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40º Encontro Anual da Anpocs

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Academic year: 2021

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40º Encontro Anual da Anpocs

SPG 30 – Sociologia das Práticas Policiais e Judiciais

Assunto de polícia: as práticas policiais em casos de desaparecimento

de

pessoas

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Assunto de polícia: as práticas policiais em casos de desaparecimento de

pessoas

Paula Marcela Ferreira França1 Resumo: Em geral a prática policial é objeto das mais variadas discussões. Neste debate encontramos, por exemplo, as demandas pela desmilitarização e pela reforma da polícia. O objetivo neste artigo é entender como os próprios membros da polícia avaliam moralmente o fenômeno de desaparecimentos de pessoas que são registrados e investigados ou que são atribuídos ao abuso da ação policial. Teoricamente nos apoiamos em duas referências: a sociologia da crítica de Luc Boltanski e as apropriações desta mesma teoria por Alexandre Werneck, que propõe uma sociologia da moral. Neste sentido, contemplamos na leitura de documentos diversos (livros escritos por policiais, material jornalístico etc) dois planos das gramáticas morais de administração do bem: as situações em que os agentes sociais em questão (policiais civis e policiais militares) avaliam suas práticas tendo como princípio o bem comum e as circunstâncias em que procuram sustentar suas posições contando com a flexibilização de regras morais.

Palavras-chave: bem comum, justificações, práticas policiais, desaparecimentos

No geral a prática policial é objeto das mais variadas discussões. Neste debate encontramos, por exemplo, as demandas pela desmilitarização e pela reforma da polícia. O objetivo nesse trabalho é entender como membros da polícia avaliam moralmente casos de desaparecimento de pessoas por eles registrados e investigados ou atribuídos ao abuso da ação policial. A principal fonte de pesquisa são livros escritos por policiais (em exercício de atividades ou não). Como fontes secundárias usamos entrevistas, sites de buscas de desaparecidos e material jornalístico.

1 Doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás. E-mail para contato: paulamarcela_cs@yahoo.com.br.

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Teoricamente nos apoiaremos em duas referências: a sociologia da crítica de Luc Boltanski e as apropriações desta mesma teoria por Alexandre Werneck, como meio de pensar uma sociologia da moral e também a desculpa. Em situações de crítica, o fato de que a prática policial nos casos de desaparecimento por vezes é alvo de questionamentos o que demanda dos policiais justificativas acerca de sua atuação, permite-nos observar tais reações, que também compõem a gramática moral da avaliação que os membros da polícia dão ao fenômeno. Isso porque aqueles que comunicam os desaparecimentos, membros do S.O.S. Criança Desaparecida, diretores de proteção social da Secretaria Municipal de Assistência Social, representantes de organizações não-governamentais, como as Mães da Sé, Conselhos Tutelares, entre outros, chamam atenção para o modo como a polícia realiza ou deixa de realizar as investigações, faz o registro das ocorrências ou recebe os comunicantes. Nesta relação social, a avaliação moral também ocorre quando a polícia tipifica os comunicantes de desaparecimentos e os denunciantes de crimes e quando cria uma explicação para o fenômeno.

O quadro de críticas e justificativas mencionado é interpretado sob a perspectiva de que a modernidade possui o conflito como elemento integrante, ou melhor, como força de integração, de modo que ele emerge não apenas como resíduo de fenômenos como a luta de classes, a dominação, a desigualdade, a estratificação, a “anomia” etc., ou como antítese da ordem, desvio, mas como resultado de um “espaço de disputas entre posições”, surgindo, portanto, de discordâncias morais (WERNECK, 2012a). Desse modo, a abordagem não se debruça sobre a causalidade de uma ação que se encontra em desacordo com uma moral consagrada; antes, permite-nos perguntar como as pessoas se comportam quando moralmente confrontadas e observar as maneiras como são construídas “verdades”, ou seja, identificar como as diferentes gramáticas morais são construídas. Ainda nos encaminha para uma sociologia pragmática, centrada na análise de valores que são lidos como motivos, mobilizando-nos na busca do mapeamento dessas “gramáticas morais” (MILLS, 1940, BOLTANSKI, 2000, 2014, WERNECK, 2012b).

Dizer que a crítica exige a demonstração do quadro gramatical em jogo é afirmar que as justificações se situam fora de interesses pessoais, em um princípio superior comum. É como se a vida social estivesse partida em duas dimensões: uma das ações praticadas e outra a que compõe o do quadro de referência, que confere legitimidade a

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essas ações. Este último é um plano idealizado, utópico, um espaço de observância do “bem comum” a que temos que nos direcionar constantemente, chamado de cité. Enquanto a filosofia política fica na análise desse nível, como veremos mais adiante, a sociologia pragmática observa as condições de aplicação desses princípios de justiça, em circunstâncias específicas. Isso implica, entre outras coisas, que um dos elementos constituintes das justificações em circunstância é a contingente contestação dos estados de grandeza reclamados pelas pessoas. Um professor que tem a missão de oferecer um curso ou um candidato a um cargo público que se submete a exames de um concurso público, por exemplo, têm, de algum modo, de dar provas constantemente da posse de seus saberes relativos, o que significa que suas grandezas são testadas, o que chama atenção para o fato de que os atores sociais justificam suas ações e atualizam os princípios dessas justificações na contingência crítica a que estão expostos (BOLTANSKI, 1991).

Tendo gramáticas morais como objeto de observação, o pressuposto é de que coisas que dizemos em grande medida são coisas que fazemos. E, igualmente, o contrário; coisas que fazemos funcionam como discursos, línguas, gramáticas. Werneck (2012) lembra que o discurso é um enunciado e que, ao dar uma desculpa, (dispositivo de interesse desse pesquisador) por exemplo, o agente social não está apenas reproduzindo algo que esteja na sua mente, ele está fazendo algo - ou seja, a desculpa é uma fala que pratica ação, um performativo. O autor se apoia nos escritos de Austin e afirma que a desculpa pode ser um ato ilocutório, ou seja, um enunciado que pratica a ação ao dizer algo – nos termos de Searle, um “enunciado expressivo” –, que declararia a disposição do falante para se defender, mas que também pode ser pensada como um enunciado “diretivo” que pede que o outro pratique uma ação. Se a desculpa enquanto fala é atuante, é porque antes uma expressão a motivou, atuou sobre ela, como veremos mais adiante (WERNECK, 2012, HARRISON, 1980).

