniaTem
calafriosna medula!Visionam-se batalhas
Sobreciclópicasmuralhas Entrehipogrifos e dragões;
Ou
nos inóspitos CalváriosRochedos
—
Nazarenos solitários,A
Morte da
Águia
23Ha
rochas ajoelhadas,Religiosamente concentradas
Á
beiradas encostas ;Rochedos ojivais
Imploram de
mãos
postas ;Punjentissimos ais,
Dilacerados gritos
Sam
os agudos coruchéus;E
os abismosvoltados paraosCéus
Estam
erguendoa almaaos infinitos.Os
áridos granitos,Rudes
fragas, plutónicas, curvadasNo
seu fervor de humildes consciências,Com
seus cilícios d'urzes requeimadas,Estam
cumprindo duras penitencias.Sonhos de Deus, esboços doSublime,
Formas
da primitivacreação!Continuamente vosoprime
A
dôrda imperfeição!Montanha
! étam profundaa tuadôr,Tam
grande o teu impulso redentor,24
Hino
á
Montanha
Que
cada pesadissimo rochedo,Inabalável^ taciturnoe quedo Tenta baterasasas!
E
tudo se debateetumultuaCom
um
tremendo esforçosobreumano
Nessapetrificada Babilónia:
És
acarne sangrenta, rocha núa,O
teu sossego—
um
revolver insano,O
teusilencio—
uma
contínuainsónia.Resto do
Caos
primitivo.Encapelado
Oceano
De
tudo oque hatrajicamentevivo !Ali
—
talvez a forja deVulcanoOnde
ébatidoo raiofulgurante;Ali
—
talvez o pórticodo Inferno,Onde
o génio deDanteFoi esculpiro desenganoeterno. Ali sedesagregam duras fráguas,
Roídas pelaságuas
De
persistente força corrosiva;
A
Morte da
Águia
25Jamaisolvidaram pelas planuras
A
ânsiaprimitiva.A
rocha que sefunde esederramaEm
terra, sedimento, escuralamaVai daraiz áflor desabrochar,
E
aságuas que desceram das pendentesForam
quedas, ribeiros e torrentes,Por
fimondasaltíssimasdoMar
!Ali, emquanto nãoassola a Terra,
Nas
gargantas da serraEnsaiaa
Tempestade
os grandescoros;E
sobre os píncarosagrestes,Vagabundos
celestes,Vam
descansar emfim os meteoros!
Ali
—
tudo o que égrande, forte, altivo:A
Águia poisa, anuvem
pára,O
ar épuroe vivoO
Céu
é mais profundoe aluz maisclara!
Cariátide do Céu, Atlas gigante.
26 Hino
á
Montanha
Que
heroismos,que assombrosLevantama nossa almadelirante,
Ao
vêrque degladias oInfinitoE
vem
oCéu
poisar-tesobre oshombros
!
Ás
vezes ilumina-seo teu dorsoNo
gestotranscendenteda verdade,Gesto queensina a religiãodo esforço
E
apontaparaum Céu
de Liberdade!Heróis! unji as almasde beleza
E
erguei dali na luz e na grandezaDestroçosfeitos por
um
deuscruel:Os
broqueis dos ciclopesrevoltados,Armas
partidas d'anjosdespenhadosCANTO
IHA
Árvore
Trájica
No
píncaro maisalto daMontanha
A
Árvorecrescera de tal sorte,Como
nunca se viu serratamanha,Nem
crescer outraÁrvore maisforte.Ali, dessa
Montanha
erguida a prumo,Onde
o frescor da vida eratam escasso,A
Tempestade
decedia orumo
32
A
Árvore
Trájica
Lonjedas mais elivre doescarcéu,
Que
uma
florestamurmura
produz,A
Árvore embebia-se no Céu, Afogava-se todaem
plena luz.Isoladanoagreste e duro serro,
Tendo
porcimaoCéu,por baixo oabismo.Era
como
os profetas no desterroAbrasados defé e misticismo.
