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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ JÉSSICA HEINZEN FELISBERTO A CRISE DO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL E AS CONSEQUÊNCIAS PARA OS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS CURITIBA 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

JÉSSICA HEINZEN FELISBERTO

A CRISE DO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL E AS CONSEQUÊNCIAS PARA OS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS

CURITIBA 2019

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JÉSSICA HEINZEN FELISBERTO

A CRISE DO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL E AS CONSEQUÊNCIAS PARA OS SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS

Monografia apresentada ao curso de Direito, Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Egon Bockmann Moreira

CURITIBA 2019

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AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente aos meus pais por todo o apoio e carinho, sem o qual este trabalho não estaria concluído. Agradeço, especialmente, pela liberdade de ser quem sou e pelo mútuo respeito e confiança que sempre foram a base da nossa relação.

A minha irmã, pelos anos de convívio sob o mesmo teto, pelos tantos almoços que preparou para mim e, principalmente, pela crescente compreensão sobre nossas diferenças - que elas sempre nos aproximem.

Ao meu parceiro e melhor amigo, por tantas coisas que não poderia escrever num pedaço de papel. Seu apoio foi absolutamente essencial neste último ano. Que continuemos enfrentando desafios de mãos dadas.

Ao meu orientador, pela concessão de total liberdade para a exploração do tema. Minha admiração por sua dedicação ao magistério no Direito será eterna.

Aos meus colegas de faculdade, que se tornaram amigos e irmãos, Jonathan, Lin e Taíssa. Vocês foram o maior presente que a UFPR me proporcionou, que nossa amizade perdure para muito além das colunas da Santos Andrade.

A todos que, durante a caminhada universitária, me abriram os olhos e incentivaram, direta ou indiretamente, minha construção pessoal e política.

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Até agora os filósofos se preocuparam em interpretar o mundo de várias formas. O que importa é transformá-lo.

- Karl Marx

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RESUMO

Diante das crises institucionais e democráticas que atravessam a contemporaneidade, o presente trabalho tem como objetivo analisar os conceitos de Estado do Bem-Estar Social e Serviço Público. Inicialmente serão exploradas as diversas hipóteses utilizadas pela doutrina para fundamentar a crise do Estado Social, através de uma perspectiva crítica dos ataques ao mesmo. Após, delimitando o serviço público essencial sob uma lente sociológica, a análise buscará compreender a importância do modelo estatal para a eficaz prestação de serviços públicos, considerando inclusive a definição legislativa prevista no artigo 6º, § 1º da Lei 8.987/95. Em um contexto sociopolítico em que o Estado Social e suas prestações são questionados, faz-se necessária a inquirição sobre a importância da relação intrínseca entre aquele e o serviço público em um país com altos níveis de desigualdade econômica, em que o ponto de partida para conquistas pessoais, profissionais e sociais difere muito entre as classes sociais.

Palavras-chave: Estado Social. Serviço Público. Desigualdade. Prestações Sociais.

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ABSTRACT

As we face institutional and democratic crises throughout contemporary times, this essay aims to analyze the concepts of Welfare State and Public Service. First, the many hypothesis utilized by the doctrine for justifying the welfare state crisis will be explored through a critic point of view. Then, delimiting the essential public services under a sociological lens, the analysis intends to comprehend the importance of the state model to the effective guarantees of public services, also considering the legal definition as seen on the article 6, first paragraph of the Law 8.987/95. In a social and political context in which the Welfare State and its guarantees are questioned, it is necessary to inquire about the importance of the direct relation between the Welfare State and public services, especially in a country with high levels of economic inequality, in which the starting point to personal, professional and social achievements is very different among social classes.

Keywords: Welfare State. Public Service. Inequality. Social Guarantees.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO………....9

2 ESTADO SOCIAL: CONCEITO E CRISE...12

2.1 CONCEITO...12

2.2 HIPÓTESES DE CRISE ...15

2.2.1 Transformação Interna E Crise Econômica Da Década De 1970...15

2.2.2 Globalização E Neoliberalismo...17

2.2.3 Crise Social...21

2.2.4 Crise Para Quem?...23

3 SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL COMO GARANTIA FUNDAMENTAL ...27

3.1 POR QUE SERVIÇOS PÚBLICOS?...27

3.2 ESSENCIALIDADE E STATUS DE GARANTIA FUNDAMENTAL...28

3.2.1 Mínimo Existencial...31

3.3 LEGISLAÇÃO NACIONAL: SERVIÇO PÚBLICO ADEQUADO, REGIME E PRINCÍPIOS...34

4 RELAÇÃO INTRÍNSECA ENTRE ESTADO SOCIAL E SERVIÇO PÚBLICO ...38

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...46

REFERÊNCIAS...49

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1 INTRODUÇÃO

Diversos países, e não apenas o Brasil, atravessam um período de fortes crises institucionais e democráticas. Nesse sentido, as figuras políticas e os modelos de governo e de estado são questionados, bem como os valores que norteiam as sociedades.

Muitos podem ser apontados como os motivos que nos trouxeram a essa conjuntura. Fato é que, ao longo da história, houve momentos cíclicos de mudança estrutural no modo de produção e na forma de governo: as mudanças na forma de comércio culminaram no fim do modelo feudal, a Revolução Francesa pôs em xeque a monarquia absolutista, etc.

Não há consenso doutrinário sobre uma causa única que resultou nesse momento crítico que enfrentamos. Entretanto, podemos citar a globalização, com a consequente intensificação da tecnologia nas relações de mercado, mudança estrutural das relações de trabalho1 e as próprias diretrizes do mundo financeiro influenciando, como nunca antes, as relações entre os países. Nesse sentido, François-Xavier Merrien aduz:

A globalização é utilizada como um argumento forte para justificar as análises e as proposições que colocam em primeiro plano a crença nas virtudes dos mercados e que afirmam, ao mesmo tempo, o papel residual que devem ocupar o Estado e a política social.2

É importante compreender que tais conflitos não surgiram pontualmente. A polarização política brasileira, por exemplo, não surgiu a partir das eleições de 2018:

muito pelo contrário, a forma como ocorreram as eleições é resultado de uma conjuntura maior.

Dessa forma, vivemos tempos marcados por polarizações despolitizadas, que trazem soluções simplistas para situações complexas. Desta feita, não raro ouvimos _______________

1 Claudia Chueri Kodja aponta, em sua tese de doutoramento, “o trabalho pode ter se adequado, em certa medida, às formas tradicionalmente apresentadas pelos sistemas financeiros, perdendo a característica de mercadoria e assumindo a forma de um título negociado no mercado aberto:

fragmentado, flexível e volátil”. KODJA, C. C. Crise econômica ao final do século XX - 1970 a 2000:

Advento de uma nova organização social e financeira. 2009. 259 f. Tese (Doutorado em História Econômica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009.

2 MERRIEN, F. Estados de Bem-Estar Social em Transformação, Evolução dos Estados de Bem-Estar Social. In: DELGADO, M. G.; PORTO, V. L. Welfare State: Os Grandes Desafios do Estado de Bem- Estar Social. São Paulo: LTr, 2019. p. 194-208.

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discursos permeados pela descrença na política e na figura do Estado, que negam a própria política, ou ainda - e tão grave quanto - discursos que exaltam figuras messiânicas, através dos quais a população aposta todas as suas fichas para a salvação da sociedade em uma única pessoa.

