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ACIDENTE DE TRABALHO LEI APLICÁVEL ORDEM PÚBLICA

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Tribunal da Relação de Lisboa Processo nº 95/1994.L1-4

Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO Sessão: 19 Setembro 2012

Número: RL

Votação: UNANIMIDADE Meio Processual: APELAÇÃO

Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO

ACIDENTE DE TRABALHO LEI APLICÁVEL ORDEM PÚBLICA

Sumário

A circunstância do regime jurídico dos acidentes de trabalho aplicável ao sinistrado derivar do contrato de trabalho que celebrou com o empregador, bem como do contrato de seguro que este firmou com a companhia de

seguros, não reclama a intervenção da «ordem pública» prevista no artigo 22.º do Código Civil, o mesmo acontecendo relativamente à divergência entre o conceito de «acidente de trabalho» constante de tais negócios jurídicos (por referência à lei suíça) e aquele praticado na lei portuguesa e à não atribuição de qualquer indemnização por força do sinistro mortal dos autos.

(Elaborado pelo Relator)

Texto Parcial

ACORDAM NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – RELATÓRIO

AA e BB, (…), vieram ambos instaurar, em 06/01/1995, a presente ação

declarativa de condenação emergente de acidente de trabalho com processo especial contra CC, com escritório na Avenida ..., (…), Lisboa, e DD, AG, com sede em (…), ..., Suíça, pedindo a condenação das Rés a pagar-lhes US40.000 Dólares, acrescidos de juros, à taxa legal, desde a data da morte de EE ou, caso assim se não entenda, desde a data da citação.

*

Para tanto, alegaram, em síntese, serem pais de EE, o qual, tendo-se

deslocado a Lisboa em gozo de férias, aí faleceu, no dia 12 de Fevereiro de

(2)

1993, por ter contraído paludismo quando exercia funções para a 2.ª Ré, na Nigéria, em execução de contrato de trabalho com esta celebrado.

Mais alegaram que a 2.ª Ré celebrou contrato de seguro com a 1.ª Ré,

mediante o qual segurou EE pelo risco de morte em consequência de acidente de trabalho em 40.000 US Dólares, a pagar ao parente mais próximo do

trabalhador segundo as leis do seu país.

Alegaram, ainda, que EE fora recrutado por FF, que se assumiu como representante da 2.ª Ré.

Por último, alegaram que a região da Nigéria onde EE exercia funções era propícia ao mosquito que transmite o paludismo, não procedendo a 2.ª R. à fumigação do espaço em que os trabalhadores se encontravam, o que

aumentou o risco de doença, contraída por EE antes do seu regresso a

Portugal e pese embora tivesse tomado uma vacina para evitar a doença e se encontrasse a tomar medicação profilática.

*

Foi ordenada, por despacho de fls. 111, a citação das Rés (bem como do CRSS e do Centro Nacional de Pensões), o que veio a ser concretizado através de carta registada com Aviso de Receção relativamente à 1.ª Ré e às entidades de cariz social, conforme ressalta de fls. 112 (CNP), 117 (CC) e 137 (CRSS).

*

A Ré CC contestou, a fls. 125 e seguintes, alegando, em síntese, que EE sofria de insuficiência cardíaca e de insuficiência renal, doenças que também

contribuíram para o seu óbito.

Mais alegou que EE deu entrada no hospital onde viria a falecer muitos dias depois de a doença se ter manifestado, não lhe tendo, por isso, sobrevivido.

Alegou, ainda, que a contração da doença não constitui um acidente de trabalho, posto que EE esteve exposto a um risco comum e genérico a

qualquer indivíduo que, ainda que temporariamente, habite a Nigéria, não se verificando um risco especial do trabalho ou do serviço a ser prestado e, por outro lado, não se sabe quando EE foi mordido pelo mosquito que provoca a doença, pelo que não pode afirmar-se que a doença foi contraída no local, no tempo e por causa do trabalho.

Por último, alegou que o contrato de seguro celebrado com a 2.ª Ré exclui expressamente da sua cobertura qualquer tipo de doença.

*

O CENTRO NACIONAL DE PENSÕES deduziu pedido de reembolso a fls. 130 e segs., pedindo a condenação das Rés a pagar-lhe Esc. 267.000$00, quantia correspondente às prestações por morte pagas à Autora, em virtude do

falecimento de EE.

*

(3)

O pedido de reembolso formulado pelo CENTRO NACIONAL DE PENSÕES não foi contestado.

*

A 2.ª Ré DD, AG, depois de diversas diligências infrutíferas com vista à sua citação pessoal, foi citada editalmente, tendo o Ministério Público assumido a sua defesa, sem que contestasse (cfr. fls. 266 a 269).

*

Foi proferido despacho saneador, no qual se considerou regularizada a

instância e se procedeu à fixação da matéria de facto assente e à elaboração da base instrutória (26 artigos), conforme ressalta de fls. 273 e seguintes.

Foram juntos pelas partes os respectivos requerimentos probatórios (fls. 281 e 285 e 286), cuja admissão ocorreu através do despacho de fls. 296, aí se tendo indeferido a prova pericial requerida pelos Autores.

*

Por apenso aos presentes autos correu habilitação de herdeiros, deduzida em 05 de Dezembro de 2008, no âmbito da qual foram habilitados como herdeiros dos Autores os seus filhos GG e HH.

*

Procedeu-se ao julgamento com observância de todas as formalidades legais, como resulta da respetiva Ata (fls. 376 a 379), tendo a prova aí produzida sido objecto de registo áudio.

A matéria de facto foi decidida por despacho proferido a fls. 386 a 390 que não suscitou quaisquer reparos, por não estar presente nenhuma das partes.

*

A fls. 394 e seguintes, foi proferido despacho a julgar o tribunal da 1.ª

instância competente em razão da nacionalidade e pronunciando-se no sentido de não ser a lei portuguesa aplicável ao caso dos autos, tendo sido solicitada a junção da lei nigeriana e suíça vigentes em 1993.

*

A fls. 416, a Ré “DD” informou que alterou a sua denominação para “II, S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL”.

*

Foi junta, por linha, tradução da Lei Laboral da Nigéria, do Despacho sobre a prevenção de acidentes e doença profissionais da Suíça, de 19 de Dezembro de 1983, da Lei Federal sobre Seguros – Acidentes da Suíça, de Março de 1981, do Despacho sobre seguros de acidentes da Suíça, de 20 de Dezembro de 1982, da Lei de Seguro de acidentes e doença profissionais da Suíça,

entrada em vigor em 29/01/2010 e da Lei Federal sobre o contrato de seguros, de 02 de Abril de 1908.

*

(4)

Foi então proferida a fls. 463 a 477 e com data de 28/10/2011, sentença que, em síntese, decidiu o litígio nos termos seguintes:

“Pelo exposto, julgo a presente ação e, bem assim, o pedido de reembolso formulado pelo ISS-IP/CNP, totalmente improcedentes e, em consequência, absolvo ambas as Rés de todos os pedidos contra si formulados.

Sem custas.

Valor da ação: €32.194,41 (trinta e dois mil cento e noventa e quatro euros e quarenta e um cêntimos) – art.º 123.º do Código de Processo do Trabalho de 1981.

Registe e notifique.”

*

Os Autores GG e HH, inconformados com tal sentença, vieram, a fls. 450 e seguintes, interpor recurso da mesma, que foi admitido a fls. 537 dos autos, como de Apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e efeito

meramente devolutivo, por efeito do número 1 do artigo 79.º do Código do Processo do Trabalho de 1981.