Tinha o tronco torcido
como
um
dorso,Cada
forteraiz,um
duroflanco;Toda
vibrantedum
heróico esforço,Toda
ajitadadum
supremo
arranco.Cada
torcidoramo, longo braço,Erguia-seconvulso para o alto.
Como
quem
tenta erguer-se pelo espaçoOu
tomarum
reduto pelo assalto.Assim, desdea raizaofino tope,
Brandido
como
a línguaduma
espada.Havia o salto heróico
dum
ciclope.A
Morte da
Águia
35Nos
ramos tinha roscas reluzentes,Altasarrancas a silvar injúrias;
Lembrava
a copa, atrança de serpentes—
A
cabeleira trájicadas Fúrias—
.
Folhas bebendoa luza grandessorvos
Pelataçado
Céu
a trasbordar,Tam
negras,taminquietas,como
os corvos,Quando
pairamcom
fome
sobre o ar.Via-se o Sol a dar-lherepelões,
A
Terra a conserva-laindamais presa.Penetrava d'angustia os corações.
Chegava
a ser sinistra de grandeza; Assim, alguém quefoi sepultoem
vida,A
meio corpofora, se corcovaE
põea força toda na saída^Louco
por se arrancar á horrívelcova!De
noite projectava a sombra escuraEm
plena fauce lôbregadoEmpíreo
;E
viam-se-lhe gestos de loucura,54
A
Árvore
Trájica
E, quandonessaabobadapelájica
Galopavam
os ventos infinitos,Aqueladesvairadaárvoretrájica
Alucinada, alegre, dava gritos.
Se, naceleste, na profundaesfera,
Erguendoosbraçoshirtos
como
osmastros,Caíaa noite, vinhaa Primavera,
Vestindo-a toda
com
as flores dos astros.E
toucadade sois ela ajoelhava.Sacerdote do Azul, árabecrente.
Naquelatorre audaz, feita de lava,
Abrindo osbraços para a luzdo Oriente.
Falas ardentes dos heróisde
Homero
E
tu, oh ! almatrájica de Esquilo,Paraque possa interroga-la, quero
A
Morte
da
Águia
35«Hérculesvejetal,
em
quefaçanhaE
temerária empresate empenhaste,Que
ao píncaromais altodaMontanha
O
teu robustocorpoabalançaste...?!»«Que
hidra,quemonstro,ouOnfalete eleva,Te
obriga a suportar todo o pavorE
desoladasolidãodatreva.Que
raiva, que desejo, ou quefuror...? !»«Ou
seja que, até nós,venham
contigoNovas
tormentas, novo Adamastor...? !E
queem
silencio sofraso castigoDe
rebeldia e desvairadoamor
...?!» «Suspendei pormomento
afúria louca(Se
me
podeis ouvir e sefalais)Tornai maisbrandaa endurecida boca,
Abri os rudes lábios vejetais.»
«E
olhai, que tendo formae corpo vário,Podemos
ser irmãos pelo tormento: Eu,como
vós, sou duro e solitário56
A
Árvore
Trájica
Então (ainda tremo deconta-lo)
Torceu-se mais na trájica atitude,
Correu-atoda
um
temerosoabalo,Mais alto ergueu ainda ocorpo rude, E,abrindo os braços ríjidos
em
cruz.Falou; ea sua clara vozdizia:
«Eu
sou a crente mística da LuzEternamente anciosa pelo Dia.»
«Nasci do mais informe eescuro lodo ;
Mas, ponhao Sol
em
mim
beijosfelizes,Estremece-me evibra o corpo todo
Até ao mais profundo dasraízes.»