Isto posto, o objetivo deste trabalho é analisar a crise prática e de legitimação que enfrenta o Estado Social. A monografia irá explorar hipóteses que buscam explicar a crise que acomete o Estado Social, tendo em vista a inegável e crescente influência de uma política neoliberal que refuta o intervencionismo estatal.

Adiante, entre as prestações do Estado Social, encontramos os serviços públicos. Destarte, tais serviços, que representam tema tão caro ao direito administrativo, são diretamente afetados por mudanças no modelo de governo. As trocas de governo favorecem para que os serviços fiquem a margem de intenções políticas - o que não necessariamente está equivocado, visto que a ideologia política irá necessariamente guiar a atuação de um governo.

Entretanto, em um país com altos níveis de desigualdade econômica como o Brasil, em que a qualidade de vida dos cidadãos de classes mais baixas depende da prestação de serviços públicos (a exemplo do SUS), é bastante perigoso que políticas de austeridade afetem a qualidade e a acessibilidade desses serviços.

A noção de riqueza e capacidade econômica através da renda per capta3 pode não ser afetada por políticas de austeridade. A própria ideia do PIB como medida de crescimento também pode ser questionada nesse sentido.4 Logo, mesmo que os índices oficiais não mostrem o aumento da pobreza, se a qualidade dos serviços e o acesso a eles forem precarizados, isso implica, necessariamente, na diminuição da qualidade de vida das classes mais baixas.

E qualquer governo, qual seja sua ideologia política, deve ter por objetivo a redução de desigualdades e a promoção de condições de vida dignas aos cidadãos do país. Dessa forma, é de crucial importância questionar as mudanças de paradigmas e soluções simplistas apresentadas, devendo nos atentar às condições

_______________

3 Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/02/27/renda-domiciliar-per-capita-no- brasil-foi-de-r-1373-em-2018-mostra-ibge.ghtml Acesso em 14 ago. 2019.

4 “O que os economistas chamam de crescimento é a evolução da medida quantitativa de produção, calculada pelo PIB. Em outros termos, o crescimento é o processo de acumulação de capital e de riqueza” SÓLON, P. Alternativas Sistêmicas. São Paulo: Editora Elefante, 2019. p. 72

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sociais, econômicas e históricas do país em que vivemos, a fim de não realizarmos análises repletas de falsas simetrias.

Por fim, sem a pretensão de obter uma resposta definitiva para a crise que se analisa, haja vista a complexidade do momento nacional e internacional que se enfrenta, a presente monografia objetiva uma análise sociológica do modelo estatal, que buscará construir uma ponte de raciocínio passando pelo início da crise do modelo estatal, conectando-a com o surgimento de políticas neoliberais, bem como as consequências de um novo modelo estatal à prestação de qualidade dos serviços públicos considerados essenciais.

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2 ESTADO SOCIAL: CONCEITO E CRISE

2.1 CONCEITO

Segundo Paulo Bonavides, entre as bases ideológicas do Estado Social é possível encontrar o pensamento democrático de Rousseau. Aduz o autor que ‘’a doutrina democrática de Rousseau (...) toma, contudo, a direção compatível com um socialismo democrático moderado e reformista”.5

Dessa forma, compreende que ao explorar uma compreensão social da liberdade, e não individual, além de defender a democracia como o caminho para a consecução dos fins sociais, tais como liberdade e igualdade, Rousseau encontra as bases do Estado Social.

Não obstante a possível influência desse importante filósofo do século XVIII, a doutrina do Estado de Bem-estar Social ganha maior força e visibilidade a partir dos anos 1930, com os escritos de John Maynard Keynes. A doutrina desse autor se baseava, em parte, em refutar políticas de austeridade. Para Keynes, em tempos de crise econômica, o Estado deveria aumentar investimentos públicos, de forma a estimular o consumo:

(..) Segundo Keynes, as exigências salariais dos trabalhadores deveriam ser atendidas como forma de contribuir para o pleno emprego, pois salários baixos acarretavam insuficiência de poder aquisitivo, o que poderia conduzir à contração da demanda e, conseqüentemente, à baixa de preços, super- produção e desemprego. Ainda segundo Keynes, o que ocorria na época era a queda da demanda e conseqüentemente sobra de produto. A solução para o desemprego só poderia ser obtida por intervenção estatal, desencorajando o entesouramento, em proveito das despesas produtivas. Para isso, o Estado deve reduzir a taxa de lucro, incrementar os investimentos públicos, estimular o consumo por meio da redistribuição da renda em benefício das classes menos favorecidas e encorajar a exportação. Essa política, diretamente oposta às teses deflacionistas, permitiria a intervenção do Estado sem atingir a autonomia da empresa privada.6

O modelo keynesiano valoriza os investimentos públicos, diretos ou indiretos,

“diretamente pelos investimentos públicos, indiretamente pela política das taxas de

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5 BONAVIDES, P. Do estado liberal ao estado social. São Paulo: Forense, 1980. P. 180

6 FORIGO, M. V. Crise do Bem-Estar Social e Neoliberalismo. Relações Internacionais no Mundo

Atual, Curitiba, n.3, p. 52-62, 2003. Disponível em:

http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RIMA/article/view/228/201. Acesso em: 14 ago. 2019. P.55

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juros e pela política fiscal”7, além de favorecer o consumo elevado por meio de políticas de redistribuição de renda.

Assim, é possível dizer que o keynesianismo, ao prever como função do Estado estimular crescimento em áreas que a iniciativa privada não possui interesse, bem como intervenção econômica para o desenvolvimento da sociedade em si, forneceu as bases lógicas para o Estado Social, enquanto o contexto de desenvolvimento econômico do pós-guerra propiciou o ambiente para que esse Estado se desenvolvesse.8

Por outro lado, considerando a prática do Estado Social, é possível apontar duas experiências na Alemanha como marco de sua introdução. Sob o comando de Otto Von Bismarck, a Alemanha ensaiou o que seriam os primeiros passos da implantação dos institutos jurídicos condizentes com o Estado Social9 e, posteriormente, com a Constituição de Weimar, que consagrou direitos sociais, especialmente dos trabalhadores.

A consolidação do Estado Social, depois da Segunda Guerra Mundial, reflete época em que a ideia da emancipação dos seres humanos através dos direitos estava em pauta. Tal emancipação era defendida tanto por liberais quanto por socialistas, e sua essência foi formulada na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas em 1948, e passou a guiar o desenvolvimento dos países.10

Quanto a suas características, diferentemente de um Estado Socialista, o Estado Social não renuncia a ordem capitalista. Dessa forma, pode ser inserido em diversas ordens governamentais.11 Destarte, é possível compreender esse Estado como um investidor econômico, além de regulador da economia e que, especialmente, _______________

7 MERRIEN, F. O Novo Regime Econômico Internacional e o Futuro dos Estados de Bem-Estar Social.

In: DELGADO, M. G.; PORTO, V. L. O Estado de Bem-Estar Social no Século XXI. 2. Ed. São Paulo:

LTr, 2018. p. 104-137 p. 108

8 FARIA, C. A. P. Uma Genealogia das Teorias e Tipologias do Estado de Bem-Estar Social. In:

DELGADO, M. G.; PORTO, V. L. O Estado de Bem-Estar Social no Século XXI. 2. Ed. São Paulo:

LTr, 2018. p. 33-78

9 FABRIZ, D. C.; TEIXEIRA, M. T. A Crise do Estado do Bem-Estar Social na Perspectiva de Jürgen Habermas. Revista Direito e Liberdade - RDL - ESMARN - v.19, n.1, p. 59-84, jan./abr. 2017.