*

Os Apelantes apresentaram, a fls. 451 e seguintes, alegações de recurso e formularam as seguintes conclusões:

(…)

*

A Ré Seguradora apresentou contra-alegações dentro do prazo legal, na

sequência da respectiva notificação, tendo formulado as seguintes conclusões (fls. 512 e seguintes):

(…)

*

A Ré empregadora, representada pelo ilustre magistrado do Ministério

Público, apresentou alegações dentro do prazo legal e formulou as seguintes conclusões (fls. 526 e seguintes):

(…)

*

Tendo os autos ido aos vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – OS FACTOS

a) EE faleceu no dia 12 de Fevereiro de 1993. (al. A) da matéria de facto assente)

b) O sinistrado faleceu no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, em consequência de “paludismo”. (al. B) da matéria de facto assente) c) Na data referida em a), a Ré JJ AG ... havia transferido a sua

(5)

responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho para a Ré CC, S.A., mediante contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 00000000. (al. C) da matéria de facto assente)

d) Os Autores, AA e marido, BB, são pais de EE, o qual faleceu no estado de solteiro. (al. D) da matéria de facto assente)

e) Com base no falecimento, em 12 de Fevereiro de 1993, do beneficiário n.º 000000000, EE, em consequência dos factos objeto dos presentes autos, foram requeridas no Centro Nacional de Pensões, atualmente ISS-IP/CNP, pela A. AA, as respetivas prestações por morte, as quais lhe foram deferidas. (al. E) da matéria de facto assente)

f) Em consequência, o ISS-IP/CNP pagou à Autora AA, a título de despesas de funeral, o montante global de Esc. 267.000$00. (al. F) da matéria de facto assente)

g) O sinistrado exerceu as funções de “tubista” para a Ré DD, AG ..., no campo petrolífero de Obiafu/Obrikon, na Nigéria, mediante contrato de trabalho com a mesma celebrado em 20 de Junho de 1992, o que fez desde então e até à data do seu óbito. (resposta ao quesito 1.º)

h) Tais funções eram exercidas pelo Sinistrado num período semanal de quarenta horas, repartidas por cinco dias, em horários de oito horas diárias, tendo o sinistrado direito a um dia de descanso semanal. (resposta ao quesito 2.º)

i) E como retribuição mensal, a Ré DD, AG ... pagava ao falecido a quantia de 1.100 US Dólares. (resposta ao quesito 3.º)

j) Sendo as horas feitas para além do período semanal de quarenta horas, consideradas como extraordinárias e pagas a 6.61 US Dólares à hora.

(resposta ao quesito 4.º)

k) O Sinistrado tinha ainda direito a um período de férias pagas. (resposta ao quesito 5.º)

l) A Ré DD, AG ... obrigou-se ainda, nos termos do mencionado contrato de trabalho, a segurar o sinistrado pelo risco de morte, em consequência de acidente de trabalho, incluindo acidente ocorrido durante as viagens do local de trabalho e no regresso, em montante de 40.000US Dólares, a pagar ao seu parente mais próximo, segundo as leis do seu país. (resposta ao quesito 6.º) m) O referido contrato de trabalho foi assinado em Portugal pelo sinistrado.

(resposta ao quesito 7.º)

n) Em 19 de Janeiro de 1993, o sinistrado viajou de Obiafu/Obrikon, na Nigéria, para Portugal. (resposta ao quesito 9.º)

o) Quando o sinistrado embarcou para Portugal, já era portador da doença (Paludismo), contraída ainda na Nigéria e que apenas se veio a revelar quando já se encontrava em Portugal. (resposta ao quesito 13.º)

(6)

p) O sinistrado e os seus companheiros de trabalho dormiam no referido campo petrolífero, em contentores que se encontravam a cerca de 0,5 metro do solo. (resposta ao quesito 15.º)

q) O sinistrado encontrava-se, à data, vacinado com a vacina PASTEUR 5309, a qual lhe foi administrada em Lisboa, em 3 de Abril de 1992. (resposta ao quesito 7.º)

r) No campo petrolífero de Obiafu/Obrikon, sito na Nigéria, alguns

trabalhadores de origem filipina forma atacados de “paludismo”. (resposta ao quesito 20.º)

s) O sinistrado sofria de insuficiência cardíaca e insuficiência renal. (resposta ao quesito 21.º)

t) Tais doenças contribuíram também para o seu falecimento. (resposta ao quesito 22.º)

u) Entre a data da manifestação da doença (paludismo) e do falecimento do sinistrado, mediaram cerca de 10 dias. (resposta ao quesito 23.º)

v) O sinistrado deu entrada no Hospital de Santa Maria no dia 07 de Fevereiro de 1993, tendo-se a doença manifestado cerca de uma semana antes.

(resposta ao quesito 24.º)

w) Se a doença (paludismo) for diagnosticada e tratada aos primeiros dias tem maiores hipóteses de tratamento. (resposta ao quesito 26.º)

Factos não provados ou cujos quesitos mereceram resposta restritiva:

(…)

III – OS FACTOS E O DIREITO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 83.º do Código do Processo do Trabalho e 690.º e 684.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do

conhecimento oficioso (artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil).

*

A – REGIME ADJECTIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEIS

Importa, antes de mais, definir o regime processual aplicável aos presentes autos, atendendo à circunstância da presente ação (na sua fase conciliatória - cf. artigo 27.º, número 2 e 102.º, número 1 do Código do Processo do Trabalho de 1981) ter dado entrada em tribunal em 06/01/1995, ou seja, antes da

entrada em vigor do Código do Processo do Trabalho de 1999 (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9/11 e que entrou em vigor, segundo o artigo 3.º desse diploma, em 1/1/2000, só sendo aplicável a ações novas), bem como das

(7)

alterações introduzidas no mesmo pelo Decreto-Lei n.º 295/2009, de 13/10 e que segundo o seu artigo 6.º, também só se aplicam às acções que se iniciem após a sua entrada em vigor, tendo tal acontecido, de acordo com o artigo 9.º do mesmo diploma legal, somente em 1/01/2010.

Esta acção, para efeitos de aplicação supletiva do regime adjectivo comum, foi instaurada antes da entrada em vigor das alterações sucessivas introduzidas no Código de Processo Civil pelos Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12/12 - com as modificações da Lei n.º 28/96, de 2/08 - e Decreto-Lei n.º 180/96, de 25/09 (o que ocorreu no dia 1/1/1997), pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08 (cujas alterações entraram em vigor no dia 1/01/2008) e pelo Decreto-Lei n.º

226/2008, de 20/11 e parcialmente em vigor desde 31/03/2009, com algumas exceções que não tem relevância na economia dos presentes autos (artigos 22.º e 23.º desse texto legal), aplicando-se todas elas, em regra, aos processos instaurados a partir da data da respetiva produção de efeitos.

Será, portanto, de acordo com o regime legal decorrente do Código do Processo do Trabalho de 1981 e da redação do Código de Processo Civil anterior a todas essas grandes reformas adjetivas (sem prejuízo do Decreto- Lei n.º 39/95, de 15/02 e do direito transitório estabelecido nos artigos 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 23.º, 24.º e 25.º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12/12, com especial relevância para o registo de audiências e impugnação e efeitos da sentença) para que iremos apreciar as diversas questões suscitadas neste recurso de apelação.

Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o

anterior Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26/11, atento o estatuído nos artigos 3.º e 4.º deste diploma preambular, sem prejuízo das isenções de custas vigentes à data da instauração destes autos), dado que o Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/02 e que foi retificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril, só ter entrado em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e se aplicar a processos instaurados após essa data.

B – DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

Os Recorrentes não impugnaram a decisão sobre a matéria de facto, nos termos e para os efeitos dos artigos 84.º do Código do Processo do Trabalho e 690.º-A e 712.º do Código de Processo Civil, não tendo, por seu turno, as

recorridas requerido a ampliação subordinada do recurso nos termos do artigo 684.º-A do segundo diploma legal referenciado, o que implica que, sem

prejuízo dos poderes oficiosos que são conferidos a este Tribunal da Relação pelo artigo 712.º do Código de Processo Civil, temos de encarar a atitude

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processual das partes como de aceitação e conformação com os factos dados como assentes pelo tribunal da 1.ª instância.

C – OBJECTO DO RECURSO

Se lermos as alegações de recurso e as conclusões delas extraídas, verificamos que o que é questionado pelos herdeiros do sinistrado é a circunstância do tribunal da 1.ª instância ter considerado aplicável a lei da Nigéria, ao invés da lei portuguesa, e, nessa medida, ter absolvido as Rés do pedido

indemnizatório, quando, na sua perspetiva, as deveria ter condenado com base no contrato de trabalho entre a 1.ª Ré e o sinistrado e na lei portuguesa (LAT), por força do artigo 42.º, número 2, do Código Civil, dado o contrato de seguro para onde a lei nigeriana remete, firmado entre as Rés e que tinha como

beneficiário o mencionado trabalhador, excluir do seu âmbito de aplicação as doenças de trabalho e profissionais, no que constitui ofensa à Ordem Pública Internacional do Estado Português (artigo 22.º do Código Civil).

D - CAUSA DE PEDIR - DIREITO DE CONFLITOS - NORMA APLICÁVEL

Os Autores (habilitados no lugar e posição dos seus pais, demandantes originários) sustentam a sua posição nos seguintes moldes:

«a) Os aqui Apelantes pedem a condenação das Autoras a pagar -lhes a

indemnização de US$ 40.000,00 a título de indemnização fixada por morte de seu irmão EE e, bem assim, juros de mora desde a data da morte deste ou, se assim se não entender, da citação;

b) E invocam como causa de pedir a estipulação constante do ponto 14.1 do contrato de trabalho celebrado entre o falecido EE e a aqui segunda Ré, DD, AG;

c) Contrato esse que, como foi dado como provado – cf. alínea m) dos factos dados como provados – foi assinado em Portugal;

d) Pelo que, por aplicação do disposto no artigo 42.º, n.º 2, do Código Civil, é a lei portuguesa a lei aplicável;

e) Assim não entendeu a douta sentença a quo que julgou ser aplicável ao caso a lei da Nigéria, no que violou, por incorreta aplicação, o artigo 45.º do Código Civil».