Apropriando-nos do deslocamento objetal realizado por Boltanski, que em vez de se apropriar das formulações da sociologia crítica - presente em Bourdieu e outras propostas - desenvolve uma sociologia da crítica, o pressuposto por nós utilizados é o de Garfinkel (1996), de que os atores sociais não possuem “juízo dopado”, ou seja, os atores não se conformam às classificações sociais em que são colocados; eles avaliam as

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situações em questão e exigem dos outros prestações de contas (accounts) nas quais a possibilidade da prática da ação se baseia, bem como produzem accounts para justificar as próprias ações. Em situações de conflito, sob o constrangimento da justificação, têm de fundamentar suas posições em grandezas legitimadas, provando sua competência para atuar em determinadas gramáticas morais.

Os atores em conflito podem atuar em uma mesma gramática actancial, em uma mesma cité, buscando um princípio de equivalência em relação ao qual pode ser estabelecida a grandeza relativa dos seres dados, ou estabelecer compromissos entre cités diferentes2. Mas nenhum tipo de compromisso ou de acordo pode ser estabelecido nas situações nas quais se observam discussões e conflitos, de modo que estes últimos prossigam indefinidamente.

Nas situações de conflito aqui interpretadas, a observação é de que comumente membros da polícia, quando questionados em suas práticas, por vezes procuram afirmar a razoabilidade de suas ações apresentando ou evocando os limites dos seus meios de investigação e estabelecendo fronteiras de suas atribuições, de modo que embora confrontados por um quadro gramatical que é o dos valores cívicos (Civic World) reclamados pelos comunicantes dos desaparecimentos – no qual o direito à segurança é exigido -, em nome de uma competência profissional supostamente requerida, os policiais afirmam que nem todos os casos lhes cabem porque boa parte não possui componentes criminais – ou seja, são resultados de “fugas do lar” e/ou problemas de saúde mental e “conflitos familiares”. Desse modo, eles recorrem supostamente a elementos de um outro quadro gramatical de referência, pautado em outras ordens de grandeza como a competência, a eficiência etc. O Industrial World e o conflito entre polícia e sociedade civil acerca da justiça no tratamento dos casos de desaparecimentos parece prosseguir indefinidamente porque os atores em questão não entram em acordo sobre um princípio superior comum que lhes permita atuar na mesma gramática moral, que garanta equivalência, assim como não conseguem estabelecer compromissos entre si.

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O segundo espírito do capitalismo, identificado e conceituado por Boltanski (1996), edificado simultaneamente ao apogeu da grande empresa industrial, ao fazer referências ao bem comum, estabelecia um compromisso entre a cité industrial e a cité cívica. Neste contexto, os ideais de produtividade e eficiência eram justificados e coadunados com o interesse coletivo como valor, o que edificou e sustentou o dirigismo econômico (implementado pelo Estado providência e seus órgãos de planificação).

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Diante dessa constatação, passamos para a observação das análises e propostas de atuação de um policial, Marcus Claudino, que procura inserir a prática policial em casos de desaparecimentos no quadro do Civic World, contemplando, no entanto, muito mais o plano normativo do que o imperativo das justificações.

Para esclarecer essa afirmação, propomo-nos uma digressão, retornando às formulações de Boltanski (2009). Os manuais (“how-to guides”) do mundo dos negócios empresariais estudados constituem “settings” para observação do imperativo de justificação baseado em princípios superiores do bem comum, lugar ideal para o estudo da intenção comunicativa (GIDDENS, 1996) dos agentes sociais e das gramáticas morais nas quais se alicerçam. As gramáticas morais não são entendidas como infinitas por aquele autor, ainda que não finitas, mas estabelecidas historicamente pela modernidade e, portanto, passíveis de serem mapeadas pelo cientista social. Esses manuais foram mais uma fonte utilizada, para além das seis cités anteriormente sistematizadas (inspirada, doméstica, cívica, da opinião, mercantil e industrial), porque em sua opinião estas já não eram capazes de traduzir os discursos justificativos do terceiro espírito do capitalismo. As observações de Boltanski (2009) acerca de princípios de equivalência até então inusitados nos permitem observar algumas particularidades das justificações em situação: as justificações, para serem levadas a sério, tem que dar conta da distância existente entre as concepções normativas do social e as formas concretas da atuação. Elas têm que passar por provas de realidade e conter em si injunções que não são puramente formais, mas que advenham da influência das circunstâncias. Isso porque são os dispositivos injuntivos, de acordo com Boltanski, que dão crédito às justificativas e oferecem demonstrações tangíveis de resposta às denúncias.

Analisando as circunstâncias morais das práticas policiais em casos de desaparecimentos, parece-nos, no entanto, como bem coloca Werneck (2012), que por vezes as situações sociais envolvem competências morais de administração que vão para além do horizonte do princípio do bem comum, operacionalizando flexibilizações circunstanciais da regra moral, caso em que já não são marcadas por um imperativo de

justificação e sim por um imperativo de efetividade.

Desde modo, se em um primeiro momento interpretamos situações em que as ações policiais foram submetidas à crítica, em um segundo momento interpretamos as

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situações nas quais um policial foi acusado, mais especificamente o ex-policial militar Rodrigo Nogueira, que publicou o livro “Como Nascem os Monstros”. Nesse segundo momento interpretamos aquelas falas nas quais possíveis abusos policias são contemplados com accounts, do tipo “o PM só vale o mal que pode causar”, “ a sociedade quer alguém para fazer o serviço sujo”, ou outras frases que não recolocam as ações praticadas em questão em um plano que reafirme os princípios da democracia, afastando-as de qualidades oficiais e de objetos relevantes como regras, códigos e procedimentos. Algo semelhante fizemos com as falas marcadas pela ênfase na biografia, quando o policial incriminado chama a atenção para elementos que acentuam sua humanidade ou quando dá a entender que os episódios de abuso fazem parte do dia-a-dia do ofício, ou seja, que é assim mesmo.