Disponível em:

http://www.esmarn.tjrn.jus.br/revistas/index.php/revista_direito_e_liberdade/article/view/1526. Acesso em: 14 ago. 2019.

10 SÓLON, P. Alternativas Sistêmicas. São Paulo: Editora Elefante, 2019.

11 BONAVIDES, P. Do estado liberal ao estado social. São Paulo: Forense, 1980.

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procura concilicar crescimento econômico com legitimidade da ordem social.12 Inclusive, é possível afirmar que o Estado Social teve como berço para seu desenvolvimento os países capitalistas mais desenvolvidos da Europa Ocidental.13

Nesse sentido, Fabriz e Teixeira14 apontam que o Estado Social nem sempre floresceu em regimes democráticos (a exemplo do regime autoritário da “Era Vargas”) entretanto, sempre esteve presente em ambientes capitalistas. Cabe aqui fazer breve crítica a primeira parte do apontamento: a democracia, não necessariamente, coincide com ambientes de amplas liberdades individuais e coletivas.15

Para isso, necessário compreender a democracia como regime político e o autoritarismo como uma característica de gestão.16 E, por outro lado, o Estado do Bem-Estar Social é uma forma de organização do Estado em relação a suas intervenções sociais e econômicas, enquanto e o capitalismo é um modelo de produção e sistema econômico. Por isso, mesmo que com características divergentes (mas não antagônicas), esses podem coexistir. 17

Assim, Boaventura de Sousa Santos descreve o Estado Providência18 como

“a forma política do Estado nos países capitalistas avançados num período em que o

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12 FORIGO, M. V. Crise do Bem-Estar Social e Neoliberalismo. Relações Internacionais no Mundo

Atual, Curitiba, n.3, p. 52-62, 2003. Disponível em:

http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RIMA/article/view/228/201. Acesso em: 14 ago. 2019.

13 DELGADO, M. G.; PORTO, V. L. Welfare State: Os Grandes Desafios do Estado de Bem-Estar Social. São Paulo: LTr, 2019.

14 FABRIZ, D. C.; TEIXEIRA, M. T. A Crise do Estado do Bem-Estar Social na Perspectiva de Jürgen Habermas. Revista Direito e Liberdade - RDL - ESMARN - v.19, n.1, p. 59-84, jan./abr. 2017.

Disponível em:

http://www.esmarn.tjrn.jus.br/revistas/index.php/revista_direito_e_liberdade/article/view/1526. Acesso em: 14 ago. 2019.

15 Embora não seja o foco deste trabalho, importante enfatizar que a democracia não é um conceito fechado: não apenas a doutrina pode apresentá-la de formas diferentes, como de fato, na prática, existem democracias (democracia liberal, participativa, representativa, deliberativa, etc.)

16 FERNANDES, S. Sintomas Mórbidos: A Encruzilhada da Esquerda Brasileira. São Paulo:

Autonomia Literária, 2019.

17 Diferentes linhas de pensamento irão contrapor essa coexistência: o neoliberalismo, por exemplo, sustentará a ideia de um Estado Mínimo, para que as condições sociais advenham do desenvolvimento econômico dentro da lógica capitalista. De outro lado, as linhas marxistas, utilizando-se do materialismo histórico para analisar as contradições materiais, contrapõem essa coexistência com a necessidade da superação do capitalismo e de uma sociedade socialista.

18 Boaventura diferencia Estado Social de Estado Providência ao definir que aquele surge como forma política que asseguraria a transição para o socialismo. SANTOS, B. S. O Estado, a Sociedade e as Políticas Sociais. Revista Crítica de Ciências Sociais. n. 23. P. 13-74, set.1987 Disponível em:

http://www.boaventuradesousasantos.pt/pages/pt/artigos-em-revistas-cientificas.php Acesso em: 28 ago. 2019.

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socialismo deixa de estar na agenda política do curto e médio prazo”19. E, por fim, o autor ainda complementa ao citar:

O Estado-Providência é, de facto, uma forma política muito complexa e contraditória. A transformação profunda do Estado liberal que com ele se obtém não reside apenas, nem sequer predominantemente, nas novas funções que o Estado desempenha, mas sobretudo nas novas formas de actuação política e nas alterações que elas provocam nos aparelhos institucionais do Estado e, portanto, na estrutura interna do Estado.20

2.2 HIPÓTESES DE CRISE

2.2.1 Transformação Interna E Crise Econômica Da Década De 1970

Exploradas, brevemente, as conceituações necessárias para a compreensão do Estado Social, imprescindível dizer que a consolidação do mesmo não é questão de análise deste trabalho. Pelo contrário, aqui se busca examinar sua decadência.

Para isso, fundamental destacar que não há consenso sobre as raízes da crise do Estado Social. Parte da doutrina enxerga uma transição gradual, em que as mudanças no próprio cerne do Estado Social fizerem com que esse se transformasse em um Estado Neoliberal. Além disso, apontam que a conformidade do Estado Social diante da ordem capitalista permite a esse se moldar conforme as necessidades do capital:

Olhando para trás, pode-se ver que a ânsia de refutar a ideia de que os sistemas de proteção social foram um obstáculo ao crescimento económico (OECD, 1981) levou a uma reformulação do Estado Social − avaliando-o, reformando-o e valorizando-o − como uma ferramenta para o crescimento económico, abrindo o caminho para a penetração crescente de critérios neoliberais nas instituições, nos agentes e até nos cidadãos. 21

Nesse sentido, é possível apontar que, inicialmente, os sistemas de proteção social tinham por base que as condições de vida dos cidadãos resultavam de organização social e, logo, haveria necessidade de intervenção estatal para equilibrar os riscos sociais. Entretanto, conforme supracitado, a contradição interna desse

_______________

19 Ibidem, p. 14.

20 Ibidem, p. 17.

21 HESPANHA, P.; FERREIRA, S.; PACHECO, V. O Estado Social, Crises e Reformas. In: Reis, José.

A economia política do retrocesso: crise, causas e objectivos: observatório sobre crises e alternativas. Almedina, 2014. P. 187-281. P. 190

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sistema, alegada tanto pela esquerda marxista quanto pela direita conservadora, sustentava que o Estado de Bem-Estar Social não se manteria intacto.

A mudança na própria essência do Estado Social, como forma de se adaptar às novas tendências do capitalismo, faz com que seja predominante o individualismo, de forma que o papel do Estado passou a ser o “de criar condições para os indivíduos resolverem as suas dificuldades, preferencialmente através da participação no mercado de trabalho”.22

Trata-se, portanto, de um Estado que não assume mais responsabilidade integral pelos riscos sociais. A divisão dessa responsabilidade recai sobre o terceiro setor e sobre a própria sociedade civil,23 e as noções clássicas de direitos sociais são substituídas por noções de responsabilidade individual.24 A questão é se, efetivamente, existem métodos de inclusão desses setores na criação e implementação de políticas que estimulem a redução de desigualdades.

