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António Aleixo: problemas de uma cultura popular Autor(es):

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Academic year: 2022

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António Aleixo: problemas de uma cultura popular Autor(es): Dias, Graça Silva

Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra URL

persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/43979 DOI: DOI:https://doi.org/10.14195/2183-8925_1_11 Accessed : 23-Oct-2022 14:49:03

digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

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A N T Ó N I O AL E I X O

PROBLEMAS DE UMA CULTURA POPULAR

1. O estudo da cultura popular, ou mesmo simplesmente só de uma cultura popular, está eriçado das maiores dificuldades no nosso país. A análise científica pouco avançou, neste campo, desde Teófilo Braga. Como avanço, não propriamente analítico, desta­

cam-se as recolhas e narrações de Leite de Vasconcelos e sua escola.

Para o caso algarvio, merece citação a recolha de Francisco Xavier de Ataíde e Oliveira. E não se esquecem os raios de luz que para este âmbito de pesquisa espargem os trabalhos de Jorge Dias e seus compa­

nheiros ou discípulos. Mas também não se esquece que é do Algarve, numa certa época, isto é, na primeira metade do nosso século, que o presente ensaio se ocupa.

Não há assim a preocupação de obra definitiva no que vai ler-se (se porventura o definitivo alguma vez se alcança na esfera das ciências humanas). Houve, contudo, a preocupação de abrir pistas de inves­

tigação e de explorar, quanto possível, algumas delas, colocando Antó­

nio Aleixo na sua cultura e na sua realidade histórica. A marcha foi porém cautelosa, pois carecemos de textos científicos sobre a his­

tória da sociedade portuguesa meridional e sobre a da mentalidade pequeno-médio-burguesa e republicana dos anos vinte a cinquenta.

Com o auxílio dos instrumentos próprios da história literária e com exegeses pacientes de tipo cultural, detectaram-se algumas das linhas sociomentais que nos parecem subjazer à obra escrita de António Aleixo. Não será, assim, o Aleixo convencional de uma apologética recente o que vai sair das nossas mãos. Desinstrumentalizando-o todavia, reinserindo-o na sua realidade histórica, temos a convicção de haver dado um passo, que sabemos ser modesto, para o restituir à sua objectividade, sem atirar pela janela fora a sua subjectividade.

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O PROBLEMA DA CULTURA «POPULAR»

2. A cultura popular, como conceito a definir, logo como inter­

rogação e busca, tem dado origem, entre nós e noutros países, às mais variadas reflexões, quando não às mais variadas querelas. O pro­

blema não é de hoje, aliás; surge, ciclicamente, em momentos de crise social, que são também momentos de crise da consciência colectiva O).

O romantismo, ao qual muitos atribuem o papel de batedor neste caminho, pela sua crença nas faculdades criativas do povo (2), apenas deu corpo a uma tendência que vinha de longe e se filiava numa ânsia do simples, do puro, do espontâneo. O retorno à natureza, pre­

gado por Rousseau, o repúdio do artificialismo preconizado pelos poetas do Sturm und Drang, seus discípulos, até a atracção pelo quotidiano já sentida pelos últimos árcades, são modalidades de

í 1) Em França, por exemplo, o Maio de 68 trouxe o problema à ordem do dia. Segundo Robert Mandrou, «d’aucuns, au lendemain du séisme de 1968 (qui semble avoir révélé soudainement bien des problèmes), se sont interrogés longue­

ment sur le concept de culture populaire, et par là même sur l’«authentiquement populaire» (Robert Mandrou, De la culture populaire aux X V II et X V III siècles, Paris, Stock, 1975, p. 12). No nosso país, o 25 de Abril fez incidir também as aten­

ções nessa questão condicionada, senão mesmo tabu. Veja-se, por exemplo, a comunicação apresentada por Arnaldo Saraiva ao l.° congresso dos escritores portugueses, realizado a 11 de Maio de 1975, subordinada ao título As duas literaturas (a «pobre» e a «rica»), in «Literatura marginalizada», Porto, 1975, pp. 103-108. Mais recentemente, assiste-se ao lançamento de poetas, ou versejadores, populares, de que é exemplo a colectânea de Fernando Cardoso, Poetas populares, 3 vols. (1976-1977), o primeiro com três edições até este momento, o que denota o interesse pelo fenómeno.

(2) Teófilo Braga foi em Portugal o apóstolo de uma poesia popular, a poesia do lusismo gerada pela alma moçárabe, a veiculada pelos jograis que, «saídos dentre o povo e em contacto com os homens cultos, estabeleceram uma relação natural entre o poeta e a multidão anónima, exercendo um influxo que determina o fenó­

meno misterioso da criação da poesia popular» (T. Braga, História da poesia popular portuguesa — ciclos épicos, 3.a ed., Lisboa, 1905, pp. 94-95). Se, pelas expressões um tanto vagas, mas ao gosto da época, «alma moçárabe» {Idem, p. 68) ou «fenó­

meno misterioso», Teófilo se aparenta com um Goethe ou um Schlegel (August- -Wilhelm) e as suas teorias do espontaneismo popular ou da poesia primitiva dos povos, ou com outros românticos criadores e seguidores de uma mitologia popular, não anda longe, paradoxalmente, das correntes modernas que apontam para uma contaminação inter-classista de culturas.

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António Aleixo 3

um mesmo processo. Cedo se compreendeu, embora essa compreen­

são nem sempre se sistematizasse, que a caracterização do popular não poderia assentar num critério dicotómico (seria popular a cultura não erudita, não «oficial»), porque esse critério remeteria para uma delimitação de fronteiras que se afigurava extremamente aleatória.

A cultura popular, ou melhor, a cultura de expressão popular, revela-se como uma cultura complexa e compósita. Nela se encon­

tram justapostas, quando não mescladas, três linhas ou três domi­

nantes correspondentes aos grandes grupos sociais que, no decurso da História, detiveram a hegemonia. Esta verificação, válida para a maioria dos países da Europa, é-o igualmente para a nossa terra. Assim, as três linhas culturais apontadas por Robert Man- drou — a feudal, a clerical e a burguesa (l) — também formam e infor­

mam o «corpus» literário-artístico da tradição portuguesa. Nele se detecta a persistência, rica de potencialidades, de uma cultura clerical,

«lato sensu», em que a tónica não incide apenas, ou principalmente, na moralidade de carácter edificante, mas na satirização dos costu­

mes (2). A marca de uma cultura senhorial está patente nas canções romanceadas e nas canções narrativas, herdeiras dos romances de cavalaria e das canções de gesta, e cujo enredo gira à volta de um herói ou anti-herói. Temos, finalmente, a presença de uma corrente cul­

tural de acentuação burguesa, que reformulou e até substituiu, em grande parte, os valores das velhas classes dominantes.

Desta cultura compósita e complexa nem sempre os historiadores têm tido uma noção muito exacta, obnubilados pelo despotismo da cultura erudita ou pela ideia simplista de uma cultura popular defini­

tivamente catalogada nas prateleiras do folclore e do pitoresco. O que não é imediatamente acessível arrisca-se a ser desconhecido. Toda­

via, vale a pena um esforço para a abordagem do problema — abor­

dagem aliás limitada por incidir sobre um só autor, e sectorial, visto o prisma escolhido se situar no campo sócio-histórico, embora com as necessárias incursões no domínio da estrutura literária, dado que se parte do texto para o contexto.