Importa chamar desde logo à colação os referidos artigos 42.º - e 45.º - do Código Civil, dado inexistir norma especial de direito de conflitos em sede da Lei n.º 2127, de 3/08/1969 ou da respetiva regulamentação (Decreto n.º 360/71, de 21/08), que regule a presente matéria.

Tais disposições possuem a seguinte redação[1]:

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Artigo 42.º

Critério supletivo

1. Na falta de determinação da lei competente, atende-se, nos negócios jurídicos unilaterais, à lei da residência habitual do declarante e, nos contratos, à lei da residência habitual comum das partes.

2. Na falta de residência comum, é aplicável, nos contratos gratuitos, a lei da residência habitual daquele que atribui o benefício e, nos restantes contratos, a lei do lugar da celebração.

Artigo 45.º

Responsabilidade extracontratual

1. A responsabilidade extracontratual fundada, quer em ato ilícito, quer no risco ou em qualquer conduta lícita, é regulada pela lei do Estado onde decorreu a principal atividade causadora do prejuízo; em caso de

responsabilidade por omissão, é aplicável a lei do lugar onde o responsável deveria ter agido.

2. Se a lei do Estado onde se produziu o efeito lesivo considerar responsável o agente, mas não o considerar como tal a lei do país onde decorreu a sua

atividade, é aplicável a primeira lei, desde que o agente devesse prever a produção de um dano, naquele país, como consequência do seu ato ou omissão.

3. Se, porém, o agente e o lesado tiverem a mesma nacionalidade ou, na falta dela, a mesma residência habitual, e se encontrarem ocasionalmente em país estrangeiro, a lei aplicável será a da nacionalidade ou a da residência comum, sem prejuízo das disposições do Estado local que devam ser aplicadas

indistintamente a todas as pessoas.

Importa, por outro lado, convocar igualmente o contrato de trabalho a que se referem os recorrentes, na parte que para aqui importa:

«14. SEGUROS

A partir da data do início do trabalho, a Sociedade segurará o Trabalhador nos seguintes termos:

14.1 Falecimento em caso de acidente

Se um Trabalhador falecer em consequência de um acidente ocorrido durante o tempo em que estiver a trabalhar para a Sociedade, incluindo acidentes ocorridos durante deslocações de trabalho, a Seguradora pagará US

$40.000.00 ao parente mais próximo de acordo com as Leis do país do falecido, ou, na falta do mesmo, a qualquer outra pessoa que for designada pela pessoa que tiver competência para administrar o espólio do falecido.

14.2 Incapacidade por motivo de acidente

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Qualquer Trabalhador que sofrer um acidente enquanto estiver a trabalhar para a Sociedade, sem ter a culpa do mesmo, incluindo qualquer acidente que ocorrer durante a sua deslocação ao ou do local de trabalho a pedido da

Sociedade, sendo a sua capacidade de trabalho permanentemente reduzida, receberá da Seguradora uma indemnização máxima de US$40.000.00,

calculada de acordo com a escala de gravidade estabelecida. Em caso de incapacidade parcial, a indemnização recebida corresponderá ao grau de gravidade da referida incapacidade. Em caso de perda simultânea do uso de várias partes do corpo como resultado do mesmo acidente, o grau de

incapacidade será geralmente estabelecido por adição das percentagens; no entanto, nunca poderá exceder US$40.000.00. A indemnização será feita por um único pagamento e não como anuidade vitalícia.»[2]

Os Apelantes parecem querer reconduzir, para efeitos de aplicação do artigo 42.º, número 1, do Código Civil, a causa de pedir dos presentes autos ao dito contrato de trabalho (e à circunstância de ter sido celebrado em Portugal) mas, salvo o devido respeito por tal posição, afigura-se-nos que a mesma não corresponde à realidade material e processual que ressalta desta ação.

Importa realçar, desde logo, que só ficou provado, segundo a alínea m), que « O referido contrato de trabalho foi assinado em Portugal pelo sinistrado.

(resposta ao quesito 7.º)», tudo indicando que a sua elaboração e assinatura pela 1.ª Ré - aposta, antes ou depois da firma do trabalhador -, aconteceram no seu país de origem (a Suíça), não se podendo afirmar, portanto e nessa medida, com a segurança e a certeza pugnadas pelos Apelantes de que o dito negócio jurídico foi celebrado, para efeitos de aplicação do número 2 do artigo 42.º do Código Civil, em Portugal.

Impõe-se referir, por outro lado, que o dito contrato de trabalho tem, na parte a que alude a «Seguros» (Cláusula 14.ª), de ser devidamente relacionado e complementado com o contrato de seguro firmado entre ambas as Rés e que se mostra junto a fls. 177 a 191, na sua redação original, em língua inglesa, e a respetiva tradução para português, constante de fls. 162 a 175, sendo que este segundo negócio jurídico - celebrado na Suíça, por duas empresas dessa mesma nacionalidade - só produz efeitos jurídicos caso se verifique, quanto ao trabalhador, uma das duas situações nele previstas e cobertas: um acidente de trabalho que provoque a sua morte ou que determine a sua incapacidade total ou parcial permanente.

A este respeito, não será despiciendo referir que a Ré DD, AG - ao contrário do que defendem os Apelantes -, não assume no aludido contrato de trabalho uma qualquer obrigação própria, pessoal, imediata, em que o seu nome e

património sejam diretamente responsabilizados pelo pagamento de uma indemnização derivada do falecimento do sinistrado, durante ou por causa do

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trabalho pelo mesmo realizado, mas antes e tão-somente, um dever de

celebrar um contrato de seguro com uma Companhia de Seguros com vista a que esta, caso ocorra a referia fatalidade, pague a indemnização referida no primeiro e acordada no segundo, de US$40.000.00.

Logo, para sustentar a pretensão formulada originalmente pelos pais do sinistrado (e agora, na sequência do decesso destes últimos e da

correspondente habilitação, pelos seus filhos e irmãos da vítima) não é suficiente invocar o teor do contrato de trabalho firmado entre a 1.ª Ré e o sinistrado (e que este assinou em Portugal), impondo-se também nomear o referido contrato de seguro, bem como finalmente as condições de

acionamento deste último, a saber, a ocorrência de um acidente de trabalho mortal relativamente ao aludido beneficiário.

Sendo esta a causa de pedir complexa que suporta o pedido em julgamento neste processo, afigura-se-nos correta a qualificação jurídica feita pelo tribunal recorrido, quando configura a mesma como uma situação de

responsabilidade civil extracontratual, nos termos e para os efeitos do artigo 45.º do Código Civil, que, pelos fundamentos defendidos na sentença

impugnada, nos parece ser a regra do direito de conflitos efetivamente aplicável ao litígio em presença.

O Tribunal do Trabalho de Vila Franca de Xira, a este respeito, desenvolveu a seguinte argumentação jurídica, com a qual se concorda:

«Decidida que foi - por despacho relativamente ao qual já se esgotou o poder jurisdicional deste tribunal - a competência internacional dos tribunais

portugueses para conhecer da questão dos autos, importa passar a apreciá-la e, face à conexão que apresenta com várias ordens jurídicas, determinar qual a lei substantiva aplicável, sendo certo que a lei portuguesa - lei do foro - não o é, pelos motivos explanados no despacho de fls. 396 e segs.

Para o efeito, importa decidir prima facie e atentas as normas de conflitos vertidas no Código Civil português, a que instituto jurídico se subsume a referida questão, o que, considerada a configuração que os Autores deram à mesma, não é inequívoco. Na verdade, se bem se atentar, os Autores invocam como base da sua pretensão a ocorrência de um acidente de trabalho sofrido pelo seu filho, EE e, para o efeito, citam inclusivamente a Lei n.º 2127, de 03 de Agosto de 1965 (de ora em diante designada LAT), ou seja, o regime

jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais vigente em Portugal à data dos eventos. Acontece que o pedido formulado pelos AA. é o de que lhes seja atribuída a indemnização prevista no contrato de trabalho celebrado

entre EE e o empregador suíço que o contratou, indemnização essa relativamente à qual a 1.ª Ré assumiu a responsabilidade por via de um

contrato de seguro e que não encontra correspondência nas prestações que a

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lei portuguesa prevê em caso de acidente de trabalho mortal.