Por outro lado, a crise econômica da década de 1970, influenciada pelos

“choques do petróleo” em 1973 e 1979, também é considerada marco histórico para o crescimento das críticas ao Estado Social, após duas décadas da chamada “era de ouro” do capitalismo e da social-democracia, em que houve a combinação entre desenvolvimento econômico e garantias sociais, principalmente nos países mais desenvolvidos do norte global, membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE):

Se a crise da década de 1930, a Segunda Guerra Mundial e o crescimento econômico posterior à guerra legitimaram a ideia de que o poder público deveria ser o grande arquiteto de um capitalismo protetor dos cidadãos

“desde o berço até o túmulo”, inversamente a crise econômica que se instalou no final da década de 1970 criou uma crise de legitimidade do consenso social que havia sido estabelecido, em graus diferentes, em todos os países da OCDE desde o final da Segunda Guerra Mundial.25

Algumas características que cercam essa época são a desregulação dos mercados financeiros e a intensificação da concorrência internacional. Somado a isso, _______________

22 Ibidem, p. 189.

23 Ibidem, p. 190.

24 MERRIEN, F. Estados de Bem-Estar Social em Transformação, Evolução dos Estados de Bem- Estar Social. In: DELGADO, M. G.; PORTO, V. L. Welfare State: Os Grandes Desafios do Estado de Bem-Estar Social. São Paulo: LTr, 2019. p. 194-208.

25 Ibidem, p. 200.

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o desenvolvimento da tecnologia nas áreas de transporte e comunicação possibilita a competitividade de países com salários baixos que, consequentemente, produzem com custos menores. Destarte, “o crescimento industrial que tinha sido o motor do desenvolvimento econômico nos países da OCDE torna-se negativo e traduz-se em perdas massivas de empregos.” 26

Nesse sentido, é possível afirmar que os países ficaram mais vulneráveis ao mercado internacional, especialmente aqueles em desenvolvimento. A adoção de políticas econômicas keynesianas, então, passou a ser vista como sinônimo de déficit orçamentário e riscos inflacionários. Essas condições globais e internacionais, portanto, tornam políticas intervencionistas equivalentes a crise econômica.27

2.2.2 Globalização E Neoliberalismo

Cumpre ressaltar que o contexto de transformação interna e de crise econômica coincide com a intensificação da globalização. E, conforme citado na introdução deste trabalho, os fenômenos do processo de globalização podem afetar diretamente as relações entre países. Assim sendo, pode-se compreender que há uma limitação da atuação estatal, a medida que “os centros econômicos mundiais adotam medidas que têm de ser incorporadas pelos países defensores desse processo da globalização.”28

No caso de uma análise otimista desse processo, a globalização permitiu a redução de bipolaridades e maior integração através de novas tecnologias.29 Porém, de outro lado, em uma análise pessimista, mesmo em um contexto de integração e de órgãos de gestão econômica a nível internacional, essa gestão ainda fica comprometida aos países mais ricos, de forma que, na prática, tais países ditam as regras do sistema.30

_______________

26 Ibidem, p. 201.

27 MERRIEN, F. O Novo Regime Econômico Internacional e o Futuro dos Estados de Bem-Estar Social.

In: DELGADO, M. G.; PORTO, V. L. O Estado de Bem-Estar Social no Século XXI. 2. Ed. São Paulo:

LTr, 2018. p. 104-137

28 VICENTE, M. M. A crise do Estado de bem-estar social e a globalização: um balanço. In: VICENTE, M. M. História e comunicação na nova ordem internacional. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.

p.124-147 Disponível em: http://books.scielo.org/id/b3rzk/pdf/vicente-9788598605968-08.pdf Acesso em: 05 ago. 2019. P. 130.

29 Ibidem, p. 129.

30 Ibidem, p. 140.

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Destarte, não há necessariamente uma globalização da economia, “mas sim, uma internacionalização em que os vínculos entre determinados países se acentuam, excluindo outras nações; e não há um padrão de economia global”.31 Ainda, embora as tecnologias e sistemas de comunicação contribuam para o rompimento de fronteiras geográficas e culturais, o efeito pode ser contrário, suscitando o antagonismo32, haja vista o contato direto com o que é diverso que gera, justamente, a consciência da diferença.33

Dessa forma, parte da doutrina defenderá que a globalização acabou por aumentar disparidades, através da marginalização de países “atrasados” na economia global, o que também intensifica relações de dependência. Nesse sentido é que surge o termo “race to the bottom” ou, em tradução literal, uma corrida ladeira abaixo, para caracterizar a necessidade de os países reduzirem gastos públicos com a proteção social a fim de manter vantagem competitiva no mercado global.34

Além da globalização, destaca-se a influência da vertente neoliberal nesse contexto crítico - principalmente em países de capitalismo periférico - que considera o intervencionismo estatal e as políticas sociais do Welfare State inadequadas para o desenvolvimento capitalista. E há certa coincidência entre as ideias da doutrina neoliberal e as ideais que sustentam a globalização, visto que essa produz “uma crise de confiança nos mecanismos de regulação praticados após a Segunda Guerra Mundial e oferece uma janela de oportunidades aos “outsiders” neoliberais”.35

_______________

31 Ibidem, p. 139

32 Isso pode ser observado na crescente tendência de políticas nacionalistas, a exemplo da gestão Trump, que insurge críticas à políticas de imigração, considerando o imigrante o “outro”, o “estranho”, aquele que não pertence.

33 Ibidem, p. 138

34 CASTLES, F. G. O Futuro do Estado de Bem-Estar Social: Mitos de Crise e Realidades de Crise. In:

DELGADO, M. G.; PORTO, V. L. Welfare State: Os Grandes Desafios do Estado de Bem-Estar Social. São Paulo: LTr, 2019. P. 138-164.

35 MERRIEN, F. O Novo Regime Econômico Internacional e o Futuro dos Estados de Bem-Estar Social.

In: DELGADO, M. G.; PORTO, V. L. O Estado de Bem-Estar Social no Século XXI. 2. Ed. São Paulo:

LTr, 2018. p. 104-137. P. 116

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Em contrapartida aos keynesianos36, os adeptos ao neoliberalismo acusam o modelo do keynesianismo de fomentar “o processo inflacionário, através da manutenção de impostos elevados e da excessiva regulamentação econômica”.37

A arguida inviabilidade estrutural do Estado de Bem-Estar Social frente ao capitalismo se fortaleceu, outrossim, pelos seguintes argumentos:

(...) considerada a crise fiscal do Estado (a) surgida na década de 1970 (menor arrecadação tributária em decorrência da crise econômica; elevação da dívida pública em razão do aumento dos juros e do descompasso da arrecadação pública versus gastos públicos; pauto de gastos estatais tida como excessiva), conjugada com o recrudescimento do desemprego (b), em contexto de generalização da terceira revolução tecnológica do sistema capitalista (c) - sem contar a acentuação da concorrência internacional (d) em face da economia europeia -, passou-se a sustentar a inviabilidade estrutural do EBES na nova fase vivenciada pelo capitalismo. A este quadro negativo, somavam-se outros fatores, também de caráter estrutural: o envelhecimento da população europeia (e), de modo a elevar os custos do sistema público de seguridade social e a diminuição de jovens contribuintes (f) no universo da força de trabalho.38

Assim, no âmbito social, promove-se a ideia de privatização e associação de entes públicos e privados e redução das intervenções do Estado.39 Para os defensores da inclusão de uma agenda liberal, as consequências da globalização e do neoliberalismo não são pressões externas impostas aos países (principalmente aos subdesenvolvidos, que não ditam as regras), e sim resultam de pressões internas e estruturais inevitáveis, a exemplo do envelhecimento da população.40

Embora essa última hipótese seja, de fato, uma perspectiva válida da análise da crise, através de uma visão crítica do crescimento da agenda neoliberal, destaca- se que as medidas econômicas desse contexto foram implementadas “de maneira

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36 Dois exemplos clássicos de governos que voltaram-se a vertente neoliberal em contrapartida ao modelo keynesiano são os de Margareth Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos.