«Posto que viva na mais altaserra,
É
certo que nasci do lodo vil;
É
semprecela estreita—
a largaTerra,A
Morte
da
Águia
37«Não
ha robustotronco poraltivoQue
a cúspidemais livre se arrojasse,Mas
quanto maisa Vidaintensavivo,Tanto deparoa
Morte
facea face.»«Oh
! queaflição,quehorror, ficarsósinho.Todo
afogadoem
treva pela noite,Emquanto
o vento passaem
redemoinho,Despedaçando
em mim
o aéreo açoite. .. !»«Os meus
irmãosdo bosque, seanoitece,Buscam-se
com
a longa ramaria,Povo
que pelotatose conhece,E
fazem unsaos outros companhia.»«
Mas
eu, se a noite cái, tremo demedo
;E
como
sóem
pedras durastoco.Começo
a empedernir, volto a rochedo,Fíco-meinerte e solitário bloco.»
«Só
quandorompe
o Sol demadrugada
De
novocorreem mim
a seivaquenteE
o tronco, feitopedra rejelada,38
A
Árvore
Trájica
«E
eu que doclaro Sol edaLuz
vivo,Alargoa imensa copa
em
plenagraça,Sôfrego beboa luz, alegre ealtivo,
Sou
único a beber na minhataça.»«Sim, escolhi o píncaro mais alto,
Enraizei-me, quieta e recolhida;
E
quanto maisme
afundo, maisme
exalto,Mais
em mim
bate o coraçãoda Vida.»«Aqui trazemmaisímpetoas rajadas.
Mais podeo raiorápido ferir-me;
Não vem
cantar-me as aves nas ramadasE
astrepadeirastremem
de florir-me;»«Sou por duros trabalhoscombatida
Desta
Montanha
na elevadaaresta,Mas
vale maisuma
hora destaVidaQue
toda avossa vidada Floresta.»«Que
brilheo raio e sopre o ventoforte. .xMais o
meu
livre coração seexpande;Quanto
mais perto da fecunda Morte, Tanto maissintocomo
a Vida égrande.»A
Morte da
Águia
39«Maisluz!... que o
meu
espíritovelozVôo
mais livreemais sublime ensaia ;Sou
como
um
rio que nãotenhafoz,Como um
Oceano
que nãotenha praia.»«Mais luz!...
Eu
sonho, eu sinto paraalémUma
outraVida superiorá minha:Formas, espíritos,visões .. .?
Alguém
Que num
País mais lúcido caminha.«Ha
outra,indamaisVida.Eu bem
nasinto,E
tam real quequasime
incomoda.Estendo as mãos, pergunto por instinto:
«Quem
fala,quem
palpita á minha roda?»«Desejo éjá princípio d'outraVida,
O
Tempo
—
uma
cegueirada Matéria.. .Vou
seraLuz, aAlma
comovida,Espírito,Princípio, Essência etérea!...»
«Ardo, deliro, anceio!... Luz emfim!..
.
Sam
labaredas osmeus
ramos nús;Ha
fogo a crepitar dentro de mim...
40
A
Árvore
Trájica
Disse. Vi ondular-lhe a copa a
prumo
;
Figurou atirar-sea
um
precipício;
Súbitoardeu, foi chama, depoisfumo,
A
névoa espiritualdum
sacrifício.Eu
fiquei sóemudo
sobre ocume.Que
erguia a frontesolitária e rasa,E,
como
a pedra d'ara, onde houve lume„CANTO
IV
A
Vida
heróica
A
Águia—
o génio dasmontanhas—
Ardia
numa
febre de heroísmos;
Brotára-lhedas férvidas entranhas,
Erao grito deangústiados abismos.
Ia poisar nascristas alterosas
Com
atitudesmagestosasDuma
estátuaem
soberbos pedestais;
E
quando as azasnegras sealargavamAs
remíjesagudasfaiscavam,44
A
Vida heróica
Que
heróica aparição.Quando
surgia vigorosa,ardente,Na
cúspidedomonte
!Despedia desi o súbito clarão
Dos
astros no Oriente,Quando
rasgam asbrumas
do horizonte ;Ave
de preza,Que
filaeque arrebataCom
verdadeiroamor
aoperigo;
Duma
estirpe real que adoraa luta acezaTem
júbiloscruéisemquanto mata,Canta sobre ocadáver doinimigo. Palpita-lhenorude e altivo porte.