(0 Cfr. Robert Mandrou, ob. cit., pp. 14-15.

(2) Remete-se o leitor para os trabalhos de Mário Martins, Estudos de Cultura Medieval, Braga, 1972, e Alegorias, Símbolos e Exemplos morais da Lite­

ratura medieval portuguesa, Lisboa, 1975, em que o papel dos pregadores não é o de menos relevo.

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3. A miscigenação cultural é um fenómeno de alcance duplo.

Tanto incide no plano da criação, como no plano do consumo.

O povo (!) assimilou, no decurso dos séculos, as correntes esté­

ticas e éticas apontadas. A assimilação não implica, contudo, neces­

sariamente, a aceitação em bloco. Certos aspectos, formais ou ideo­

lógicos, foram retidos de preferência a outros; certos elementos foram rejeitados. Este processo de triagem ou de bloqueamento tem muito a ver com os limites de uma consciência colectiva que aceita ou não determinadas máximas e valores, que deixa ou não passá-los, para usar o termo consagrado (2). Mas a cultura paralela assim cons­

tituída não acompanha, enquanto suporte de uma tradição oral e escrita, o ritmo da cultura erudita que lhe é contemporânea: os seus temas, os seus conceitos, estão fóra, no mais essencial, do movimento das ideias do seu tempo (3). Porque se a própria cultura «oficial»

sofre sempre um desfasamento em relação à realidade sócio-económica, na cultura própria a uma sociedade fechada, de que o mundo rural é o exemplo por excelência, o afastamento do real é ainda mais vincado (4).

0 ) Dada a ambiguidade, e flutuação também, deste termo, convém precisar que se emprega na acepção lata de classes não hegemónicas e, principalmente, de classes nem mesmo subalternas fundamentais, segundo a terminologia de Gramsci.

(2) Ver Lucien Goldmann, La création culturelle dans la société moderne, Paris, Denoël/Gonthier, 1971, pp. 8-14.

(3) «....Il s’agit de cultures stables qui se sont insensiblement constituées au cours des siècles. Leurs origines se perdent dans «la nuit des temps». Les muta­

tions politiques et économiques n’ont guère entamé leur immobilisme immémorial.

Elles sont profondément conservatrices....» (Paul Gerbod, L'Europe culturelle et religieuse de 1815 à nos jours, Paris, PUF, 1977, p. 67).

(4) Pense-se na perdurabilidade das técnicas agrárias, das festas, rituais, costumes e trajos, durante séculos. Há um certo paralelismo, por exemplo, entre a aculturação do mundo rural português e a do mundo rural grego, o que vai ao encontro de uma dominante vivencial da cultura: o camponês grego, na sua visão do mundo, pode estar mais próximo do rural português do que este do seu compa­

triota de um estrato diferente. Cfr. o estudo de Ératosthène Kapsomenos, La poésie populaire grecque moderne, in «Il y a des poètes partout», n.° 3-4 da «Revue d’Esthétique» (dirigida por Mikel Dufrenne), Union Générale d’Éditions, Paris, 1975.

Também Paul Gerbod verifica o mesmo fenómeno: «....Dans l’Europe rurale, ryth­

mes et modes de vie n’ont subi, au cours du siècle dernier, que peu de changements.

L’introduction sporadique du machinisme, la lente et diffuse vulgarisation de techniques culturales modernes et l’entrée progressive des économies locales dans les circuits d’échanges nationaux n’ont guère ébranlé, en définitive, les mentalités et la fidelité instinctive aux traditions....» (Paul Gerbod, ob. cit., pp. 131-32).

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António Aleixo 5

Há pois um certo imobilismo na cultura popular, mais específi­

camente na cultura rural. Mas isso não quer dizer que ela escape, quanto aos seus agentes e destinatários, às pressões do factor coevo.

Chega, de facto, o momento em que uma camada da população, até aí divorciada da cultura generalizada do País, tende para se actualizar, mercê de um salto mais brusco ou apenas de um lento germinar. O fenó­

meno reveste umas vezes a forma de migração e assimilação, e outras só a de assimilação.

Assim, desde o meio do século xvm, com a celeridade do cresci­

mento industrial, os campos foram-se despovoando, por todo o oci­

dente europeu, em favor das cidades. A novas condições de vida, os novos ritmos do trabalho, o novo enquadramento dos lazeres, levaram estes desenraizados a abandonarem, pouco a pouco, uma expressão cultural que já não correspondia à sua vivência. Amolda­

ram-se a outra, actualizaram-se, fazendo surgir desse modo uma cultura proletária de primeira geração, sobre a qual os intelectuais, dos Accio­

nistas aos sociólogos ou simples filantropos, começaram a debruçar-se^).

O fenómeno, mesmo sem migração, está acelerado mais do que nunca nos nossos dias. A velha canção-informativa e a velha festa comunitária cedem crescentemente o passo à infra ou paraliteratura, do romance cor de rosa à fotonovela, à quadrinização, à banda dese­

nhada, por uma parte, às liturgias de massas, como o desfile, o comício, o desafio desportivo, por outra parte. A uma mitologia, a uma galeria de deuses e heróis (2), sucede outra que a Imprensa, a Rádio, a Tele-

(!) Não nos referimos aqui a toda a cultura de expressão proletária que, em França ou na Inglaterra, se foi revelando, embora intermitentemente, desde a Idade Média. No «roman de métier» ou na poesia panfletária, é difícil saber se está ainda a voz do filho do povo ou se é já o pequeno-burguês, o assimilado que fala. Entre nós, o problema da manipulação, ou não, de um Bandarra é também complexo, e parece-nos abusivo falar de um Tomás Pinto Brandão como poeta popular. A nossa referência incide concretamente num socialismo romântico que tem em Michelet um dos seus próceres, um socialismo que, pretendendo conciliar a arte com o povo, acaba por coar os valores deste pela peneira dos valores burgueses.

Dessa tutela, nas suas incidências em Portugal, nos ocuparemos adiante, limitando-nos, por agora, a registar o fenómeno.

(2) Ver a antologia Poetas populares, organizada por Fernando Cardoso, em que a par da tónica moralizante ou a idealização da natureza, já avulta o endeu- samento do clube ou da estrela da rádio ( Poetas populares, 3 vols., Lisboa, Portu- galmundo, 1976-77).

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visão, ajudam a instalar. A actualização é, contudo, imperfeita, quer pelo dinamismo da própria cultura, quer pelo esforço das classes hege­

mónicas para fugirem ao nivelamento cultural.

Os intelectuais e militantes de grupo, que se empenham em pre­

servar a especificidade da cultura popular e em manter o povo dentro das suas barreiras, esbarram com o pior dos escolhos: a fuga das mas­

sas à cultura de origem, a sua indiferença a um discurso não escolhido por si. Essas camadas populacionais, uma vez postas em confronto com padrões culturais que, por serem marca ou perfença de grupos de escalão social superior se tornam cubiçados, são impelidas no sen­

tido de um descolamento. Não mais se conformam em permanecer amarradas a um determinado tipo de música, poesia, ou diversão, que sentem datado.

