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NIETZSCHE E EPICURO: APROXIMAÇÕES EM TORNO DA FILOSOFIA COMO METÁFORA MÉDICA NIETZSCHE AND EPICURUS: APPROACHES AROUND THE PHILOSOPHY MEDICAL AS METAPHOR OLIVEIRA, Jelson Roberto de

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NIETZSCHE E EPICURO: APROXIMAÇÕES EM TORNO DA FILOSOFIA COMO METÁFORA MÉDICA

NIETZSCHE AND EPICURUS: APPROACHES AROUND THE PHILOSOPHY MEDICAL AS METAPHOR

OLIVEIRA, Jelson Roberto de1

RESUMO

Pretendemos nesse artigo analisar a ambígua relação entre Epicuro e Nietzsche no que diz respeito à filosofia como metáfora médica. Se em Epicuro, a filosofia se apresenta como

“medicina da alma”, em Nietzsche ela é compreendida como “medicina da cultura”. Se no filósofo grego ela remeteria a uma análise em vista da evacuação dos falsos temores, no filósofo alemão ela está ligada ao fortalecimento que promove o aprofundamento da doença até a sua superação. A tarefa, portanto, remete ao enfrentamento do paradoxo interpretativo de Nietzsche: de um lado, Epicuro é apresentado como um decadente, de outro, como um resistente ao movimento socrático e portador de uma vivacidade dionisíaca ligada à reinterpretação da relação entre vida e moral.

Palavras-chave: Epicuro; Nietzsche; Metáfora médica.

ABSTRACT

We intend in this article examine the ambiguous relationship between Epicurus and Nietzsche in relation to philosophy as a medical metaphor. If at Epicurus, philosophy presents itself as

"medicine of the soul" in Nietzsche it is understood as "medical culture". If the Greek philosopher she would refer to a review in view of the evacuation of false fears, the German philosopher it is linked to empowerment that promotes the deepening of the disease to overcome them. The task, therefore, refers to both the interpretation of Nietzsche's paradox:

on one hand, Epicurus is presented as a decadent, the other as a resistant movement Socratic and hold a lively Dionysian linked to reinterpret the relationship between life and morals.

Keywords: Epicurus; Nietzsche; Medical metaphor.

1 Doutor em Filosofia; professor do programa de pós-graduação em Filosofia da PUCPR. E-mail: jelsono@yahoo.com.br.

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INTRODUÇÃO

“Foram precisos cem anos para a Grécia descobrir quem fora Epicuro, esse deus do

jardim.

– Mas descobriu?” (BM, 7).

O parentesco entre as filosofias de Nietzsche e de Epicuro forma um mosaico bastante rico e curioso. Pode-se afirmar que o nome de Epicuro acompanha as principais transformações do pensamento de Nietzsche e, por isso, se altera de acordo com os interesses interpretativos de cada

“período”. Nos escritos tardios (terceiro período ou período da maturidade), Epicuro representa para Nietzsche um fenômeno patológico, um sintoma da décadence2 e sua filosofia não é considerada mais do que uma “sabedoria moral” (Klugheits-Moral), uma phronesis que contrapõe o prazer à dor (KSA 10, 7 [209], da primavera-verão de 1883, p. 307) 3 fazendo com que a felicidade se ligue à posse de uma boa saúde, entendida como negação do sofrimento e da doença (KSA 11, 25 [17], da primavera de 1884, p. 16). Nesses escritos, Epicuro está ligado a uma medicina tranquilizadora própria dos homens fracos (BM, 200) e, portanto, como

2 Sobre esse tema, cf. nosso trabalho anterior:

OLIVEIRA, 2008, p. 12-50.

3 Nesse artigo usaremos as siglas convencionais para citação dos escritos de Nietzsche: Co. Ext. III (Terceira Consideração Extemporânea Schopenhauer como Educador); NT (O Nascimento da Tragédia); HH I (Humano, Demasiado Humano, vol. I); OS (Humano, Demasiado Humano II:

Opiniões e sentenças diversas); AS (Humano, Demasiado Humano II: O andarilho e sua sombra);

A (Aurora); GC (A Gaia Ciência); GM (Para a genealogia da Moral); KSA (Sämtliche Werke.

Kritische Studienausgabe - edição crítica em 15 volumes organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari – a sigla será seguida do número do volume, número do fragmento, ano de escrita e página da edição); BM (Além de Bem e Mal); EH (Ecce Homo); CI (Crepúsculo dos Ídolos). Seguindo as letras, para as obras publicadas, constarão os números arábicos referentes ao número do aforismo da obra.

um “típico décadent”, predecessor da

“religião do amor” pelo seu absoluto

“medo da dor, até do infinitamente pequeno na dor” (AC, 30) o qual teria cultivado a

“ausência de sofrimento” e o “repouso no seu mais alto sono” (GM, III, 17). Epicuro é receitado, assim, para “quem prevê, em alguma medida, que o destino lhe permitirá tecer um longo fio” tal como aqueles que se dedicaram ao “trabalho intelectual” (GC, 306). Ou seja, o epicurismo do jardim é a doutrina dos fracos que não podem digerir as “pedras e vermes” que advem da existência.

Mas essa perspectiva se diferencia daquela adotada nos escritos do chamado segundo período, que são anteriores a 1882 - até a segunda metade dos anos de 1870.

Aí Epicuro é visto por Nietzsche como alguém que rompera com a tradição filosófica racional-idealista e produzira a sua própria “verdade” a partir da luta contra a dor. Como momento de transição, de amadurecimento e de ruptura com as teses de Schopenhauer e Wagner, Nietzsche se interessa e testemunha nesse tempo, a

“vivacidade” (AS, 227) do pensamento de Epicuro em muitas das suas temáticas, mormente no que diz respeito à compreensão da própria filosofia como

“tarefa médica”. Nos escritos desse período, que incluem os dois volumes de Humano, demasiado humano, o volume de Aurora e os quatro primeiros livros de A Gaia Ciência, além dos fragmentos póstumos e das cartas, o nome e as ideias de Epicuro são bastante frequentes e remetem à maneira de interpretar a filosofia a partir da metáfora médica, como higiene que conduz à derrocada dos idealismos metafísicos.

Se é verdade que sobram críticas a Epicuro na obra de Nietzsche, é também verdade que no cenário bibliográfico desse período, poder-se-ia falar de um “momento epicurista” (CHOULET, 1998, p. 326) vivido por Nietzsche, principalmente a partir de duas vias: o naturalismo de seu

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pensamento (cuja base seria o encontro de uma “verdade” natural, útil e imoral que reconcilia natureza e razão, que opõe uma

“ética natural” a uma “moral do além”) e o valor da amizade e das virtudes a ela associadas. De um lado “Nietzsche joga o naturalismo epicurista contra a desnaturalização cristã” (CHOULET, 1998, p. 328) e de outro, associa o seu nome à revalorização de um sentimento que se estabelece a partir da afirmação de si. O naturalismo, entretanto, não é outra coisa que uma apologia ao “real” abundante, livre e imoral, cuja efetividade se apresenta como prazer de viver, abandono ao abismo natural associado a Dioniso. Malgrado todas as suas ambigüidades – e graças a elas - Epicuro também é um resistente, no âmbito cultural da décadence.