Todo
talhadoem
formasduras,A
enerjia supremaduma
raça;Brilham-lhe as penas ríjidas eescuras,
Envolvendo-lheo peito alto e forte
Numa
ardente couraça.Salta-lhe ocoração novasto peito.
Cárcere estreito
A
Morte
da
Águia
45Indode encontroao ríjidobroquel,
Como
numa
cavernao irado tropelDos
vagalhões do Mar.Se
via as outrasÁguiasna amplidão,Sulcandotodo o
Céu num
vôoforte,Cheio de majestadeede harmonia,
Pulava-lhedefúria o coração,
E
atiravanum
súbitotransporteArrebatados gritosdealegria.
Um
desejosem
fim^um
contínuo transporteLhe
dilatava o coração;Na
sua veemente exaltaçãoDesafiava
com
despresoa Morte.Viviaa Vidatrájica eprofunda.
Heróica, aventureira, vagabunda,
Rasgando
sempre espaços novos,E
ignorando asfronteirasQue
dividem os povos.Percorreu as lonjínquascordilheiras.
46
A
Vida heróica
Lançando
em
cadaserraOs
seus gritosde guerraBárbaros, percucientes, terebrantes.
Carne
que achama
fúljidaconsome,Quando
sentiaa fome,Partia das altíssimas arestas.
Abria asasas sobrea rocha escassa
E, corsário doAzul, partiaácaça
Dos
animais bravios dasflorestas.Se
viaa presa, os seus instintosErguiam-secoléricos, famintos,
E
despedia lume peloolhar;E
com
os olhosfitossobre a presaA
devora-laco a pupila acesaDescia de vagar.
Mas
ei-la que searroja de repente, Vertijinosamente,A
Morte
da
Águia
47E
cai CO as asas encolhidasE
as garras estendidas,Fendendo,abrindo o ar
num
silvoagudo.Rápidaflecha
em
direituraá meta,Ei-Iaque abala,corre e se arremessa,
Desaba
sobre a presaejá lhe espeta,Lhe
finca ecrava as garrasnacabeça.Depois, tintade sangue e olhos
em
brasa.Erguia a presa, desfraldando aasa,
Ia poisa-lasobre asaltas penhas
;
E,ébria
duma
divina crueldade,Atirava o seu canto áImensidade
CANTO
V
o
Canto
das Águias
«A
vida dosheróisFaz-nos luzir os olhos coruscantes
Com
a firmêsarude dos diamantesE
obrilho ardentee fúljidodos sóis.:*'«Nósfitamos o Sol
sem
que osseusraiosCeguem,
fulminem maisque onossoolhar..
Nunca
temos vertijens,nem
desmaios,Abrindoa nossaasa resoluta
Pelas rejiõesaltíssimas doar.
54
O
Canto
das Águias
«Astros ardendo no zenith,
Tal
como
o abismo, o Céu, o livreespaço,Nossosdesejos nuncatem limite;
Desprezamos
a órbitatraçada:
Aí
—
o armais livre é-nosescassoE
a trégua por mais doceé-nos pesada!
E
acada passoDesejosmais profundos
Erguem-se
em
nós gritantesd'ansiedade,Consumindo
nachama
novos mundos,Indo até ondevai a
Tempestade
!»«Que
tumultuosoearrebatado anseio!..
Em
nós toda a vontade satisfeitaTem
um
sabor amargo. ..
Trazemos
a rugirdentrodoseioDuma
contínuafúria insatisfeitaO
coração raivosodoMar
largo!»«Se afomee asede toda se levanta,
A
onda dosdesejos nos inundaA
Morte da
Águia
55Que
vem
docoração para a garganta,E
é tam profundaQue
nos sufoca osgritos !»«É
tanta, é tanta, que não cabeem
nós,E
dentro domar
íntimo, dispersoCada
ondaemotivaganha vozE
anseia aVida plena doUniverso.»«Para alem, paraalém!...
