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Thomas Morus e a abertura humanista

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Academic year: 2023

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Marie-Claire Phélippeau Editora da revista Moreana Traduzido por Emerson Tin

Resumo

Este artigo trata do humanista inglês Thomas Morus. Confrontado com as novas ideias vindas do resto da Europa, Morus é influenciado pela redescoberta de textos gregos. Com seus amigos humanistas William Lily e Erasmo, foi tradutor, poeta, polemista e autor de ficção. Após uma definição do Renascença e do humanismo, que enfatiza a laicização do pensamento, o artigo discute o trabalho de Thomas Morus contra a rigidez da Universidade de Oxford, no que se chamou de “a batalha do grego”. O retrato do humanista prossegue com a evocação de suas qualidades de pedagogo, poeta e autor de diálogos; em seguida, completa-se com o papel de reformador e de epicurista, que Morus demonstrou em sua obra principal, Utopia. A conclusão concentra-se na nova afirmação do lugar do homem no mundo renascentista.

Palavras-chave

Thomas Morus, humanismo, Renascença, Epicurismo, prazer, batalha do grego, Luciano de Samósata, Utopia

Marie-Claire Phélippeau foi professora de Literatura Inglesa em Montpellier, na França, e atualmente é editora da revista Moreana. Em seu livro recentemente publicado, Pour l’amour du ciel, ela analisa o lugar de Thomas More nas concepções de morte, pecado e vida após a morte formuladas na Idade Média e no início da era moderna.

* Este texto se baseia na conferência “Thomas Morus e a abertura humanista”, que foi apresentada no Forum Universitaire de l’Ouest Parisien, em Boulogne-Billancourt em 12 de novembro de 2013, em um ciclo de conferências sobre “O ideal humanista no Renascença”. Para ouvir a gravação da conferência, ver o site do FUDOP:

http://www.forumuniversitaire.com/Joumela/index.php/les-conferences/la-saison-2013-2014/saison-2013-2014-1er- trimestre/conf-en-ecoute-1er-trim-2013-14.

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Thomas More and the dawn of humanism

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Marie-Claire Phélippeau Editor of Moreana

Translated by Emerson Tin

Abstract

This article evokes the English humanist, Thomas More. Confronted with the new ideas coming from the rest of Europe, More is influenced by the rediscovery of Greek texts. With his humanist friends, William Lily and Erasmus, he becomes a translator, a poet, a polemicist and a fiction writer. The article starts by defining the terms Renaissance and Humanism, laying the stress on the secularization of thought, and continues by recalling Thomas More’s action against the rigidity of Oxford University in the battle about Greek. The humanist’s portrait then continues with the evocation of More’s qualities as a pedagogue, a poet and a dialogue writer to finish with More’s role as a reformer and an Epicurean in his major work Utopia. The conclusion insists on the re- affirmation of man in the Renaissance world.

key words

Thomas More, humanism, Renaissance, epicureanism, pleasure, battle about Greek, Lucian of Samosata, Utopia

Marie-Claire Phélippeau was professor of English Literature in Montpellier, France, and is now the editor of the journal Moreana. In her recent publication, Pour l’Amour du Ciel, she analyses the place of Thomas More in the medieval and early modern conceptions of death, sin, and afterlife.

* This text is based on the conference “Thomas More et l'ouverture humaniste”, presented at the Forum Universitaire de l’Ouest Parisien, in Boulogne-Billancourt on 12th November 2013, in a series of conferences about "The humanist ideal in the Renaissence”. To listen to the recording of the conference, visit the website of

FUDOP: http://www.forumuniversitaire.com/Joumela/index.php/les-conferences/la-saison-2013-2014/saison-2013- 2014-1er-trimestre/conf-en-ecoute-1er-trim-2013-14.

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e considerarmos que a Renascença começou com Petrarca no século XIV, na Itália, então ali se desenvolveu durante o Quattrocento, à Inglaterra ele chegou apenas um século mais tarde. O período humanista da Inglaterra é, então, o século XVI, e Thomas Morus, um de seus representantes de primeira ordem. Morus, que viveu em Londres de 1478 a 1535, deixou um nome na história por três razões: ele é o autor de Utopia, da qual inventou o nome; foi um grande político, chanceler do reinado sob Henrique VIII, e é um santo mártir para a Igreja Católica, canonizado em 1935. Evocaremos aqui o humanista que viveu em uma Inglaterra confrontada pela efervescência de novas ideias vindas do continente. Tentaremos, em uma primeira parte, definir os conceitos de Renascença e humanismo, antes de evocar o humanista Thomas Morus sob diversos aspectos, desde seus primeiros poemas, em seguida através de sua ação na defesa do grego e até a escrita de Utopia, em que se descobrirá o reformador e o epicurista.

1. Definição da Renascença e do humanismo

Se chamamos este estudo “Thomas Morus e a abertura humanista”, foi para destacar a transformação que ocorria na época de Morus. Essa abertura do mundo devia ser muito palpável para quem viveu no final do século XV e encontrava-se em uma posição social ou intelectual capaz de apreciar as mudanças que ocorriam na Europa.

Bernard Cottret dá esta definição: “O que se chamou de uma fórmula indispensável da Renascença existiu. A Renascença é, de fato, uma mudança de percepção”1.

É verdade que Erasmo e seus confrades humanistas tiveram a nítida impressão de que eles viviam uma ruptura com a época de seus pais e reatavam com os Antigos.

Cottret acrescenta: “e, como todos os grandes adolescentes um pouco tolos, [eles]

acreditavam se emancipar da cultura de seus pais quando eles a ela estão amalgamados”2.

