CDU 902.3
o
SIGNI FICADO SOCIAL DO
SíTIO ARQUEOLOGICO
PRESERVADO
JOse OTAVIO CATAFESTO DE SOUZA*
RESUMO
O presente trabalho é uma tentativa de introduzir uma análise à questão da preservação das evidências e dos restos arqueológicos - a partir de um enfoque mais especffico
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n o í s ) significado(s) dessa preservação - e, aomesmo tempo, procura sugerir o encaminhamento dessa complexa discus-são. Nesse sentido, fala da importância de se tornar plenamente consciente o porquê da necessidade de preservar, tentando compreender a destruição dos sítios arqueológicos como decorrência direta de certas contradições (administrativas, econômicas e científicas) presentes em nosso projeto social de desenvolvimento.
Os sítios arqueológicos têm sido destruídos num ritmo crescente em todo o Brasil, o que não é exceção no Rio Grande do Sul. Esse processo assumiu uma tal proporção que tem motivado a convergência atenta de inúmeros segmentos da sociedade gaúcha. O tema central do presente Simpósio é um exemplo ilustrativo das iniciativas que surgem em busca de soluções efetivas para o problema.
Através desta comunicação, procura-se introduzir uma análise atenta e menos comprometida em relação à questão de preservação das evidências e dos restos arqueológicos, remetendo o enfoque antes em direção ao significado - ou significados - dessa preservação, do que partir direta e simplificadamente a apontar soluções práticas no sentido de salvamento dos sítios que ainda restam. Em outras palavras, defende-se a opinião de que é completamente sem sentido procurar definir iniciativas práticas de como preservar, sem antes tornar plenamente consciente o porquê da necessidade de fazê-to. Somente este enfoque permite uma contextuali-zação mais realista do problema da destruição dos sítios arqueológicos gaúchos, compreendendo-o não como mero fruto do descaso de certos membros isolados de nossa sociedade, mas também como decorrência direta de certas contradições (administrativas, econômicas e científicas) presentes em nosso projeto social de desenvolvimento.
*licenciado em História e Mestre em Antropologia Social pela UFRGS. Professor dos Cursos de História da PUCRS e FAPA (Porto Alegre), onde também ministra a disciplina de Arqueologia. Pesquisador do CEPA-PUC.
Muitos podem ser os significados embutidos na preservação dos sítios
arqueológicos. A questão é complexa e exige ser referida a partir do quadro social
no qual ela suscita antagonismos e recebe sentido explícito ou implícito. Tantos
serão os significados quantos forem os interesses distintos, formulados ou não, no
interior da sociedade. Uma análise superficial do problema colocaria a explicação de
que os diferentes sentidos dados à preservação representam "graus de conscientiza_
cão" variados em relação ao valor histórico do patrimônio do passado. Há que se
compreender, no entanto, que tal consciência é apenas um dos fatores em jogo nas
relações de interesses diversos veiculados por homens concretos engajados no
processo histórico. O posicionamento de cada um dos atores sociais envolvidos é
dado bem mais pelos laços econômicos, ideológicos e profissionais que o envolvem
do que, certamente, por uma consciência descomprometida em relação às questões
conflitivas da existência social, assim Como tem acontecido em torno dos sitios
arqueológicos. A análise do tema preservação traz ao centro do debate a
heterogeneidade de interesses conflitantes no interior de nossas sociedades atuas e
o confronto entre diferentes formas de fundamentar a identidade.
O valor de um sítio arqueológico não é absoluto, ainda que sua existêrcla
material o seja, até o momento da destruição. Num número crescente de casos a
polêmica em torno da preservação dos sítios revela posicionamentos radica'me":=
opostos formulados em alegações a favor (como as de representantes 'e
comunidades locais, de amadores interessados, de arqueólogos profissionais ou
ainda de administradores federais) ou contra (como as de
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U m particUlar interess:3<Joem aproveitar economicamente os recursos de um sítio ou de um prefeito e.n
justificar a expansão urbana sobre uma área arqueológica) sua sobrevivência Ser I
distorcer a eqüidade dos opostos, não há como supor. a priori Que os araueólogos
possuam mais direitos sobre um síno em litígio do Que os demC::ls envolvidos, e )S
casos revelam muitas particUlaridades no encaminhamento da questão
Uma compreensão dessa polêmica só poderá SUrgir inicialmente ern
referencia ao processo histórico e social brasileiro que a produz Nessa perspectiva
contextual, pode· se definir que os fatores responsáveiS pela crescente destruição dos
sítios arqueológicos são os mesmos Que explicam ;números outros problemas atuais
como a destruição das reservas ecológicas do estado, o desmatamento, a vlolacão
constante da autonomia CUltural de algumas minorias sociais (as indígenas são
exemplo), só para citar casos mais próximos. É necessário apontar as conseqüências
das práticas econômicas baseadas numa Ideologia desenvolvimentista e técnico-bu.