Duas vias de uma aproximação

Assim como trata outros pensadores, Nietzsche inventa para si o Epicuro que lhe convém. Pode-se dizer dos nomes próprios, aquilo que o filósofo alemão disse dos nomes simples: “as palavras são bolsos nos quais se guardou ora isto, ora aquilo, ora várias coisas de uma vez!” (AS, 33). Nessa medida, é o próprio Nietzsche quem introduz o nome do filósofo do Jardim entre os seus “pares” na confissão de parentesco intelectual que encerra o primeiro livro do segundo volume de Humano, demasiado humano, intitulado Opiniões e sentenças diversas, publicado em 1879: “Quatro pares foram os que a mim, o oferente, não se negaram: Epicuro e Montagine, Goethe e Spinoza, Platão e Rousseau, Pascal e Schopenhauer” (OS, 408). Pode-se afirmar que é esse o “Jardim” nietzschiano porque nele se reúnem os amigos, cuja convivência assume as características da liberdade de espírito e do nomadismo conceitual.

Os pares aqui listados não são por si só, como logo se vê, nem amigos e nem mesmo adversários, mas “bolsos” nos quais Nietzsche guarda a sua própria filosofia, como invenção de suas vivências e como

expressão de debates (concordâncias e discordâncias) que remetem à ideia de inimizade como dispositivo prático que se associa diretamente à noção mesmo de amizade, tanto cara para Epicuro quanto para Nietzsche. Em outras palavras: esses oito pensadores são “inventados” por Nietzsche como adversários resgatados do Hades com sangue e sacrifício. O final do aforismo deixa claro o motivo da referência: esses “mortos” continuam vivos (“como se agora, depois da morte, não pudessem jamais se cansar de viver”). O que permanece vivo são seus pensamentos, portanto, e sua eternidade é substituída pela vivacidade de suas ideias, sobre as quais se ergue também a filosofia de Nietzsche. É esse o tom do parágrafo 227 do Andarilho e sua sombra, que tem por título justamente

“O eterno Epicuro” e que diz: “Em todos os tempos Epicuro viveu e ainda vive, desconhecido daqueles que se chamavam e se chamam epicuristas, e sem reputação entre os filósofos. Além disso, ele esqueceu o próprio nome: foi a bagagem mais pesada que algum dia lançou fora”. Esquecido de seu próprio nome (que em grego remete a

“aquele que faz caridade”), Epicuro se tornou eterno por suas ideias que acompanham de forma assídua a história do Ocidente. Mas a sua eternidade (aludida no título desse aforismo) está na sua experiência sensível e na organização atômica da matéria e no eterno movimento dos átomos e, principalmente, nas suas idéias e não na crença da imortalidade da alma.

A confissão desse parentesco por parte de Nietzsche faz notar que nos escritos desse segundo período, o nome de Epicuro está ligado a duas acepções complementares que aparecem diretamente ligadas ao tema da filosofia como

“metáfora médica” – e que, no limite, estão ligadas à anfibologia com que o nome de Epicuro é sempre apresentado: de um lado, a uma filosofia do alívio e da alegria frente à existência e, de outro, ao fato de que essa

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filosofia foi apropriada pelo cristianismo para o alívio dos fracos. Na primeira significação, Epicuro estaria ligado ao processo de aliviar a vida – pela afirmação;

e no segundo, no alívio da vida - pela evacuação e negação. Nesse sentido, Epicuro representa para Nietzsche uma ambivalência paradoxal: de um lado, o filósofo alemão permanece atento à fecundidade do pensamento epicurista no que diz respeito ao seu anti-platonismo, revelado como valorização do prazer, luta contra a superstição e certa naturalização do conhecimento, ligado à “indiferença dos deuses, o sentimento de gratidão pelas coisas, o sonho de um jardim como arquitetura da amizade” (CHOULET, 1998, p. 311); de outro lado, Epicuro também é visto como um socrático decadente, dada a sua contribuição posterior para o cristianismo e à moralização de seu pensamento (que não seria outra coisa do que uma herança do socratismo). Em termos gerais, trata-se de uma pergunta sobre as forças que movem a cultura: poder ou decadência, abundância ou miséria?

“Que vida é exposta nesses ‘valores’?”

(CHOULET, 1998, p. 313) e quanto valem para a vida os valores anunciados por Epicuro e, consequentemente, por toda a filosofia?

Na primeira acepção, o nome de Epicuro está ligado ao processo de heróico alívio da existência, o que inclui a vitória da serenidade sobre o espetáculo do barulho moderno, do remorso contra o passado e da negação do presente. Em sua obra sobre Nietzsche, Mazzino Montinari afirma que Epicuro é “o filósofo do Andarilho e sua sombra” (2001, p. 79). Uma das referências dessa afirmação se encontra no curto fragmento 23 [56], do final de 1876-verão de 1877, no qual Nietzsche explicita seu

“Elogio de Epicuro”. Segundo Olivier Ponton, esse “elogio” estaria ligado à

“celebração da leveza homérica que dá uma nova coerência ao pensamento de Nietzsche sobre o alívio da vida” (2006, p. 303). Em

outras palavras: Nietzsche aproxima Epicuro do tema do “idílio heróico” (KSA 8, 43 [3], de 1879, p. 610) representado pelas figuras de Claude Lorrain e Nicolas Poussin (cf. AS, 295), como expressão de uma “poetização da realidade” capaz de alterar os arquétipos da negação e do peso da existência, para celebrar a “calma, [a]

simplicidade e [a] grandeza” da vida4. Essa

“trindade da alegria” (AS, 332) representada pela grandeza, serenidade e luz solar (essas “três boas coisas” [Ruhe, Gröβe, Sonnenlicht], formam o desejo do pensador como aquele que busca a perfeita serenidade heróica, nascida de uma alma agitada que vence o sofrimento e o desejo).

Na expressão de Ponton (2006, p. 307), Epicuro simula, nesse sentido, ao figura de um “herói da vida fácil” e sua presença remete à reiterada busca de Nietzsche pela vida no Jardim, ao qual se liga o tema da solidão, do distanciamento, da afirmação de si, da alegria e da amizade.

Desse ponto de vista, a oferta de Epicuro aparece como dádiva de uma tranquilidade arrebatadora, de “um modo heróico-idílico de filosofar”, como se lê no aforismo 295 de O andarilho e sua sombra.

4 Em O Andarilho e sua sombra, § 192, Nietzsche descreve a desejada simplicidade epicurista: “Um pequeno jardim, figos, queijos e mais três ou quatro amigos, essa foi a opulência de Epicuro.” Essa expressão de “opulência” é retomada numa carta a Malwida von Meysenbug, de 4 de agosto de 1877, para definir a experiência de Nietzsche em Sorrento nos anos 1878, quando ele alimenta a idéia de re- fundar um Jardim da Amizade, onde pudesse conviver com “espíritos livres”: “eu jamais vivi numa tal opulência como em Sorrento” (KSB 5, p.

267). Epicuro serve, assim, de referência para esse

“projeto” pessoal de Nietzsche que envolve, nessa época, uma “ética da amizade”, tal como aparecer num fragmento póstumo de 1876 (KSA 8, 19 [9], p.