O processo de degradação da cultura popular que, no século xix e princípios do século xx, só lenta e escassamente se verificou no rural e desenraizado ou no operário de primeira geração, mesmo nos tra­

balhadores com árvore de costados urbana, verifica-se intensamente nos nossos dias em todo um estrato, em certa medida, socialmente ainda popular, mas culturalmente já sem identidade própria. No Algarve da juventude e mesmo da maturidade de António Aleixo, a cultura tradicional, com o perfil sedimentado dos meados do século XVIII aos meados do século xix, mantinha-se ainda, no entanto, vivaz. E se abstrairmos do poder de condicionação e de propulsão dessa cultura tradicional típica, com as suas características regionais, que existia no espaço e no tempo aleixianos, é quase infalível o risco de não se compreender nem a alma nem a obra do poeta-cau- teleiro.

As pequenas ilhas da nossa província, onde se demoraram até há pouco os últimos lampejos de uma tradição interessante mas atar- dada, vão desaparecendo. O nivelamento cultural, fruto de um mundo a que a técnica aboliu as fronteiras, afigura-se irreversível. E então?

Conformarmo-nos com est^a cultura de aeroporto (como já lhe ouvi­

mos chamar) ou aderirmos ao mito de uma cultura incólume e está­

tica, num mundo (cultural) contaminado e dinâmico? Se repugna aderir a um padrão cultural incolor, é irrealista pretender mantê-lo em vida por força de uma crença. Portanto, a resposta, do lado dos intelectuais, não poderá ser resposta, mas expectativa; porque, se do entrecruzamento das culturas díspares surgiu uma cultura original, possivelmente novos caminhos se abrirão, hoje ainda não entrevistos.

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4. É palpável do lado de alguns intelectuais, presei temente, a atrac- ção pelas manifestações populares, ultrapassado que foi o escolho de um popularismo em que os escritores de extracção burguesa quiseram realizar, como «gens du métier», a obra que o operário ou o rural só poderiam fazer fora da «literatura». Inverteram-se os dados do problema: o intelectual vai à escola do povo e aceita como cultura não-contaminada o produto do entrecruzamento de culturas arcaicas ou de cariz arcaizante. E é agora a camada intelectual que se apega a uma tradição que o povo já não reconhece como sua, porque vin- culadora a uma distinção classista. E, não se contentando em con­

gelar essa cultura num passado, em datá-la, paradoxalmente lê-a sob o signo de Cairos e não sob o signo de Cronos. Faz abolir a distan- ciação histórica, que impõe uma visão condicionada pelo tempo, para se permitir o re-crear de um sub-texto, tributário de ideologias de um aqui e agora.

Aquilo que frequentemente se designa pelo nome de folclore não é, efectivamente, uma cultura popular, mas uma cultura burguesa para uso popular. É, portanto, tal como as modas artísticas de massas, veiculadas pelos meios de comunicação social, um instrumento de alienação ou imobilização do povo. Constitui, de qualquer modo, um contraplacado cultural e não uma cultura-vida popular.

UM POETA EXEMPLAR

5. António Aleixo é, sem dúvida, o mais representativo poeta oriundo das camadas populares. Na sua obra estão reflectidas as três dominantes que foram apontadas como constituitivas da cultura tra­

dicional. Daí, a sua escolha para objecto de uma leitura em que se procurará detectar a visão ou visões do mundo de um homem dividido entre duas sociedades: aquela a que pertence por origem e aquela a que pertence, em certa medida, por contaminação.

A questão do método

6. A primeira dificuldade surgida para uma análise correcta consistiu na questão metodológica. Se esta questão é sempre com­

plexa, mais complexa se torna quando o texto em causa escapa a uma

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classificação que se poderia apelidar de clássica. Isto é, quando se pretende ver o texto, ao mesmo tempo, como produto literário e como documento, é indispensável ter uma noção, tão clara quanto possível, da coexistência, no nosso universo cultural, de um pensamento não- -conceptual (mágico, se se quiser) e de um pensamento racional.

O problema do método não precede, porém, a investigação: segue-a.

Daí que a previsibilidade não costume acompanhar a viagem que todo o estudo é.

Num trabalho que incide sobre um texto de uma literatura paralela, como é a literatura tradicional, vários sistemas e ramos do saber — a história das ideias e a história das instituições, o folclore, a psicanálise, o próprio estruturalismo — podem ter a sua palavra a dizer, contri­

buindo para a compreensão do texto. E então, o âmbito do conhe­

cimento, o sentido que a obra teve na época em que foi escrita e o sen­

tido que hoje tem, a influência que exerceu e exerce sobre o público, a sua função passageira ou duradoira, o público a que foi destinado e o público que foi atingido, tudo adquire um dimensionamento mais preciso, menos aproximativo.

Na ligação da obra e do público, por exemplo, as dialécticas chamadas a intervir são extremamente subtis. Numa dialéctica rigo­

rosamente histórica, que insere a obra nos diversos contextos de ela­

boração, têm a maior importância as relações entre a literatura erudita e a literatura tradicional. Mas se a análise for centrada no autor, na dualidade de o «eu» consciente e deliberado do artista e na estrutura do seu inconsciente, já entramos no campo sociológico (e psicológico), em que o conhecimento da educação, da família, das convivências, desempenha papel de relevo.

Procurar-se-á suprir a carência de certos elementos que seriam preciosos para este tipo de abordagem (leituras, contactos humanos, o quotidiano), para, através dos géneros que o poeta abordou — qua­

dras, canções de mote e glosas, experiências teatrais — se seguir um itinerário que possa abrir perspectivas sobre a sua vivência: o mundo que ele viu e o mundo que quis ver.

O tempo e o espaço

7. Importa referir, em primeiro lugar, os parâmetros espa­

ciais e cronológicos que delimitam a vida de António Fernandes Aleixo.

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António Aleixo 9 O espaço: Loulé, região agrário-artesanal; Vila Real de Santo António, centro piscatório; França, uma etapa de presença instável e curta duração; Coimbra, a dos Covões e a da Baixa. O tempo:

1899-1949, uma vida cortada ao meio pelo Maio de 1926.

Se a estes dados juntarmos o curriculo profissional de António Aleixo, temos um homem que foi tecelão na terra natal, como o pai (*);

polícia, na cidade; trabalhador da construção civil, quando emigrante;

guardador de cabras e cauteleiro. Neste itinerário, fazia-se acom­

panhar de uma viola, cantando em feiras e festas e poetando nas praças e nos cafés (2).

Podem corrigir-se, agora, os dados espaciais: a região em que decorreu a vida de Aleixo foi a região do café, da barbearia, da feira, da tasca, essa região sem pássaros, sem árvores, sem montes. Povoada de uns tantos ociosos, uns tantos oportunistas, vaidosos ou tolos, mas decerto também pelos notáveis da terra e um bom número de pequenos e médios intelectuais.

Os dados cronológicos podem também sofrer uma alteração, ampliando-se a sua formulação sintética. Aleixo viveu a maior parte da existência no Portugal amordaçado. Tinha 27 anos apenas quando se celebraram os funerais da I República, e desapareceu em 1949, ao extinguirem-se os últimos acordes de o «requiem» por um mundo novo.