rocratica, que tem justificado tudo em nome da bandeira do Progresso
Tal ideologia tem Sido a base de um projeto nacional que objetiva um
amplo progresso material a qualquer custo. A Idéia de progresso é transformada em
justificativa para aplacar inúmeras contradições existentes no interior da sociedade'
se a sociedade brasileira enfrenta problemas é porque o projeto Idealizado não está
sendo efetivado - assim faz pensar essa ideologia. Entretanto, há que se reconhecer
o enganoso deslocamento de perspectiva provocado por essa representação
relegando quase ao esquecimento a abordagem de problemas cruclais de nossa
realidade. Um desenvolvimento desordenado e inconseqüente deixa nossos
adminis-tradores muito tranqüilos para aprovarem projetos faraônicos _ como a construção
de usinas hidroelétricas - sem avaliar corretamente seu prejuízo sobre o ambiente e
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obre o patrimônio do passado; de igual forma, um empresário rural nem sequer se
s erg
unta sobre a possibilidade de evitar a utilização de maquinário agrícola sobre
p rn solo onde surgiram evidências estranhas (com raras exceções).
u O predomínio de uma racional idade utilitarista, através da qual toda
tividade é objetivada na obtenção de maior proveito em menor prazo, tem
a ndicionado para Que o problema da preservação dos
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b e n s históricos, arque o ló qi-co e artísticos tenha se transformado num problema da indústria do turismo. De
~o~al maneira, esse utilitarismo ideológico e prático tem suas conseqüências
~~clusive sobre a organização hierarquizada dos campos científicos de conhecimen·
~o. Essa hierarquia estabelece prioridades e as ciências humanas são deixadas em
planos secundários (veja-se Kern, 1985). Os poucos incentivos existentes são
predominantemente aplicados nos setores de tecnoloqia de frente, pOIS diSSO
depende - segundo se pensa - o progresso da Nação.
Ao lado desse imediatismo, um nacionalismo ingênuo legitima o quadro
social que .transforma o conhecimento humanístico em simples ilustração. Não é
por acaso que as pesquisas em arqueologia e arquitetura tenham aparecido muitas
vezes reduzidas a um caráter predominantemente turístico.
No entanto, a preservação dos sítios arqueológicos não deve ocorrer
unicamente a partir desses restritos limites. Sem dúvida, a visitação turística pode e
deve ser um dos objetivos da preservação, mas não o pri ncipal. Inúmeras estratégias
têm sido propostas e efetivadas visando à preservação de alguns sítios históricos
gaúchos, principalmente daqueles que surgem como oportun idade singular de
proporcionar estabilidade profissional a alguns especialistas deslocados do mercado
de trabalho. Por outro lado, os sítios pré-históricos não têm recebido a mesma
atenção, talvez devido ao seu pequeno significado para uma estrutura administrativa
criada por um nacional ismo cenn ai izador.
Não se pode cornpactuar com uma imagem distorcida da atividade
arqueológica, pela qual as taco-as interpretativas dos estudos sobre as evidências
materiais do passado são esquecidas. A arqueologia não se limita a esse papel que a
tecnoburocracia lhe impõe, pois ela tem todos os elementos que a definem como
uma postura frente às Questões mais atuais da humanidade.
A destruição dos sítios é tanto resultado das contradições históricas e
sociais mais amplas quanto da própria prática corrente de alguns arqueólogos, na
atividade de pesquisa e na relação criada com os demais setores sociais envolvidos. É
necessário, então, anal isar esses fatores.