37 KODJA, C. C. Crise econômica ao final do século XX - 1970 a 2000: Advento de uma nova organização social e financeira. 2009. 259 f. Tese (Doutorado em História Econômica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009. P. 50.

38 DELGADO, M. G.; PORTO, V. L. O Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) no Capitalismo Contemporâneo. In: DELGADO, M. G.; PORTO, V. L. Welfare State: Os Grandes Desafios do Estado de Bem-Estar Social. São Paulo: LTr, 2019. P. 23-49. P. 39

39 MERRIEN, F. O Novo Regime Econômico Internacional e o Futuro dos Estados de Bem-Estar Social.

In: DELGADO, M. G.; PORTO, V. L. O Estado de Bem-Estar Social no Século XXI. 2. Ed. São Paulo:

LTr, 2018. p. 104-137 40 Ibidem, p. 106.

(20)

excessiva e muito rapidamente, excluindo outras políticas que se faziam necessárias, gerando crises quase que imediatamente.”41

Exemplo disso é o Consenso de Washington, um conjunto de políticas voltadas para solucionar os problemas da América Latina durante as décadas de 1980 e 1990. As recomendações abrangiam austeridade fiscal, privatização e liberalização de mercado, alinhadas, portanto, com o neoliberalismo.

Esse conjunto de políticas demonstra a lógica de dependência de países de

“primeiro mundo” e países em desenvolvimento, essencialmente o Norte vs. o Sul Global, haja vista a influência de países como os Estados Unidos e instituições como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.

Conforme dita Joseph Stiglitz, a maneira como o Consenso de Washington foi colocado em prática nos países da América Latina trouxe uma receita para a crise:

[...] a liberalização do comércio, acompanhada por altas taxas de juros, é uma receita praticamente certa [...] para a criação de desemprego [...] a liberalização do mercado financeiro sem o acompanhamento de uma estrutura regulamentar apropriada é uma receita para a instabilidade econômica [...] a privatização, sem o acompanhamento de políticas de concorrência e a necessária supervisão para garantir que os monopólios não se tornem abusivos, pode ocasionar a elevação de preços [...] a austeridade fiscal, quando implementada às cegas, [...] pode levar a grande desemprego e a um retalhamento do contrato social.42

É importante enfatizar as repercussões de uma agenda neoliberal na América Latina, que experimentou um período de crescimento seguido, contudo, de uma estagnação, além do aumento da desigualdade social.43 O contexto permitiu influência de instituições como os já citados FMI e Banco Mundial, e se impôs - não sem o assentimento e participação dos governos nacionais, é claro - um programa econômico baseado em medidas de austeridade, além de “uma reorientação da produção em direção à exportação e um programa de desregulamentação e de privatização das atividades estatais e de cortes nos investimentos sociais”.44

_______________

41 VICENTE, M. M. A crise do Estado de bem-estar social e a globalização: um balanço. In: VICENTE, M. M. História e comunicação na nova ordem internacional. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.

p.124-147 Disponível em: http://books.scielo.org/id/b3rzk/pdf/vicente-9788598605968-08.pdf Acesso em: 05 ago. 2019 p. 142.

42 STIGLITZ, J. A Globalização e seus malefícios. P. 119-120 apud VICENTE, M. M., op. cit., p. 142.

43VICENTE, M. M., op. cit., p. 142

44 MERRIEN, F. O Novo Regime Econômico Internacional e o Futuro dos Estados de Bem-Estar Social.

In: DELGADO, M. G.; PORTO, V. L. O Estado de Bem-Estar Social no Século XXI. 2. Ed. São Paulo:

LTr, 2018. p. 104-137. P. 118

(21)

Essas soluções apresentadas pelo neoliberalismo, a exemplo da privatização, reforma das prestações sociais, diminuição da intervenção estatal, etc., permitem a redução dos ônus orçamentários dos problemas sociais. Além disso, as elites econômicas detentoras de capitais se beneficiam, pois “investem mais facilmente nos países onde os impostos ou os encargos sociais são mais baixos.”45

Por fim, o crescimento observado nessa época também não resiste a críticas, especialmente da esquerda marxista:

esse crescimento, que de fato se concretizou nos países industrializados,

“desenvolvidos”, envolveu uma minoria da população mundial, construiu-se sobre o desperdício e a espoliação insensata dos recursos naturais limitados, o acesso a energias fósseis baratas, a dependência de tecnologias assassinas e a fabricação de desigualdades e desequilíbrios mundiais que se revelaram insuportáveis e insustentáveis.46

Inclusive, tais críticas apontam o caso do Brasil para exemplificar o contexto, aduzindo que o país, apesar de ter experimentado uma ascensão na atividade econômica, e de haver promovido políticas sociais com base no crescimento47, mergulhou após em crise social, econômica e política.

Portanto, e concluindo este tópico, seguindo a referida lógica, os críticos desse processo de crescimento neoliberal argumentam que assim se firma uma nova fase do capitalismo, no qual as relações de dependência se intensificam.48

2.2.3 Crise Social

Faz-se prudente uma breve disposição sobre outra perspectiva, na qual podemos citar a análise de Pierre Rosanvallon, que considera que as raízes do welfare state são de natureza política e, portanto, a própria crise teria em sua essência razões mais socioculturais e políticas do que econômicas. Portanto, as manifestações econômicas da crise, embora de fato existentes, seriam consequência do colapso de valores sociais.49

_______________

45 Ibidem, p. 134.

46 SÓLON, P. Alternativas Sistêmicas. São Paulo: Editora Elefante, 2019. p. 65 47 Ibidem, p. 67.

48 AMARAL, M. Neoliberalismo na América Latina e nova fase de dependência. Disponível em:

https://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arquivos/comunicacoes/gt3/sessao4/Mari sa_Amaral.pdf Acesso em: 12 out. 2019.

49 CARDOSO JÚNIOR, J. C. Da crise do Estado-providência à nova questão social: alcances e impasses no pensamento de Pierre Rosanvallon. Leituras de Economica Política, Campinas, v. 6, n.

(22)

Como exemplo disso, o autor disserta a respeito do valor da igualdade, que em meio a um sistema capitalista e individualista de produção e acumulação, torna- se inalcançável e impossível. Assim, o Estado torna-se responsável pela redução das desigualdades, e não pela promoção da igualdade.

Além disso, a lógica individualista faz com que a “redução de pequenas desigualdades seja percebida como uma injustiça”50 e medidas de redução das desigualdades passam a não ter mais o mesmo respaldo social e político, perdendo seu posto de recurso legítimo do Estado.51

Importante relembrar que a crise não é exclusividade do Brasil. Cada país, de acordo com seu nível de consolidação do Estado Social e de suas experiências históricas, econômicas e políticas, encontra nesse enfrentamento obstáculos diferentes. Entretanto, é possível encontrar similaridades na forma como o Estado é estruturalmente modificado, bem como nas consequências desse processo.