Tem de se ter em conta este espaço e este tempo que condicio­

naram o homem — que o condicionaram em todo o sentido da palavra.

Mas tem de se atender também, em conjugação com estes dados, às actividades que exerceu (mais do que profissões, pode falar-se em modos de angariar a subsistência). Aleixo é, neste aspecto, o homem sem amo: é o «Ti Jaquim», do auto do mesmo nome, que não tem

(0 O facto de ter sido tecelão, como o pai, põe decerto o problema de uma inserção profissional a que muitos chamarão de carácter proletário. Cremos, toda­

via, que a tecelagem, no Algarve dessa época, ainda se apresentava com um estatuto quase artesanal. A mentalidade do artesão, como, a ser correcta a nossa hipótese, seria a do pai de Aleixo, não difere essencialmente da que caracteriza a ínfima bur­

guesia, embora se distancie muitíssimo da mentalidade do proletário, seu contem­

porâneo, de Lisboa, de Setúbal, do Porto, ou mesmo da Covilhã e Guimarães.

Todavia, é um factor a ter em linha de conta na análise da receptividade de Aleixo às incidências populistas ou ideais republicanos.

(2) Baseamo-nos nos dados fornecidos por Joaquimde Magalhães, Romance do poeta Aleixo, Faro 1959, e Fernando Cardoso, Poetas populares, vol. l.°, pp. 13-22.

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patrão (!), como é o António Coelho que se entranha na floresta, onde Robin Hood encontra a liberdade e ele encontra a libertação da morte.

Como é o «velho perdido», vagabundo em busca de amor.

Thomas Middleton, autor do século x v i i, na sua peça The mayor o f Queenborough (2.° acto, cena III), põe na boca de um personagem a pergunta característica da sociedade agrário-feudal, cuja essência residia nos laços directos de dependência entre os homens: A quem pertences? Ao que o interpelado, perante o espanto incrédulo do seu interlocutor, responde: Sou um súbdito, mas sou um homem sem amo. Quando a sociedade estática começa a ser posta em causa, a res­

posta do homem leva-o rumo ao marginalismo. Só que esse passo pode ser o primeiro em direcção ao Messias (2).

Aleixo «começa a cantar» através de uma pregação de princípios éticos, de acentuação bíblica, e passa depois à idealização do herói solitário, mas na vagabundagem de desenraizado foi ao encontro de outros homens. Esses homens estudaram em escolas, nasceram na burguesia demo liberal e republicana, são os notáveis politicamente inconformistas (médicos, professores, advogados, engenheiros, fun­

cionários), são os escritores (populistas, neo-realistas), são os herdeiros de um positivismo difuso que se atarda em Portugal. E são os filhos destes homens, filhos na fidelidade ou filhos na contestação, que querem ver um Aleixo que não existiu, devolvendo-lhe agora a função de messias que o próprio poeta lhes atribuiu outrora.

O POETA-ARTÍFICE

8. Por 1929, um dos futuros admiradores de Aleixo, ao passar por uma praça de Loulé, reparou num homem que dedilhava uma gui­

tarra, cantando de improviso umas quadras. Do pequeno grupo que o rodeava, recebia moedas e aplausos. Estão aqui elementos

(0 «77 Jaquim: E sabeis o meu segredo? / É o de falar sem medo / que o patrão me ponha fóra....», António Aleixo(Este livro que vos deixo, 2.a ed., Lis­

boa, 1970, p. 264).

(2) A ligação entre o inconformista itinerante e o visionário messiânico não é destituída de bases históricas. Na Inglaterra de meados de Seiscentos, «il arrivait que des prédicateurs itinérants s’octroient le grade plus élévé de Messie itinérant....»

(Christopher Hill, Le monde à Venvers — les idées radicales au cours de la Révolution anglaise, trad, de Simone Chambón e Rachel Ertel, Paris, Payot, 1977, p. 43).

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Antonio Aleixo 11 suficientes para uma primeira reflexão: a música, como factor veicu- lador e fixador da poesia tradicional; a chamada improvisação; o binómio poeta-público.

A música

9. Todas ou quase todas as civilizações arcaicas tiveram os seus poetas-artífices, investidos de uma função social extremamente impor­

tante: a fixação e a transmissão da palavra, no sentido de sabedoria, de cultura. Estava-se no reino da oralidade, em que o poeta se encon­

trava revestido de uma missão que só o recurso a uma mnemotecnia verbo-motora permitiria. Era o ritmo ao serviço da memorização (l).

Isto vem ao encontro da verificação feita por estudiosos e críticos, que notam a persistência de gostos, temas e processos versificatórios, quase imutáveis ao longo de séculos, entre as massas rurais portuguesas, e que parecem satisfazer as exigências estéticas desse estrato. A res­

ponsabilidade de tal fenómeno costuma imputar-se à música, à melodia das canções tradicionais. É em geral a quadra, isolada ou glosada, em redondilha maior, que se adequa ao género epigramático, quer musicado, na plena acepção da palavra, quer recitado, incluindo a semi-entoação ou melopeia. A interligação dos conceitos temá­

tico-ideológico e temático-musical, na quadra tradicional, explora um dos dois processos: o da simetria estrutural, sob a forma de con­

frontação de duas frases repartidas pelos dois primeiros setessílabos, primeiro membro rítmico, e pelos dois finais, segundo membro rítmico, ou recorrendo apenas a uma afinidade de relação verbal ou semân­

tica, sem correspondência simétrica de pensamento. Neste último tipo, o primeiro membro da quadra aparece como «arranque» pre­

paratório do segundo membro. Ambos os processos, quer o de enca­

deamento, quer o de interrupção da sequência discursiva, são utilizados na canção ao desafio ou no fado corrido, visto prestarem-se a um processo de alternância de tom maior e tom menor.

António Aleixo usa, de preferência, a primeira modalidade:

a confrontação-alternância. É o caso da quadra: «Só é feliz quem se ilude / com o que o mundo lhe diz / mas eu não posso nem pôde / iludir-me p’ra ser feliz» (2). Passa do conceito geral para o parti-

0 ) Cfr. Mikel Dufrenne, Le poétique, Paris, P.U.F., 1973, pp. 153-54.

(2) António Aleixo, Este livro que vos deixo, 2.a ed., Lisboa, 1970, p. 56.

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cular: a máxima aplicada ao seu caso pessoal. Mas também usa o processo inverso: «Deixa, porque o tempo corre / não deve o tempo correr; / neste mundo a gente morre / só quando tem de morrer» (!).

Começa por querer consolar alguém (ou consolar-se) e logo a sentença brota com alcance universal. Mas é sempre o acorde de tónica e o acorde de dominante, sendo a dominante o fundamento da harmonia (o aperfeiçoamento do mundo, em geral) e a tónica o centro de con­

vergência de toda a dinâmica tonal (o comportamento pessoal).