Sucessivas décadas de pesquisa arqueológica no Rio Grande do Sul revelam
certos paradigmas e motivações subjacentes, geralmente não explicitados, mas
responsáveis pela forma de encaminhamento das investigações. Como coloca
Geertz, há de se compreender o que vem a ser uma ciência analisando o que seus
praticantes fazem. No caso de nossa arqueologia, tal análise é difícil, pois revela
certos aspectos constrangedores, mas sobre os quais se deve conscientizar.
Muitas vezes os sítios arqueológicos e seus componentes materiais, certas
áreas e temas de pesquisa foram transformados em objeto de rival idade entre os
diferentes arqueólogos. Tais rivalidades. são tão marcantes que, para alguns, a
arqueologia é a ciência da discórdia. Para amenizar esses antagonismos, passou-se a
dividir o território gaúcho em um número restrito de unidades, cada uma delas sob
os cuidados de um especialista que a detinha, numa espécie de posse. Criou-se assim uma prática protecionista intimamente associada a um modelo competitivo e individual izante de pesquisa científica. E claro que esse modelo de conduta científica não é exclusivo da arqueologia, já que está presente em todos os campos de produção de conhecimento, numa sociedade em que vigora sua elitização. Não se está dizendo que todos os arqueólogos brasileiros sejam adeptos dessa prática. O que se quer colocar é que o sítio arqueológico é objeto de disputa mesmo dentro da comunidade científica, e que essa disputa demonstra um dos sentidos possíveis de se compreender a importância da conservação do patrimônio. O acesso diferenciado ao conhecimento e à sua produção é típico de nossa sociedade, e
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e le se reproduzinclusive na forma como se dá o processo de iniciação das novas gerações de arqueólogos. Mesmo com certa dificuldade, é necessário admitir que boa parte de nossos praticantes de arqueologia estão submetidos a uma lógica competitiva e individualista, a qual possui muita interferência sobre a qualidade do conhecimento produzido e seu significado tornado coletivo.
No entanto, um novo momento histórico se inicia com a crítica desse modelo centralizador e individualista. O número de pessoas interessadas pela pesquisa arqueológica cresce a cada dia, e um bom número delas tem optado por continuar sua formação nesse sentido. Há, pois, a necessidade de se promover a definição de novos parâmetros de pesquisa, a partir dos quais haja o envolvimento de todo aquele que se dedica ao assunto e pelos quais este envolvimento Ocorra de maneira Cooperativa e integradora.
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É necessário promover a criação de grupos competentes e capazes de desenvolver estudos sistemáticos e regulares, o que permitirá um aprofundamento da problemática histórico-cultural no Rio Grande do Sul.Um outro fator que surge - como condicionante negativo no processo de destruição dos sítios - é a forma como os arqueólogos passaram a definir suas relações com a sociedade geral e com seus setores específicos, assim como, internamente, muitas vezes essas relações são marcadas por um antagonismo mal revelado. Não seja por menos, muitos arqueólogos fazem questão de afirmar um distanciamento entre eles mesmos e a sociedade, como se fossem completamente alheios a qualquer um dos pequenos problemas cotidianos que afligem qualquer indivíduo mediano. Deve-se, hoje, procurar a superação desse distanciamento e, talvez, superar uma certa oposição geradora de discórdias, pelo que se teriam melhores resultados tanto na produção de conhecimento quanto nos trabalhos de conscientização do valor do patrimônio. Portanto, torna-se importante redefinir a competência de cada um dos setores da sociedade que possui interesses gravitando em torno das jazidas arqueológicas (seja o dos arqueólogos profissionais, de iniciantes interessados, dos amadores praticantes, das comunidades locais etc.).
Os inúmeros contatos que a profissão de professor de arqueologia permitiu realizar levaram à constatação de que as rivalidades existentes na arqueologia gaúcha já são fato socialmen:e conhecido. A evidência disso tem criado alguns problemas, dentre os quais se coloca o descrédito de nossa atividade, ou mesmo a falta de uma consciência mais fundamentada pela preservação. O distanciamento criado entre o pesquisador e a sociedade, além da apropriação indevida do conhecimento produzido, surge como fator contrário ao estabelecimento daquele
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deveria ser, segundo G. Clark, o principal objetivo da atividade arqueológica, que, seja: a promoção de uma identidade social (Clark, 1985). Se toda pesquisa de qua o é destruição - o que todo arqueólogo sabe - qual a diferença substancial camp. tente entre um ,. d íd I . ,. d
s it r o estru I o por um co ono, por um propnetano e terra ou
e X IS I d 'I - b li
um empresário e aque es escava os por um arqueo ogo que nao pu r c a os ultados? Talvez nenhuma.
res A arqueologia gaúcha deve retomar um significado social mais amplo. Além do significado científico e acadêmico, o sítio arqueológico também responde a expectativas numa dimensão mais ampliada, no que se define sua relação com a identidade construída por diferentes setores da sociedade.