Assunto de Polícia

A questão do desaparecimento de pessoas enquanto competência da polícia é matéria de longa discussão, assim como a “natureza” da ação policial. A definição da “natureza” da ação policial, ou melhor, do que é a polícia, a que ele serve, bem como do desaparecimento como assunto que em alguma medida compete à polícia são temas alcançados pelos mesmos princípios – é isso que queremos defender. E esses princípios, historicamente institucionalizados, como os entendemos, advêm do fato de que a polícia é nas palavras de Monjardet (1996), “... a instituição encarregada de possuir e mobilizar

os recursos de força decisivos, com o objetivo de garantir ao poder o domínio (ou a regulação) do emprego da força nas relações sociais internas... (p.27)”.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é um dos mecanismos por meio do qual se procura regular o paradoxo entre a força e o direito, enunciando apenas a garantia dos direitos como razão de ser da força, nos casos em que não é possível evitar o atentado àqueles por outros meios. Mas a polícia possui uma dimensão institucional, dada pela autoridade que a define enquanto instituição. E como já enunciado, nas democracias essa autoridade por dois motivos foi complexificada. Primeiro, porque o

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povo se declara soberano e constituinte, tendo as instâncias de poder de serem enquadradas e subordinadas a um direito. Depois, porque a polícia se estabelece como uma organização burocrática moderna, marcada pela opacidade e inércia das organizações complexas, pela autonomização e corporativismo dos grupos profissionais (MONJARDET, op.cit.).

Definições diversas, cientificamente elaboradas ou não, que qualificaram a polícia para além de sua condição de instrumento, hoje são vistas como julgamentos acerca do uso social da polícia, como observa Monjardet (op.cit.). A definição da força policial encontra limites no fato de ela ser um instrumento sem conteúdo de aplicação de uma força, ainda que essa força possa

... servir aos usos mais diversos, à opressão nos regimes totalitários ou ditatoriais ou à proteção das liberdades nos regimes democráticos, de modo que “...um elemento universal, comum a toda a polícia, é sua instituição (no sentido dinâmico do termo) como instrumento de distribuição de força num conjunto socialmente definido... (p.23).

A comunidade política, constituída pela sociedade e pelo governo, concede o mandato policial e o este mandato por sua vez, incide sobre a própria polity que o outorga (MUNIZ; JÚNIOR, 2006, 2007). Sendo a polícia instrumento de distribuição de força “em um conjunto socialmente definido”, seu uso permite ou não a desprivitazação da violência, a substituição do arbitrário por procedimentos mais democráticos, como veremos mais adiante (PORTO, 2000).

Enquanto organização burocrática a polícia não é um instrumento inerte, o que significa que a ação da polícia não se resume aos interesses daqueles que a mantém como força instituída. Esse elemento nos últimos anos ficou conhecido como a discricionariedade da ação policial. E sobre a discricionariedade policial, preferencialmente chamada por Monjardet (2002) de “seleção”, os estudos revelam que ela não ocorre em função de uma liberdade em relação à regra, à disciplina e à hierarquia, ou ainda por uma suposta valorização dos conhecimentos adquiridos na atividade prática em campo que desprestigiaria tarefas prescritas, mas antes de tudo pelo fato de que não há delimitação do trabalho policial

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Conjunto potencial das tarefas – que corresponde à adição dos pedidos dirigidos à polícia pelo público, das ocorrências que solicitam sua intervenção e das missões formalmente prescritas pela hierarquia da instituição (e das outras agências do Estado habilitadas a requerer o pessoal policial) -, esse conjunto é, portanto, muito superior à capacidade de trabalho de toda unidade policial. E se apenas se trata de fazer respeitar a lei, qualquer um percebe que está excluído fazer respeitar todas as leis, por todos e o tempo todo (p.46)

A discricionariedade também é notada por estudiosos na polícia brasileira. Muniz e Proença Júnior (2007), tendo como referência Goldstein (2003) e Bittner (2003), lembram que essa discricionariedade tem suas instâncias inscritas na dinâmica das legitimações, composições e rupturas que constituem as decisões da polity. E sistematizam como outra instância que influencia a discricionariedade a accountability policial, aquela em que o mandato policial é mais ou menos exposto à apreciação e ao controle social. Lembram que é impossível predeterminar a totalidade da ação policial, que responde a “atos e fatos que estão em curso e que têm que ser enfrentados,

encaminhados, no ‘agora’’”, mas que a discricionariedade atinge o total dessa atividade

e não apenas aquela que envolve a escolha de modos de uso de força. Muniz e Proença Júnior (2006) supõem que a ausência da transparência dos procedimentos policiais no Brasil, o apego ao sigilo, a falta de iniciativa para tornar inteligível e público os procedimentos policiais só pode ser explicado como um “fóssil do período autoritário”.

Relacionando elementos como a discricionariedade à prática policial em casos de desaparecimentos, podemos afirmar que estes de fato só se tornarão assunto de polícia à medida que todos os envolvidos possam “jogar o jogo democrático da segurança

pública”. Isso passa pela tarefa da refundação das estruturas policiais, com a discussão

coletiva do reconhecimento de prioridades e do empenho de recursos e com a democratização da polícia (MUNIZ; JÚNIOR, 2006, 2007). É neste âmbito que vamos analisar as práticas policiais, no âmbito em que são questionadas pelas pessoas que buscam desaparecidos, porque, ainda de um modo vago, os familiares de desaparecidos compreendem que não estão satisfatoriamente inseridas no Civic World de que fala Boltanski.