Improviso

10. A poesia tradicional, partindo muitas vezes de uma prosa cadenciada ou ritmada dos anexins e máximas, resvala para uma arti­

culação melódica. O canto, por seu turno, permitiu uma memori­

zação mais rápida dos versos clichés, dos estribilhos aforísticos, e de outras fórmulas estereotipadas. O problema do improviso está em estreita correlação com a fixação deste «corpus» cultural na mente popular.

O poeta-improvisador é geralmente identificado com o poeta- -criador, sendo certo que o espontaneísmo, não sendo a negação do talento, se apoia mais na sagacidade, na agilidade de espírito, do que numa verdadeira inspiração. O poeta-artífice é impelido para um jogo vertiginoso de associações, analogias, oposições, rimas, a que a palavra o arrasta. Não quer isto dizer, como aliás Mikel Dufrenne observa (2), que o espontaneísmo não requeira esforço, pois exige um treino por vezes longo e que haja uma ideia pré-existente à enun­

ciação. Essa ou essas ideias, esse fio condutor de todo o fenómeno poético, mesmo o mais rudimentar, vêm de um livro não escrito, mas que, como herança inalienável, se transmite de geração em geração.

Nele estão codificados e catalogados os tópicos que uma camada tão conservadora como era a camada rural muito prezava, e que abran­

giam a vasta gama de vícios de comportamento que vão da hipocrisia à soberba, da ingratidão à mesquinhez.

C1) Id e m, p . 56 .

(2) «.... Le barde qui maintenant improvise s'est soumis à une longue dis­

cipline, comme un bon ouvrier du langage, et le mouvement auquel il se confie ne semble spontané qu’à force de travail, comme celui du danseur....» ( Mi k e l Du f r e n n e,

ob. cit., p. 154).

— 4 3 0 —

(15)

António Aleixo 13 O indivíduo que bebeu com o leite materno todo o repertório de rifões, adágios, provérbios, ditados, anexins, e que possua alguma agilidade de espírito, adapta e reduz à situação do momento, com variantes mais ou menos felizes, essas fórmulas feitas. É até pela expressão obra feita que os cantadores se referem a esse fundo comum, reservando para si, como propriedade privada, o estilo. Saber estilar é saber introduzir variantes, com certo carácter, nesse corpo literário- -musical.

O público

11. A audiência, no sentido directo, de frente a frente, de que gozava o cantador popular, desempenhou um papel importante na preservação desta cultura, porque se entre o artista e o seu público se estabelecem sempre laços de cumplicidade 0), eles tornam-se muito estreitos nas sociedades fechadas. Nestas, o público exige um glosar dos tópicos tradicionais, em que as variantes são mínimas no plano conceptual, e a que o artista deve saber responder com as variantes formais que não alteram o essencial. O poeta é, portanto, o porta­

v o z dos sentimentos colectivos e, ao dar-lhes corpo, está a fazer comun­

gar o público numa cerimónia de carácter quase ritualístico.

Esta propriedade comum que se cria, ao passar de geração em geração ou de uma região a outra, adquire só elementos circunstanciais que pouco desfiguram a estrutura conceptual (2). Não se anda longe daquela noção de sujeito colectivo, expoente e veículo de uma cultura e de uma concepção de vida que pertenceram a sociedades arcaicas e fechadas, e que alguns pretendem fazer reviver hoje, num mundo de coordenadas socioculturais tão distintas.

Ao fazer-se referência à função ritualística que ao poeta-can- tador cabia, convém notar que nas sociedades modernas, em especial na sociedade de consumo, o valor cultual do objecto estético perdeu-se.

(0 A sociologia da literatura dá papel de relevo ao processo de «feed-back»

e suas incidências numa resposta, por excesso ou por defeito (raramente sincronizada) do autor ao leitor ou espectador. O modernismo e o estereotipo são os dois polos.

Esta análise, em geral aplicada à cultura escrita, comercializada, pode também ajudar a compreender os fenómenos de circuito na cultura de base oral ou visual.

(2) É o dado act uai idade, colado sobre um texto pré-existente, fenómeno que se desenvolverá adiante, ao tratar-se das modificações nos contos e mitos.

4 3 1 —

(16)

O cantador, na feira, na romaria, no ajuntamento ocasional da praça pública ou por ocasião dos trabalhos cíclicos — as varejadas, as colheitas, as vindimas—, ao enunciar o conceito que derivava de uma filosofia ancestral ou ao fazer a crítica estereotipada, estava a desempenhar uma função ritualística. Quando António Aleixo exclama: «Um poeta de verdade / se souber compreender, / não deve de ter vaidade / de o ser, porque o é sem querer», reconhece aquele imperativo que é já um acto de transcendência. A palavra torna-se o sinal do mago, do sacerdote, do que tem o poder de transmitir, daquele que se sente incumbido de uma missão. Esta atitude, laicisada, é assumida por toda a poesia tradicional, portanto transmissora dos valores herdados.

A sociedade de consumo ignora ou inverte esta função. O cantor de espectáculo, dizendo ou cantando num palco os mesmos versos tradicionais, está a dar à poesia um valor de troca que, de certo modo, apaga esse valor de uso. A atmosfera de comunicação, de comunhão num mesmo acto colectivo 0), só comparável a um culto antigo, não se cria artificialmente. A «rampa» põe um obstáculo entre actores e espectadores, obstáculo esse que a festa popular não conhecia. Nesta, não se assistia, vivia-se a festa; a ausência de fronteira espacial tor­

nava-se a abolição do espectáculo (2). Na outra, pelo contrário.

Quando a arte se separa do seu fundamento cultual, extingue-se a aura.

E é desta minimização do tempo e do espaço que deriva o fracasso do revivalismo da tradição e da promoção do popular (3).

(!) «.... Uma corrente magnética ligava todas aquelas almas, tornando-as solidárias na comunhão emotiva....» (Miguel Torga, Diário, vol. 8.°, 2.a ed., Coim­

bra, 1960, p. 68). O escritor refere-se aos cegos-cantadores e seu público, embora a perspectiva que lhe interessa focar seja o pendor fatalista da nossa gente.

(2) Sobre a festa como jogo sem fronteiras, base de uma autêntica cultura popular, ver Mikhail Bakhtine, U oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen-Age et sous la Renaissance, Paris, Gallimard, 1970. O seu ponto de vista é temperado por Marc Soriano, Quelques travaux récents sur la littérature populaire in «Annales — Économies, Sociétés, Civilisations», n.os 3 e 4, Maio-Agosto de 1971, pp. 771-781, o qual vê na festa «uma das formas da cultura popular».

(3) Pode objectar-se que a sociedade de hoje, com as variadas formas de liturgias comunitárias (desfiles, espectáculos desportivos, comícios, férias progra­

madas, etc.) está a responder à ânsia de participação. De certo modo, assim é, mas com limitações. Em boa medida, essas liturgias constituem formas de gregarismo, fenómenos de colectivização afectiva, em que o gesto emocional abafa a reflexão intelectual.

432

(17)

António Aleixo 15

A PRÉDICA DO COMPORTAMENTO INDIVIDUAL

12. A problemática e as concepções da vida individual possuem uma inegável relevância na obra de António Aleixo. A visão que a sua palavra veicula abrange, todavia, diversos espaços, em termos não só de incidência, mas de conteúdo. Ao lado da preocupação moralizante, aparecem as grandes paixões populares — o crime, o amor e a morte.