333): “Os que sabem congratular-se conosco estão acima e mais perto de nós do que os que conosco se compadecem. A congratulação (Mitfreude) faz o

‘amigo’ (Freund) (o que se congratula) (Mitfreunder), a compaixão (Mitleid) faz o companheiro de dores. Uma ética da compaixão precisa do complemento de uma superior ética da amizade”.

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Escrito em referência ao quadro de Bartolomeu Rónai, sob inspiração do poema goetheano que dá título ao aforismo (Et in Arcadia ego [Eu também vivi na Arcádia]), o texto de Nietzsche parece uma brincadeira com a escola literária do século XVIII que remete ao bucolismo Arcádio, à exaltação da natureza e do mundo campestre a la Epicuro. Trata-se de uma sátira de Nietzsche à promessa que teria sido dirigida por Epicuro aos homens doentes e ao sentimento de terem em si o mundo e de serem parte dele. Mas, fiel ao paradoxo que prende o nome de Epicuro a muitas ambigüidades, a Arcádia representa também, no contexto de O andarilho e sua sombra, a força e a grandeza heróica daqueles que se distanciam da multidão para tomar sol e respirar ar puro. Trata-se de um idílico trágico e dionisíaco que sabe transfigurar a fraqueza e a decadência em grandeza e afirmação, na qual está ausente qualquer conotação metafísica de fuga da realidade. Como mostrou Philippe Choulet (1998, p. 313), esse paradoxo se explica pela “mudança no eixo de avaliação do racionalismo” impetrado por Nietzsche em diferentes momentos de suas obras, principalmente quando envolve o nome de Aristóteles.

Ainda em Aurora, 72, Nietzsche recupera Epicuro para criticar a retomada, por parte do cristianismo, do terror causado pelo “após-a-morte” a partir da idéia dos

“castigos infernais” e dos “horrores subterrâneos”, fazendo com que a morte seja o grande móvel da conversão e da moralização cristãs: “a morte definitiva como punição do pecador e a impossibilidade de ressurreição como ameaça extrema” (A, 72). A morte, como móvel moral, representa num primeiro momento a negação da imortalidade e de outro, a ameaça de uma imortalidade na danação e no sofrimento eterno. O que fizera Epicuro, ao evacuar o temor da morte como algo que não diz respeito ao humano, fora anular esse poder moralizante da

morte. Agora, segundo Nietzsche, a ciência partiria de um desinteresse sobre esse tema e esse é mais um “benefício indescritível”

que advém da vivacidade do pensamento epicurista. Ao invés do Deus punitivo do cristianismo, Nietzsche resgata os

“indiferentes desconhecidos” deuses de Epicuro, cuja existência fazem com que a vida seja não um resultado da constante vigilância e providência divinas, em vista da punição ou da redenção final, mas uma aceitação do “querido acaso” que faz olhar a vida com inocência e ver cada acontecimento como resultado

“constantemente no melhor possível” (GC, 277). Contra a providência vigilante e punitiva do Deus cristão, Epicuro representa o “tinha de acontecer”, o “foi como foi”, ou seja, a afirmação exata do instante, do tempo presente como aceitação do passado sem remorso.

Mas talvez seja no parágrafo 45 do primeiro livro de A Gaia Ciência que Nietzsche desvela o sentido ético da filosofia de Epicuro – nesse texto, que tem como título justamente Epicuro, se lê:

“Sim, orgulho-me de sentir o caráter de Epicuro diferentemente de qualquer outro, talvez, e de fruir a felicidade vesperal da Antiguidade em tudo o que dele ouço e leio”. Nietzsche vê em Epicuro (e talvez com ele partilhe) essa felicidade nascida de

“um ser continuamente sofredor”, a felicidade que faz contemplar o mar da existência como calma superfície, partilhando a felicidade que acalma esse mar bravio.

Na segunda acepção, Epicuro está ligado à decadência da cultura antiga e a sua apropriação pelo cristianismo. No aforismo 224, de Opiniões e sentenças diversas, o nome de Epicuro (unido ao de Epiteto) é apresentado como a “voz da razão e da filosofia” e ainda como a

“sabedoria em carne e osso”, que está nas bases do cristianismo, ele mesmo continuador da doença que se abateu sobre a Antiguidade. Como pressuposto do

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cristianismo, o epicurismo é a representação da surdez de uma civilização degenerada, sobre o qual o cristianismo

“agiu e age como um bálsamo”. A

“tranquila comunidade cristã” espalhada pelo mundo é apresentada como uma boa notícia para os cansados, cuja existência lembra justamente as “sombras do Hades:

figuras acanhadas, sussurrantes, deslizantes, benévolas, com uma expectativa de ‘vida melhor’, e por isso tão modestas, tão calmamente desprezadoras, tão orgulhosamente pacientes!”. Eis a descrição que explica a proximidade identificada por Nietzsche entre o cristianismo e o epicurismo e a “utilização” que tornou o segundo uma filosofia de alívio da vida, ou seja, de negação da existência pela via da busca da serenidade e da anulação da dor.

Como decadente Epicuro representa uma sábia alternativa e um convincente consolo aos “infelizes, malfeitores, hipocondríacos, moribundos” a quem ele pode oferecer “duas fórmulas tranquilizantes” que dizem: “primeiro, dado que seja assim, não nos diz respeito;

segundo, pode ser assim, mas também pode ser de outro modo” (AS, 7). Esses “dois meios de consolo” oferecidos brilhantemente por Epicuro para os doentes de seu tempo, serve para muitas coisas, segundo Nietzsche: como o “mitigador de almas”, Epicuro é aquele que oferece o remédio que tranquiliza pela evacuação daquilo que causa o sofrimento sem que seja necessário “resolver as questões teóricas verdadeiras e extremas”. Ou seja, o epicurista é aquele que faz desviar as atenções dos agentes externos, seja pela negação de sua importância, seja pela constatação da pluralidade das hipóteses que elas representam.

A filosofia como medicina

As duas acepções com as quais Nietzsche apresenta o nome de Epicuro, remetem à ideia da metáfora médica, pois se ligam à temática que apresenta a ética

como atividade de busca pela saúde da alma. Nietzsche, com isso, permanece fiel e atento à aparição dessa temática na doxografia antiga, na qual se destacam as obras de Epicuro, mormente na Carta a Meneceu e nas Sentenças vaticanas, nos quais a atividade filosófica é definida como medicina da alma. Entretanto, podemos afirmar que o filósofo alemão mantém a distância necessária em relação a Epicuro no que diz respeito à compreensão desse papel a ser desempenhado pela filosofia, na medida em que a ética da felicidade, fundada por Epicuro, estava baseada numa

“teoria do conhecimento” ainda herdeira do cômputo socrático “verdade + virtude” e que, no fim, conduziria a uma negação dos instintos. O resultado, portanto, é que Epicuro estaria ligado ao cristianismo, religião que se utiliza da racionalidade para erigir a fé tanto quanto Epicuro se utiliza da razão para erigir a sua moral.