Explicarei minha compreensão da Renascença assim: a sociedade se laiciza imperceptivelmente e percebe o mundo um novo olhar, ao mesmo tempo menos encantado – o que seria o apanágio da Idade Média – e mais pessoal. Pouco a pouco, o indivíduo ganha importância comparado com a comunidade. Sente-se a morte de maneira mais pessoal, mais solitária também. Thomas Morus defende a consciência

1 Cottret, 2012, p. 44.

2 Ibid.

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pessoal do indivíduo, que logo compreende o bem e o mal, sem o auxílio de um confessor. Lutero afirma que o indivíduo, sozinho, deve encontrar Deus, lendo a Bíblia em sua língua, em vernáculo, e não mais em latim, sem o apoio dos sacerdotes. Parece, de repente, haver outra verdade que aquela transmitida pela Igreja, que também, de qualquer modo, perde pouco a pouco a sua autoridade, como se o indivíduo se emancipasse e se permitisse pensar sozinho.

Outros fatos históricos concorrem igualmente para essa mudança de percepção.

O mundo ocidental cristão se abre aos mundos de outros lugares: o Grão Turco, ou o infiel, esse exótico muçulmano combatido até então pelos cruzados em suas terras, introduziu-se na Europa cristã. A ameaça turca, iniciada no século XIII, torna-se, no século XVI, uma agressão real quando os otomanos sitiam Viena em outubro de 1529, o mesmo mês em que Thomas Morus é nomeado chanceler da Inglaterra. Desde a queda de Constantinopla, em 1453, os turcos representavam uma ameaça cada vez mais séria e continuarão a ser até a famosa batalha de Lepanto, em 1571, quando a Santa Liga lhes imporá uma derrota memorável. Apesar disso, o pagão, até então distante, penetra no seio do império dos Habsburgo.

Mudança de percepção ainda: a imagem que se faz do mundo não é mais a mesma desde que os navegadores intrépidos sulcaram os oceanos, demonstrando que a Terra era redonda e descobrindo um novo continente. Graças à imprensa, os relatos de viagem dos exploradores tornam-se acessíveis e revelam a existência de mundos e de povos muito diferentes, que viveram sem o cristianismo.

A nova consciência de um mundo alargado não é somente geográfica, mas também histórica. Passamos, então, da Renascença ao humanismo. Ao desejo de descobrir culturas distantes no espaço corresponde uma sede nova de reatar com os tempos antigos. O olhar sobre os escritos gregos e latinos se torna objeto de uma ávida curiosidade. Chamam-se aqueles que praticam os studia humanitatis de humanistas.

Mas é apenas o século XIX que dará ao fenômeno o nome de humanismo.

Sem rejeitar o Deus dos cristãos, os primeiros humanistas que se alimentam de cultura antiga querem retornar à fonte de sua civilização. Eles não são os primeiros a fazê-lo. Os grandes pensadores medievais, como Tomás de Aquino ou Alberto Magno3, baseavam já sua reflexão sobre os filósofos gregos, notadamente sobre Aristóteles, que eles contribuíram para redescobrir; no entanto, os humanistas dos séculos XIV a XVI

3 Alberto Magno (ou Albrecht von Bollstadt, c.1200-1280) era um frade dominicano muito letrado (filósofo, teólogo, químico e naturalista), cujo principal discípulo foi Tomás de Aquino.

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estudam os Antigos de uma nova maneira. São, de início, os italianos que querem encontrar o latim original de seu país; em seguida, o grego, que precedeu o latim, e graças a isso fazem reviver os textos fundadores em sua verdade e sua nudez, desembaraçados das muito numerosas exegeses dos clérigos medievais, que impunham um filtro à sua compreensão. Ousemos esse paralelo: abordam-se, então, os textos antigos como se faz, em nossos dias, com documentos históricos, com rigor e respeito, em uma atitude científica.

Outro aspecto do humanismo, raramente mencionado, é sua finalidade – um aspecto que Francisco Rico soube demonstrar por esta fórmula muito justa:

O amor das belas letras levou a desenvolver os studia humanitatis, que, fazendo renascer a Antiguidade, deviam acabar por produzir uma nova civilização [...] um mundo novo, reconstruído sobre uma palavra antiga4.

Esta afirmação tem o seu valor quando se evoca o humanista inglês Thomas Morus, que, escrevendo Utopia, desenha os contornos e determina os valores de uma cidade ideal. Apoiando-se em Platão e em Luciano de Samósata, que lhe fornecem a

“palavra antiga”, de que fala Rico, Morus tem, de fato, este desejo – que ele sabe, necessariamente, ser “utópico” – de construir um mundo novo.

Os humanistas, como o fará notadamente Rabelais, na França, queriam acabar com a escolástica e a rigidez do aprendizado, com a ignorância devido à falta de curiosidade nova; mesmo que eles se esquecessem de que eles eram, de fato, uma continuação de seus pais, como o mostra o medievalista Jacques Le Goff, os novos humanistas queriam acabar com o que eles consideravam como um “milênio de barbárie”5.

Já Petrarca, a partir de 1340, em sua primeira obra, África, sonhava com esse novo mundo que faria reviver os tempos heroicos da Antiguidade:

[...] sacudindo as trevas,

nossos descendentes reverão o sol puro do passado:

Tu verás o Hélicon verdejar com jovens brotos, Florirá o loureiro: então se estabelecerão

4 Rico, 2002, p.19.

5 Le Goff em seu prefácio da obra de Huizinga, 2002.

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sublimes gênios, férteis, cujo ardor restaurará o antigo amor das Pierides.