A preocupação moralizante avulta na poesia que se vaza nas formas populares das pequenas estrofes. Essa preocupação pro- jecta-se em termos um tanto repetitivos, visto a sua problemática não ultrapassar os limites da oposição maniqucísta do Bem e do Mal, o que corresponde à aceitação mais ou menos passiva do mundo tal como se tornou. Esta preocupação moralizante não esgota, em con­

cepções e conteúdos, a problemática aleixiana da vida individual.

E daí a abordagem subsequente das grandes paixões populares. O seu tratamento inclui, porém, uma filosofia, mais implícita do que explícita, que julgamos indispensável pôr em evidência. E se essas paixões não figuram, todas, com o mesmo relevo no conjunto das canções- -narrativas, a sua textualização acaba entretanto por se reportar a certos denominadores comuns.

O problema da mentira

13.Nas quadras e nalgumas quintilhas e sextilhas que com­

põem os primeiros livros de António Aleixo (l), depara-se com um acusador para o qual os outros são réus de um imenso processo. Os crimes ou pecados capitais chamam-se: inveja, ambição, soberba, petulância, má-língua, mentira. Em lugar de destaque, distanciando-se mesmo largamente, acham-se a mentira e a ambição. A primeira é citada explícitamente umas trinta vezes, pelo nome próprio ou pelas alcunhas de fingimento, hipocrisia, engano, ilusão.

A mentira, que Aleixo denuncia como património de uma socie­

dade corrupta, máscara obrigatória a afivelar no grande palco da

O Referimo-nos aos livros intitulados Quando começo a cantar... (l.a ed., 1943) e Intencionais (l.a ed., 1945), publicados mais tarde, juntamente com os três autos, no volume a que se deu o nome de Este livro que vos deixo... (l.a ed., 1969).

— 4 3 3 — 29

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vida, chamou sempre a atenção dos cultores de uma poesia didáctico- -polémica. As velhas cantigas de escárnio fazem da mentira, da sua acolita, a má-língua, e da sua aliada, a ambição, as responsáveis pelos males do mundo. «Já de verdade / nem de lealdade / non ouço falar, / cá falsidade / mentira e maldade / non lhis dá lugar....» 0), é o queixume de um Martin Moxa, que noutra composição vai à raiz do problema:

o facto de a ascensão social depender, muitas vezes, da mentira (2).

A associação mentira (lisonja)-ambição, própria do sirventês medievo, traduz uma visão essencial mente pessimista, em que o género humano se nos apresenta como abandonado por Deus; não é contudo a óptica de António Aleixo. Este, como se verá adiante, fustiga a ambição como objectivo, e só muito raramente pelo que pressupõe de processos.

Na quadra «Mentiu com habilidade, / fez quantas mentiras quis; / agora fala verdade, / ninguém crê no que ele diz» (3), verifica-se que o sentido prático se sobrepõe a uma mera declaração de princípios.

Nos dois primeiros versos aponta-se para um passado a que a reni­

tência na culpa confere uma continuidade, sendo essa dimensão tem­

poral e quantitativa que justifica a condenação unânime — «ninguém crê», ou seja, o bom comportamento posterior é insuficiente para anular os efeitos da insistência no erro. Não se trata da renitência na culpa como agravante, numa culpabilização de carácter penitenciai.

Trata-se da aplicação da moral pragmatista da gente do povo, que mede as consequências sociais de determinado comportamento (4).

Ainda no capítulo da mentira, Aleixo distingue várias cambiantes.

Há a mentira-embuste, em que o indivíduo procura enganar o pró­

ximo (5) ; há a mentira-aparência, em que o indivíduo procura enganar-se

(!) Cantigas d y Escambo e M al Dizer — dos Cancioneiros medievais galego- -portugueses, ed. crítica do Prof. Rodrigues Lapa, col. Filolóxica, edit. Galáxia, Coimbra, 1970, n.° 280, pp. 420-21.

(2) Idem, n.° 281, pp. 423-24. Vejam-se também a composição de Nuno

Fernández Torneol, Idem, n.° 303, p. 452, e o sirventês moral de Pero Mafaldo, Idem, n.° 399, p. 588, em que a lição é sempre a mesma : só se governa quem recorre à mentira.

(3) António Aleixo, Este livro que vos deixo, 2.a ed., Lisboa, 1970, p. 27.

(4) A quadra «Para não fazeres ofensas / e teres dias felizes, / não digas tudo o que pensas, / mas pensa tudo o que dizes» é outro exemplo desta moral pragma­

tista (A. Aleixo, ob. cit., p. 131).

(5) «Não digas que me enganaste, / por ter confiado em ti; / muito mais do que levaste, / ganhei eu no que aprendi» (Idem, p. 73).

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(19)

António Aleixo 17 também a si próprio 0). E, quando o poeta recorre a este jogo de espelhos que é a ilusão, fá-lo ou por orgulho, para não ser objecto de dó (* 2), ou por desespero, para não encarar de frente a realidade (3).

Por vezes, mente apenas por solidariedade para com os seus irmãos de infortúnio (4). Mas a mentira é sempre um recurso, a adaptação a uma sociedade imperfeita, por culpas individuais, portanto passível de regeneração.

O poeta sente-se investido de uma missão de denúncia. Isso levá-lo-á até a exclamar, num misto de modéstia e de orgulho ingénuo:

«Não quis que me engrandecessem / os meus tão humildes versos; / fi-los pTa que se convertessem / alguns corações perversos» (5). Esta conversão dos homens, em que se proporia colaborar, visava, portanto, a instauração do reinado da sinceridade, cujo advento anuncia em tons manifestamente proféticos: «Só quando a hipocrisia / cair do seu pedestal / nascerá, dia após dia / um sol p’ra todos igual» (6). Mas esse dia afigura-se ao poeta ainda longínquo, devido à dureza do coração dos humanos, o que o leva a concluir que «Talvez paz no mundo houvesse / embora tal não pareça / se o coração não estivesse / tão distante da cabeça» (7). E momentos há em que o desânimo é mais vivo: «Des­

creio dos que me apontam / uma sociedade sã: / isto é hoje o que foi ontem / e o que há-de ser àmanhã» (8).

Neste misto de crença e descrença num mundo melhor, há um

(0 Esta variante da mentira pode detectar-se em inúmeras quadras; ver, por exemplo, a da p. 31 que começa: «Não és, mas queres par’cer....»

(2) «Não acho maior tortura, / nem nada mais deprimente, / que ter de cha­

mar fartura / à fome que a gente sente...» {Idem, p. 50).

(3) «Bendita seja a mentira / que nos vem trazer a esp’rança / daquilo que a gente aspira, / mas só por ela se alcança» {Idem, p. 144 ).

(4) «Nunca gostei de mentir, / mas faço bem quando minto, / fazendo a outros sentir / esp’ranças que já não sinto» {Idem, p. 55). A quadra «És parvo, mas é distinto, / só vês bem o que tens perto; / não compreendes que te minto / quando te trato por esperto?», com o seu tratamento irónico, é ambígua. O tu pode ser um eu camuflado, mas pode ser um tu real, ou pode ser ambos. No pri­

meiro caso, teríamos a auto-crítica desenganada; no segundo, a pactuação social;

na sobreposição de pessoas, uma outra formulação do «sou simplesmente o pro­

duto / do meio em que fui criado», da p. 67.