Num fragmento coletado por Porfírio encontramos: “Assim como realmente a medicina em nada beneficia, senão liberta dos males do corpo, assim também sucede com a filosofia, se não liberta das paixões da alma” (EPICURO, I, p. 13). Nitidamente influenciado pelo hipocratismo, que obteve seu auge entre os anos 430 e 380, o ato médico é visto por Epicuro, pois, como uma restauração de determinado ideal de saúde, frente ao qual a própria medicina se tornaria dispensável, já que é a saúde que dá significado à medicina e não a enfermidade, pois a cura é a meta da ciência médica. Ou seja, o que dá sentido à medicina não é a doença, como estado patológico, mas a saúde, como estado ideal e desejável e a medicina seria útil apenas na medida em que possibilitaria uma intervenção nos desequilíbrios de “humores” provocados pelos agentes externos. Paradoxalmente, a maior utilidade da medicina é se tornar

“inútil”, na medida em que seja dispensada ou requisitada o mínimo possível. Assim, é pela higiene que se efetiva a possibilidade de pensar um estado de saúde que não é

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afetado pelos agentes externos: a medicina é dispensável na medida em que existe a higiene, associada a uma felicidade, equilíbrio e tranquilidade do corpo.

A história da higiene é uma história de regularidade e ritmo natural próxima, portanto, da ideia de saúde. Por isso mesmo o vocabulário grego epicurista não distingue higiene e saúde, já que estar em boa saúde é não se deixar impactar pelos agentes externos, ou seja, não se descuidar do corpo e suas afecções. Para os gregos, esse cuidado do corpo estava associado à dietética e à ginástica. Higéia, filha de Asclépio, é o símbolo mítico desse cuidado corporal: rainha da medicina, ela encarna o instinto de vida que previne das doenças, evitando a necessidade de seu pai intervir a todo o momento a fim de curar ou aliviar a dor (cf. COMMELIN apud DUVERNOY, p. 80).

A ética, nessa medida, aparece como uma busca pela calmaria e a tranquilidade da alma desejada como virtude do sábio. A ataraxia está associada justamente àquilo que no campo da alma é expresso pela noção de higiene e saúde corporal: a restrição dos afetos e o controle dos prazeres em vista da anulação da dor são processos similares à fuga dos agentes externos que causam os desequilíbrios de humores e levam à doença do corpo. É isso o que significa, no caso do homem prudente (phronimos), pensar e agir “naturalmente”, ou seja, sem recorrer à filosofia. Em outras palavras: a filosofia aparece como um processo pelo qual se expulsa para fora da alma as perturbações e as afetações que causam sofrimento e dor. A filosofia de Epicuro, portanto, é mais uma phronesis (sabedoria prática) do que uma philosophia (sabedoria teórica) propriamente dita.

Trata-se de valorizar a prudência como forma de vida e não o mero acúmulo de saberes como expressão de erudição.

Para Epicuro, esse tipo de sabedoria filosófica (a phronesis) seria um caminho para a superação da decadência da cultura

na qual proliferam almas cultas e, por isso mesmo, doentias. A organização da sociedade estaria impregnada de infelicidade, medo e doenças que tornam o próprio epicurismo uma “profilaxia epidemiológica” (DUVERNOY, 1993, p.

81), já que essa infelicidade se espalha como uma epidemia que atinge toda a população e o epicurismo da tradição (pode-se citar especialmente Diógenes e seus conselhos no muro de Enoanda) se apresenta como remédio que salva dessa patologia através da expulsão dos temores e das aflições. Pelo mecanismo da crise cultural, a peste atinge a todos e faz os homens morrerem por contágio (cf.

Lucrécio em Da natureza das coisas, VI, 1138). Atingida pela peste, resta à cultura o remédio da filosofia, ou seja, a reflexão e o controle das necessidades e prazeres, a diminuição das futilidades, a negação dos fatores externos que impedem o cultivo da higiene interior. Eis a necessidade sempre presente da filosofia segundo Epicuro:

“Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse de fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma” (EPICURO, I, p. 13). Isso porque a filosofia é para a alma uma restauração - é por ela que se reconquista a saúde. Deve-se responder ao seu convite, já que ela chama toda a cultura doente para ser tratada.

A filosofia teria como tarefa livrar dos temores e ajudar a evacuá-los pela reflexão, já que os temores são representações sem realidade, sem nenhuma proveniência a não ser o próprio nada.

Quem teme, teme o nada e não alguma coisa concreta ou “real”. Temer o nada é algo absolutamente prejudicial, já que não tem nem sentido e nem sensação – é um

“antiprazer puro” (DUVERNOY, 1993, p.

83). Como “palavra vazia”, o temor é pura infelicidade e deve ser recusado pela reflexão filosófica e a aquisição da verdadeira sabedoria. A reflexão filosófica

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expulsa os temores desvelando seu vazio e sua falsa sensação e dando lugar à sensação verdadeira. Essa cura da alma chega pela atenção a alguns princípios que são

“fechados” em um corpus fixo que deve ser repetido pela memória a fim de fazer ver aquilo que não é como não sendo. O sensualismo materialista presente na filosofia de Epicuro conduz, assim, à negação dos motivos da infelicidade pela vida da “evacuação” daquilo que não é e é tido como sendo.

A filosofia em si mesma não é a vida feliz, mas o caminho até ela para aqueles que adoeceram. A vida feliz, para Epicuro, está em simplesmente viver. Os argumentos filosóficos são remédios necessários para a cura e não a própria cura (a própria felicidade). Como pensamento correto e justo, a filosofia se opõe aos pensamentos que causam temor, às opiniões erradas que levam à dor e ao sofrimento da alma. Ora, essa terapia filosófica proposta por Epicuro é positiva, gratificante e prazenteira: “Na filosofia, ao contrário, o prazer advém ao mesmo tempo que o conhecimento. Com efeito, o gozo não advém depois do conhecimento, mas, pelo contrário, gozo e conhecimento são simultâneos”

(DUVERNOY, 1993, p. 86). É isso o que faz da filosofia já por si mesma uma atividade alegre e geradora de prazer.

Carregada de pensamentos que servem de remédio para os temores, a filosofia de Epicuro chega às máximas soberanas que são máximas eficazes de um pensamento sobre o prazer. Repetir as máximas seria uma forma de acessar o remédio. A farmácia de Epicuro é, portanto, a farmácia que oferece – através da administração repetida da dosagem - pílulas de apatia frente aos falsos temores criados pela cultura. Na solidão de seu Jardim, o filósofo administra seus remédios e faz da filosofia a técnica dos princípios que reconduzem à saúde que nada mais são do que ausência de perturbações, ou seja, conquista da simplicidade: “A quem não basta pouco,

nada basta” (EPICURO, IV, p. 18).

Para o Nietzsche do segundo período, principalmente, essa também é uma questão central para a própria filosofia: a realização de um diagnóstico da cultura e a possibilidade de que ela venha a implementar um processo de cura (no sentido profilático e também terapêutico) em relação aos motivos (ou causas) desse adoecimento, cuja manifestação mais imediata o filósofo alemão identifica na ascensão dos idealismos religiosos (cristianismo), filosóficos (metafísica) e artísticos (romantismo).

Desde seus primeiros escritos, Nietzsche se anuncia o filósofo como

“médico da cultura”5 e pretende que o filósofo seja um “médico filosófico” (GC, Prólogo, 2), que possa desvendar as relações que deram ensejo à moralidade gregária como resultado da doença de seus próprios arautos. Isso porque, para ele, toda pretensão de “verdade” esconde a condição de saúde do seu intérprete (KSA 10, 7 [62], de 1883, p. 262), ou melhor, da patologia daquele que, por não suportar a dinâmica da vida, busca um apanágio para o sossego e tranqüilidade que, no fundo, representa uma fraqueza. Nesse sentido, se Nietzsche evoca a tarefa epicurista, isso não significa que esteja de acordo com seus resultados: a medicina da alma, como vimos acima, não deveria aliviar da vida, mas aliviar a vida, no sentido de tornar agradável o viver, em sua radical aceitação e afirmação – ao invés de temê-la e negá-la.