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Os atores sociais produzem accounts quando fazem críticas e exigem justificações ou quando são chamados a darem uma resposta, ou seja, quando lhes é cobrada a responsabilidade de dar sentido a algo que a princípio parece sem sentido. O livro de Marcus Roberto Claudino é lido aqui como um plano de operacionalização de uma cité, a

cité cívica, e nele o autor mobiliza dispositivos para construir provas de competência da

polícia nessa gramática actancial moral, permanecendo, no entanto, muito mais no plano normativo. O tenente coronel reflete e elabora sínteses da atuação dos órgãos de segurança pública, da polícia civil e da polícia militar; de modo que responde, ainda que indiretamente, às críticas acerca da atuação da polícia junto à sociedade.

Ele utiliza estudos acadêmicos e sua experiência com os casos de desaparecimento para responder às críticas ao trabalho policial em casos de desaparecimentos. Demostra incômodo com a permanência da cultura policial de não registro dos casos nas primeiras horas de desaparecimento mesmo depois da alteração na legislação, mais especificamente no Estatuto da Criança e do Adolescente em 2005, que determina a busca imediata. Também confirma o frequente tratamento hostil dispensado às famílias, que convivem com o prejulgamento dos policiais, estes não raro associando os desaparecimentos comunicados ao comportamento de jovens irresponsáveis e de famílias desestruturadas3 e assim justificando-os.

A constatação de que a maior parte dos desaparecimentos sofre um “misto de esquecimento e descaso” “já no momento do registro” é o ponto de partida utilizado por Marcus Claudino para uma abordagem do fenômeno e para inseri-lo efetivamente nas atividades policiais. A constatação de que investigações não são sequer iniciadas é confirmada pelos dados de desaparecimento da SENASP (Secretaria Nacional de Segurança Pública): a maior parte dos casos encaminhados à secretaria não tem

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As práticas descritas por Marcus estão em pesquisas sociológicas recentes e nas pesquisas de campo que realizamos. No que diz respeito aos “desaparecimentos civis”, em algumas localidades a polícia produz documentos que em nada contribuem para a efetivação das buscas (FERREIRA, 2013); em outras regiões, de acordo com nossas observações, a ação policial civil em relação ao desaparecimento de adultos se limita ao registro da ocorrência, com a ressalva de que o boletim quase nunca sai nas primeiras 48 horas do desaparecimento. Quanto aos desaparecimentos forçados, há uma opacidade ainda maior no que concerne às práticas policiais. Algumas informações e estudos têm origem nos relatos de famílias e das mães empenhadas nas buscas, como vemos no trabalho de Araújo (2014).

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informações de idade e de cor do desaparecido, informações essenciais para que se iniciem as buscas. Além disso, o tenente coronel lembra que não há um empenho dos gestores estaduais no sentido de repassar para a SENASP parte ou a totalidade dos seus registros de desaparecidos, medida que seria essencial para que estes dados fossem compartilhados com outros órgãos que auxiliariam nas buscas. Conclui afirmando que

“...Era estranho, como ainda é hoje, que se tenha mais apoio para encontrar seu carro velho do que um filho perdido...”.

Entendemos então o livro “Mortos sem sepultura” de Marcus Claudino como o esforço de sistematização de uma série de dispositivos que provam a competência da polícia para colaborar efetivamente com a segurança pública em casos de desaparecimentos, ou seja, para superar o descaso e esquecimento que cercam o assunto. O movimento, nesse sentido, é de reinserir a prática policial no quadro gramatical reclamado pelas famílias de desaparecidos, o civic world, da afirmação da igualdade civil de desaparecidos. Boa parte da carreira de Marcus Claudino foi dedicada ao curso de Operações Especiais da Polícia Militar, conhecido como Caveira, de modo que a experiência profissional do tenente coronel, segundo seu próprio relato, gravitava em torno de assuntos como “...explosivos, táticas, tiros de combate etc...”. O desejo de redirecionar a trajetória na carreira e na vida pessoal somado à sua participação no Grupo de Familiares e Amigos de Desparecidos Catarineneses, no ano de 2011 facultaram-lhe a designação para a gerência da recém-criada Coordenadoria de Pessoas Desaparecidas da Polícia Militar de Santa Catariana, em 2012. O livro procura apontar caminhos para a atuação da polícia nos casos de desaparecimento de pessoas4 e deixa entrever uma sensibilidade maior para com as crianças e adolescentes.

Em busca do acordo

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Desaparecimentos forçados, mais especificamente aqueles que têm como causa distorções da violência estatal, são tangenciados no livro, ou melhor, estão implícitos no universo de todos aqueles outros que podem ter vínculos com crimes.

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Em momentos críticos as pessoas discordam das grandezas manifestadas diante de si e nesse quadro emergem as justificações. O modelo de Boltanski remete ao caráter negociado das relações sociais, afastando-se da oposição analítico/epistemológica agência/estrutura e aproximando-se de outra oposição analítico/ontológico, entre consenso (controvérsia) e conflito (opiniões irredutíveis) (WERNECK, 2012).

Neste referencial teórico-metodológico os agentes sociais ocupam situacionalmente posições e esses “estados” ou “grandezas” passam a ser o objeto da sociologia, ou seja, a situação passa a ser a unidade analítica, diferentemente do que ocorre no interacionismo simbólico, em que as interações interpretáveis e o fenômeno cognitivo da interpretação do outro compõem a unidade analítica. A pergunta em situações críticas é no sentido de saber por que o bem (a grandeza) do outro não me inclui. Neste conflito, a busca pelo bem comum inclui a demanda por provas de que a situação seja justa. A justificação é o processo central de produção da legitimidade na vida moderna. Por sua vez, nos acordos, as diferenças de grandeza são convertidas por meio de uma generalidade abstrata em equivalência. Esta abordagem pragmatista

É composta por um conjunto de situações de disputa em torno da legitimidade de estados temporários (chamados grandezas) ocupados por pessoas e/ou coisas, situações de disputa iniciadas quando a capacidade crítica de alguém dialoga conceitualmente com uma utopia, uma metafísica moral, uma cité, e observa na ação de alguém uma “não competência” para ser operada naquela linguagem, segundo aquela gramática, uma impossibilidade de operar “convenientemente” nessa linguagem moral. E por sua vez, atores criticados também recorrerão a essas cités – e/ou a outras – para dar conta de suas posições relativas (WERNECK, 2012b., p.97)

Para dar conta da análise das situações por meio das cités, Boltanski e Thévenot descem na direção dos “mundos comuns”

...ou seja, ordens, da mesma maneira que as cités conceitual e gramaticalmente coordenadas- e da mesma forma inspirada em livros (...)... com a diferença essencial de que estes

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[mundos comuns] são habitados por actantes os mais variados (pessoas, coisas, discursos, etc) e compõem planos de dispositivos mobilizados pelas pessoas para construir provas de competência (Werneck, op.cit, p.97)...