Ora, não obstante nos seus primórdios as lesões resultantes de acidentes de trabalho não tivessem qualquer tratamento especial nos ordenamentos jurídicos nacionais, ficando subordinadas aos princípios gerais da

responsabilidade civil, o certo é que cedo se reconheceu ser esta uma solução desajustada, quer por ser difícil provar a culpa do empregador, quer porque muitas vezes os acidentes não eram imputáveis a culpa deste. Esta última constatação fez também com que se abandonasse uma segunda abordagem, que passava ou pela presunção de culpa (no âmbito da responsabilidade contratual) ou pela constituição, no âmbito da responsabilidade extra contratual por facto ilícito, de uma presunção de culpa assente na ideia de periculosidade inerente à prestação de trabalho subordinado.

Assim e porque era premente encontrar um sistema justo de reparação, foi elaborada a teoria da responsabilidade objetiva ou pelo risco, baseada no risco natural inerente à prestação de trabalho, i. e., baseada no princípio de que o risco inerente à atividade prestada deve ser suportado pelo empregador, ainda que nenhuma culpa lhe possa ser imputada. Esta é a chamada teoria do risco profissional, que está originalmente ligada à perigosidade da máquina.

Contudo, tal teoria evoluiu para a teoria do risco económico ou de autoridade.

Trata-se da teoria segundo a qual a reparação não pressupõe já uma ligação direta ao trabalho. Ou seja, situações em que o acidente se dá não por causa de um qualquer risco específico da atividade prestada, mas ainda por causa da relação laboral (a este propósito, veja-se Vítor Ribeiro, in “Acidentes de

Trabalho, Reflexões e Notas Práticas”, Rei dos Livros, 1984, págs. 153 e segs.). Em suma, na reparação dos acidentes de trabalho tornou-se regra um regime que assenta na responsabilidade objetiva extracontratual do

empregador (neste sentido, também, o acórdão do STJ, de 03/10/2007, processo n.º 07S922, disponível na base de dados do ITIJ).

Assim, no caso dos autos, muito embora os Autores assentem a sua pretensão também no que foi clausulado no contrato de trabalho celebrado entre EE e seu empregador, parece-nos, face ao que foi dito supra, que, pelo menos nesta fase, em que importa encontrar a norma de conflitos aplicável, a tónica deve ser colocada no instituto subjacente à reparação das consequências dos acidentes de trabalho.

Sendo assim, importa atentar no art.º 45.º n.º 1 do Código Civil, que determina que “a responsabilidade extracontratual fundada, quer em ato ilícito quer no risco ou em qualquer conduta lícita, é regulada pela lei do Estado onde decorreu a principal atividade causadora do prejuízo”, ou seja, é regulada pela lei do local onde ocorreu o facto jurídico que deu lugar aos danos (neste sentido também, entre outros, o acórdão da Rel. do Porto, de

(13)

18/11/2010, processo n.º 1418/08.6TBLSD.P1, disponível na base de dados do ITIJ).»

E - REGIME JURÍDICO APLICÁVEL - SUA INTERPRETAÇÃO

Ora, tendo em consideração que a referida causa de pedir complexa se radica no alegado «acidente»[3], é manifesto que foi na Nigéria «onde decorreu a principal atividade causadora do prejuízo», sendo, portanto, a lei desse Estado africano que tem de ser chamada à colação, como fez o tribunal recorrido.

Analisada a legislação nigeriana que se mostra junta aos autos (versão original, em língua inglesa e tradução em português), não se vislumbra na mesma um regime similar ou sequer próximo daquele que vigorava (e ainda vigora, muito embora ao abrigo de nova legislação) em território português à data do «sinistro» dos autos - a saber, um conjunto específico, lógico,

sistematizado e “fechado” de normas jurídicas reguladoras, quer em termos substantivos, como adjetivos, que constitua o regime legal regulador das diversas vertentes juridicamente relevantes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais - mas antes referências esparsas e algo desconexas à saúde, doença e incapacidade no trabalho, que pouco nos ajudam na

problemática em presença, parecendo tal sistema legislativo assentar a sua regulamentação, essencialmente, nas estipulações contratuais estabelecidas entre as partes (trabalhador e empregador).

Também aqui temos de acompanhar a decisão impugnada quando afirma o seguinte:

«Compulsada a lei nigeriana, verifica-se, então, que, em matéria de acidentes de trabalho, a mesma remete para os contratos de trabalho. Assim é que, nos contratos nacionais, obriga a que deles constem os termos e condições

relativas a “incapacidade de trabalho por doença ou acidentes, incluindo pagamentos por baixa de doença” (art.º 7.º, n.º 1, al. g) iii) da Lei Laboral da Nigéria) e, no que aos contratos celebrados no estrangeiro diz respeito, reconhece a validade das estipulações que contenham a este respeito (art.º 87.º da mesma Lei).

Face a todo o exposto e não obstante uma primeira conclusão apontasse em sentido contrário, acabamos por concluir dever ser a questão dos autos dirimida com base no contrato de trabalho celebrado entre EE e a 2.ª Ré».

Pensamos, contudo - como, aliás, já deixámos antes referido, que o dito

contrato de trabalho reclama uma conjugação e complementaridade estreitas com o contrato de seguro firmado entre as duas Rés, pois este último é que concretiza e corporiza, verdadeiramente, o compromisso assumido pela Ré

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DD, AG perante o trabalhador EE.

Já antes aflorámos tal assunto, para dizer que a entidade empregadora, ao lado de deveres próprios e pessoais -, v.g., remuneração (cláusula 3.ª),

despesas de viagem (cláusula 4.ª), pagamento da baixa por doença/ferimento durante os primeiros 30 dias (cláusula 11.ª), cuidados médicos (cláusula 12.ª) e falecimento em serviço (cláusula 16.ª) -, assume outros que se reconduzem, na realidade, à celebração de um contrato de seguro de doença/acidentes de trabalho com uma entidade seguradora (no nosso caso, a 2.ª Ré), fazendo recair sobre esta a responsabilidade direta e imediata pela sua garantia e satisfação: pagamento da baixa por doença/ferimento durante os segundos 30 dias (cláusula 11.ª) e situação de falecimento/incapacidade, por motivos

profissionais, do trabalhador sinistrado pagamento da baixa por doença/

ferimento durante os primeiros 30 dias (cláusula 14.ª).

Ora, impondo-se uma leitura conjunta ou, pelo menos, integrada de ambos os negócios jurídicos - não se vislumbrando no regime legal nigeriano óbice a tal procedimento interpretativo -, será de acordo com o conteúdo dos mesmos que iremos continuar a nossa abordagem às demais questões suscitadas neste recurso de Apelação, sem perder de vista que os mesmos - com especial

relevância para o segundo - e no que concerne às noções de «acidente de trabalho» e «doença profissional», vão beber as suas raízes na legislação suíça, que, por vezes, é referida no seu texto (a legislação portuguesa só é mencionada para efeitos de determinação dos sucessores legais do sinistrado - cf. cláusula 14.ª, número 1 do contrato de trabalho).

F - PALUDISMO - ACIDENTE DE TRABALHO?

Chegados aqui, não podemos deixar de realçar a diferença de índole jurídica que existe entre o regime legal regulador dos acidentes de trabalho e doenças profissionais em Portugal e aquele que, por força da nacionalidade comum das duas Rés e do conteúdo dos dois negócios jurídicos em análise, vigora na

Suíça.

É este o verdadeiro pomo da discórdia no quadro desta ação, pois que, ao passo que no nosso sistema jurídico foi sendo construído um conceito de

acidente de trabalho que, entre as diversas consequências possíveis do evento mais ou menos súbito, prevê a «doença» como uma delas[4], na lei helvética tais “doenças” parecem institucionalizar-se como uma categoria à parte do acidente de trabalho ou aproximarem-se mesmo, em termos de tratamento e proteção jurídicas, dos que são conferidos às doenças profissionais.[5]

Chamemos à boca de cena deste Aresto o que nos diz Carlos Alegre, em

«Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais - Regime Jurídico Anotado”,

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2.ª Edição, Almedina, Fevereiro de 2000, páginas 37 a 39, a propósito desses três tipos diferentes de «doenças», no campo do direito infortunístico laboral:

«Já a subitaneidade permite distinguir o acidente da doença, caracterizada esta por uma evolução lenta, e confere ao acidente a possibilidade importante de ser datável, até ao minuto, mesmo que a lesão corporal resultante da causa exterior se manifeste muito mais tarde.