Como resultado da sua tarefa como

“médico filosófico”, Nietzsche começa por transformar o “homem” - ou o “humano” - no tema (ou no problema) fisiopsicológico

5 Der Philosoph als Arzt der Cultur: expressão usada desde os escritos de juventude, como atesta um fragmento do Livro do Filósofo (publicação inacabada e póstuma), presente em KSA 7, 23[15], de 1872-1873, p. 545). A expressão seria contraposta ao filósofo como

“envenenador da cultura” (der Philosoph der Giftmischer der Kultur). Ou seja, se Platão é o envenenador, pela oposição dos instintos, Nietzsche busca o filósofo como o médico, o que reintegra o sentido trágico-artístico à existência.

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por excelência no segundo período de sua produção, na qual a sua tarefa é desvelar a

“química das representações dos sentimentos” (HH I, 1) que fundam os chamados fatos morais, já que as representações são criadas a partir do mundo, como “coisas humanas”

interpretadas. Trata-se, pois, de uma análise crítica implementada como estratégia filosófica para esquadrinhamento das

“coisas humanas”, já que a dualidade corpo e alma expressa uma má-compreensão do humano e nisso se funda a criação de todos os idealismos que, no caso moral, se apresentam como patologia ou, além disso, como patologizadores.

Ora, é a psicologia que serve de instrumento para essa análise e passa a ser definida como “a ciência que indaga a origem e a história dos chamados sentimentos morais e que, ao progredir, tem de expor e resolver os emaranhados problemas sociológicos” (HH I, 37). É isso, precisamente, que Nietzsche entende e pratica como psicologia e que, de resto, está ligada à sua fisiologia6, já que se rompe,

6 Quanto à fisiologia, embora Nietzsche use o termo somente a partir de 1872 (sua primeira aparição se dá no parágrafo 4, de Sobre o Futuro dos nossos estabelecimentos de ensino) o seu interesse pelo tema é bem mais antigo, remetendo a 1866, quando ele tem acesso à obra de Friedrich Albert Lange, Geschichte des Materialismus. Além disso, segundo relata ANDLER (1958, II, p. 328), Nietzsche lera, desde muito cedo, várias obras sobre o assunto, entre as quais: Entstehung und Begriff der Naturhistorichen Art, de Naegeli publicada em 1865 e Descendenzlehre und Darwinismus de Oskar Schmidt, publicada em 1873. Entretanto, pode-se afirmar que só a partir de Humano, Demasiado Humano o conceito ganha importância, vindo a se apresentar com frequência nas obras do último período de sua produção, principalmente em fragmentos póstumos de 1888 e 1889.

A fisiologia é portanto, para Nietzsche, um tema claramente transversal e presente desde seus primeiros escritos, por exemplo, no que diz respeito aos impulsos dionisíaco e apolíneo em torno do Nascimento da Tragédia e da desordem de impulsos presente em Sócrates, o primeiro décadent que levou à morte a tragédia grega. Desde cedo, pois, o vocábulo deve ser compreendido ligado àquilo que, no segundo período Nietzsche chama e pratica como psicologia, e que está embasado num rompimento do tradicional dualismo

“corpo” e “alma”.

nessa visão do humano, o dualismo corpo/espírito que até então também separava as ciências do espírito das ciências do corpo e essas das ciências da natureza.

É necessário lembrar que Nietzsche anuncia a psicologia, em Humano, Demasiado Humano, como instrumento de dissecação dos idealismos e que mais tarde, apresentará o seu Zaratustra como um psicólogo, ao tempo em que, na esteira da influência dos Essays de Paul Bourget e sua conexão entre psicologia e moralidade, Nietzsche estabelece os “mestres franceses”

como bons psicólogos. Psicologia, nesse sentido, seria uma arte da interpretação esboçada como análise e avaliação das

“coisas humanas”. Para tanto, como “estudo da alma” (HH I, 36) a psicologia disseca a origem dos idealismos (presentes na metafísica, na religião e na arte) como erros e preconceitos, levando não à negação da existência, mas à sua afirmação. A psicologia, assim, se torna o procedimento mesmo da filosofia nietzscheana: “nos meus livros fala um psicólogo, que não tem igual, eis porventura a primeira constatação a que chega um bom leitor, tal como eu o mereço (...)” (EH, Porque escrevo tão bons, 5).

Como médico da cultura, Nietzsche reúne num mesmo conceito a psicologia e a fisiologia. Enquanto ciência médica, a psicologia está embasada num programa de destruição dos fundamentos metafísicos da moralidade, tais como a noção de consciência como unidade subjetiva e seu primado em relação ao corpo e àquilo que poderia ser chamado de inconsciente. É o que Nietzsche expressa no parágrafo 23 de Além de Bem e Mal, com as seguintes palavras: “Toda psicologia, até o momento, tem estado presa a preconceitos e temores morais: não ousou descer às profundezas.

Compreendê-la como morfologia e teoria da evolução da vontade de poder, tal como faço – isto é algo que ninguém tocou sequer em pensamento” (BM, 23). Nietzsche pretende, justamente, estudar essas

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“profundezas” que se encontram por baixo das avaliações morais que se cristalizam como preconceitos – e nisso ele se anuncia como primeiro, pelo inédito instrumento que nessa passagem ganha os contornos da vontade de poder. Esse mesmo olhar para o

“mais profundo”, aparece já em Humano, Demasiado Humano: “Enquanto livro para

‘espíritos livres’, fala nele algo da frieza quase serena e curiosa do psicólogo (...)”, escreve Nietzsche no prólogo do segundo volume dessa obra (Opiniões e Sentenças Diversas, Prólogo, 1), escrito em 1886.

Nessa época o filósofo reconhece a obra como uma psicologia que desvela o que há

“por debaixo” e “por trás” da moralidade e do “autotratamento antiromântico” (OS, Prólogo, 2) que Nietzsche pretende perpetrar como parte do rompimento com a primeira fase de seu pensamento.

Pretendendo “prosseguir sozinho” (Prólogo, 3), a partir de uma “primeira suspeita contra a música romântica”, Nietzsche confessa ter feito nessa obra um “combate contra a anti- científica tendência fundamental de todo pessimismo romântico a exagerar, a interpretar experiências pessoais singulares como juízos universais” (Prólogo, 5). Para isso foi preciso “inverter” seu olhar, alterar seu ponto de vista contra o “pessimismo romântico” (OS, Prólogo 7), ou seja, contra a filosofia de Schopenhauer e a música de Wagner.