Ó
cumes
solitários,Somos
asvossas sentinelas,É
este o nosso toque declarim;Andamos
pelo Azulcomo
os corsários:Abrir as asas é soltaras velas
Pelo Mar-fóra, pelo
Céu
sem
fim.»«Paraalém, para alem, fúriadoimenso,
Fogo
que nos abrasas. .. !Raiam
aurorasde desejo intensoVibram
heróicas tubas de alegriaQuando
abrimosasasas56
O
Canto
das Águias
«A
guerra a guerra, a luta,a vida forte;Só ama
aVidaquem
desprezaaMorte
;
Não
ha desastrequeo valor nos quebre;
Em
frentedo mais válido inimigoOu
quandomais nosameaça
o perigoSobe
atéao delírioa nossa febre!»«Soltai os halalis, clarins da glória;
Voemos
todas nas regiões empíreasÁ
busca do triunfo eda vitória,Como
acoorte aladadas Walkírias.»«Paraalem,paraalem...!
Só
nomaisaltocume
A
nossa carne, ébria degoso,Encontra a neve e ofrio
Pra que se apague mais o eterno lume
Que
nos devorao coração sequioso,Como
as searas no estio.»«Ciclones, tempestades, furacões
Quando
cinjisno Vosso largo açoiteAs
trémulasflorestas pelanoite,A
Morte
da
Águia
57«Apunhalar ocoração da Treva,
Logo
a purpúreachama
Da
vidaardenteem
nós se eleva,E
num
incêndio súbitoateadoValor, nobreza, audácia, intrepidez,
Tudo
que ha de profundoem
nós se inflamaE
deixa o peito imenso dilatadoDe
fúria, deloucura e de embriaguez!»«Paraalem,paraalem!...
Ó
cumes
d'altosmontesEstaisabrindo os largos horizontes
Aos
nossos valorosos corações!Quando
aNoite noCéu
mais secondensa,Sobe
defúria a nossa vida intensaE
vamos-lhe arrancar constelações!»«Quando
a alma dos fracosdesfalece.58
O
Canto
das Águias
Como
ocorcel daMorte
a toda a brida,Dá-noso raio ofogo dodelírio,
E
sóem
nosso peitoresplandeceCANTO
VI
A
Tempestade
Cáifogo e cinza.
O
Céu
éturvo e baço;Veste esse manto imenso
um
deus oculto,Que
dançae rodopia sobre o espaço ;Agora
num
alíjerotumulto,Logo
em
ondulaçõesvertijinosas,64
A
Tempestade
Relâmpagos de formas vaporosas,
Que
brilham para logo seapagarNa
primeiraespiral das nebulosas.O
célere, invisível voltearDos
pésdivinostam de leve pisa Aflora, palpa, acaricia o ar.Como
uma
pluma que levantaa briza;E, apezardisso, oprimee esmagao Mundo,
Que
um
silêncio dechumbo
imobilizaNum
meditarextático e profundo.O
taciturno espírito dos montes,O
indizível espetro quedeliraA Morte
da
Águia
65Aos
maisfundos abismosse retira;Agora
pára, espera, escuta amedo
E
de tam quieto emudo
nem
respira.De
lonje, cadatácitoarvoredoNa
inércia teatral das verdescomas.Lembra
a mullierde Lotli, igneo rochedo,A
predizero incêndio dasSodomas.O
bailadodivinojávem
pertoE
o vultovelozmente arrebatado Mostra-seás vezes quasi a descoberto;
O
Mundo, como
um
peito sufocado,Em
aflitivas convulsõesd'horrôr,66
A
Tempestade
Mas
poucoa poucoum
gélido terrorEsfria o Céu, transtorna a face á Terra,
Perturba-lhe afeição, muda-lhe acôr,
E,
como
alguém queum
pesadeloaterra.Ou
louco, ouvisionário, ou epilético,Assim árvore, nuvem, altaserra
Tem
o semblante lívidoe patético.Como
se nas mais hórridas posturasTudo
caísseem
sono catalépticoNum
hospitalimenso de loucuras.Emquanto
os brutos animaisferozes,Buscam
demedo
as negras espessuras,Os
alciòes, gaivotas, e albatrozes,—
As
aladas sibilasda tormenta,A
Morte da
Águia
67E
numa
extranha exaltação violenta,Que
as ergue, as arrebata, asprecipita,A
poucoe pouco a suavoz aumentaEm
furiosa, halucinadagrita,Tam
cheiade visões ede presájios.Como
se foraa revoada aflitaDos
derradeiros gritosnosnaufrájios.Anjosanunciadores.