É claro que este critério não resolve sozinho todas as situações da vida real, muito mais extravagantes do que uma imaginação rica poderia conceber:

existem zonas cinzentas em que a subitaneidade se esbate perante uma evolução lenta, como é, por exemplo, a que resulta da ação contínua de um instrumento de trabalho ou do agravamento de uma predisposição patológica ou das afeções patogénicas contraídas por razão do trabalho.

Vale a pena exemplificar algumas situações que se incluem naquelas três formas lentas e insidiosas de provocar uma lesão corporal, para avaliar até que ponto poderão ser configuráveis como causadoras de acidentes de trabalho: a surdez da telefonista, ocasionada pelo uso continuado de

auscultadores com ação continuada sobre as membranas dos tímpanos: o calo do escrivão, resultante de sucessivos microtraumatismos; a paralisia do

polegar, pelo efeito de movimentos repetitivos: etc.. Estas e outras situações não conseguiram, durante algum tempo, soluções consensuais, desvanecida como se apresentava a característica da subitaneidade, ao mesmo tempo que se verifica a ausência do que caracterizava a doença profissional: a particular periculosidade do ambiente e dos produtos manipulados.

Tera sido ETIENNE MARTIN, em Abril de 1929, na 4.ª Reunião Internacional Permanente para o Estudo das Doenças Profissionais, quem, pela primeira vez, sugeriu a existência de doenças de trabalho, a par das doenças profissionais e, de algum modo, diferentes dos acidentes de trabalho, distinguindo as duas primeiras pela seguinte forma: as doenças profissionais atingem os

trabalhadores que exercem a sua atividade em ambiente nocivo à saúde, quer pelas substâncias manipuladas, quer pelo meio em que se desenvolve:

enquanto as doenças de trabalho são comuns a qualquer trabalhador, por virtude de qualquer trabalho.

Esta distinção veio a ter consagração legal, na Base XXV, da Lei n.° 2127/65, cujo n.° 1 se refere às doenças profissionais, enquanto o n.º 2 se reporta às doenças do trabalho. A atual lei n.° 100/97 transpôs a mesma ideia para o seu artigo 27.°.

Não deixa de ser sintomática a história deste preceito, em cuja proposta as doenças referidas no n.° 2 eram ainda denominadas de acidentes de trabalho.

O relatório que acompanhava a proposta de lei argumentava assim: "quando, porém, a doença resulte de uma causa que atue continuadamente, em

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consequência da atividade exercida, mas não (conste) dessa lista (de doenças profissionais), tal enfermidade será considerada acidente de trabalho (v.g., o caso de uma doença provocada por trepidação contínua da máquina usada)".

Esta forma de ver a questão veio a ser criticada pela Câmara Corporativa que argumentava com o facto de os acidentes de trabalho se manifestarem

normalmente per forma súbita e imprevista, enquanto as doenças de trabalho são o resultado de ação lenta e insidiosa, pretendendo a eliminação daquele n.

° 2, uma vez que ele facultaria indiretamente a ampliação da lista das doenças profissionais, ao mesmo tempo que poderia permitir que se qualificassem como acidentes de trabalho afeções vulgares que surgem ao fim de muitos anos de trabalho em consequência do normal desgaste do organismo.

A proposta do n.° 2, da Base XXV, veio a vingar na então Assembleia Nacional, considerando, de acordo com o parecer da Camara Corporativa, que se tratava de doença do trabalho, espécie intermédia entre o acidente de trabalho e a doença profissional, necessária face à imprevisibilidade da origem e fontes de doenças que, por isso mesmo, não podem constar de listas de doenças

profissionais, ainda que estas listas se atualizem periodicamente.

O agravamento de um estado patológico já existente ou de uma predisposição patológica, por efeito do trabalho, é uma das zonas cinzentas da acutilância da característica subitaneidade.

Para CUNHA Gonçalves (Loc. cit.), "a subitaneidade do facto, com os seus dois elementos - a imprevisão e a limitação de tempo - e característica essencial do acidente, pois não pode ser assim designada uma lesão que, embora produzida durante o trabalho, foi lenta e progressiva. Ainda que a lesão possa agravar-se pouco a pouco, a causa é que será, sempre, súbita: golpe, queda, hérnia,

queimadura, pancada, explosão, entalação, etc.". A lei portuguesa, desde os §§

1.° e 2.°, do artigo 4.° da Lei n.° 1 942, até a Base VIII da Lei n.° 2127/65, e, agora, ao artigo 6.° da Lei n.° 100/97, atribui a essas situações a natureza de acidentes de trabalho (…)

c) A lesão corporal, perturbação funcional ou doença (estas três expressões não são, evidentemente, sinónimas) são uma das condições expressas no conceito de acidente de trabalho. A lesão é o efeito de que o acidente (o

evento lesivo) é a causa. É importante, pois, que se não confunda acidente (de trabalho) com lesão.

A lesão corporal (perturbação funcional ou doença, usaremos a primeira expressão, abrangendo, também, estas duas por facilidade discursiva) - a própria interior Base V o dizia - pode ser produzida direta ou indiretamente pelo acidente (evento lesivo); isto é, a lesão corporal pode ser uma lesão física ou psíquica, aparente ou oculta, externa ou interna; pode manifestar-se

imediatamente a seguir ao evento lesivo ou evidenciar-se algum tempo depois

(17)

ou, até, muito tempo depois. Necessário é que exista um nexo de causa e efeito (nexo de causalidade) entre o ato lesivo e a lesão corporal.».

Tal diferença de perspetiva é crucial, pois que uma doença como a do

«paludismo», causada por uma picada de um mosquito, no tempo e lugar de trabalho e por causa da prestação profissional da vítima, reconduz-se, em nosso entender, ao conceito de acidente de trabalho contemplado na já

transcrita Base V da LAT (cf., aliás, o artigo 24.º da participação de acidente de trabalho dos autos, onde se refere e transcreve a posição de Luís Cunha Gonçalves em “Responsabilidade Civil pelos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais», Coimbra, 1939, páginas 48: «… assim na Alemanha, o Instituto de Seguros considerou acidente de trabalho o facto de um mecânico enviado à Algéria, para proceder à instalação dumas máquinas, ter ali contraído a

malária, doença de que veio a morrer. A malária não é uma doença

profissional; mas sendo contraída no local, no tempo e por causa do trabalho, num país infestado do mosquito anófeles, constituirá acidente de trabalho») [6], ao passo que a legislação suíça, que inspirou o contrato de seguro dos autos, assim como o contrato de trabalho, no que toca à ideia de acidente aí prevista, exclui do seu âmbito uma doença como o paludismo, que vitimou o sinistrado dos autos.

A decisão judicial impugnada sustenta a este respeito, com propriedade, o seguinte:

«E, efetivamente, esse contrato de seguro foi celebrado, encontrando-se a tradução a fls. 162 dos presentes autos. Lê-se no mesmo, no que releva para a decisão a proferir que:

“Art.º 12: Definição de Acidente

12.1 Quaisquer lesões corporais involuntariamente sofridas pela pessoa segura, ocasionadas por causas súbitas e externas serão consideradas acidente, para efeitos deste seguro.

São também considerados acidentes:

- Deterioração do estado de saúde por involuntária inalação de qualquer gás, fumos ou vapores, ou ingestão inadvertida de venenos ou substâncias

cáusticas.

- Deterioração do estado de saúde da pessoa segura, desde que esta as tenha sofrido involuntariamente, tais como luxações e lacerações dos músculos como resultado de um esforço físico do segurado; ulceração pelo frio; insolação;

assim como deterioração do estado de saúde por raios ultravioletas, com exceção de queimaduras solares; afogamento.

12.2 Não são considerados acidentes:

Doenças de qualquer espécie; lesões corporais causadas por qualquer tipo de doença (tais como apoplexia e convulsões, alterações metais e perturbações

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psíquicas); feridas e dores; deterioração do estado da pessoa segura causada por intervenções médicas que não as necessárias ao tratamento das lesões resultantes do acidente coberto; lesões físicas sofridas pela pessoa segura causadas por auto-flagelamento ou por intervenção de terceiros a seu pedido;

deterioração do estado de saúde causada por efeito de raios iónicos de qualquer tipo, em particular por mudanças nos seus núcleos atómicos.

Art.º 13 Acidentes Laborais e Não Laborais

13.1 Devem ser considerados acidentes de trabalho os que ocorrem:

- durante o exercício de qualquer trabalho desempenhado no âmbito da atividade ou serviço declarado;

- dentro da área da atividade declarada, desde que a pessoa segura ali não resida;

- no caminho direto ou no regresso direto do local de trabalho, excluindo acidentes no prédio habitado pela pessoa segura ou na sua área limítrofe.