Para essa tarefa, portanto, faz-se necessário um uso interdisciplinar que junte não apenas a psicologia com a morfologia e com a fisiologia, mas também com a história, a cultura, a linguística, a literatura, a medicina e várias outras áreas do conhecimento, tal como Nietzsche reiteradamente faz uso. Ao se autoproclamar o primeiro psicólogo da história7, portanto, Nietzsche evoca essa

7 “Quem, antes de mim, foi entre os filósofos psicólogo, e não antes o oposto, um ‘charlatão superior’, um

‘idealista’? Antes de mim, ainda não havia psicologia alguma. – ser aqui o primeiro pode constituir um anátema, é em todo o caso um destino: pois também se despreza

“originalidade” no uso do termo psicologia, desvencilhando-o dos fundamentos metafísicos para usá-lo – ao contrário - como crítica da metafísica, mormente a separação entre alma e corpo e a dissolução da crença na unidade consciente da alma e do “eu”. É dessa forma que a metáfora médica ganha expressão filosófica no segundo período da produção do filósofo alemão.

Se Nietzsche efetiva uma transfiguração naquilo que se entende como psicologia, esse procedimento também impacta sobre a sua compreensão de fisiologia: o corpo não é entendido pelo filósofo a partir da visão empírico-radical do sensível tal como postulada pelo materialismo ou como campo pretensamente neutro proclamado pelos lógicos e físicos modernos. Para Nietzsche esse materialismo seria mais um efeito das crenças e preconceitos metafísicos por estar alicerçado em ancestrais artigos de fé que tornam os corpos nada mais do que composições de moléculas e átomos, representações de partículas elementares que formariam a matéria. Essa perspectiva seria uma mera continuação das doutrinas cristãs, do platonismo, do cartesianismo e, no limite, de toda a prática filosófica e científica ocidental que vê no conjunto da realidade a permanência de um fundamento unitário elementar que explicaria os fenômenos da realidade através da inteligibilidade de um sujeito-eu-alma. A física e a fisiologia apegadas a essa tendência seriam, para Nietzsche, reféns ainda da metafísica, já que não haveria uma

“realidade em si” disponível para o conhecimento.

Sendo assim, tanto no caso da psicologia quanto da fisiologia, Nietzsche as utiliza, por um lado, como instrumentos de análise da moralidade, na medida em que servem de denúncia dos erros e dos preconceitos dos idealismos que levaram à

como o primeiro... O nojo do homem, eis o meu perigo...”

(EH, Porque sou um destino, 6)

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degeneração moral como processo de decomposição que se iniciou a partir das implicações fisiológicas. Por outro lado, elas são instrumentos que podem concorrer para a elevação do humano e o fortalecimento da vida. Com os dois termos, chega-se a dois processos: um de denúncia da moralidade que encurta a vida e outro de apontamentos das possibilidades de seu fortalecimento. Ambos os artifícios, entretanto, efetivam-se de forma articulada, concretizando o caráter médico dessa filosofia fisio-psicológica e que, no fim, resgatam as duas acepções com as quais o nome de Epicuro ganha ambivalência na filosofia nietzschiana.

Esse procedimento, aliás, o qual mais tarde será batizado de “genealógico”, apresenta-se nesses escritos como

“apontamentos” e “indícios”. Não à toa, o título do segundo capítulo de Humano, Demasiado Humano é justamente Contribuição à história dos sentimentos morais e o primeiro parágrafo (§ 35) anuncia as Vantagens da observação psicológica, destacando que, para a história desses sentimentos, é preciso levar em conta os subsídios fornecidos pela psicologia. No terceiro capítulo o alvo dessa observação é a vida religiosa, em seguida a arte, a cultura, as relações interpessoais, o Estado e, enfim, o indivíduo consigo mesmo: todo o livro deve ser entendido como um projeto de observação psicológica das várias facetas da vida humana. E é isso, pois, o que caracteriza o procedimento psicológico praticado por Nietzsche nesse período.

A fisio-psicologia é para Nietzsche um instrumento de “dissecação psicológica” que, através de suas “pinças e bisturis”, marca o fazer científico por cujo artifício se realiza a observação dos fenômenos morais e que, no limite, dá contornos mais claros à sua tarefa de

“médico da cultura” e da filosofia como

“medicina da alma”. Ela é a “ciência que indaga a origem e a história dos chamados

sentimentos morais e que, ao progredir, tem de expor e resolver os emaranhados problemas sociológicos” (HH I, 37).

Nietzsche é claro a respeito da novidade desse filosofar histórico que é também um filosofar fisio-psicológico, já que, segundo ele, “a velha filosofia não conhece em absoluto estes últimos, e com precárias evasivas sempre escapou à investigação sobre a origem e a história dos sentimentos morais”.

A filosofia praticada por Nietzsche pretende assim, “livrar paulatinamente” o humano desse “sentimento fastidioso” de

“remorso e tormentos da consciência depois do ato, pois todo ato era completamente inevitável. A atitude filosófica é um fatalismo frio com respeito a todo o passado” (KSA 8, 19 [39], de 1876, p. 339).

Ou seja, é ela que possibilita aliviar a vida afirmando-a em todas as suas características e condições e que se revela, tardiamente, pela noção de amor fati: “que não se quer nada de outro modo, nem para adiante, nem para trás, em toda a eternidade” (EH, Porque sou tão esperto, 10). É bom lembrar que Nietzsche, na curiosa lista dos 10 mandamentos do espírito livre, apresentado em KSA 8, 19 [77] (de 1878, p. 348), já expressa essa noção na seguinte assertiva:

“Não te arrependerás de um delito, mas, em compensação, farás uma obra boa a mais”.

Ou seja, a sua moral é uma moral afirmativa, de libertação do indivíduo (e do mundo), para que ele não permaneça submetido à culpa e ao remorso, mas crie, afirme, faça algo bom – algo que favoreça a vida.

Na conjuntura de sua análise médica dos sentimentos morais, Nietzsche faz ver que a moralidade (em sentido tradicional), ao contrário, invés de valorizar esse indivíduo criativo em sua inteireza, implementou um processo de divisão do indivíduo, por negar-lhe a possibilidade de pensar em si mesmo, para fazê-lo agir sempre em função do próximo: “Não está claro que em todos esses casos o homem

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tem mais amor a algo de si, um pensamento, um anseio, um produto, do que a algo diferente de si, e que ele então divide seu ser, sacrificando uma parte à outra?”

(HH I, 57). A psicologia de Nietzsche critica na ética da compaixão o seu empenho no sacrifício de si em função do outro.

Moral versus vida

Ainda que, sob pontos de vista no geral bastante divergentes, essa compreensão da tarefa filosófica leva tanto Epicuro quanto Nietzsche às mesmas questões: a recuperação da simplicidade, da liberdade, da coragem e da alegria como virtudes morais dignas de serem entendidas como tais. Tais “valores”, entretanto, só podem ser compreendidos como tentativas de diagnosticar o fenômeno da decadência (associadas à experiência da dor, do sofrimento, da doença, das paixões etc.) e que revela como cansaço frente à vida e como medo da existência (substituição do heroísmo pela prudência, da afirmação intensa do acaso pela cautela e covardia) que se revelam como motivos psico- fisiológicos. Em outras palavras: na ambivalência da relação entre os dois autores, encontra-se uma questão central:

deve a vida ser submetida pela moral ou a moral ser circunspecta pela vida? Na busca de uma nova visão de virtude, Nietzsche leva em conta que ela deve ser resultado do jogo de forças no seio do devir, estando ligada ao pathos e não ao ethos da prática moralizante. Como não há distinção entre um agente e a sua ação, não há também qualquer possibilidade de se falar, em termos nietzscheanos, em eficácia ou aptidão para agir, por parte do ser humano ou mesmo em realização de sua natureza excelente, o que implicaria a retomada da versão grega que entendeu a areté como desabrochar das faculdades racionais em função da realização do bem moral e do melhoramento do indivíduo, tendo como critério a vida gregária. Não é esse o

sentido dado por Nietzsche à noção de virtude: nem há nela qualquer noção de realização de alguma natureza humana, nem ela objetiva alguma noção pré-estabelecida de bem (em distinção do mal) e muito menos se poderia pensar numa busca da perfeição ou excelência do “homem”

através do bom uso da razão. Nietzsche não pensa a virtude como guia da ação ou ordenamento do pathos pela via do ethos (algo que, aliás, ele ainda identifica em Epicuro), muito menos na tradicional questão da sua aquisição e melhoramento.