Para pensar a ação policial no quadro da gramática actancial em que é defrontado, o tenente coronel recorre aos estudos de Oliveira (2007, 2012). Oliveira nota que o desaparecido enquanto figura jurídica remete à pessoa cuja morte já é certa, sendo reservado para os supostamente vivos a figura do “ausente”, termo que não apresenta um “estatuto à altura da situação” e não contribui para uma normatização da ação policial e dos aparatos legais. Oliveira cunha então o termo “desaparecido civil”

...uma pessoa que saiu de uma ambiente familiar de convivência, ou de algum grupo de referência emocional-afetiva – como uma roda de amigos -, para realizar qualquer atividade cotidiana, não anunciou a sua intenção de partir daquele lugar e jamais retornou. Sem motivo aparente, sumiu sem deixar vestígios (OLIVEIRA, 2012, p.11)

A definição do cientista social é operacionalizada pelo tenente a fim de lidar com um fenômeno que possui fronteiras tênues com outras categorias: o fugitivo, o foragido, o sequestrado, o raptado, o indigente, o imigrante. A tentativa é de encontrar rumos para o estabelecimento de protocolos e para a reflexão acerca dos mecanismos legais que apoiam a ação policial. No que diz respeito às leis, questiona o alcance do dispositivo legal previsto no inciso IV do artigo 87 e artigo 208 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que preveem assistência e buscas imediatas.

Percebendo-se que a ação policial é questionada no quadro dos valores cívicos, o tenente coronel busca uma gramática actancial que aproxime a ação policial daqueles que a criticam. Elementos do “Civic World” são evocados de modo a se estabelecer uma conexão entre pessoas e objetos envolvidos nas situações “do desaparecimento, em uma operação que em alguma medida reconstrói a relação polícia/sociedade. Podemos dizer que o discurso é sustentado por meio de cinco fontes: a) informações e orientações de organizações não governamentais, como as Mães da Sé e a Cruz Vermelha; b) legislação

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que apoia e protege pessoas desaparecidas; c) pesquisas sociológicas sobre desaparecimentos; d) análises sociológicas e científicas em geral sobre o trabalho policial; e) literatura da experiência policial de outros países na busca e investigação dos casos. Não pretendemos contemplar aqui todos esses tópicos.

No que diz respeito às análises sociológicas e científicas acerca do trabalho policial, embora nem sempre cite as fontes nas quais se ampara, o autor lembra que outras abordagens, que não o policiamento ostensivo, são possíveis para polícia militar. Ele dá a entender que a repressão e o uso da força não são os únicos modos de atuação da polícia e que a convivência com outras abordagens é necessária para um tratamento mais adequado do desaparecimento.

... Mesmo com a meritocracia em seu ápice, vemos a necessidade de que valorizemos nosso papel social no que tange aos meninos e meninos espalhados pelo mundo afora, pois muitas vezes, ficamos dias embrulhados na mata atrás de fugitivos da lei, mas em nossas planilhas, pouco tempo fica reservado para um menor desaparecido.

As preferências policiais no empenho em ações repressivas, a discricionariedade, são acentuadas, ao mesmo tempo em que o descaso com os casos de desaparecimentos é pensado na rotina diária do policiamento ostensivo. A ação policial como prevenção também é sugerida como meio de atuação, ainda que sua operacionalização pareça ocorrer por meio de uma ação policial educativa “...ratificando-se, dessa forma, a

necessidade de otimizarmos os profissionais da segurança, valorizando o resgate social das crianças e adolescentes como fórmula de prevenção(Claudino, 2014)”.

O tenente coronel pergunta-se como a polícia militar pode interferir no fenômeno da criminalidade de maneira preventiva e sugere como uma das possíveis soluções o trabalho pedagógico junto aos adultos, aos pais. Desenvolvendo seu argumento, os limites da cultura de prevenção aparecem como algo sentido: “... salvo raras exceções, a

cultura de prevenção é limitada à presença policial fardada em ambientes com potencial para a ação da criminalidade”; bem como de algum modo é percebido o desprestígio da

polícia como prevenção e as causas desse desprestígio: “... a polícia como prevenção não

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eficiência da polícia calcada na exclusividade sobre a repressão não é aceita, antes o contrário: é repensada a relação polícia/sociedade nos moldes como está estabelecida e o tratamento dados aos casos é criticado:

Se não há crime, não há investigação. Eles alegavam (como ainda alegam) que o que motiva a ação policial é o indicativo de crime, sem isso nada se poderia fazer. Significava que mães deveriam voltar para casa e continuar sozinhas em suas buscas...

A resistência em delimitar a ação policial à ação repressiva é enfatizada:

“...buscar desaparecidos não seria atribuição da polícia. Para tanto, sempre argumentavam [membros da polícia] que a polícia só pode agir mediante provas criminais”. E essa exclusividade negativa, possível graças a uma certa discricionariedade

policial, é percebida como sendo amparada por uma distância entre polícia e sociedade:

Recorrer à polícia tem sido um forte obstáculo enfrentado pelas famílias de desaparecidos. A angústia familiar diz respeito à falta de amparo jurídico e psicológico para suas aflições e à ausência de aparatos policiais de investigação.

(...) Constata-se que, além da resistência policial em aceitar sua responsabilidade no tratamento desse fenômeno, a instituição policial possui pouco trato na interação face a face com todos aqueles que procuram apoio. O tratamento rudimentar de que muitos familiares se queixaram produz uma relação de distanciamento entre familiares e polícia, quando deveria prevalecer o contrário.