Espíritosalados e videntes,
Messias, Visionários, Percursores,
Ei-los que passam lívidos^ trementes.
Pisando toda aTerraa largos passos
E
deixando no pórastosardentes68
A
Tempestade
Ei-los abrindo á frente outros espaços,
Com
afUriado Mar, quandoiracundo,Rebenta osdiques todos
em
pedaços;Ei-losmais lonje, além, ao largo, ao fundo
Envoltosjá nas brumas domistério,
Erguendo
em
peso, arrebatando oMundo;
E
logocheiosdum
esforço etéreoAceleram-lhe o giroaté lhe dar
O
primitivoresplendor sidério.Ei-los que pairam,
voam
acantarCoa
voz halucinada dosProfetas,Tam
forte que o seu écoé secular;
Ou
dandovida e falaásformas quietasE
erguendo-seás visões origináriasA
Morte
da
Águia
Ei-los:
seguem
as vias solitárias.. .Já lhes desponta a luzdo Diaeterno
Sobre
as divinasfrontes visionárias,'Spalha-se á roda o seu clarão interno
E
assim iluminados,como Dante
Vão
a todos os círculosdo InfernoMostrar o Paraíso inda distante.
Ha
quanto, ha quanto tempo que os heróisDe
noite afiam gládios epunhais,Laminasd'aço arir, bélicos sóis;
Lobos
famintos, fúrias,canibaisMaisdoidos, mais raivosos, maiscruéis,
70
A
Tempestade
Já, sobreopeitoosríjidosbroqueis,
A
custodoma
a hoste maisaltivaO
piafarinquietodos corcéis.Ha
quanto,um
mar
de raiva corrosiva,Rujee encastela as ululantes vagas
E
quasi atinjeagora amaré
viva.Dos
peitosretalhados por milchagasÁs
bocasmás
de risos instantâneosAfluem maldições, gritos epragas.
Ao
calor tropical dafebre, os craneosErguem
no escuro aselvadas visões ;Escancaram-se ocultos subterrâneos
;
E
os Quasimodos, cheiosdealeijões,Desorbitando as lúcidas pupilas,
A
Morte da
Águia
71Entãoretumbao canto das Sibilas
Num
eco que de monteamonte vai:
«A
pé,a pé, heróis! cerraias filas,Erguei os braçosválidos, cantai
!
Abri vosso estandarte ao ventoforte,
Agora
avante, áfrente, eia, abalai... !Á
Luta, á Guerra,áTempestade,áMorte...!»De
súbito, deitandoforao véu.No
aujedo bailanterodopio,O
dançador divino larga o Céu.Que
nunca vistagraçae novobrioLhe
faz pairar, correr, zunir aprumo
72
A
Tempestade
É
elaa Tempestade... ! Ergue-seum
fumo
De
cúmulos, o pó quese alevantaÁ
roda, á frente, a indicar-lhe orumo
.. .É
ela aTempestade
... ! Baila ecanta!E
todooMundo,
á sua vistae voz.Acorda de repenteese levanta ;
E
em
febre, amor, delírio oumedo
atroz.Formando
amais demente multidão.Tudo vem
vê-laem
seu girar veloz.Das
espirais do aéreo turbilhãoJá se entrevê arápidafigura,
Feita de vento,fogo e exaltação.
Matéria que o delíriotransfigura
Seu
corpo agoraétodo espiritual,A
Morte
da
Águia
73Tam
alta se nosmostra queafinal,Posto queo vulto
enorme
esteja perto,E
quási a arrebatar-nos naespiral.Nosso
aturdido olhar não sabeaocerto,Se
alguma parte,membro
ou formaetéreaFicará côas estrelasencoberto.