13.2 Todos os outros acidentes são considerados como acidentes não laborais.

[…]”

São estas, pois, as estipulações contratuais que agora importa dissecar e, no fundo, a questão resume-se ao seguinte: será que o evento do qual resultou a morte de EE, é subsumível ao conceito de acidente, mormente ao de acidente laboral?

Para o efeito, importa ter em mente que EE contraiu paludismo quando se encontrava na Nigéria, país no qual exercia funções para a 2.ª R., com o horário melhor descrito na alínea h) da matéria de facto provada, e que EE faleceu em consequência do paludismo, tendo contribuído para o falecimento de EE também a insuficiência cardíaca e renal de que padecia.

É do conhecimento generalizado que o paludismo resulta da picada de um inseto. E, verdadeiramente, não choca considerar que a picada do mosquito transmissor de paludismo consubstancia uma causa súbita e externa, tal como mencionado na cláusula 12.1 do contrato de seguro em análise. Efetivamente, tratou-se de algo exterior ao corpo de EE e verifica-se também a característica de imprevisão e limitação no tempo que geralmente é associada ao conceito de subitaneidade.

Acontece que, de acordo com o que foi clausulado em 12.2 do contrato de seguro em apreço, as doenças mostram-se excluídas do conceito de acidente.

Efetivamente, diz-se aí expressamente que não são considerados acidentes doenças de qualquer espécie.

Compulsadas, por sua vez, as mais diversas fontes - mormente a Organização Mundial de Saúde (http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs094/en/

index.html) e, porque de um contrato celebrado por uma seguradora suíça se trata, o departamento federal de saúde pública suíço (http://

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www.bag.admin.ch/themen/medizin/00682/00684/01086/index.html?lang=fr) -, verifica-se que o paludismo é uma doença, o que, aliás, vem expresso pelos próprios Autores na petição inicial (designadamente nos artigos 12.º, 15.º, 16.º, 19.º e 20.º).

Ou seja, foi entendimento das partes que a indemnização que vem peticionada nestes autos fosse atribuída caso EE sofresse um acidente.

Mas, considerando as disposições contratuais em questão, EE padeceu de uma doença, não tendo sido vítima de um acidente.

Compreende-se, aliás, por que motivo as partes convencionaram a exclusão nos termos enunciados, pois, tratando-se de um contrato de seguro celebrado entre uma seguradora suíça e uma empresa da mesma nacionalidade, ter-lhe-á estado subjacente, mormente no que diz respeito à respetiva interpretação e subsunção, o enquadramento que nestes casos é dado pela lei suíça, sendo que esta, na lista de doenças profissionais, enuncia a malária precisamente como doença profissional de trabalhadores em estadia profissional em regiões tropicais e subtropicais (cfr. fls. 594 da legislação traduzida).»

Constata-se, com efeito, que a Lei Federal (Suíça) sobre Seguros - Acidentes - LAA (fls. 493 e seguintes do apenso - tradução), estabelece quanto ao objeto desse tipo de seguros o seguinte:

Título 2

Objeto do Seguro Art.º 6

Generalidades

1 - Salvo se disposto em contrário pela presente lei, os prémios de seguro são atribuídos em caso de acidente profissional, de acidente não profissional e de doença profissional.

2 - O Conselho federal pode incluir no seguro lesões corporais que possam ser consideradas consequência de um acidente.

3 - O seguro atribui os seus prémios, entre outros casos, por lesões

provocadas ao segurado vítima de um acidente por motivo de um tratamento médico (art.º 10).

Art.º 7

Acidentes profissionais

1 - Consideram-se acidentes profissionais, os acidentes (art.º 4 LPGA) de que seja vítima o segurado nos seguintes casos:

a. Quando esteja a executar um trabalho sob as ordens do seu empregador ou no interesse deste.

b. No curso de uma interrupção do trabalho, e antes ou depois do trabalho, desde que se encontre, por direito, no local de trabalho ou na zona de perigo

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relacionada com a sua atividade profissional.

2 - Os acidentes que se verifiquem no trajeto que o segurado tem que percorrer até ao seu local de trabalho ou de regresso do mesmo são também considerados como acidentes de trabalho para os trabalhadores com contrato a tempo parcial, cujo termo não atinja a duração mínima a ser determinada pelo Conselho federal.

3 - O Conselho federal pode prever uma outra definição de acidente profissional para os sectores económicos, nomeadamente a agricultura e o pequeno artesão, que apresentem formas específicas de exploração.

Art.º 8

Acidentes não profissionais

1 - São considerados acidentes não profissionais os acidentes (art.º 4, LPGA) que não sejam acidentes profissionais.

2 - Os trabalhadores com ocupações a tempo parcial no âmbito do art.º 7, al.

2, não são segurados contra acidentes não profissionais.

Art.º 9

Doenças profissionais

1 - São consideradas doenças profissionais as doenças (art.º 3, LPGA) originadas exclusivamente, ou de forma preponderante, no exercício da

atividade profissional, por substâncias nocivas ou por determinadas atividades profissionais. O Conselho federal estabelece a lista destas substâncias e das atividades profissionais bem como das afetações que provocam.

2 - São ainda consideradas doenças profissionais as restantes doenças que se prove serem originadas exclusivamente, ou de forma preponderante, pelo exercício da atividade profissional.

3 - Salvo disposição em contrário, a doença profissional é considerada como um acidente profissional a partir do dia em que seja declarada. Uma doença profissional é considerada declarada a partir do momento em que a pessoa afetada se sujeite, pela primeira vez, a um tratamento médico, ou fique impossibilitada de trabalhar (art.º 6 LPGA).

As disposições dessa Lei Federal - com especial relevância para o transcrito artigo 9.º, número 1, no que para aqui releva - são complementadas pelo determinado no artigo 14.º do Despacho sobre Seguro de Acidentes (OLAA) - constante de fls. 543 e seguintes do mesmo apenso - e pelas listas que se acham juntas, como Anexo I, a fls. 592 a 594 desse mesmo volume e que versam sobre as doenças profissionais referidas naquele artigo 9.º, número 1.

Depois de uma primeira «Lista de substâncias nocivas e afeções devidas a certos trabalhos de acordo com o art.º 14 do Despacho», deparamo-nos com uma segunda relação, identificada como «2 - As seguintes afeções são

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reputadas como se devendo a certos trabalhos no sentido do art.º 9.º, al. 1 da lei» e que se mostra dividida entre «a. Doenças devidas a agentes físicos» e

«b. Outras doenças», podendo ler-se no final deste segundo grupo o seguinte:

Amibiase, febre amarela, hepatite A, hepatite E, malária

Anguilulose, ancilostomiase, bilharziose, cólera,

clonorquíase, febre hemorrágica, filariose, leishmaniose,

lepra, oncocercose, salmonelose, sigelose,

tracoma, tripanossomíase

Trabalhadores em estadia profissional em regiões tropicais e subtropicais.

Logo, conforme se mostra defendido na sentença recorrida, parece inequívoco que para efeitos dos referidos contratos de trabalho e de seguro, por

referência à lei suíça acima transcrita, o «paludismo» que vitimou o sinistrado é uma «doença profissional» e não um «acidente de trabalho», não havendo lugar ao acionamento do segundo negócio jurídico e ao pagamento aos Autores da indemnização aí mencionada por parte da 2.ª Ré.

G - PRINCÍPIOS DE ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL

Os recorrentes argumentam, todavia, contra tal tese, nos moldes seguintes:

“f) Ficou provado que o irmão dos aqui Apelantes faleceu no dia 12 de Fevereiro de 1993 (alínea a) dos factos provados), em consequência de

paludismo (alínea b) os factos provados), exercera as funções de tubista para a Ré DD, AG ... no campo petrolífero de Obiafu/Obrikon, na Nigéria, mediante contrato de trabalho com a mesma celebrado em 20 de Junho de 1992, o que fez desde então até à data do seu óbito (alínea g) dos factos provados), que em 19 de Janeiro de 1993, viajara de Obiafu/Obrikon, na Nigéria para Portugal (alínea n) dos factos dados como provados) e que, quando embarcou para Portugal, já era portador da doença (paludismo), contraída na Nigéria e que apenas se veio a revelar quando já se encontrava em Portugal (alínea o) dos factos dados como provados”;

f) Tal situação está incursa no disposto na Base V, n. º 1, da Lei n. º 2127, de 3