A exemplo disso, os autores Michael B. Fabricant e Steve Burghardt, em obra sobre a crise do Welfare State e seus efeitos nos serviços sociais, com ênfase no contexto estadunidense, citam características sociais da crise que podem ser encontradas em outros países, quais sejam a relação entre cortes em gastos públicos e o declínio da economia:

The budget cuts experienced by the welfare state, and consequent changes in the structure of social services, are fundamentally linked to a declining U.S.

economy.(...) These policies are further destabilizing the living situations of poor people. As these institutions break down, media and professional associations are blaming the decay in the quality of service on the incompetence of individual workers. This response is not unlike a range of welfare state policies that blame poor people individually and collectively for their circumstances.52

Entretanto, a análise de outras hipóteses nos faz perceber que a característica social da crise pode se apresentar como uma consequência de outros fatores. A crise no aspecto da igualdade, por exemplo, seria uma consequência no comportamento _______________

2, p.41-61, dez. 2001. Disponível em: https://www.eco.unicamp.br/index.php/leituras-economia- politica/138-leituras-de-economia-politica Acesso em: 09 ago. 2019.

50 ROSANVALLON, P. A crise do Estado-providência. p. 31 apudCARDOSO JÚNIOR, J. C. Da Crise Do Estado-Providência À Nova Questão Social: Alcances E Impasses No Pensamento De Pierre Rosanvallon. Leituras De Economica Política, Campinas, V. 6, N. 2, P.41-61, Dez. 2001. Disponível Em: Https://Www.Eco.Unicamp.Br/Index.Php/Leituras-Economia-Politica/138-Leituras-De-Economia- Politica Acesso Em: 09 Ago. 2019. p. 45

51 CARDOSO JÚNIOR, J. C. op cit., p. 45

52 BURGHARDT, S.; FABRICANT, M. B. The Welfare State Crisis and the Transformation of Social Service Work. New York: Routledge, 2015. p. 14.

(23)

dos indivíduos em face da crise econômica. À medida que as condições individuais se precarizavam, qualquer direito a mais concedido a diferentes classes era percebido como injusto, etc.

Esse raciocínio permite reafirmar que não há uma só razão para a crise. É nesse sentido que Pablo Solón afirma que “o que a humanidade enfrenta não é só uma crise ambiental, econômica, social geopolítica, institucional e civilizatória. Essas crises são parte de um todo.”53

2.2.4 Crise Para Quem?

Finalmente, há uma hipótese mais ousada, que considera que a crise não se concretizou - ao menos, nunca uma crise econômica que fundamentasse a inviabilidade estrutural do Estado de Bem-estar Social.

Essa análise, entretanto, precisa levar em conta o critério da realidade material dos países. Ou seja, “crise para quem?” é uma pergunta que se direciona a investigar até que ponto o Estado Social foi realmente desmantelado, mas também analisar as diferentes formas de expressão do próprio Estado Social e, por consequência, da crise, em diferentes países com diferentes realidades sociais e econômicas.

A própria construção dos Estados de Bem-Estar é diferente de acordo com a realidade material em que se insere. A diferença entre o impacto do desenvolvimento econômico e social variou muito entre países de capitalismo central e periférico:

O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) das economias avançadas até 1991 mal foi interrompido por breves períodos de estagnação nos anos de recessão de 1973-5 e 1981-3 (OCDE, 1993, pp.18-9) [...]. No fim do Breve Século XX, os países do mundo capitalista desenvolvido se achavam tomados como um todo, mais ricos e mais produtivos do que no início da década de 1970, e a economia global da qual ainda formavam o elemento central estava imensamente mais dinâmica. Por outro lado, a situação em regiões particulares do globo era consideravelmente menos cor-de-rosa. Na África, na Ásia ocidental e na América Latina cessou o crescimento do PIB per capita. A maioria das pessoas, na verdade, se tornou mais pobre na década de 1980, e a produção caiu durante a maior parte dos anos da década nas duas primeiras regiões, e por alguns anos na última.54

_______________

53 SÓLON, P. Alternativas Sistêmicas. São Paulo: Editora Elefante, 2019. P. 13

54 KODJA, C. C. Crise econômica ao final do século XX - 1970 a 2000: Advento de uma nova organização social e financeira. 2009. 259 f. Tese (Doutorado em História Econômica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009. P. 78

(24)

Em artigo intitulado “Sobre a ‘crise’ do Estado de Bem-Estar: retração, transformação fáustica ou o quê”, Celia Lessa Kerstenetzky explora a ideia de que indicadores de gastos sociais permitem enxergar que não houve uma tendência de queda abrupta nos mesmos:

(...)o gasto social seguiu trajetória ascendente a despeito da crise econômica (voltaremos à análise da evidência mais adiante, na seção 2). Evidentemente, com um produto estagnado ou mesmo decrescente, o crescimento do gasto social foi sustentado em parte às custas de uma redução em outras áreas do gasto público, o qual, na realidade, acusou retração relativa nos anos 1980 e 1990.55

Porém, o estudo base sobre as tendências de gasto público social utilizados no referido artigo se referem a países da OCDE, ou seja, países já desenvolvidos, e não de capitalismo periférico. Assim, essa observação é reforçada pelos dados referentes ao gasto social, que é crescente ao longo do período analisado (1980 a 1998): “os países da OCDE chegam ao final dos anos 1990 com um gasto social médio superior a 50% do gasto público”.56

Ainda, as análises quantitativas não perpassam mudanças estruturais internas nas políticas sociais: em diversos países, mesmo os desenvolvidos, programas de seguro-desemprego, aposentadoria, entre outros, experimentam nas décadas de 80 e 90 a passagem para critérios mais restritivos para a concessão de benefícios, a exemplo do aumento da idade para se aposentar, redução na duração dos benefícios, valor real declinante, etc.57

Também em contraponto à ideia da inexistência da crise do Estado Social, que é, em sua essência, um estado interventor, principalmente considerando países subdesenvolvidos, enfatiza-se a tendência da privatização, que definiria, inclusive, uma “nova fase” do welfare state, visto que “a primeira fase do welfare state teria sido marcada pela centralidade da provisão pública, enquanto a nova fase se caracterizaria pelo avanço da provisão privada”.58

_______________

55 KERSTENETZKY, C. L. Sobre a Crise do Estado de Bem-Estar: Retração, Transformação Fáustica ou o Quê? In: DELGADO, M. G.; PORTO, V. L. Welfare State: Os Grandes Desafios do Estado de Bem-Estar Social. São Paulo: LTr, 2019. p. 106-137. P. 109

56 Ibidem, p. 115.

57 Ibidem, p. 120.

58 Ibidem, p. 121.

(25)

Além disso, os níveis de desigualdade após os anos 80 começaram a crescer.

A capacidade de redistribuição do welfare state é questionada, principalmente em virtude de seu caráter complacente para com a estrutura capitalista.