[...]

Então tu rejuvenescerás, enquanto a luz

de uma idade mais feliz brilhará para os poetas6.

Essa sede de um mundo novo, que eles seriam capazes de construir, esse otimismo dos humanistas, já posto em evidência por Johan Huizinga em seu O outono da Idade Média, em 1919, é frequentemente questionada pelos historiadores, que veem na Renascença uma melancolia e uma inquietude profunda. É verdade que os poetas mostram ainda a vaidade do mundo; que os artistas propagam às vezes um realismo mórbido, notadamente os pintores do Norte da Europa; que os tratados políticos de Maquiavel descrevem o homem sem ilusão e defendem o cinismo político. No entanto, nos humanistas stricto sensu, isto é, naqueles que entusiasma a descoberta de textos antigos e apaixona o estudo das línguas fundadoras do Ocidente, é o otimismo que prevalece, é um fervor, convencido do sucesso, que se transmite com uma rapidez jamais antes igualada graças a este novo meio que é o livro impresso.

Thomas Morus nasce nessa época, enquanto alguns de seus ancestrais retornam da Itália, carregados de manuscritos antigos e ideias novas, prontos para abrir escolas, para iniciar o estudo do grego nas universidades. São eles, os humanistas ingleses:

Thomas Linacre, John Colet, Cuthbert Tunstall, William Lily, William Grocyn. Cada um influenciará Thomas Morus à sua maneira, mas ninguém tanto quanto o holandês Erasmo, com quem o jovem Morus se ligará por uma amizade inabalável.

Thomas Morus é o humanista de transição entre o mundo medieval e o mundo renascentista. Sua piedade excepcional e sua preocupação pastoral levaram-no a mergulhar muito jovem nos escritos dos Padres da Igreja, para neles procurar uma verdade que o guiaria em sua vida. Mas, ao mesmo tempo, ele é seduzido pela descoberta de manuscritos antigos que dão acesso à cultura antiga, de textos de natureza filosófica que alimentam a reflexão de uma maneira nova.

6 […] Poterunt discussis forte tenebris / Ad purum priscumque iubar remeare nepotes. / Tunc Elicona nova revirentem stirpe videbis, / Tunc lauros frondere sacras ; tunc alta resurgent / Ingenia atque animi dociles, quibus ardor honesti / Pyeridum studii veterem geminabit amorem / […] / Tum iuvenesce, precor, cum iam lux alma poetis / Commodiorque bonis cum primum affulserit etas. Petrarca, Africa, IX, 456-476, 1926.

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2. Morus humanista

Thomas Morus ataca os humanistas de sua época, primeiro em Oxford, para onde ele foi enviado com a idade de quatorze anos, e, em seguida, em Londres, cidade que ele jamais deixará, salvo por algumas estadias diplomáticas em Flandres e na França. Morus não percorre a Europa como o faz a maioria dos humanistas seus amigos, Erasmo, notadamente, ou os ingleses Linacre, Grocyn ou Colet, que foram estudar na Itália. Esse londrino, ancorado na City, vive a dois passos do Tâmisa, onde atracam todos os dias os barcos estrangeiros trazendo suas cargas de homens e de mercadorias vindos de outros lugares, fazendo circular as ideias e os manuscritos, depois os livros recentemente impressos. Lembremos que a impressão é, então, coisa recente. O primeiro livro impresso na Inglaterra saíra da imprensa de William Caxton em 18 de novembro de 1477, menos de três meses antes do nascimento do jovem Thomas.

• Thomas Morus e a defesa do grego

Thomas Morus contribuiu significativamente para a redescoberta da literatura grega na Inglaterra. Os textos gregos antigos eram, até o início do século XVI, reserva de alguns eruditos, e eram conhecidos apenas traduzidos em latim. Claro, duas boas razões impediram a sua difusão antes do século XVI: os manuscritos se encontravam na Itália7, e os livros circulavam apenas copiados, antes da existência da imprensa8.

Quando o jovem Thomas Morus é enviado para Oxford para frequentar os estudos tradicionais durante dois anos, o latim é a língua base; a lógica, a retórica e a gramática, objeto de exercícios quotidianos. O objetivo é menos de fazer dessas crianças pessoas educadas que pessoas virtuosas, que devem assegurar a salvação após a morte.

Estamos ainda no mundo medieval em que a educação só pode estar ligada à religião e em que a ordem querida por Deus não deve ser questionada. Veremos mais tarde que qualificar uma educação de “laica” era condená-la. A literatura profana é coisa muito ligeira para que uma criança possa dela tirar algum proveito moral. É o advento do humanismo que trará certa laicização do pensamento.

É com um professor entusiasta, William Grocyn, que voltou de vários anos passados em Florença, Roma e Pádua, que Morus se inicia no grego. Em seguida, ele

7 Os primeiros manuscritos de Luciano chegaram à Itália no primeiro quartel do século XV, trazidos de Constantinopla para a Itália por Guarino de Verona e Giovanni Aurispa. Um volume das traduções latinas de cinco Diálogos de Luciano foi impresso em Roma em 1470.

8 O primeiro livro europeu impresso com tipos móveis é a gramática latina de Donatus em 1451 por Gutenberg. O primeiro livro impresso em francês é La Légende dorée, de Jacques de Voragine, por Barthélemy Buyer em 1476, em Lyon.