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de Agosto de 1965, vigente aquando dos factos;

g) E, também, na Base XXV, n. º 1, da mesma Lei, que determinava que as doenças profissionais eram as que taxativamente constavam de lista que, à data dos factos, constava do Decreto Regulamentar n. º 12/80, de 8 de Maio, resultando da conjugação do artigo 1.º e do ponto 55.1. do anexo do mesmo serem doença profissional “doença devida a agente animado” todas as formas clínicas causadas por agentes biológicos causadores de doenças tropicais sendo suscetíveis da mesma, os trabalhadores que permanecessem a título profissional em países tropicais, o que inclui o paludismo, ou malária;

h) A Base XLII I, n.º 1, referia serem as entidades patronais obrigadas a transferir a responsabilidade “pela reparação prevista na presente lei” para entidades legalmente autorizadas a real izar este seguro;

i) E o n.º 3, prescrevia, expressamente, ser nula “qualquer cláusula da apólice que exclua o risco de silicose ou outra doença profissional” a não ser que o risco estivesse coberto pela Caixa Nacional de Seguros e Doenças

Profissionais;

j) Preceitos em consonância, com o que decorre da Base XL, n. º 1, que prescreve a nulidade da “…convenção contrária aos direitos ou às garantias conferidos nesta lei e com eles incompatível” e com o n.º 2 da mesma base que determina a nulidade dos “atos ou contratos que visem a renúncia aos direitos conferidos nesta lei”;

k) Ao aplicar, no caso concreto o ponto 12.2 do contrato de seguro celebrado entre as Rés DD, AG e CC que excluía da reparação as doenças de qualquer espécie, aplicou a douta sentença a quo, estipulação contrária ao disposto na Base XLIII, n.ºs 1 e 3, da Lei n. º 2127, assim a desaplicando;

l) Estipulação que, ainda que se entendesse ser a lei do país das Rés, a Suíça, a aplicável, e que a mesma permitia pactuar a exclusão da reparação por doença, violaria o disposto no artigo 22.º do Código Civil, dado as normas constantes das Bases I, V, n. º 1, XXV, n. º 1, XL, n.º 1 e XLII I, n. º 1 e 3, da Lei n. º 2127, de 3 de Agosto de 1965 serem normas de ordem pública”.

O artigo 22.º do Código Civil, que possui a epígrafe «Ordem Pública»[7] reza o seguinte:

1. Não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português.

2. São aplicáveis, neste caso, as normas mais apropriadas da legislação estrangeira competente ou, subsidiariamente, as regras do direito interno português.

(23)

Baptista Machado na obra citada, a páginas 261 a 266, depois de caracterizar a «Ordem Pública» como uma exceção - exceção à aplicação da lei

normalmente aplicável -, que, tendo uma intervenção a posteriori, possui uma natureza contingente, concreta, atual, imprecisa, nacional ou relativa a uma ordem jurídica determinada, define da seguinte maneira os pressupostos da sua verificação:

« (…) segundo a doutrina dominante, a dita exceção ou reserva vê-se desde logo balizada na sua intervenção pelo facto de o juiz a não poder fazer valer senão «quando uma ligação estadual de intensidade “primária” torne efetiva a dissonância entre a lex fori e a lei estrangeira» (GUTZWILLER). O caso

deveria apresentar uma ligação suficientemente estreita com a ordem do foro para que se justificasse a intervenção da ordem pública. É este também um dos importantes ensinamentos de KAHN. A existência de uma conexão com o Estado local (...) importaria de maneira decisiva para a intervenção da ordem pública.

(…)

Com efeito, é somente então, dada essa conexão com a “lex fori”, seja ela qual for (nacionalidade ou domicílio de uma das partes, etc.), que o caso virá a ter impacto no ordenamento da “lex fori”, enquanto ordem jurídica efetiva;

ganhando, assim, aquela divergência entre a “lex fori” e a lei estrangeira relevância decisiva, em virtude de se poder vir a criar uma situação jurídica que, como corpo estranho e inassimilável, ficaria a «poluir» o dito

ordenamento do foro.

(…)

Nesta doutrina, a intensidade da o. p., determinada pela divergência entre as conceções da justiça material “fori” e as da lei estrangeira, seria tanto maior quanto mais forte fosse a ligação do caso com o Estado do foro - o que

provocaria uma compressão ou uma expansão conceito de o. p., uma variação do seu grau de incidência, conforme a situação concreta. Em todo o caso, para a o. p. intervir, será sempre necessário que o direito estrangeiro aplicável atropele grosseiramente a conceção de justiça de direito material, tal como o Estado do foro a entende. Será sempre preciso que esse direito estrangeiro comova ou abale os próprios fundamentos da ordem jurídica interna (pondo em causa interesses da maior transcendência e dignidade), que ele seja de molde a «chocar a consciência e provocar uma exclamação», para que se justifique um desvio da linha de justiça do DIP através da exceção da o. p.

No entanto, no caso de divergências abissais entre as duas ordens jurídicas materiais, isto é, no caso de leis estrangeiras que abalem o mais profundo do sentimento jurídico interno por entrarem em conflito com os princípios

fundamentais da ordem jurídica nacional considerados como inamovíveis e

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imutáveis, como património intangível de que compartilha uma comunidade cultural - em tal caso há que renunciar a exigência da referida «ligação» com o Estado do foro (…). Aqui, o simples facto de um tribunal interno ser

chamado a aplicar tais normas - ficando o caso tangencial à ordem interna - seria pressuposto suficiente para fazer intervir a exceção de o. p. Estariam neste caso, por ex., a expropriação sem indemnização (confisco), a negação de direitos fundamentais aos judeus na Alemanha nazi, certos direitos sobre pessoas nas comunidades primitivas, etc.). É que o princípio que manda reconhecer capacidade jurídica a todos os seres humanos, assim como o princípio da igualdade de todos perante a lei e o respeito pelos direitos fundamentais da pessoa humana são princípios jurídicos que nós consi ‐ deramos como expressão de uma justiça absoluta.

Fora destes casos, fica de pé aquela «medida objetiva da ligação da relação jurídica com a ordem do foro».

Vemos, assim, que o conteúdo da lei estrangeira competente não é, em geral, só por si decisivo para fazer entrar em jogo a exceção de o. p. Serão antes as circunstâncias ou os resultados da aplicação dessa lei ao caso concreto os fatores decisivos do seu afastamento por uma razão de o. p., entre essas circunstâncias se contando - a maior parte das vezes, mas não sempre - um elemento de conexão com o Estado do foro.

Nem estará porventura excluída a hipótese referida por certos

internacionalistas - mas que será deveras rara - de dever afastar-se, em razão da o. p. internacional, a aplicação duma lei cujo conteúdo em nada contradiz os princípios jurídicos do foro, por essa aplicação conduzir a resultados chocantes no caso em apreço, em virtude de uma complexa e anormal combinação das circunstancias.

Normalmente, depois de estabelecida a incompatibilidade abstrata (referida ao conteúdo da lei estrangeira), será mister estabelecer uma

incompatibilidade concreta, isto é, determinar se a intensidade da ligação da relação considerada à ordem jurídica do foro, ou outras circunstâncias do caso, justificam a intervenção da reserva de ordem pública.

Importa, pois, afirmar de uma maneira mais geral que é a aplicação ao caso da lei estrangeira que há-de revelar a chocante contradição com as conceções ético-jurídicas que têm curso na ordem do foro e, assim, justificar a

intervenção da reserva da o. p. Por isso, será necessário examinar as circunstâncias de facto dessa aplicação antes de se decidir sobre a intervenção da dita reserva.

A fórmula do art.º 22.º, 1, do nosso Código, segundo a qual não são aplicáveis os preceitos da lei competente «quando essa aplicação envolva ofensa» da nossa o. p., parece justamente apontar para a ideia de que a violação da dita o.

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p. deve ser apreciada em face do caso concreto. (…)

Ao juiz «(…) competirá, em face de cada caso concreto e socorrendo-se do seu senso jurídico, apurar se a aplicação da lei estrangeira considerada

competente importaria na hipótese um, resultado intolerável, «quer do ponto de vista do comum sentimento ético-jurídico (“bons costumes”), quer do ponto de vista dos princípios fundamentais do direito português: algo de

inconciliável com as conceções jurídicas que alicerçam o sistema».

Não é possível estabelecer um catálogo completo dos princípios de o. p., mediante uma indagação abstrata; isto porque, além de ser impossível prever as flutuações da consciência coletiva e do conteúdo do direito vivo, o caracter de o. p. de certo princípio muitas vezes só se revela através da experiência, isto é, da prática judicial».

Tendo em linha de conta o que o Professor Baptista Machado nos diz acerca da «Ordem Pública», não nos parece que, no caso vertente, se verifique uma ofensa de tal forma séria e grave dos princípios fundamentais que estruturam e justificam o nosso sistema jurídico que reclame o funcionamento de tal exceção da ordem pública, conforme prevista no artigo 22.º do Código Civil.