Mesmo que diversos países tenham diminuído a miséria, o abismo entre grande parte da população e a elite crescem muito rapidamente - sendo a economia globalizada fator contributivo para o cenário -, e o número de bilionários reflete isso:

embora não seja possível estimar exatamente onde está o capital e a quem ele pertence, estima-se que em 1987 existiam 140 bilionários pelo mundo, enquanto em 2019 esse número torna-se quinze vezes maior, atingindo mais de 2.000 bilionários.59

Não obstante a diferença entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, a análise da crise do Estado Social e das novas tendências do capitalismo não resiste a um apontamento: “com efeito, uma comparação das performances econômicas dos países desenvolvidos ao longo dos últimos dez anos mostra claramente que aqueles que optaram por seguir mais fielmente a via liberal nem sempre são os que lograram maior êxito.”60

Independente do real motivo para crise (se é que há apenas um), fato é que a crescente tendência neoliberal e as novas faces do capitalismo e da globalização fomentam argumentos contra o Estado Social, entre eles que “o mercado é superior ao Estado − e de que, por isso, os critérios de mercado devem disciplinar a ação do Estado − até ao de que o Estado-Providência é um luxo a que apenas os países mais ricos podem aceder.” 61

Assim, embora a essência do Welfare State, em sua consolidação, baseou- se “na crença implícita de que a ação redistributiva do Estado harmonizava-se com o crescimento econômico”62, tal harmonia sempre foi mais facilmente observada em

_______________

59 Dados retirados da série de documentários “Explicando”, Temporada 2, ep. 2: “Bilionários”. Netflix, 2019.

60 MERRIEN, F. O Novo Regime Econômico Internacional e o Futuro dos Estados de Bem-Estar Social.

In: DELGADO, M. G.; PORTO, V. L. O Estado de Bem-Estar Social no Século XXI. 2. Ed. São Paulo:

LTr, 2018. p. 104-137. p. 134

61 HESPANHA, P.; FERREIRA, S.; PACHECO, V. O Estado Social, Crises e Reformas. In: Reis, José.

A economia política do retrocesso: crise, causas e objectivos: observatório sobre crises e alternativas. Almedina, 2014. P. 187-281. P. 197.

62 FARIA, C. A. P. Uma Genealogia das Teorias e Tipologias do Estado de Bem-Estar Social. In:

DELGADO, M. G.; PORTO, V. L. O Estado de Bem-Estar Social no Século XXI. 2. Ed. São Paulo:

LTr, 2018. p. 33-78. P. 36.

(26)

países com níveis de desenvolvimento já estabelecidos, especialmente os países do norte global.

Por fim, pode-se concluir que a doutrina, em sua diversidade, nem mesmo esgota as possibilidades que explicam as raízes da crise. As hipóteses de crise se interconectam, e aqui parte-se da premissa de que, mesmo considerando a hipótese da inexistência da crise, fato é que existe, ao menos, uma crise de legitimação.

Trata-se de fenômeno complexo, global e que, embora possua características basilares semelhantes, se afirma de forma diferentes em realidades diferentes. Para alguns, as intercalações dos momentos de crise e prosperidade retratam o caráter cíclico do próprio capitalismo, pouco importando o Estado Social; para outros, a estrutura keynesiana de intervenção estatal é que se apresenta como insustentável.

Este trabalho, portanto, embora embasado na premissa da defesa do Estado Social, não pretende alongar-se ainda mais nas hipóteses da crise, muito menos optar por uma suposta verdade absoluta que elucide a crise em sua totalidade.

Não obstante, resta claro a partir desta exposição que a legitimidade do modelo do bem-estar e suas garantias e benefícios percorrem um momento crítico e singular. Nesse sentido, a afirmação de Pedro Hespanha, Sílvia Ferreira e Vanda Pacheco, específica sobre o contexto de Portugal, também pode ser aplicada às demais realidades, ao dizer:

a situação exprime uma acumulação de causas que não se limitam à atual crise financeira e às políticas de austeridade para lhe fazer face, nunca como agora as críticas ao Estado-Providência foram tão longe e as propostas para a sua liquidação tão incorporadas nas reformas que estão em curso.63

_______________

63 HESPANHA, P.; FERREIRA, S.; PACHECO, V. op cit., p. 197.

(27)

3 SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL COMO GARANTIA FUNDAMENTAL

3.1 POR QUE SERVIÇOS PÚBLICOS?

A ideia inicial do presente trabalho sempre foi explorar a crise do Estado Social. A partir disso, urgiu a necessidade de identificar um ponto de encontro entre o referido tema e o Direito Administrativo, através de uma perspectiva social. Dessa forma, optou-se por explorar a relação entre a crise do Estado Social e os serviços públicos.

Nesse sentido, destaca-se a importância da obra da Professora Adriana da Costa Ricardo Schier. Seu livro “Serviço Público: Garantia Fundamental E Cláusula De Proibição Do Retrocesso Social”, fruto de sua tese de doutorado, foi, realmente, o pontapé necessário para a decisão do tema desta monografia.

Em verdade, no primeiro contato com essa obra, encontrou-se uma frase que resume toda a essência deste trabalho: “o estado de Bem-estar Social é o Estado do Serviço Público. O serviço público é a tradução jurídica do compromisso político da intervenção estatal para satisfazer as necessidades coletivas”64. E é por isso que a abordagem do serviço público ao longo deste capítulo se dará, quase que integralmente, com base na referida obra.

A abordagem crítica da deslegitimação do Estado Social se deu, ao longo do primeiro capítulo, pois aqui se acredita que tal modelo estatal é o caminho para a concretização dos direitos fundamentais, especialmente em sociedades com altos níveis de desigualdade estruturais, o que é o caso do Brasil. Assim, o que se busca a partir desta página é relacionar também os serviços públicos à concretização de tais direitos.

Não cabe, porém, no escopo deste trabalho, realizar uma análise minuciosa do conceito de serviço público, visto que é tema bastante amplo, amparado por diversas teorias, sem que haja consenso doutrinário. Ainda, ao se partir da ideia de que o conceito de serviço público depende da sociedade em que esse está presente, resta claro que suas definições serão as mais variadas.

_______________

64 JUSTEN FILHO, M. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dialética, 2003.

p. 23. apud SCHIER, A. C. R. Serviço Público: Garantia Fundamental E Cláusula De Proibição De Retrocesso Social. Curitiba: Íthala, 2016.

(28)

Por fim, enfatiza-se que embora a noção de serviços públicos exista desde muito antes, a emergência do Estado Social ampliou a prestação dos mesmos,

“atrelando-se a concepção dessa atuação estatal à efetividade dos direitos sociais;

elege-se o serviço público como o instrumento primordial para tal desiderato”.65

3.2 ESSENCIALIDADE E STATUS DE GARANTIA FUNDAMENTAL

A fim de iniciar a discussão deste tópico, embora não se pretenda analisar as teorias dos serviços públicos, é prudente citar o desenvolvimento da Escola do Serviço Público, encabeçada por Léon Duguit.

Para o autor, “entende-se o serviço público como instituto capaz de identificar toda a atuação do Estado em prol do atendimento de necessidades de interesse geral”66. É possível observar, então, uma conotação sociológica nessa concepção, que atrela o serviço público diretamente às necessidades sociais.