Neste momento, é necessário aproximar os referenciais dados pela abordagem antropológica e trabalhar a cultura humana enquanto uma matriz .de estruturas significantes, na qual há a constituição de uma hierarquia estratificada dessas estruturas (veja-se Geertz, 1978). Os símbolos que circulam nessa rede socialmente constituída são produzidos e apropriados em diferentes níveis de identidade que se justapõem, complementam-se e tornam-se coniventes, ou, pelo contrário, se opõem ou entram em conflito. As sociedades humanas são compostas de homens que o são através de vínculos de identidade e pelos quais eles se relacionam entre si.
A problemática da conservação dos sítios arqueológicos só pode ser pensada em referência à matriz de estruturas significantes na qual a jazida arqueológica aparece como objeto de significação. Num exemplo, não basta achar que o ato de apropriação das pedras de uma ruína missioneira pela coletividade local atual, reatualizando-as em construções recentes, é um ato de vandalismo arqueológico; nem ter a falsa ilusão de que serão os arqueólogos e arquitetos os únicos capazes de salvar o patrimônio dessa suposta destruição inconseqüente. Enquanto cientistas humanos, devemos procurar entender este e outros tipos de reatualização a partir do seu significado na construção social da identidade. Afinal, o que está subjacente ao fato de um homem ter retirado das ruínas uma pedra finamente trabalhada com símbolos missioneiros, e tê-Ia colocado b e m visível na
entrada da porta de sua casa?
A apropriação individual e coletiva deb e n s arqueológicos é real idade fácil
de ser encontrada; não tão simples é sua interpretação antropológica. O que realmente pretendia um colono que, ao encontrar um recipiente indígena intacto, limpou-o e pintou com cores vivas e sintéticas, para logo em seguida c o lo c á - to na entrada do seu jardim, ornamentando folhagens? Estaria ele dando sinais de reconhecimento solidário para com as sociedades pré e para-históricas? Ou estaria ele fixando símbolos que permitem constantemente recordar, a si e aos seus, que sua gente é uma raça de conquistadores e que foram seus ancestrais os responsáveis pela introdução da civilização neste canto do mundo? Ambas as alternativas e ~uitas outras são possíveis, e não se deve agir na pesquisa arqueológica como se essa dimensão não existisse.
. Quer queira ou não admitir, o arqueólogo em pesquisa provoca interferên-Cias sobre a relação constituída entre osb e n s arqueológicos, seu significado social e
as comunidades locais onde o estudo se desenvolve. O arqueólogo age segundo parâmetros de ação e pensamento característicos de seu meio social de origem,
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geralmente estranhos nos territórios de pesquisa. Um outro agravante nessa interferência é que o arqueólogo transforma-se em mais um dos interessados 'na apropriação simbólica dos misteriosos
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b e n s do passado, colocando-se como maisuma das facções que competem por essa apropriação.
Muitos exemplos poderiam ser referidos para ilustrar as inúmeras modali-dades de reação que a presença do arqueólogo em pesquisa de campo desperta. O mais ilustrativo deles é o acontecido junto aos índios Kaingang em algumas reservas gaúchas. No momento em que os arqueólogos demonstraram interesse em escavar algumas casas subterrâneas localizadas no interior das reservas, os índios se opuseram, alegando que tais locais eram sagrados e deveriam ser respeitados em memória a seus antepassados. Os próprios índios reagiram despertandu um interesse até então tênue, reapropriando simbolicamente as evidências do solo e dando -Ihes um sentido nítido nas relações de antagonismo frente ao mundo dos brancos.