(5) Idem, p. 57.

(6) Aleixo, ob. cit., p. 142.

(7) Id e m, ibid., p . 143.

( 8) Id e m, ibid., p . 34 .

435

(20)

messianismo ainda difuso, no qual a palavra esperança aparece muito intermitentemente. Será, em termos catecismais, uma não-presunção de salvação, logo uma atitude resignativa, muito próxima do fatalismo inerente às camadas sociais pouco habituadas a ver alguma melhoria na sua condição.

Se a mentira, em todas as suas formas, constitui um dos obstáculos ou para a vida presente tranquila ou para o advento de uma sociedade de homens justos, a ambição é sempre fustigada pelo censor-poeta O).

O não contentar-se alguém com o que tem surge equiparado por António Aleixo a uma insatisfação vã e nunca a um inconformismo válido. Ao bloquear a ambição, o desejo de subir, a cobiça, Aleixo mistura a justa causa com a injusta. Quer uma sociedade fraterna, em que não haja emulações, onde reine a verdade: estão aqui patentes as coordenadas da solidariedade maçónica, própria do estrato demo- -liberal com o qual conviveu e que o marcou. Mas estes princípios e o seu afloramento tardio sobrepõem-se, ainda todavia sem a subs­

tituir, à lição eclesial — «pobres sempre os haverá» —, e aí enraiza a sua disponibilidade para aceitar a vida em termos ora de despren­

dimento, ora de cepticismo.

Entre o mundo que é e o que devia ser, fica toda uma ausência que, traduzida literariamente, vai ser preenchida por duas maneiras, não tão antagónicas quanto à primeira vista poderia parecer: pela ironia (2) e pela temática do desengano do mundo, em que a cidade, a Balilónia bíblica, é o lugar de perdição.

Na quadra «A vida na grande terra / corrompe a humanidade. / Entre a cidade e a serra, / prefiro a serra à cidade» (3), mais do que a antinomia estereotipada, está a oposição entre o lugar onde se sofre e o lugar onde se será feliz. É o sentimento nostálgico, de exílio, dos filhos da terra, ansiando pela pátria celeste. Como de exílio é outro poema em que o poeta nos diz que «as nuvens mostram tristeza, na cidade de Paris» (4). Nesta composição, para vincar o contraste

0 ) Vide, entre muitas, as quadras que incidem sobre este tópico insertas nas pp. 37, 38, 40, 51, 54, 112, 124, 137, 140, 141 e 143.

(2) Ironia e não humor. Neste, há todo um jogo de massacre pelo absurdo.

Naquela, a troça e o desprezo, mais sugeridos que afirmados, recobrem a mágoa, o ressentimento, a impotência. Na obra de Aleixo, há exemplos de ironia, por vezes quase sarcástica, que, não raro, atingem o próprio (cfr. quadras da p. 70).

(3) A. Aleixo, ob. cit., p. 40.

(4) Idem, pp. 171-173.

— 4 3 6 —

(21)

António Aleixo 19 cidade — campo (dando-se a estes termos um sentido lato de pátria

— estrangeiro), recorre-se a uma imagem reveladora da mentalidade popular, receptiva a uma prédica eclesial: a pecadora, representada pela mulher francesa, e a virtuosa, representada pela mulher portuguesa.

É o conhecido tópico, glosado no sermonário e livros de piedade:

Eva e Maria, o anti-modelo e o modelo do comportamento feminino, ou a personificação do mundo e da vida eterna. Repelindo a mulher francesa, igual a vício, igual a exílio, e suspirando pela mulher do seu país, é uma atitude essencialmente messiânica que Aleixo aqui assume, porque só o exilado sonha com o regresso a um reino, com uma terra de promissão. De Portugal, ele evoca a «limpeza do céu», as «natu­

rais cores» das suas mulheres, as flores de Abril, a riqueza do sol.

De França, as nuvens escuras, as mulheres venais e as casas «de tábuas e papelão».

No plano do real, Aleixo sabe que na sua terra há miséria moral e física — a miséria que o levou a procurar, longe, melhores condições de vida. Mas na trajectória do imaginário, ele é conduzido a iden­

tificar o seu país com o país ideal com que sonha: a sua saudade e o seu desejo inconsciente só evocam os aspectos idílicos e aleatórios.

António Aleixo, como todo o filho do povo que vive uma situação opressiva — trabalho ingrato, fome, exílio — espera uma libertação (1).

Só que essa libertação, dependente de um tempo de espera que todo o projecto messiânico pressupõe, pode ser contrariada pela dinâmica da inserção social. Ou pelo pentecostalismo, quando a frustração atinge um certo paroxismo, como se verá na parte final deste trabalho.

Numa primeira fase da dialéctica de Aleixo, a espera messiânica assenta no desmascarar da hipocrisia das classes dominantes — e domi­

nantes não apenas no sentido de detentoras das alavancas do Poder, mas no de usufrutuárias do consenso geral. Essa hipocrisia é o reverso da imagem dos verdadeiros valores, isto é, dos valores que se situam num passado-futuro, num paraíso a reencontrar. Em segunda fase, porém, a espera, na medida em que não implica a acção, em que tende (*)

(*) «....sólo una colectividad que vive su situación de presente como la de un exilio puede formar el proyecto de un reino. (El mesianismo es el proyecto de la imaginación dirigida hacia la espera de la realización del reino). Dicho de otro modo: sólo en una situación de alienación se puede soñar con una liberación»

(Luis Maldonado, Religiosidad popular — nostalgia de lo magico, Madrid, ed.

Cristiandad, 1975, p. 308).

— 437 —

(22)

até para a contrariar, envolve o resvalo para o desprendimento, vizinho da passividade. Essa espera-esperança desempenha assim uma função conservadora, que cauciona a prepotência dos dominantes e anes­

tesia os anseios dos dominados (l).

Tal desprendimento, alimentado pelas classes possidentes (em toda a extensão da palavra), é a estas que beneficia. Fornece-lhes um alibi extremamente cómodo para a manutenção do seu estatuto de privilégio, no suporte do qual colaboram os próprios grupos domi­

nados. O conformismo vê-se, deste modo, abusivamente promovido a virtude cristã, identificando-se com a paciência e ascendendo a vir­

tude cívica: é o espírito de ordem, da sacrossanta Ordem.

O problema da honra

14. O assumir da pobreza, como condição natural, querida pelos que mandam, Deus ou os homens, tem visos, em Aleixo, de uma consequência desta concepção da vida. O pobre nobilita a pobreza associando-lhe a honradez: «És rico e sério? Protesto, / nisso tens facilidade, / ser pobrezinho e honesto / é maior honestidade» (2).

A esta quadra do vate algarvio fazem eco inúmeras outras, anónimas, como esta: «Sou pobre, não me envergonho / de ao pé de um rico apar’cer, / sendo pobre e sendo honesto / fica a diferença no ser» (3).