Para o filósofo alemão, esse tipo de compreensão da moralidade não passa de uma inversão de perspectiva por parte dos décadents, aqueles que travestiram a sua fraqueza com a pomposa noção de virtude.

Porque não souberam lidar com as forças antagônicas e ilógicas da natureza e de si mesmo, os arautos da moral da compaixão passaram a representar de forma absoluta e universal a ideia de bem - e também o seu contrário, a ideia de mal, derivada a partir da noção de vício.

Para Nietzsche, a noção de liberdade de espírito, requisitada reiteradamente nos escritos de seu segundo período, estaria ligada a essa perspectiva de retirada do peso que foi colocado sobre a vida, algo que seria alcançado perante uma redefinição da noção de virtude, agora associada ao

“espírito livre” - aquele que seria possuidor de quatro virtudes: a coragem (para o grande desprendimento), a simplicidade (que possibita o nomadismo do andarilho, personagem do segundo volume de Humano, demasiado humano), a resistência (para o enfrentamento do “peso” da vida, que se tornaria relativo para aqueles que obtém, pela moral, força para carregá-la) e a alegria (condição de afirmação da vida em sua plenitude). Todas essas virtudes estão ligadas, não à toa, à importância dada por Nietzsche nesse período, à noção de amizade (Mitfreu[n]de), mote de crítica à compaixão (Mitleid). A efetividade dessa temática encontra n’A Gaia Ciência sua

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expressão sintetizada no anúncio de quatro virtudes que reúnem as características necessárias ao “humano” como espírito livre, aquele que “quer ajudar” sem

“perder-se do próprio caminho e acudir ao próximo”:

Você também quererá ajudar: mas apenas aqueles cuja necessidade8 compreende inteiramente, pois têm com você uma dor e uma esperança comum – os seus amigos: e apenas do modo como você ajuda a si mesmo: - eu quero fazê-los mais corajosos, mais resistentes, mais simples, mais alegres [muthiger, aushaltender, einfacher, fröhlicher]! Eu quero ensinar-lhes o que agora tão poucos entendem, e os pregadores da compaixão menos que todos: - a partilha da alegria [die Mitfreude]! (GC, 338).

Nota-se como essa partilha depende da afirmação de si mesmo (ou, na língua epicurista, da autarquia individual), mas que remete ao outro a quem se dirige desejando que ele se torne capaz de suportar o peso da existência: essas virtudes contribuem para o fortalecimento da vida pelo incremento das forças vitais. Se a moral da compaixão (principalmente com vezo schopenhauriano) se estabelece a partir dos idealismos que justamente tornaram a vida pesada demais e, nesse sentido, oferecem remédios para uma doença que eles mesmos criaram, a noção de amizade embasaria uma partilha da alegria (Mitfreude) e não mais da dor.

Quanto à primeira das virtudes elencadas por Nietzsche, comecemos lembrando que, retomando em sentido ético as teses dos atomistas, Epicuro compreende a própria filosofia como tarefa da simplicidade: a sabedoria está em ser simples como um átomo é simples. Já que o humano é um átomo dotado de consciência

8 Traduzimos Noth por necessidade e não por miséria, como propõe a tradução de Paulo César de Souza, aqui utilizada.

é por ela que ele deve se guiar para manter- se saudável. O átomo é a expressão do pleno e do completo, do idêntico a si e do determinado. É o exemplo que o sábio deve perseguir: fazer regredir a vida até o mais simples, o que é próprio e fechado em si mesmo, ou seja, que não se deixa influenciar ou abater pelas forças externas, que não se efetiva a não ser por si mesmo, independente de todos os fatores exteriores.

Ele se esgota em si mesmo e em si encontra a razão de seu viver, sem necessitar de nada além de si.

Essa noção está ligada àquilo que Epicuro chama de Autarcheia, ou seja, autosuficiência (archeo significa afastar, remetendo, portanto, ao afastamento dos agentes externos desestabilizadores). A autarquia do sábio, como fechamento individual sobre si mesmo, é um produto da filosofia e, enquanto experiência pessoal e comunitária está ligada à absoluta liberdade em relação ao mundo político grego da época (baseado, principalmente, na exploração da mão-de-obra escrava) e às prisões que tornam o espírito humano cativo. É a partir da afirmação de si mesmo que o epicurismo estabelece as condições para o enfrentamento das condições adversas da vida. Aquilo que o átomo representa em termos físicos é o que esse átomo consciente que é o humano significa em termos éticos: aquilo no qual nada entra e nada sai, que não é causa e não é consequência de nada e, principalmente, que experimenta nessa sensação autárquica o máximo gozo consigo, a plena felicidade.

Em outras palavras, como átomo consciente de sua condição, o sábio obtém o prazer mais puro que é o de ser si mesmo, de bastar-se a si mesmo.

A autarquia, assim, conduz à sabedoria e, consequentemente, à felicidade. É esse o prazer como estado, isto é, de estar em repouso apenas em si mesmo, em equilíbrio, em pleno gozo de si mesmo.

Mas a autarquia não pode ser apenas segurança no sentido de pobreza ou de

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busca de proteção, como recusa ou fuga do sofrimento (tal como pode ser expressa, negativamente, a imagem do Jardim). Essa autarquia não passaria de uma experiência de indiferença frente à vida – e não de heroísmo, tal como Nietzsche sugere ao falar dos homens modernos como cautelosos e desconfiados, idealistas decepcionados, reservados e prevenidos, controladores dos impulsos através de “um quase epicúrio pendor ao conhecimento”

(GC, 375). Ao contrário, a noção de autarquia deveria ser ligada à afirmação do próprio ego “contra a apatia para com os outros” (A, 131).

Essa afirmação não trata de uma negação da condição humana, portanto, mas do seu usufruto. Nessa experiência de sabedoria, tudo o que perturba e desvia de si – que é obstáculo para a sabedoria – deve ser afastado. Ora, um dos principais temores que afligem o humano, no que diz respeito à sua condição, é a morte. É preciso afastar, portanto, mais esse pseudo- temor para alcançar a plenitude. É nisso que o tema da morte se torna relevante na filosofia epicurista, como uma tentativa de afastá-la, já que representa um falso temor:

a morte não é nada que diga respeito ao homem, já que não há absolutamente nenhuma experiência da própria morte. A morte é a total ausência de sensação e, portanto, nada de revelante para uma filosofia que se interessa pela dor e pelo prazer como sensações fundantes da vida.