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conhece Erasmo9, doze anos mais velho que ele, e começa o estudo do grego com entusiasmo, por puro desejo de descoberta. Esta é a sua verdadeira entrada no mundo humanista. Em novembro de 1501, ele diz ter abandonado seus estudos de latim para progredir no grego, e sente decepção com a lentidão de seus progressos. Em 1505, Erasmo está de volta à Inglaterra, e os dois amigos se reúnem para a tradução em latim de alguns escritos gregos de Luciano de Samósata; a publicação de seu trabalho se faz, em novembro de 1506, por Badius Ascensius, em Paris.

Há algumas semelhanças surpreendentes entre Morus e Luciano de Samósata10, esse retor-poeta do século II, nascido na Síria. Luciano era um advogado apaixonado por literatura, que sabia com verve ridicularizar os defeitos dos humanos. Ele gostava da retórica, da ironia e do jogo de ideias; sabia denunciar a falta de lógica e levar os argumentos ao seu limite. Iinha uma imaginação de uma audácia surpreendente. São, aliás, suas Histórias verdadeiras tão excêntricas, descrições malucas de extraordinárias viagens terrestres e extraterrestres, que nos cativam ainda hoje e nas quais Morus bem pôde se inspirar para sua Utopia. Traduzindo Luciano, Morus e Erasmo fizeram assim conhecer ao Ocidente trechos poéticos escolhidos, muitas vezes engraçados e ridicularizadores, emprestados de uma moral de bom senso. Morus traduziu três dos diálogos de Luciano, notadamente o Tiranicídio11, um dos textos mais enigmáticos do autor grego. Eis o argumento: trata-se de julgar se a ação de matar um tirano é boa. No caso submetido ao leitor, Luciano imagina que alguém se encarrega de matar o tirano, certo de uma recompensa. Mas o assassino se engana de alvo e mata o filho do tirano.

Vendo seu filho morto, o tirano se suicida. O assassino tem direito à recompensa?

Discutam! É tipicamente um caso delicioso de disputatio em que os aprendizes de eloquência vão cruzar espadas. Pior, Morus não se contenta em traduzir o Tiranicídio;

ele escreve uma resposta a ele – em latim, é claro – entrando na justa quatro séculos mais tarde. Bela maneira de reatar com os antigos!

Em 1509, quando Erasmo retorna da Itália, muito animado com a revolta contra as excentricidades do Papa Júlio II e os deboches da corte vaticana, ele fica na Inglaterra com seu amigo Thomas. Morus, então pai de família, acolhe-o sob seu teto e é lá que Erasmo dá a última mão à sua obra mais conhecida, Morías enkómion (Μωρίας

9 Erasmo viaja para Londres em 1499.

10Sobre Luciano (c.120 -180), Prévost escreve: “a Utopia tem alguma coisa de lucianesco”. Prévost, 1978, p. 40.

11 Thompson, 1974, p. 78-93.

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ἐγκώμιον) ou o Elogio da Loucura. Ele dedica a obra a seu amigo Morus, brincando com o sentido de Morus e Morias, loucura em grego. O título pode também ser entendido como “elogio de Morus”. Vê-se a diversão, o entusiasmo, a paixão da descoberta de uma língua ainda mal conhecida por seus contemporâneos como as maiores motivações desses humanistas do norte da Europa.

Ora, eis que, em 1519, dez anos depois de O Elogio da Loucura, o grego viu-se ameaçado nas faculdades de Oxford. Há séculos era o latim que triunfava na universidade. A educação, fundada em textos de caráter religioso, tinha um objetivo moral acima de tudo. Mesmo Aristóteles, esse pilar da escolástica, era lido e discutido em latim e não na língua grega original. A Universidade de Cambridge, sob o rigor do austero John Fisher, manteve-se fora das modas. Mas sua rival, a Universidade de Oxford, conquistada pela modernidade que vinha da Itália, acabava de contratar um jovem professor de grego que não estava sem conquistar um grande sucesso. Os reacionários começavam a franzir as sobrancelhas, até que, levando as coisas para o trágico, um pregador zeloso de Oxford se lançasse em uma violenta diatribe contra o grego – julgado laico e, então, uma fonte de devassidão – até a ameaçar a educação.

Morus não pode deixar a coisa se fazer e endereça uma carta pública aos reverendos padres da Universidade de Oxford:

Em primeiro lugar, Veneráveis Padres, sua sabedoria inigualável me deteve em meu ímpeto. Então, finalmente, foi ela quem me encorajou, pois me pareceu que somente loucos ignorantes e arrogantes desdenhariam ouvir um homem [...]12

Voltemo-nos agora para a questão da educação humanista julgada laica. Ninguém jamais afirmou que um homem tenha necessidade de grego ou latim, ou, na verdade, de qualquer tipo de educação, para encontrar a salvação. No entanto, esse ensinamento que se qualifica de secular leva a alma à virtude. De qualquer forma, poucos questionarão o fato de que a educação humanística seja a principal, se não a única, razão pela qual os homens vêm a Oxford: as crianças podem receber

12 At first sight, Venerable Fathers, I was […] deterred by your unique wisdom. But, on second thought, I was encouraged; for it occurred to me that only ignorant and arrogant fools would disdain to give a man a hearing, […]. Carta 19 [60] “To Oxford University”, em Rogers, 1961, p. 95.