Figura anímica, espetral, aérea,
Que
os olhos d'alma sópodem
fitar,E
nuncaos olhos baços da Matéria;
Éter divino, que penetra oar,
Hálito, fluido, emanaçãodivina.
Assim domina aTerra, o
Céu
eo Mar;Carne
de fogo, efogo de neblina,Olhossóde relâmpago eclarão
74
A
Tempestade
Pé, que de malpisar é furacão,
Braço,
como
ode Júpiter tonante,ígneofeixede raios traz na
mão
;
Voz, de que ouvimos só o eco distante,
E
apezar dissotodo oMundo
abalaNum
trovejarcontínuo eretumbante;E
olhai aflor que oseu cabelo engala—
Rosa
dos Ventos, rosa de delírio,Que
um
perfume de espanto eDôr
exala.Rosa
de assolação edeMartírioCujas pétalas
sam
detal altura.Que
abraçame penetram todo oEmpíreo.. . !Oh!
quesublime e trájica figura,Que
faz horror,sendo adivina Graça,E
espalha atreva, quando maisfulguraA
Morte
da
Águia
75Ai! quehorrivel deserto onde ela passa,
Onde
só pairaagora ofumo
densoDa
Morte, daMiséria eda Desgraça. ..!
É
queondetocao seu bailado imenso,Tudo
elaarranca e de seguida arrasta.Em
seu aéreoturbilhão suspenso...
;
Nem
milcidades que o tufão devasta,Nem
Mar
eTerra, súbito varrida...
Incêndios, Morte, horror. .. nada lhe basta;
Acossa, estuga a lívida corrida,
Té
quea rocha tenaz se fazem
pó,E
o pócorcel defogo a todaa brida.E
acada voltada terrívelmó,A
cadaregodomedonho
arado,76
A
Tempestade
A
cadanovocírculo enroscado,Que
os olhos quasi arrancadefita-loE
empolgao pensamentoarrebatado;A
cada novo embate e novo abaloDaquelaformidávelcatapulta,
Que
omesmo
sanguegela de escutal-o.Maiso delíriodo bailadoavulta.
Mais
a espiral se alargae rodopiaE
maiso alegre deusbailando exulta.E, noauje dafrenética alegria,
Ébrio de Graça ede sublimeEncanto,
Em
simesmo
seafunda ese extasia,A
Morte
da
Águia
77«Cósmico e primitivoTurbilhão,
Sou quem
fecundao Caos, dandoorijemA
toda a Creação.»«Mundos, formas evidasse diríjem
A
meu
seio, palpando a escuridade.Cegos
pela vertijem.»«E
Nebulosa, Génio ou Tempestade,Minha
espiral fecundadora ondeiaE
enrosca aImensidade;»«Vôa, delira, zune, arde e volteia
E
átomos, mundos, almas, leissupremasMeu
atritoincendeia,»«Para depois nas contorsõesextremas Lançar aoseio livredo Universo
78
A
Tempestade
«O
Universo éum
grandeMar
disperso,Cheio de redemoinhos
menos
fundosEm
meu
vórticeimerso;»
«Abismos,
Céus
e pélagos profundos,Onde
omeu
torvelinhovai gerandoO
equilíbriodos Mundos.»«Tudo
quanto ao redor voudevastando,Mais
em meu
seio lúcidoconcentroE
vou purificando;»
«Exalto,elevo, arrasto para dentro
Até quea
Alma
universalconsiga,Pois trago
Deus
no centro.»«Cósmica força, heriditária, antiga.
Eu
sou aqueleforte eeterno laço.A
Morte da
Águia
79«Vindea mim,vinde a
mim
por todo oEspaçoE
atirai-vos detodo ocoraçãoAo meu
fecundo abraço!»«A
mim, ao Fogo, á Vida, aoTurbilhão!