Essa distância polícia/sociedade, a falta de clareza dos procedimentos legais e legítimos, atrapalha a resolução de casos de desaparecimentos. Mas essa dificuldade de atuação também é atribuída à falta de preparação do pessoal da polícia e à falta de legislação específica para os casos. Nesse sentido, um dos requisitos é que a ação policial apropriada tenha com condição o estreitamento das relações com a sociedade, a fim de que esta seja inserida no processo como “comunidade política” e a fim de que as ações

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da polícia respondam de maneira adequada à totalidade dos casos, inclusive àqueles que decorrem de conflitos como a violência doméstica:

Acreditamos que as parcerias, tanto com os veículos de comunicação, bem como com os familiares, segurança pública e sociedade, são um caminho interessante para o sucesso da procura por crianças e adolescentes desaparecidos...

(...) Ao exigirem justiça e ao se relacionarem com o sistema burocrático e jurídico do Estado, tais comunidades são deslocadas do mundo privado e criadas comunidades políticas, passando a questionar a legitimidade de um Estado incapaz de monopolizar a violência... (...) pode-se afirmar que muitas pessoas dadas como desaparecidas são vítimas de violência doméstica... (...) Mas o problema é que ainda hoje a percepção que se tem da polícia é de que sua violência é imprevisível. (...) ...[a percepção é de que depois de se contar a polícia não se tem mais controle (ou conhecimento) do que poderia ocorrer, de quais seriam os desdobramentos (consequências). Isto provoca medo e insegurança nas pessoas, que, por isso, muitas vezes não denunciam.

Para além disso, a ação da polícia também é percebida como força de distribuição do poder na comunidade política: “...Numa análise mais ampla, pensamos que o policial

também é o excluído oculto, porém somos interessantes para o sistema atual e para a manutenção do poder vigente (p.63)”. O tenente coronel se empenha para tornar a

conduta policial accountable, propondo protocolos de ação.

Possibilidades para que a conduta policial se torne accountable são oferecidas por ele quando analisa protocolos de atendimento a desaparecidos, protocolos internacionais, e procurar adaptá-los, produzindo um protocolo contextualizado. Os protocolos, diretrizes que orientam os passos necessários para a ação policial, parecem-nos ser importantes para que seja definido o papel de outros atores sociais na busca pelo desaparecido e podem ser um caminho para que a sociedade se posicione acerca da atuação policial. Neles o tenente coronel enfatiza o envolvimento da comunidade, inclusive por meio da mídia, nas redes sociais virtuais, principalmente nas primeiras horas de buscas5. Na atenção à família e ao desaparecido, caso este seja reencontrado, o

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Em experiências em outros países, de acordo com o tenente coronel, esse envolvimento é feito de modo que pessoas envolvidas ou suspeitas não se misturem com os voluntários – com

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autor chama atenção para a necessária parceria com Agências de Serviço Social. Para a comunicação imediata, experiências internacionais relatam a disposição de uma linha telefônica exclusiva para o recebimento de informações e denúncias.

As possibilidades de atuação efetiva da polícia continuam sendo exploradas. No que concerne à atividade exclusivamente policial, constata-se que as experiências bem-sucedidas são aquelas não abrem mão da investigação preliminar, o que implica o levantamento de informações como o lugar em que a criança foi vista pela última vez, entrevistas com o indivíduo que por último teve contato com a pessoa desaparecida, descrição detalhada do desaparecido e recolhimento de foto recente. Nestes casos, as informações recolhidas pela polícia são compartilhadas com unidades de patrulha de outras agências policiais e agências de aplicação da lei federal; cenas suspeitas são isoladas para perícias e entrevistas; objetos com cheiros em pertences pessoais são recolhidos para possível uso por caninos de busca; há uma pré-classificação dos desaparecidos com vistas e definir procedimentos de atuação e graus de prioridade e urgência, com uma categorização por grau de risco.

Aproveitamos para fazer outra digressão lembrando que os desaparecimentos de alto risco agregam os desaparecidos forçados, assunto um tanto quanto espinhoso para a polícia. As circunstâncias morais dos desaparecimentos de pessoas, ainda que de forma velada, abarcam os desaparecimentos forçados e conduzem para o assunto embaraçoso do abuso da violência policial.

Quando o policial é a acusado

A crítica é um dispositivo diferente da acusação. Vamos desenvolver agora a análise em torno de situações em que o policial é acusado em casos de desaparecimentos a fim de observar suas circunstâncias e a moralidade das relações sociais. A polícia civil

medidas questionáveis, entendemos. Pessoas com passagem na polícia por estupro e pedofilia são identificadas e o endereço destas é divulgado para toda comunidade.

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registra as ocorrências dos desaparecimentos e investiga os casos, a polícia militar deve apoiar as buscas e prevenção. Mas as críticas por vezes se misturam à acusações, ou seja, por vezes membros da polícia são acusados de estarem envolvidos com desaparecimentos de pessoas de maneira criminosa na suposta autoria de assassinatos e ocultação de corpos, ou ainda no acobertamento da investigação dos acusados.

A acusação é a forma radicalizada da crítica. Definindo o dispositivo da desculpa, Werneck (2012) lança mão dos escritos de Austin para discutir o que é “analisar uma desculpa”, mais precisamente, avalia se desculpas podem ou não ser consideradas como uma ação ou como uma prática. Ele conclui que a desculpa é de extrema importância para uma filosofia preocupada com a ação porque ela nos conduz a casos em que ocorreu alguma anormalidade ou falha, uma situação “na qual uma ação ocorreu sem que todos

os envolvidos estejam satisfeitos... (p.62)”.

A desculpa é a resposta para a acusação e esta, por sua vez, depende de um dispositivo cognitivo específico, a culpa, para funcionar. A culpa tem duas dimensões, a intensidade e a indiscutibilidade, “O centro da situação de acusação não é a disputa em

torno dos elementos de um acordo. É, em vez disso, a legitimidade – a necessidade mesmo – da punição (p.67)”. Acusadores e acusados se orientam pelo princípio moral

considerado desrespeitado e o consideram legítimo e indiscutível.