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uma boa educação, dada por sua mãe; em sua casa, eles aprendem tudo – exceto a cultivar seu espírito e a aprender com os livros. [...]13

O pregador chegou a qualificar de heréticos os entusiastas do grego. Morus retruca:

Eu não desejo de modo algum me colocar como o único defensor da aprendizagem do grego; pois sei quanto deve parecer evidente para os eruditos de Vossa Eminência que o grego é bom e verdadeiro. Para aqueles para quem isso não seria evidente, digamos que devemos ao grego toda a precisão das artes liberais14 em geral e da teologia em particular, pois os gregos ou fizeram grandes descobertas eles mesmos, ou legaram-nas em herança em seguida. Tome a filosofia, por exemplo. Se você deixar de lado Cícero e Sêneca, os Romanos escreveram sua filosofia em grego ou traduziram-na do grego.

Eu verdadeiramente não tenho necessidade de lembrar que o Novo Testamento foi escrito em grego, ou que os melhores exegetas do Novo Testamento foram gregos e escreveram em grego. [...] ora, mais da metade dos escritos gregos ainda não estão acessíveis ao Ocidente15.

13Now as to the question of humanistic education being secular. No one has ever claimed that a man needed Greek and Latin, or indeed any education in order to be saved. Still, this education which he calls secular does train the soul in virtue; In any event, few will question that humanistic education is the chief, almost the sole reason why men come to Oxford; children can receive a good education at home from their mothers, all except cultivation and book learning. Carta 19, ibid., p. 98-99.

14Tomando sua origem na educação das escolas da Antiguidade, as sete artes liberais são notadamente transmitidas à Idade Média por Alcuíno, preceptor de Carlos Magno, e estão na origem da reforma escolar que ele empreende. Elas se dividem em dois níveis: o Trivium e o Quadrivium. O Trivium (“os três caminhos”) refere-se ao “poder da linguagem”, incluindo gramática, dialética e retórica. O Quadrivium (“os quatro caminhos” do segundo nível) refere-se ao “poder dos números” e compõe-se da aritmética, da música, da geometria e da astronomia. Um e outro são definidos por estes dois versos:

“Gramm loquitur, Dia verba docet, Rhet verba colorat, / Mus canit, Ar Numerat, Geo ponderat, Ast colit astra.” (“A Gramática fala, a Dialética ensina, a Retóricacolore as palavras, a Música canta, a Aritmética conta, a Geometria pesa, a Astronomia se ocupa dos astros.”)

15 I have no desire to pose as the sole defender of Greek learning; for I know how obvious it must be to scholars of your eminence that the study of Greek is tried and true. To whom is it not obvious that to the Greeks we owed all our precision in the liberal arts generally and in theology particularly; for the Greeks either made the great discoveries themselves or passed them on as part of their heritage. Take philosophy, for example. If you leave out Cicero and Seneca, the Romans wrote their philosophy in Greek or translated it from Greek. I need hardly mention that the New Testament is in Greek, or that the best New Testament scholars were Greeks and wrote in Greek. […] However […] not half of Greek learning has yet been made available to the West. Carta 19 em Rogers, 1961, p. 100.

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E Morus cita os Doutores da Igreja latina – Jerônimo, Agostinho, Beda, o Venerável, que se dedicaram ao estudo do grego para melhor compreender e comentar as Escrituras.

A querela em torno do grego se amplificará a tal ponto que se falará da guerra dos antigos e modernos ou ainda da guerra dos Gregos e dos Troianos. Lembremos que Morus já tinha intervindo de maneira notória por meio de uma longa carta, verdadeiro tratado, endereçado a Martin Van Dorp, professor de teologia na Universidade de Louvain (Bruges, 21 de outubro de 1515)16.

• Thomas Morus, o pedagogo

Como Erasmo, como Juan Luis Vives igualmente, Thomas Morus mostrou-se um pedagogo muito inovador. Ansioso para compartilhar seu entusiasmo pelas letras gregas, entre outras coisas, ele imaginou, com o helenista William Lily, uma ferramenta pedagógica para uso dos alunos. Foram os Progymnasmata: 18 pequenos textos gregos, cada um seguido por duas traduções em latim, uma de Morus, a outra de Lily, “uma descoberta pedagógica de gênio”, segundo o editor da versão de Yale17. Aparentemente, esse manual foi o primeiro de sua espécie, e foi imitado muito rapidamente. “As múltiplas traduções eram destinadas a encorajar a prática das variata recomendadas pela Copia de Erasmo”18. Segundo o ensino da retórica, para convencer é necessário visar à abundância do discurso, dar exemplos, variá-los ad infinitum. Tudo isso é desenvolvido por Erasmo no De Copia. Imitar é uma técnica comprovada, e os Progymnasmata de Morus não buscam nada além disso. Em 2010, nossa colega Anna Maranini, da Universidade de Bolonha, apresentou-nos, quando em um congresso em Veneza, um original da edição de 1518 dos Progymnasmata de Morus, que ela descobrira acidentalmente na biblioteca de sua universidade19. Foi um momento de emoção descobrir, na margem, as duas primeiras letras dos filhos de Thomas Morus, repetidas a cada dez linhas aproximadamente, prova de que a coletânea era destinada a atribuir um trabalho de tradução do grego para o latim a cada um dos alunos da escola familiar que Thomas Morus mantinha em sua casa.

Falar do Morus pedagogo poderia ser o objeto de uma conferência inteira.

Limitemo-nos a dizer o essencial: Morus foi inovador em sua preocupação de educar

16 Carta 4, ibid., p. 6-64.

17 Miller/Leicester/Charles/Oliver, L/Oliver, R. (ed.), 1974, p. 13.

18 Ibid.

19 Ver o texto de Maranini no vol. 47 da Moreana, 2010, p. 69-93.

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tão bem as meninas quanto os meninos, inclusive suas esposas. Sua filha mais velha, Margaret, mostrou-se uma erudita de qualidade e publicou até mesmo, sob seu nome, uma tradução em inglês de uma obra latina de Erasmo, o Tratado sobre o Pai Nosso.