Não bastassem os múltiplos interesses e significados até agora citados, os sítios arqueológicos também se transformaram, principalmente no decorrer do século XX, em objeto de atenção e de apropriação do Estado nacional brasileiro. Essa transformação não foi um fato menor, pois a apropriação si mból ica feita pelo Estado nacional passou a ser não o aparecimento de um setor social específico interessado dentro do jogo antagônico de apropriação, mas sim a projeção da questão em direção a um nível mais amplo: do local ao regional, e deste para o nacional (e internacional). O Estado nacional brasileiro assumiu, tendo em vista objetivos políticos, a tarefa de produzir e fazer valer um sentido de identidade condizente com sua própria existência. Nesse processo, muitos elementos culturais da população passaram a ser apropriados, domesticados e considerados como fazendo parte da imagem do que é nacional. Ruínas históricas e jazidas arqueológicas podem ser incluídas nesse rol.
Grahame Clark demonstrou muito bem que essa construção de uma identidade nacional, relacionada com a apropriação do patrimônio do passado, é um fenômeno típico desde o aparecimento das primeiras nações européias. O mesmo tem acontecido mais recentemente em todo o chamado Terceiro Mundo. Há que se compreender, no entanto, que esse fenômeno está marcado por profundas contradições entre os diferentes interesses políticos presentes no interior da sociedade. Em linguagem antropológica, a rede social - no interior da qual os diferentes grupos e setores traçam relações antagônicas, neutras ou de apoio - e sua respectiva matriz de estruturas significantes, fez do debate em torno do nacional o campo de batalha entre as facções locais e regionais pelo domínio político global da sociedade.
Nesse contexto, os ideais nacionais passaram a ser impostos como hierarquicamente dominantes frente a outros específicos; é o que se poderia reconhecer como tendência homogeneizante e padronizadora junto às particularida-des culturais. Assim, as questões de ordem local e regional passaram a ser pensadas exclusivamente em subordinação às nacionais. É desta perspectiva que se deve analisar a institucionalização de órgãos federais responsáveis pela administração do patrimônio histórico e arqueológico existente no interior do território brasileiro. A luta simbólica pela apropriação significativa desse patrimônio tem agora a participação de um grupo que se diz árbitro imparcial dos antagonismos, mas que
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patrimô-nio.
É uma distorção antropológica a responsável por esse distanciamento. Os administradores federais mostram-se preocupados pela preservação dos b e n s
materiais, manipuláveis e passíveis de apropriação. Cabe perguntar por que a
m e m ó ria c o le tiv a das comunidades locais, e toda a estrutura significante em torno
dos b e n s do passado, não é geralmente considerada parte integrante do que se
qualifica como p a trim ô n io . Não é por acaso que não se encontre, junto aos quadros
administrativos, o papel profissional de antropólogo.
Somente a adoção de uma perspectiva em busca do que é específico, local e regional é que permite a superação de todas essas limitações. A uma idealização simplista e homogeneizante do nacional deve-se opor a análise de todas as especificidades sociais, e suas respectivas maneiras heterogêneas e diversificadas de se relacionarem com os sítios arqueológicos. Assim, como coloca G. Clark, as pesquisas arqueológicas demonstram que as especificidades culturais dominam todo o processo de desenvolvimento histórico da humanidade. Ao mesmo tempo, os parâmetros nacionais não cor respondem a nenhum elemento conhecido de nossa pré-história brasileira. Pelo contrário, a pesquisa arqueológica mostra, devido a sua grande amplitude, que a unidade nacional ainda é nossa maior ilusão (talvez jamais deixe de sê-Io). O simples fato de que nenhuma das populações pré-históricas conhecidas através das evidências arqueológicas respeitou os arbitrários limites políticos atuais já serve para demonstrar a parcialidade dos parâmetros rígidos do pensamento nacionalista.
Essa discussão é 'complexa e merece ser aprofundada em todas as suas conseqüências. Inúmeros pontos são retirados da esfera de uma aceitação pacífica e recolocados na pauta de discussões. Ao nível da pesquisa arqueológica, torna-se n í t id a a pertinência de se desenvolverem, em escala crescente, estudos regionaliza-dos e localizaregionaliza-dos pelos quais se constitua uma crítica conseqüente frente a uma historiografia reducionista, oficial, nacionalista e - paradoxalmente - colonizada. O presente trabalho se propõe somente sugerir o encaminhamento de toda essa vasta discussão.
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