...Quando se atribui culpa a alguém, está-se afirmando que algo foi inegavelmente feito por ele. A acusação, então, é estruturada em torno de um operador que torna a causalidade de uma operação moral simplificadora da complexidade das situações: só há duas possibilidades em uma situação de acusação: culpa ou não culpa. De maneira que ela é centrada na punibilidade, ou seja, na operação de simplificação das possibilidades de interação com aquele que praticou a ação. Porque a culpa afirma a agência dos atores, chama a atenção para seu controle sobre a situação e para sua opção por fazer algo errado... (p.63)

No livro “Como nascem os monstros” observamos como se revela a relação moral de um policial militar com valores e emoções ligados à morte, à justiça, aos “marginais” e a outros objetos morais, que de algum modo estão envolvidos em desaparecimentos

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forçados. Rodrigo Nogueira é um ex-policial militar, preso desde novembro de 2009, por tentativa de homicídio e extorsão. Ele descreve práticas como extorsão, tortura de traficantes, sequestro, negociação e venda da liberdade de assaltantes, julgamentos e condenação à morte de criminosos e suspeitos de crimes, ações de milícia e assassinatos. Seu livro, escrito na prisão durante nove meses, na orelha, é definido como um romance não ficcional na linha de “A Sangue Frio” do americano Truman Capote e o autor caracteriza sua narrativa como sendo bastante autobiográfica, resultado de experiências próprias e do relato da experiência de colegas. A todo momento Rodrigo Nogueira lança mão daquilo que Werneck (2012) chama de flexibilização das regras morais e flexibilização do princípio do bem comum para construir a história de Rafael, um policial militar que foi preso depois de uma carreira marcada por crimes e corrupção.

Lemos em vários momentos “desculpas” de um “personagem” que não tem a intenção de assumir, pelo menos não completamente, a “culpa”. Nos primeiros capítulos, Rodrigo chama a atenção para o impacto brutal da condição do preso em suas relações sociais. O preso sente o “abandono” dos amigos, dos colegas, do pai. E é neste contexto que são apresentas desculpas, que têm com referência aquele plano de categorias morais ideais constantemente atualizado nas ações sociais e, no caso estudado, constantemente flexibilizado – e o dispositivo utilizado é a desculpa. Ao se expor, bastante estigmatizado pela acusação ele procura atenuar a criminalização que pesa sobre si.

A desculpa é um ato que visa a manutenção das relações sociais. Ela nos remete a um mundo idealizado, habitado por categorias ideais, entrelaçando estas últimas a entes particulares de uma situação. “Desculpas” diferem de “pedido de desculpas”, ou seja, “desculpas dadas” são diferentes de “desculpas pedidas” (WERNECK, 20012). Ao apresentar as suas desculpas, o ex-policial procura minorar consequências negativas de uma condição, relembrando, por exemplo, que o meio social corrompe, afirmando o instinto humano de vingança ou descrevendo a corrupção com a qual o policial convive desde a sua formação, que o corrompe.

Embaixo da casca monstruosa que envolve esse tipo de criminoso, o policial militar que erra, também havia (há?) um homem que um dia estudou, passou no concurso, se formou, fez um juramento e marchava

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com garbo. Deu orgulho à sua família e, pelo menos uma vez, arriscou morrer pela sociedade.

[em entrevista para jornal] O processo de perversão começa no início da formação. Quando cheguei no CFAP, o primeiro contato quando a gente sai do campo para a companhia é um caminho cercado por árvores. Do alto daquelas árvores, os policiais antigos começavam a disparar tiros de festim e soltar bombas. O camarada que deveria ser treinado desde o início pra policiar, já começa a ser apresentado a uma guerra. Dentro do CFAP, a cultura dos instrutores não é formar policiais. É formar combatentes. E aí é que tá o problema: você formar um combatente para trabalhar numa coisa tão complexa quanto o aspecto social que ele vai ser inserido. Um dia o policial tá trabalhando com um mendigo, no outro com um juiz, no outro com um assassino, no outro com um estuprador. Para você preparar um combatente para trabalhar nesse contexto, é muito delicado. Demora muito. Se isso não for muito bem feito você acaba criando monstros.

(...) Se você é duro, você vai trabalhar na patrulha, no GAT (Grupamento de Ações Táticas), na Patamo (Patrulhamento Tático Móvel)… Agora você que é mais sensato, que não vai se permitir determinadas coisas, não tem condições de você trabalhar nos serviços mais importantes. Não tem como o camarada sentar no GAT se não estiver disposto a matar ninguém. Não tem como. E não é matar só o cara que tá com a arma na mão ali, é matar porque a guarnição chega a essa conclusão: “Não, aquele cara ali a gente tem que matar.”

O autor desenvolve o argumento (bastante questionável) de que todos esses condicionamentos (do meio e do instinto) são considerados quando da condenação de um civil, mas que são esquecidos quando o réu é um policial militar. Transfere ao menos parte da verdadeira responsabilidade de suas ações para elementos que lhe são exteriores - o meio social ou a natureza humana (os instintos) , para uma ausência de controle sobre os próprios atos. Apresenta diversos argumentos do tipo “à polícia não é dado o direito de errar”

...O PM vira o Judas a ser malhado em praça pública cada vez que se noticia mais uma de suas estripulias. Não lhe é estendido o “benefício” de ter sido corrompido pela sociedade porque acham que ele simplesmente não faz parte dela...

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(...) ...O PM é acomodado delicadamente no pilão porque o homem é hipócrita e covarde demais para ser o que realmente é em tempo integral. A vontade geral reprimida é de arrebentar com o pivete, empalar em vergalhões ferventes o estuprador, guilhotinar os assassinos...(...) O mais próximo que se pode chegar dos impulsos, então, é apedrejar aqueles que não tem desculpa, que são safados e maus mesmo e pronto!