Ela permanece sendo a primeira mulher inglesa fora das famílias reais a ter publicado um livro.

• Thomas Morus, o poeta

A poesia de Thomas Morus tornou-se recentemente tema de estudos. E, no entanto, suas qualidades já haviam sido reconhecidas por Clarence Miller quando se encarregou de traduzir os epigramas latinos de Morus para o inglês. Muitas vezes, esses pequenos poemas, como já mencionamos, eram o fruto de uma colaboração entre Morus e Erasmo, pois se inspiravam em poemas gregos recentemente redescobertos que desejavam tornar conhecidos, deles oferecendo uma versão latina. Como com William Lily, tratava-se, então, de uma composição a duas mãos – encontra-se, muitas vezes, entre os humanistas esse prazer de compartilhar as descobertas literárias. Erasmo era um mestre da escrita latina em toda a Europa, não desdenhando dar a sua opinião sobre a prosa latina de seu amigo Morus, que ele considerava um pouco áspera. Mas, no que concerne à poesia, Erasmo reconhecia a superioridade de Morus. Clarence Miller, que a traduziu, descreve-a como “jamais pomposa nem empolada, e quase sempre dotada das virtudes de sua prosa – energia lógica, realismo vigoroso e inteligência penetrante”20. Miller opõe notadamente as qualidades dos dois poetas, reconhecendo a Morus a força retórica e o realismo, e a Erasmo um dom de lirismo21.

Morus escreveu também diretamente em inglês, sobre a Fortuna, sobre as Idades da vida, poemas cativantes, alguns dos quais acabam de ser publicados na tradução francesa de André Crépin e ilustrados pela artista Mary Baird-Smith22.

20 […] never inflated or pompous, and almost always endowed with the virtues of his prose–logical energy, muscular realism, and penetrating intelligence. Ibid., p. 41.

21 Ibid., p. 46.

22Ver Crépin, 2011.

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• Thomas Morus e o diálogo platônico

Morus se mostra ainda um belo humanista quando ele toma emprestada a forma literária privilegiada por Platão, o diálogo. Graças ao diálogo, as obras platônicas permitem tornar acessíveis debates filosóficos que seriam árduos de seguir se eles fossem apresentados sob forma de exposições lineares. Morus utiliza o diálogo igualmente com um objetivo pedagógico. Além de seu uso particular na Utopia, o autor recorreu ao diálogo em obras maiores, tais como o Diálogo sobre as heresias e o Diálogo do conforto na tribulação. No caso das polêmicas religiosas, e para fazer triunfar as ideias, o diálogo permite uma varredura quase exaustiva dos argumentos, sem aborrecimento demais para o leitor. No caso de propósitos mais intimistas e mais espirituais, ele mantém a atenção do leitor mais facilmente. Enfim, quando o autor se dedica a denunciar os defeitos morais, o diálogo torna a lição frequentemente divertida.

A presença fictícia de um interlocutor autoriza digressões mais facilmente, encoraja frases de espírito e gracejos, em síntese, transforma a narrativa em teatro, e, assim, o leitor em espectador. Em suma, para um advogado adestrado na eloquência, o diálogo parece ser a forma natural de expressão escrita.

• Thomas Morus, reformador epicurista: Utopia

Em seu romance histórico Wolf Hall23, Hilary Mantel descreve um Thomas Morus devoto, sinistro e cruel, posando unicamente como grande pensador e como reparador de injustiças. Além de tentar reabilitar Thomas Cromwell, o “ministro-chefe”

zeloso, às ordens de Henrique VIII, a romancista adota o ponto de vista muito partidário que há muito tempo pinta Morus sob os traços do papista intolerante, grande exterminador dos heréticos, violentamente contrário à Reforma e a seu rei. Mas o retrato simplista que esboça Hilary Mantel do chanceler da Inglaterra revela uma profunda ignorância do homem. Gostaríamos de revelar aqui, ao contrário, o Morus epicurista.

Claro, diante da adversidade que foi seu destino nos últimos cinco anos de sua vida sobretudo, Morus foi estoico e aproxima-se mais voluntariamente de Sêneca que de Epicuro, mas, se se considerarem suas obras mais fundamentais, descobre-se que o prazer é uma noção importante que o pensador ou o escritor nele nunca esquece. Nem a esquece na vida de todos os dias. Morus é apreciador de blagues, de frases espirituosas – à custa dos outros, escreve Hilary Mantel, o que não é errado, pois Morus é

23 Mantel, 2009.

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escarnecedor e não pode se impedir de escarnecer e transformar os defeitos humanos em ridículo, como verdadeiro moralista que é.

E, quando se aplica a imaginar uma sociedade ideal, Morus toma o princípio do prazer como inevitável. Evocamos aqui, claro, a Utopia, essa “fantasia” que Morus escreveu em latim durante uma estadia em Bruges em 1515, e publicou em 1516.

Mesclando ficção e personagens existentes, Morus põe em cena um encontro que teve lugar em Antuérpia. Seguindo o modelo dos diálogos de Platão, o autor descreve discussões entre amigos, que estão em torno de uma mesa e, em seguida, em um banco do lado de fora.