Ainda nesse sentido,

A Escola de pensamento liderada por Léon Duguit foi batizada de Escola Sociológica, então, por considerar o serviço público como elemento que assegura o vínculo de solidariedade entre os indivíduos de uma mesma sociedade, cuja convivência é mediada pelo Estado.67

Enfatiza-se que na teoria de Duguit as mudanças ocorridas na sociedade impactariam o rol de serviços públicos, visto que as necessidades sociais seriam alteradas.68

Porém, conforme dispõe a Professora Adriana Schier, a crítica a tal teoria se dá no sentido de que, teoricamente, todas as atuações estatais existiriam para atender as necessidades sociais, logo, todas seriam serviço público. Destarte, Gaston Jèze propõe, além do atendimento das necessidades gerais, a ideia de um regime jurídico específico que caracterizaria o serviço público.69

Assim,

Destarte, enquanto para Léon Duguit os serviços públicos são definidos pela sociedade e o legislador simplesmente tem o dever de descobrir quais são,

_______________

65 Ibidem, p. 33.

66 Ibidem, p. 44.

67 Ibidem, p. 46.

68 Ibidem, p. 47.

69 Ibidem, p. 48.

(29)

para Jèze, essas atividades só serão serviços públicos se assim definidas por lei, na medida em que forem submetidas a um regime jurídico específico.70

Dessa forma, entende-se que além do objetivo de atender às necessidades coletivas (elemento material), há na caracterização do serviço público um elemento formal, qual seja o regime jurídico específico (que será melhor explorado no tópico seguinte).

Nesse diapasão, através do elemento material é possível começar a identificar que o serviço público irá se atrelar aos direitos fundamentais, uma vez que as necessidades coletivas mais básicas são, justamente, aquelas garantidas como direitos fundamentais na Constituição Federal.

Nesse sentido dispõe Juarez Freitas, ao definir serviço público como “todo aquele essencial para a realização dos objetivos fundamentais do Estado Democrático”. Assim, considerando-se as necessidades de um dado Estado em seu contexto histórico, os serviços públicos serão essenciais justamente à consecução dos fins daquele Estado.71 Para Freitas,

a ideia da essencialidade é central na definição das atividades consideradas como serviço público, pois tal noção permite ‘expungir da categoria dos serviços públicos aqueles que constituem simples interesse subalterno ou, o que tão ou mais grave, mera conveniência episódica governamental’. 72

Ao determinar, também, que os serviços públicos são aqueles imprescindíveis de serem prestados, compreende-se que são essenciais à coletividade. É nesse sentido que se afirma, então, que o serviço público possui natureza de garantia fundamental, ou seja, será um instrumento para a concretização e o exercício dos direitos fundamentais.73

Essa visão do serviço público como instrumento possibilita afirmar que ao permitir o exercício dos direitos fundamentais, tal instituto também se relaciona com aquele que é o princípio que norteia todo o sistema jurídico: a dignidade da pessoa humana.74

_______________

70 Ibidem, p. 50.

71 Ibidem, p. 71.

72 Ibidem, p. 71.

73 Ibidem, p. 71.

74 Ibidem, p. 74.

(30)

Destaca-se que, embora não pretenda se analisar neste trabalho a titularidade e/ou exclusividade dos serviços públicos, tal instrumentalização pode ser compreendida de forma direta ou indireta, nesse sentido, Alexandre Santos de Aragão não faz menção à dignidade como fim do serviço público, e sim ao bem-estar da coletividade, pois entende que em alguns serviços públicos a relação com a dignidade é indireta e decorre do desenvolvimento da sociedade num geral, “por exemplo, o fornecimento de energia elétrica a grandes indústrias e o transporte hidroviário de minérios”.75

Entretanto, ao considerar o serviço público como atividade econômica lato sensu, somos remetidos à ordem econômica prevista no artigo 170, caput, da Constituição Federal, “que estabelece como fim da ordem econômica – na qual se insere a categoria dos serviços públicos – assegurar a todos existência digna, de acordo com os cânones da justiça social”.76

Ou seja, a própria ordem econômica tem como objetivo final a garantia da dignidade humana, o que significa dizer que nenhuma alteração de ordem econômica pode afetar, negativamente, a existência digna dos cidadãos, que é garantida em parte pelos serviços públicos. Assim, seja de forma direta ou indireta, os serviços públicos são vinculados à promoção da dignidade humana - que, por sua vez, é alcançada através dos direitos fundamentais.

Assim, diz Romeu Felipe Bacellar Filho sobre a função dos serviços públicos:

“ao possibilitar o exercício de direitos fundamentais, encontra seu fim na realização prática do valor máximo do sistema jurídico brasileiro: a dignidade da pessoa humana”.77

Em uma análise histórica, a Constituição Federal de 1988 tem papel importante na consolidação de direitos fundamentais, e também prevê o direito ao serviço público adequado no artigo 175. Importante sinalizar que tais direitos possuem dupla dimensão: uma negativa, que prevê a defesa contra atos que atinjam os direitos

_______________

75 Ibidem, p. 72.

76 Ibidem, p. 74.

77 BACELLAR FILHO, R. F. O poder normativo dos entes reguladores e a participação do cidadão nesta atividade. Serviços públicos e direitos fundamentais: os desafios a experiência brasileira. Revista Interesse Público, Porto Alegre, n. 16, p. 13-22, 2002. P. 18 apud SCHIER, A. op.

cit., p. 192.

(31)

previstos, e uma positiva, que se traduz em uma perspectiva prestacional, ou seja, prevê a necessidade de ações estatais para realizar o conteúdo dos direitos.78 Assim,

Nessa dimensão prestacional então é que se destaca o serviço público como instituto que, por excelência, permite ao Estado desempenhar atividades que assegurem a efetividade dos direitos sociais. Desse modo, o direito à saúde, à educação, à previdência social, a condições básicas de infraestrutura (saneamento básico, energia elétrica, transportes, telecomunicações, correios), dentre outros, são reconhecidos como direitos sociais no texto da CF/88 e demandam a criação de políticas públicas.79

Por fim, conclui-se este tópico, com base no pensamento de Daniel Wunder Hachem, que o status de garantia fundamental pode ser entendido através do artigo 6º da Constituição Federal, que prevê os direitos sociais, uma vez que o acesso a tais direitos pressupõe a prestação de serviços públicos. Além disso, cita o artigo 175, inciso IV, também da Carta Magna, uma vez que se é dever do Poder Público a obrigação de manter o serviço público adequado, “em contrapartida o cidadão tem o direito de recebê-lo, e seu conteúdo e importância se aproximam intimamente ao teor dos direitos sociais do art. 6º, eis que sem a prestação de serviços públicos adequados eles se tornariam letra morta”.80

3.2.1 Mínimo Existencial

À medida que entendemos o Estado Social como aquele que garante aos cidadãos os padrões mínimos de vida digna81, através de atuações positivas, é possível relacionar o tema ao mínimo existencial.

Inicialmente, importante destacar que o direito fundamental ao mínimo existencial não esgota os direitos fundamentais em si, que possuem conteúdo mais _______________

78 Ibidem, p. 170.

79 Ibidem, p. 170.

80 HACHEM, D. W. Direito fundamental ao serviço público adequado e capacidade econômica do cidadão – Repensando a universalidade do acesso à luz da igualdade material. A&C – R. de Dir.

Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 14, n. 55, p. 123-158, jan./mar. 2014 P. 132

81 “Nesse sentido, destaque-se o conceito de Estado Social apresentado por Lenio Luiz Streck e José Luiz Bolzan de Morais: [...] o Welfare State seria aquele Estado no qual o cidadão, independente de sua situação social, tem direito a ser protegido contra dependências de curta ou longa duração. Seria o Estado que garante tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados a todo cidadão, não como caridade, mas como direito político. Há uma garantia cidadã ao bem-estar pela ação positiva do Estado como afiançador da qualidade de vida do indivíduo” NASCIMENTO, R.

As Restrições aos Direitos Fundamentais no Contexto de Crise do Estado de Bem-Estar Social.

1. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 101

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