Não se nos afigura, com efeito, que, pelo facto de se permitir, noutras ordens jurídicas, às partes contratantes, a previsão e regulação, por via convencional [8], das situações, em meio laboral ou não, que devem ser qualificadas como acidente de trabalho e, consequentemente, das garantias, regalias e direitos, designadamente, de índole indemnizatória, de que o trabalhador sinistrado pode beneficiar e reclamar, se fira de morte os aludidos princípios

fundamentais que integram a nossa ordem pública.

No caso vertente, constata-se que a eventualidade da ocorrência de um acidente de trabalho, bem como as consequências jurídicas derivadas do mesmo para as partes envolvidas - vítima do sinistro e ambas as Rés - se mostram mínima e devidamente contempladas nos dois contratos dos autos - de trabalho e de seguro de acidente de trabalho -, vindo tal regulamentação protetora da posição do trabalhador e dos seus familiares, que se mostra efetuada por via convencional, suprir o aparente vazio legislativo, de cariz neoliberal, da lei nigeriana, que, no entanto, consente que tal matéria seja contratualizada por trabalhadores e empregadores.

Nesta parte da análise, temos que acompanhar o que se refere na sentença impugnada, a esse propósito:

«A tanto não obsta, salvo melhor opinião, o disposto no art.º 22.º do Código Civil português, já que, pese embora as normas do regime dos acidentes de trabalho assumam em Portugal um carácter imperativo (vide a Base XL n.ºs 1 e 2 da LAT), a lei nigeriana, ao permitir a regulação contratual da matéria dos acidentes de trabalho, não ofende “princípios fundamentais da ordem pública

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internacional do estado português”, desse logo porquanto não afasta a reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho.»[9]

Também a circunstância da noção de acidente de trabalho dos referidos

contratos – por referência à lei suíça – excluir uma situação como a dos autos, de morte por paludismo, derivada do ambiente de trabalho da vítima

(perspetivando-a, antes, como doença profissional) quando para a nossa lei tal raciocínio poderia ser o inverso, não configura um cenário de ofensa profunda e manifesta aos princípios e valores básicos e essenciais da nossa ordem

jurídica, não só porque, como já acima vimos, tal qualificação jurídica como acidente de trabalho é duvidosa, mesmo entre a nossa jurisprudência, como não briga e desvirtua profundamente a essência do conceito e do regime de acidente de trabalho que vigora em Portugal.

Finalmente, o facto de os Autores não perceberem qualquer indemnização por força da morte do seu irmão (e filho dos demandantes originais) não nos

impressiona, no plano da ordem pública internacional, dado nem uns nem outros, atenta a factualidade alegada e provada quanto à sua situação pessoal e o regime legal português aplicável à data do acidente dos autos[10], terem direito a qualquer pensão anual, vitalícia ou não, o que indica que, para o nosso sistema jurídico, só determinadas situações particulares dos

ascendestes ou outros parentes do sinistrado falecido consentem a reparação prevista naquele regime legal.

Logo, não vislumbramos fundamento para fazer funcionar a ordem pública portuguesa, no que concerne ao regime jurídico acima analisado.

Sendo assim, o presente recurso de Apelação tem de ser julgado totalmente improcedente, com a confirmação da sentença recorrida.

IV – DECISÃO

Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 712.º do Código de Processo Civil, acorda-se neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto por HH e GG, nessa medida se confirmando a decisão recorrida.

Sem custas, atento o que a esse respeito se mostra defendido na sentença recorrida.

Registe e notifique.

Lisboa, 19 de Setembro de 2012

(27)

José Eduardo Sapateiro Sérgio Almeida

Jerónimo Freitas

---

[1] Cfr., quanto a estas duas disposições, J. Baptista Machado, “Lições de Direito Internacional Privado”, Apontamentos das aulas teóricas do ano letivo de 1971-1972 na Faculdade de Direito de Coimbra, Atlântida Editora, SARL, 1974, páginas 358 e seguintes e Pires de Lima e Antunes varela, Código Civil Anotado, I Volume, 3.ª Edição, 1982, Coimbra Editora, páginas 79 a 81, em anotação dos referidos artigos.

[2] O excerto acima transcrito insere-se na seguinte parte do contrato de trabalho, que se mostra junto, no seu idioma original - inglês - a fls. 11 a 19 e 47 a 55 dos autos e, na sua tradução para língua portuguesa, a fls. 34 a 46:

«11. BAIXA POR DOENÇA/FERIMENTO 11.1 Baixa por Doença

Na apresentação de um atestado médico apropriadamente anotado, a

Sociedade pagará ao Trabalhador até um máximo de 30 (trinta) dias civis por ano do seu salário base, até o Trabalhador voltar a trabalhar ou ter sido

repatriado à custa da Sociedade.

Depois deste período, a Seguradora pagará uma quantia de US$13,00 por dia até um máximo de 60 (sessenta) dias. A prova do seu direito ao salário base e ao pagamento pela Seguradora será feita por meio da apresentação de

atestado médico adequado. Poder-se-á exigir que o Trabalhador seja examinado pelo médico designado pela Sociedade.

11.2 Baixa por ferimento sofrido no local de trabalho

Quando um Trabalhador não puder trabalhar por motivo de um ferimento sofrido no local de trabalho, terá direito a uma indemnização de um máximo de 30 (trinta) dias civis por ano. No caso de o ferimento sofrido no local de trabalho exceder 30 (trinta) dias civis, a Seguradora pagará a quantia de US

$13,00 por dia ate um máximo de 60 (sessenta) dias. A prova do seu direito ao salário base será feita por meio da apresentação de atestado médico

adequado. Poder-se-á exigir que o Trabalhador seja examinado pelo médico designado pela Sociedade.

12. CUIDADOS MÉDICOS

A Sociedade fornecerá ao Trabalhador gratuitamente tratamento médico e instalações médicas no local de trabalho. A Seguradora reembolsara

quaisquer despesas médicas ou hospitalares até ao limite de US$10.000.00 para cada caso de doença ou ferimento. O tratamento dentário e os distúrbios mentais ou nervosos, tais como esgotamento nervoso, neuroses e psicoses serão excluídos das disposições acima expostas.

(28)

13. PENSÃO DE REFORMA

De acordo com as disposições do Acordo de Segurança Social entre a Suíça e Portugal, o Trabalhador estará sujeito às contribuições obrigatórias do Seguro de Reforma e Dependentes suíço. O montante descontado em contribuições obrigatórias será de 4,8% do salário bruto mensal do Trabalhador. A

Sociedade fornecerá ao Trabalhador o certificado de seguro relativo ao Seguro de Reforma suíço.

14. SEGUROS

A partir da data do início do trabalho, a Sociedade segurará o Trabalhador nos seguintes termos:

14.1 Falecimento em caso de acidente

Se um Trabalhador falecer em consequência de um acidente ocorrido durante o tempo em que estiver a trabalhar para a Sociedade, incluindo acidentes ocorridos durante deslocações de trabalho, a Seguradora pagará US

$40.000.00 ao parente mais próximo de acordo com as Leis do país do falecido, ou, na falta do mesmo, a qualquer outra pessoa que for designada pela pessoa que tiver competência para administrar o espólio do falecido.

14.2 Incapacidade por motivo de acidente

Qualquer Trabalhador que sofrer um acidente enquanto estiver a trabalhar para a Sociedade, sem ter a culpa do mesmo, incluindo qualquer acidente que ocorrer durante a sua deslocação ao ou do local de trabalho a pedido da

Sociedade, sendo a sua capacidade de trabalho permanentemente reduzida, receberá da Seguradora uma indemnização máxima de US$40.000.00,

calculada de acordo com a escala de gravidade estabelecida. Em caso de incapacidade parcial, a indemnização recebida corresponderá ao grau de gravidade da referida incapacidade. Em caso de perda simultânea do uso de várias partes do corpo como resultado do mesmo acidente, o grau de

incapacidade será geralmente estabelecido por adição das percentagens; no entanto, nunca poderá exceder US$40.000.00. A indemnização será feita por um único pagamento e não como anuidade vitalícia.

15. SEGURO DE FAMÍLIA

O Trabalhador, à sua própria custa, terá a possibilidade de segurar a sua família (esposa e filhos) nos seguintes termos:

15.1 Em caso de falecimento e/ou incapacidade total por motivo acidente, a quantia segurada máxima será:

a) Esposa: US$20.000.00

15.2 Em caso de incapacidade parcial por motivo de acidente, a indemnização corresponderá ao grau de incapacidade; no entanto, nunca poderá exceder 100% da quantia segurada para a incapacidade total.

b) Cada filho: US$ 5.000.00

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