A Utopia sempre suscitou análises controversas. A ilha que Morus nela descreve é, em muitos aspectos, o espelho e a antítese da Inglaterra: o dinheiro e a propriedade não existem, o ouro ali é desprezado – é útil apenas para negociar com os Estados vizinhos, se não ele é usado para confeccionar correntes para escravos e penicos. Ao contrário da sociedade altamente hierarquizada da Inglaterra do século XVI, os habitantes de Utopia vivem em comunidade, até mesmo em um comunismo total. A intolerância religiosa, que cresce na Europa à medida que circulam as ideias luteranas, opõe-se à extrema tolerância que reina em Utopia, onde todos têm o direito de praticar a sua religião contanto que suas convicções não sejam agressivas e que seu proselitismo seja discreto. Na ilha ideal, não falta nada a ninguém, mas todos trabalham.

Não se encontram essas coortes de pobres que vêm mendigar nas cidades quando o campo não os alimenta mais porque as terras são requisitadas pelos proprietários de terras. Em face da complexidade da legislação inglesa, Utopia oferece muito poucas leis, assim todos as conhecem. Se a lei utopiana prevê, contra os recalcitrantes, punições que podem chegar à escravidão e à pena de morte, em compensação essa mesma sociedade admite o divórcio e a eutanásia em alguns casos.

Nos nossos dias, fica-se impressionado pela modernidade das soluções sociais, de um lado, e pelo rigor moral imposto ao indivíduo, por outro lado. É notável, aliás, que, segundo a idade do leitor, Utopia aparece hoje seja como um El Dorado, seja como uma prisão. Morus, como moralista iluminado, quis mostrar que se pode assegurar a felicidade coletiva pelos esforços consentidos por todos. Eis porque o comunismo encontrou uma inspiração na Utopia, porque Lênin decidiu homenagear Thomas Morus fazendo erigir, em Moscou, um obelisco em que figurava seu nome, com os de Marx e de Engels, entre uma vintena de precursores do comunismo.

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No entanto, Utopia está, de alguma forma, em acordo com a regra de Thelema,

“Faze o que quiseres”, inventada por Rabelais em Gargantua (1525). Na verdade, sob a aparência de licença absoluta e de satisfação dos desejos, os moradores da Abadia de Thelema são apenas pessoas de bom nascimento e muito espertas que sabem que o prazer não é a depravação dos sentidos, mas o domínio das paixões. O tema do prazer na Renascença é, a esse respeito, interessante e importante. Suspeito mas invejável, o prazer é reconhecido pelos filósofos gregos como o motor das ações humanas. Morus, ele próprio, afirma-o e o nome escolhido para a ilha maravilhosa o deixa entender:

Utopia, ou nenhum lugar, aparece no poema de abertura sob a forma Eutopia, ou lugar feliz. E, se Eutopia afirma a vida boa e feliz, o prazer aí naturalmente tem seu lugar.24

Uma vez afirmada a tese, é com complacência que Rafael Hitlodeu a ilustra com inúmeros exemplos. Em Utopia, tudo é organizado para diminuir o sofrimento e aumentar o prazer. A duração do trabalho penoso é reduzida para seis horas por dia somente; um cochilo de duas horas está previsto em plena jornada, e “o tempo que resta entre as horas de trabalho, de sono e de refeição é deixado ao livre emprego de cada um”25. Afirma-se que os prazeres são múltiplos: os utopianos apreciam música, deleitam-se com perfumes, divertem-se com jogos de toda sorte26 (e é aí que a parte razoável intervém) – além de jogos de azar, nos quais eles nem pensam, pois “ignoram até mesmo o nome dos dados e outros jogos estúpidos e maus do mesmo gênero”27. Um prazer leve a um vício não pode se colocar entre os verdadeiros prazeres, uma vez que se transformará em sofrimento na dependência a mais ou menos longo prazo. O narrador afirma que os utopianos só conhecem os verdadeiros prazeres, aqueles que são declarados “conformes à natureza”. Acrescenta: “nenhum tipo de prazer é proibido,

24 “A moral utopiana se apresenta, pela primeira vez, sob a forma de um puro hedonismo: “Os utopianos parecem inclinados excessivamente a colocar-se no partido daqueles... que definem o prazer como a única fonte ou a fonte mais importante da felicidade.” (Ut., 102-106) Concluída a exposição teórica, o mesmo princípio é retomado sob forma de conclusão: “É dessa maneira que, depois de ter bem examinado e estudado a questão, eles estimam que todas as nossas ações, e entre elas as virtudes elas mesmas, consideram o prazer como fonte de felicidade e como finalidade da existência.” Tal formulação, um pouco tingida de paradoxo, não é sem intenção polêmica; uma nota marginal convida-nos a ver nessa atitude uma reação contra aqueles “que recorrem ao sofrimento como se constituísse o fundamento da religião” (Ut., 105). Hitlodeu, então, ergue-se aqui contra o pessimismo doutrinário que se alimenta de uma teoria da natureza corrompida do homem. Sua reação é uma das ideias-chave da Utopia: a natureza humana é boa, a razão é segura, e o prazer que acompanha toda atividade conforme a boa razão tem um valor positivo incontestável.” Prévost, 1978, p.110.

25 Prévost, 1978, p. 80-81.

26 Cf. os jogos educativos, como a batalha dos vícios e das virtudes, Prévost, 1978, p.81-82, ou também o gosto pela culinária. Ibid., p.90.

27 Prévost, 1978, p. 81.

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contanto que não cause qualquer inconveniente”28. Os utopianos compreenderam a necessidade de regulamentar o prazer na comunidade. Não há ali, então, nem taberna, nem lupanar, nem jogos de azar...