E ainda sobre a justiça escreve

... Se eles [os magistrados] entendem um pouco da matéria e entendem que o policial é, antes e depois de vestir a farda, um homem susceptível à contaminação pela sociedade, como qualquer outro, estão sendo mais maquiavélicos que a própria Lady Macbeth...

É interessante notar como o instinto, a vingança, pesam sobre “o bandido” de modo a conduzi-lo à chacina, à tortura, à condenação sem julgamento por meio do ato do policial que erra, mas para este que o autor reclama a racionalização capaz de aplacar a fúria da sociedade. Isso porque o que vemos não é uma justificação, que teria como princípio o bem comum, mas uma desculpa, um dispositivo que “... participa de uma

economia de tensão entre o bem de si e o bem do outro... (p.57, op.cit.)” e que permite

que o ator dê conta de sua ação por meio da ação dos outros. E assim, a análise que Werneck faz do personagem Verdoux cabe para Rodrigo, porque este, assim como aquele, também joga na cara da sociedade que o acusa a igualdade os aproxima, ou seja, se a sociedade o acusa de desumano ela também no fundo o é.

Ao “teorizar” sobre a “natureza” do homem, seus instintos, o modo como a sociedade se comporta, Rodrigo traz elementos do cotidiano corrompido da vida policial, comportamentos que podem resultar no assassinato e ocultamento de corpos. E de algum modo mostra como um comportamento autoritário pode em alguma medida ser amparado por uma sociedade autoritária.

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Posso garantir que, ao ingressar na corporação, ninguém acredita que um dia vai sequestrar alguém, roubar seu dinheiro, matar essa pessoa e atear fogo ao corpo. Pode até ter uma vontadezinha de atirar em algum bandido (…)

[Em entrevista a jornal] A minha turma partiu pro estágio com dois meses de CFAP, dois meses tendo meio expediente e depois rua. E aí, meu camarada, a barbárie imperava: pivete roubando, maconheiro… Quando caía na mão era só porrada e muito gás de pimenta. Foi ali que eu tive contato com as técnicas de tortura que a Polícia Militar procede aí em várias ocasiões. Você vê agora o caso do Amarildo. O modus

operandi vai se repetindo, evoluindo, até que toma uma proporção

mundial. Eu conheci aqueles recrutas que participaram do caso Amarildo lá no presídio da Polícia Militar e eles foram formados depois do meu livro. (....) Aqueles policiais que participaram do caso Amarildo, pelo menos de acordo com o que o inquérito está investigando eles estão fazendo as mesmas práticas que eu já fazia, que o meu recrutamento já fazia, que outros fizeram bem antes de mim e que já vem de muitos anos. Vem de uma cultura.

Um dos traços mais marcantes da cultura policial, a ideia de que a lei é um obstáculo à eficácia profissional, aparece para sustentar a desculpa

O nosso direito dificulta o trabalho do policial em certos aspectos. Por exemplo, um pivete roubou uma coisa de um turista e correu. O policial corre atrás do pivete e pega o pivete. Quando ele consegue chegar no pivete, ele já jogou o que ele roubou fora e ele é menor de idade, não pode ser encaminhado para a delegacia. Porra, mas o policial sabe que ele roubou. E aí entra o revanchismo, a hora da vingança. Primeiro lugarzinho separado que tiver (cabine, atrás de um prédio, dentro dos postos do guarda-vidas) é a hora da válvula de escape. E eu posso assegurar para você: da minha turma do CFAP, de dez que se formaram comigo, nove jamais pensaram que passariam por um processo de desumanização tão grande. O camarada começa a ver um pivete levando choque, spray de pimenta no ânus, no escroto, dentro da boca e não sente pena nenhuma. Pelo contrário, ele ri, acha engraçado.

É desse modo que as expectativas da sociedade, o instinto humano, o meio social que corrompe, uma cultura policial (corrompida), são dispositivos de linguagem utilizados para viabilizar a desculpa, flexibilizando as regras morais e convidando o

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interlocutor a minorar as avaliações negativas e, portanto, uma condição negativa. A desculpa nos conduz a um contexto de regras morais que dizem respeito à morte, à pena, ao ocultamento de corpos, e nega a rigidez desses valores morais reivindicada pela acusação.

Considerações Finais

Pensar as circunstâncias morais das práticas policiais em casos de desaparecimentos de pessoas no viés da crítica e também no viés da denúncia nos parece ser um modo de abarcar adequadamente o desaparecimento como assunto de polícia. Nesse sentido, a noção que une essas duas possibilidades nos parece ser a de account.

O account é “uma afirmação feita por um ator social para explicar um

comportamento imprevisto ou impróprio (SCOTT, LYMAN, 2008)”. A responsabilidade

profissional da polícia envolve elementos que sustentam a democracia em uma comunidade política e no caso dos desaparecimentos a prestação de contas pode estar relacionada aos registros nos boletins de ocorrência, às investigações, ao policiamento ostensivo, ao uso da força, ou seja, à quase totalidade das ações.

Como já mencionado, justificativas e desculpas são accounts, mas enquanto na justificativa o ator aceita a responsabilidade pela ação e renega a associação pejorativa associada a este ato, na desculpa o ator admite que o ato em questão é ruim, errado ou inapropriado, ao mesmo tempo em que nega ter total responsabilidade sobre ele. Embora tenhamos reservado o recurso da justificação para circunstâncias em que policiais se posicionam acerca dos desaparecimentos civis e o dispositivo da desculpa para a resposta dos policiais a desaparecimentos forçados, a análise pode ser posteriormente refinada.

No caso das circunstâncias morais das ações policiais em desaparecimentos civis, podemos afirmar que o imperativo da justificação tem preponderantemente a marca dos policiais que defendem que desaparecimento – é assunto de interesse da polícia na medida em que se aproxima do crime. Nesse sentido o discurso que procura mostrar a

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efetividade da ação policial para trabalhar com casos de desaparecimentos e procura mostrar que este assunto compete sim à polícia ainda é bastante normativo e participa pouco das justificativas que emergem nas formas concretas de atuação.

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