Isso não significa que Epicuro não tenha reconhecido a morte como um obstáculo à vida. Ao contrário, na trigésima primeira Sentença Vaticana pode-se ler:

“Contra tudo o que vem de fora, é possível obter segurança. Mas por causa da morte nós homens habitamos todos uma cidade sem muralhas”. Contra a morte nada pode a filosofia, já que entre os agentes externos, o único para o qual o humano não pode obter nenhuma segurança é a sua finitude. O humano está aberto a esse terrível agente externo, mas não na medida em que ele

ameace a própria vida: como dor excessiva, a morte se diferencia das demais dores justamente porque, ao anular a vida, anula também a sensação. É nesse contexto que se encontra a famosa assertiva de Epicuro:

“(...) A morte não é nada em relação a nós, já que, quando somos, a morte não está presente, e, quando a morte está presente, não somos mais” (EPICURO, 2002, p. 29).

Como tal, malgrado o seu grande poder, a morte não representa qualquer obstáculo à sabedoria ou mesmo ao prazer, e como tal, ela não é uma experiência dolorosa. Então, por que se preocupar com ela? Trata-se de um temor que é esvaziado de seu sentido inicial pela via da reflexão filosófica. A verdadeira sabedoria é aquela que possibilita esse esvaziamento do sentido temeroso doado à morte.

Trata-se de uma visão integral da própria vida: o sábio é aquele que sabe que o instante da sua existência não tem nenhum privilégio em relação aos infinitos momentos em que ele não existiu e os momentos infinitos no futuro que não o conterão. Ou seja, o universo não está orientado para a minha existência, já que a visão do Todo não se altera pela minha morte e, ao contrário, revela um devir inocente desvelado por uma sabedoria trágica que vê a destruição já como uma construção e vice-versa, pois, segundo a teoria atômica, morte e vida não passam de reorganização de átomos no espaço, tornando o Todo sempre idêntico a si mesmo. O que está em jogo é a afirmação do momento, do instante exato experimentado pelo sábio. Sua sabedoria é a conquista desse equilíbrio do instante revelado no famoso epitáfio (encontrado em inúmeros túmulos epicuristas latinos): “Non ero; fui; non sum; non curo” (“Não era; fui;

não sou mais; isto me é indiferente”). A 55ª Sentença Vaticana deixa muito clara essa compreensão: “Devemos curar as infelicidades pela lembrança reconhecida daquilo que se perdeu, e pelo fato de saber que não é possível fazer com que aquilo

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que aconteceu não tenha acontecido”. A afirmação do instante se dá, portanto, de forma a valorizar o passado tal como foi sem que se deseje alterá-lo. O sábio olha para o que foi com paz e tranquilidade a partir do presente. Nesse instante exato, o acaso e a necessidade não são mais pares contrários, mas expressões de um mesmo sentido: o que é, tem de ser e não pode não ser.

O próprio Jardim não é mais do que a expressão desse sentido: como lugar distanciado ele funda uma ética do distanciamento que é também uma ética do presente, do que é circular e do que é livre.

Frente à crise de valores e à decadência da cultura de seu tempo, o Jardim de Epicuro torna-se, na expressão de Nietzsche, uma

“escola para educadores” (KSA 8, 23 [136], de 1876-1877, p. 261) que pretendia aliviar a dor provocada pela epidemia cultural que prostrara a Antiguidade.

O Jardim é a expressão do distanciamento da multidão moderna.

Como pequeno “Estado experimental” (A, 453) no qual o indivíduo é rei apenas de si mesmo, esse lugar idílico sonhado como uma comunidade de espíritos raros e distintos torna-se um projeto aspirado pelo filósofo alemão no segundo período de sua produção filosófica: “Quem deseja gastar seu dinheiro como espírito livre deverá fundar institutos sob o modelo de claustros, para dar a possibilidade aos homens que não querem mais nada com o mundo, de viver amigavelmente em comum numa grande comunidade” (KSA 9, 17 [50], de 1876, p. 305). A mesma ideia aparece em carta a Erwin Rohde, de 16 de julho de 1870: “Nós precisamos dos claustros novamente. E precisamos novamente nos tornar os primeiros frades” (KSB 3, p. 131).

Em um cartão postal enviado ao seu amigo Peter Gast, em 26 de março de 1879, Nietzsche fala desde sua solidão no Hotel Richemont, em Genebra, no final da década de 70 e revela seu desejo de uma vida comum com seus amigos. Ele quer fundar

um novo “jardim de Epicuro”: “Onde reedificaremos o jardim de Epicuro?” (KSB 5, p. 399).

Esse “claustro moderno” (Moderne Klöster, KSA 9, 16 [45], de 1876, p. 294) é o lugar do cultivo experimental do espírito livre por estar baseado na amizade e na simplicidade, na arte e no exercício de poder característicos do mundo grego antigo, em contraposição à agitação da cidade moderna. Para Nietzsche, a concepção de um claustro para experimentos dos “espíritos livres” consigo mesmos é uma concepção que remonta à experiência epicurista e se contrapõe frontalmente à experiência moderna, marcada pelo gregarismo e pela moral da compaixão, que reprime a possibilidade de cultivo de si mesmo. É nesse lugar que o filósofo realizaria a sua tarefa terapêutica de médico da cultura.

Considerações finais

O inventário das ideias de Epicuro (muito longe de ter sido aqui esgotado, obviamente), em alguma medida recenseadas por Nietzsche ao longo de sua obra, comprova o ambivalente parentesco entre os dois autores, já que ambos estão empenhados em resistir à decadência da cultura de seu tempo e a fazer da filosofia o instrumento de diagnóstico dessa enfermidade cultural, bem como de superação e transvaloração. No caso de Epicuro, pela via da correta reflexão que conduz à calma e à evacuação dos agentes externos. No caso de Nietzsche, pela destituição dos idealismos através do aprofundamento da doença, a tal modo que dela mesma surjam as possibilidades de transvaloração. Com nuances diferentes e divergentes, num jogo de justaposições e distanciamentos, paradoxos e ambivalências, a metáfora médica aproxima os autores para dar expressão à tarefa máxima da filosofia: aliviar a existência do peso do remorso e da culpa – essas doenças culturais que se propagaram como

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epidemias morais sobre o mundo ocidental.

Para isso, em Nietzsche como em Epicuro, é preciso reconhecer a própria filosofia como produção sintomática dos equilíbrios e desequilíbrios ligados ao corpo, ele mesmo reinterpretado sob o viés dessa filosofia médica que não lida mais como os dualismos matéria/espírito. Por isso, ao tempo em que aparece como sintoma, a filosofia é também uma profilaxia e um pharmacon capaz de conduzir à superação da doença. Nesse caminho as duas filosofias se encontram com os mesmos temas: busca de serenidade, coragem frente à morte, celebração da alegria vital, distanciamento, congratulação e amizade entre os iguais como transbordamento da autosuficiência e da afirmação de si. Temas expressos na metáfora forte do Jardim, recuperado inúmeras vezes por Nietzsche: “não esqueçam o jardim, o jardim com grades douradas! E tenham pessoas à sua volta, que sejam como um jardim, - ou como música sobre as águas, à hora do entardecer, quando o dia já se torna lembrança (...)” (BM, 25).

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