Resta o prazer, no entanto. Mas qual? Aquele que é inerente à virtude. Para isso, convém que se convença e que se debata. Os utopianos discutem filosofia moral e Rafael, o narrador, apresenta-os como pessoas esclarecidas que tendem em direção ao progresso e à perfeição moral e espiritual. Nesse programa, o prazer tem um papel importante, uma vez que é reconhecido como o motor da ação humana – como Aristóteles mostrou. A gestão do prazer foi fonte de debates entre os gregos e, portanto, retorna, na Renascença, entre os humanistas. Morus retrata uma sociedade que soube domar o prazer, evitando totalmente as paixões – à maneira dos epicuristas. Os utopianos são hedonistas, pois eles buscam o prazer em todas as coisas, mas são tão sábios que preveem em que instante ele corre o risco de se transformar em vício e nunca a ele sucumbem.

À época de Morus, circulava novamente o instigante tratado De Rerum Natura (Sobre a natureza das coisas), de Lucrécio (século 1º antes de nossa era), que Poggio reencontrara em 1417, em que o autor descreve o mundo segundo os princípios de Epicuro, afirmando um ateísmo e um materialismo surpreendente para a época. É necessário dizer que Lucrécio defendeu uma tese revolucionária: o mundo, escrevia ele, é constituído de átomos que se movem no espaço e estruturam-se em formas diversas; o homem, a pedra, a planta ou o animal, sustentava Lucrécio, compartilham uma natureza comum, feita de uma infinidade de átomos. Essa tese, que não nos surpreende mais hoje, ia evidentemente de encontro à percepção do mundo romano – de modo incompatível com o culto dos deuses e o culto do Estado – e, depois, de encontro à concepção cristã medieval. O texto de Lucrécio sofreu censura, suspeita-se, mas não desapareceu totalmente. Em um livro apaixonante, The Swerve29, Stephen Greenblatt mostra como esse manuscrito foi reencontrado por Poggio em 1417, bem escondido na biblioteca de um mosteiro no norte da Europa, depois como, recopiado com grande dificuldade, conseguiu atingir a época da impressão para nunca mais se perder. Assim a Renascença, que se laiciza, aprendeu, graças a essa visão de mundo epicurista e

28 Prévost, 1978, p. 92.

29 Greenblatt, 2013 (National Book Award, 2011 e Prêmio Pulitzer 2012). Cf. também Lorenzo Valla (1407-1457) argumentando em favor do Epicurismo em De Voluptate ac de Vere Bono. Ver Prévost, 1978, p. 685.

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lucreciana – portanto pagã –, a ver e a apreciar a beleza inerente ao mundo e ao homem, aquela que pôde inspirar o Nascimento de Vênus a Boticelli, por exemplo.

É essa mesma veia pagã que, em minha opinião, pôde seduzir os leitores europeus de Utopia. Os utopianos parecem realmente felizes de viver, simplesmente, e não negligenciam os prazeres do corpo.

Quanto à beleza, à força, à flexibilidade do corpo, [At formam, vires, agilitatem] eles as cultivam de bom grado, porque são os verdadeiros dons da natureza, feitos para nos fazerem felizes; melhor ainda buscam os prazeres que penetram pelas orelhas, pelos olhos e pelas narinas, pois, pela vontade da natureza, eles são próprios ao homem e o caracterizam30.

Em conclusão, a noção de prazer é essencial em Utopia e faz toda a diferença com o aristocratismo moral dos estoicos, que se reveste em seu orgulho. Os utopianos se esforçam igualmente para serem bons e justos, mas com um sorriso, pois nisso eles encontram prazer. Sua filosofia é, de fato, um epicurismo cristão. Acrescente-se que Erasmo, no último diálogo dos Colóquios, de 1533, escreve: “Não há maior epicurista que um bom cristão”31.

Conclusão

Sem dúvida, a abertura ao humanismo, na aurora dos tempos modernos, reside nessa consciência da vida, esse sentimento de poder controlá-la mais, de ser menos o joguete da Fortuna e mais o homem moderno que escolhe o seu destino, como o havia cantado Pico della Mirandola32 em seu célebre discurso Sobre a dignidade do homem (1486). Se não se negou Deus, nem mesmo se rejeitou a Igreja, aprendeu-se ao menos a viver mais livre, pois mais consciente do que motiva ou entrava o ser humano. É essa mesma consciência que fará com que um Lutero se sinta autorizado a pensar Deus e compreender as Escrituras por si mesmo, sem a ajuda da Igreja. Como homem medieval, Thomas Morus o acusa de orgulho, mas ele mesmo sabe superar, vindo o momento, o entrave real, desobedecendo a seu príncipe e afirmando sua escolha. Morus

30 Prévost, 1978, p.113-114.

31 Quod si de veris loquamur, nulli magis sunt Epicurei quam Christiani pie viventes…, Colloquia, citado por Rico, 2002, p.148.

32 Giovanni Picodella Mirandola, 1463-1494.

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escolhe, então, antes a execução capital que a obediência servil e a renúncia a sua própria consciência.

Se a história retém de Morus sua Utopia, que deu um nome a um gênero literário, é porque o trabalho ressoa com o que fez a ruptura da Renascença, uma nova consciência do poder e da dignidade humana, um pensamento livre da autoridade da Igreja e da escolástica, que retorna aos Antigos para neles reencontrar a autoridade de uma palavra e permite-se, então, a ficção e o sonho de um mundo melhor, nele recolocando o homem no coração de seu projeto.

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