Só
morrequem
temmedo
á própria Vida;
Nunca
o queexpira a arderde exaltaçãoIn
CANTO
VIIA
Morte
da
Águia
Mal
a Águiadivinaouviu ocanto,Que
uniaaMorte
á Vidae que do EmpireoNos
infinitos valesreboava,Ergueram-se-lheas asas por encanto,
Porquea espiral de fogo ede delírio
Para oseio da
Luz
a arrebatava.Sentiu correr-lhe osangue de roldão.
Como
se cadaartéria fosse o leitoDum
riocaudaloso;
E
o largo, intumecido coraçãoBatia-lhede encontroaoforte peito,
84
A
Morte da
Águia
Bateuãsasas
como
um
largoaçoiteA
fustigar ainda aTempestade
Para que o Turbilhão fossemais forte
;
E
aoafundar-se nessa imensa NoiteSentiu, último
dom
da divindade,A
alegria da Morte.Alegriada
Morte
!A
derradeiraDos
quenuma
agonia doloridaFitamos olhos
num
país sidério,A
última alegria ea primeiraDos
que ao despedaçara própria VidaDespedaçam
as portas do Mistério.Alegria da
Morte
! amais ardenteDe
todosquantosbuscam
aVerdade,De
todos os quemorrem
poramar
:
Dos
que olhamo Destino tam de frente,Que
pondoa vidatoda na vontade,Obrigam-no a parar
!
Alegriado Sol
em
pleno ocaso,Que
aocair parao Mar,A
Morte
da
Águia
85Sabe
que dentrodebem
curto prazoDe
novoha-de raiarE
aquecertoda a Terra !Outro
Mazeppa
no corcelem
fuga,Buscando
a glóriana miséria extremaNuma
carreira alada edesabrida,Que
a noite, as feras eo pavor estuga.Poisnão ha sombra queo corcelnão tema,
Nem
façacorrer mais a toda a brida,AssimaÁguia vôaarrebatada,
Assim devora abismos derepente
E
como
sombra lívidaperpassa.Até que nomais alto da abalada
Um
raiofulje, abrindoum
sulco ardenteE
em
plenoTurbilhão a despedaça.O
coraçãoda Águiafoi queimado,Fez-se
um
clarãoda mais divina esperança.Que
espalhando-seem
todaaimensidadeFoi abraçar o
Céu
de lado a ladoNum
arco-iris, o arco da Aliança,86
A
Morte
da
Águia
Os
Lázaros do sonho irrealisado,Os
quemorrem
á míngoa deventuraE
nunca ouviramcantos devitória,Acordam
vendooCéu
illuminado,Sentem
abrir-se a antigasepulturaE
surjem de repenteem
plena glória. Aleluia! Aleluia! grita oMundo
E
logo a Terraatiradas entranhasTesoiros milsepultos
;
Emquanto
doprofundo,Do
recôndito seio das montanhasCorrem
á luzos mananciaisocultos.Das
esquecidasmas
leais sementesNo
regaçoamantíssimo dos montesUma
Floresta triunfal se elevaA
Morte
da
Águia
87Ha
flôr's mais rescendentes,Nascem
mais vivas e abundantesfontesE
os astros incendeiam maisa Treva!
S. João do
Campo, Setembro
de 1908 eíndice
o
despertardeum
deus 9Hino á
Montanha
15A
Árvoretrájica 27A
Vidaheróica 41O
Canto dasÁguias 49A
Tempestade
59Erratas
Pag.
12,onde
selêPíncaros, vales, azulados, montes ,
deve lêr-se
Píncaros, vales, azuladosmontes.
Pag.
76, onde selêEm
seuaéreo turbilhão suspensodevelêr-se
Acabado
de
imprimirAOS
17DE Dezembro de
1909NA
Imprensa
LiBANio
DA
Silva,rua
das Gáveas,
29e
31UNIVERSITY
OF CALIFÓRNIA LIBRARY
LosAngeles
This bookis
DUE
onthelastdate statnped below.t
PLEA^E
DO NOT REMOVE
THIS
BOOK CARD
1c^^l•L!BRARY6?.