A dialéctica aleixiana do ser-ter está em correlação com o que se expendeu sobre o conformismo. Provém de uma estreita aliança

(0 «.... Il est donc d’une importance capitale, pour ouvrir cette nouvelle voie dans le marxisme, de comprendre le rôle que peut jouer dans l’histoire le facteur subjectif, le rêve et l’espérance. Pour cela, il faut examiner les thèses inverses selon lesquelles ce facteur, le rêve d’un monde meilleur, est, au contraire, un frein au pro­

grès et à l’émancipation de l’homme, car il est la pure et simple nostalgie de l’enfance.

On reconnaît la thèse pessimiste et «réaliste» de Freud, exposée dans L'avertir d'une illusion. Les rêves d’un monde meilleur sont tous des pièges, des refus de la réa­

lité, ils ne concernent pas l’avenir, mais le passé et ne sauraient être porteurs d’his­

toire....» (Catherine Piron-Audard, Anthropologie marxiste et psychanalyse selon Ernst Bloch, in «Utopie-Marxisme, selon Ernst Bloch — um système de l’incons­

tructible», Paris, Payot, 1976, p. 110). Neste estudo, a autora rebate, em parte, a tese freudiana, mas sem cair numa visão prometaica; coloca-se sob a égide do

«totum utópico», espécie de corrector do real, indispensável à História que se faz, pela transformação qualitativa. Tal é também a nossa posição.

(2) Aleixo, Este livro que vos deixo, p. 125.

(3) Abel Viana, Para o cancioneiro popular algarvio, 1956, p. 241.

— 4 3 8 —

(23)

António Aleixo 21 entre os dois poderes, o espiritual e o temporal, ou antes, do desvir­

tuamento que consiste em colocar as armas do espírito ao serviço de um certo político. É a repressão cultural sob a forma de subli­

mação, com direitos de cidadania na vigência do regime de 1926-1974.

O «establishment» português minimizou, escamoteou, desviou as aspirações das classes desfavorecidas a um nível económico decente, fazendo do empolamento da «virtude» da pobreza, do mito da vida simples, uma arma dissuasória de tomadas da consciência possível.

Criou-se, assim, uma antinomia cómoda para a defesa dos interesses constituídos: o ser incompatível com o ter, ou pelo menos sobreposto, o que, paradoxalmente, dava cobertura a uma sociedade de «happy few», que se arrogava o direito de pregar um ascetismo que não pra­

ticava. Fazia-se da opção uma imposição para os outros. Esta mentalização, logo esta mentalidade, não foi fabricada apenas há décadas; tem uma longa história e, por isso, a sua marca na cultura tradicional está profundamente arreigada.

Entre a idealização do «pobrezinho» e a sua utilidade e utilização, e a idealização do viver campesino, há mais estreita relação do que parece à primeira vista 0). A «aurea mediocritas» não é apenas um

C1) Este tópico será desenvolvido no nosso trabalho sobre Gil Vicente e o mundo rural, a aparecer em breve. Numa perspectiva um tanto diferente — o pobre ao serviço da santificação... dos outros — transcreve-se o seguinte passo de Gene­

viève Bollème: «....Représentation du peuple inverse de celle que nous montraient la littérature de l’époque et la littérature populaire elle-même parfois (nous en avons trouvé trace une fois dans un almanach du xvne siècle), figure du pauvre «pervers»,

«malhonnête», qui n’est là que pour permettre au riche d’exercer la charité....»

(G. Bollème, Les almanachs populaires aux X V IIe et X V I IIe siècles — essai d'his­

toire sociale, Paris-Haia, Mouton, 1969, p. 58). Esta observação é apoiada por uma nota, em que a autora transcreve um trecho de um catecismo para uso das crianças, Le livre des enfants, «Du menu peuple», Paris, Prault, 1736, de que indi­

camos um passo mais significativo: « ....D . — Les pauvres servent-ils de quelque chose? R. — Oui, pour faire pratiquer aux Riches la Charité et attirer sur eux les grâces de Dieu....» (Idem, ibid.). Esta função social atribuída ao pobre tem perdurado através de formas mais ou menos tranquilizadoras. Ver as saborosas páginas que António Alçada Baptista consagra aos pobrezinhos que «agiam com a consciência subconsciente do papel imprescindível de proporcionar aos ricos o sossego de viverem tranquilamente a sua própria riqueza» (A. Alçada Baptista, Peregrinação Interior, 2.a ed., vol. l.°, Lisboa, Morais, 1971, p. 186). O conto de Sophia de Mello Breyner, O retrato de Mónica, ilustra também esta concepção do pobre-utilitário (Sophiade Mello Breyner, Contos Exemplares, 3.a ed., Lisboa, Por- tugália Editora, 1970, pp. 115-120).

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tema horaciano posto em voga no Renascimento, como réplica à corrupção de hábitos e costumes que a curialização arrastava con­

sigo. É também uma arma contra o avanço de um mercantilismo em expansão, o grande inimigo de uma nobreza secundária, confinada aos seus parcos recursos, retirada nas suas propriedades. É evidente que nesta dimensão não cabe toda a problemática da «aurea medio­

critas» que, assente numa leitura estoica da vida, se arvora numa filo­

sofia de contenção da cobiça, da ambição desmedida, de um ideal de vida manifestamente mais puro. Mas todas as doutrinas são pas­

síveis de aproveitamentos e, quando a literatura setecentista, de alcance pragmático, de que Correia Garção é um expoente, ressuscita a media­

nia, a limitação dos desejos, está a abrir caminho a um paternalismo, ainda não perfeitamente delineado, mas que os intelectuais «esclarecidos»

do século XIX adoptariam.

A quadra de Aleixo põe, sobretudo, a acentuação na honestidade.

A honestidade representa, para o filho do povo, um título de glória, por ser a marca distintiva que o separa do negociante. Este era, já desde os autos de mestre Gil, identificado com o demónio.

Para o negociante, Aleixo é duro: «Negociante viveste / tens dinheiro e excelência / são coisas que recebeste / a troco da cons­

ciência» 0), como é irónico: «O meu merceeiro é um santo / e há quem diga que ele é mau ! / Digo-lhe só : dou mais tanto, / já me arranja bacalhau» (2). E, para melhor ilustrar a trajectória deste «traidor», observa ainda: «Vem da serra um infeliz / vender sêmea por farinha; / passado tempo já diz: / esta rua é toda minha» (3). É o pecado da especulação, que tanto choca a mentalidade popular, modelada por uma aculturação eclesiástico-senhorial. Aleixo, ao passar da mora­

lização abstracta ou vagamente figurativa («o meu merceeiro») para a galeria tipológica (o Curandeiro, o Senhor Rosa, o Regedor,) não se limita à denúncia, mais ou menos veemente, do espírito especulativo:

amplia-lhe o raio maléfico de acção. O espírito especulativo, tendo em mira o lucro, anula os escrúpulos e, com os escrúpulos, anula a consideração pelo outro. Temos com isso a inconsciência do char­

latão, que põe uma vida em perigo, ou o egoísmo do Senhor Rosa e a indiferença-conivência do Regedor, que destroem uma vida humana.

0 ) Aleixo, ob. cit., p. 130.

(2) Idem, p. 29.

(3) Idem, ibid., p. 27.

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