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O DIREITO COMO INTEGRIDADE E A APLICAÇÃO JUDICIAL DA SÚMULA VINCULANTE * LAW AS INTEGRITY AND THE JUDICIAL APPLICATION OF BINDING ABRIDGEMENT

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2064 O DIREITO COMO INTEGRIDADE E A APLICAÇÃO JUDICIAL DA

SÚMULA VINCULANTE

*

LAW AS INTEGRITY AND THE JUDICIAL APPLICATION OF BINDING ABRIDGEMENT

Luiza Costa Braga Cruz RESUMO

Busca-se analisar a jurisprudência produzida pelo Supremo Tribunal Federal, a partir da criação do instituto da Súmula Vinculante. A análise se desenvolve a partir da teoria do direito como integridade, proposta por Ronald Dworkin, que trabalha a atividade judicante sob a perspectiva de um conjunto coerente de princípios, dentre os quais a igualdade se perfaz como parâmetro interpretativo e o ideal político da integridade como norte balizador de todo o ordenamento. A construção interligada do direito que Dworkin propõe vincula a atividade de juizes e advogados à moralidade, na perspectiva de atrelá-los a uma concepção coerente de direito e de comunidade, na busca pelo desenvolvimento de uma sociedade equânime e fraternal. É traçado, ainda, um paralelo com a crítica ao direito como integridade, sob a perspectiva cética de Jeremy Waldron.

O mecanismo do stare decisis, originário dos países adeptos do sistema jurídico da common law, é utilizado, conforme a análise de Scott Hershovitz, como referencial específico para o estudo do desenvolvimento e aplicação da Súmula Vinculante. O trabalho se estruturou com o estudo dos textos elaborados pelo Supremo Tribunal Federal correspondentes às Súmulas Vinculantes números 5, 9 e 11, assim como a partir das discussões e precedentes que culminaram com a edição das referidas Súmulas. A análise se deu a partir do marco teórico referido acima. Nesta esteira, conclusões acerca do comprometimento com o direito à igualdade, no momento da elaboração das Súmulas sob análise, foram elaboradas, assim como apontamentos sobre quais as diretrizes traçadas pela teoria do direito como integridade para o momento da aplicação judicial do precedente.

PALAVRAS-CHAVES: SÚMULA VINCULANTE. IGUALDADE. INTEGRIDADE.

ABSTRACT

This work analyzes the binding abridgements issued by the Federal Supreme Court. The analysis is developed according to the theory of law as integrity, proposed by Ronald Dworkin, who approaches the judicial activity as a set of coherent principles, in which equality is the source of interpretation and the political ideal of integrity is the basis of law. Dworkin’s proposal links the activities of judges and lawyers to morality, trying to connect them to a coherent conception of rights and community, searching for the development of an equal and fraternal society. It also does a parallel about the critique of law as integrity, under the skeptical perspective of Jeremy Waldron. The stare decisis mechanism, first born in the countries that are adept to the Common Law system, is

* Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo –

SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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2065 used in the work, according to Scott Hershovitz’s view, as a specific reference to the study of the development and application of binding abridgements. The paper is based on the study of the texts made by the Federal Supreme Court that correspond to the binding abridgements numbers 5, 9 and 11, such as according to the debates and precedents that led to its approval. The analysis of binding abridgements is based on the theoretical framework mentioned above. On these thoughts, the work presents some conclusions about the commitment with the right of equality on the moment that the binding abridgements were born, and points about which are the guidelines, set by the theory of law as integrity, to be used on the moment of the judicial application of the precedent.

KEYWORDS: BINDING ABRIDGEMENT. EQUALITY. INTEGRITY.

1 – A TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE.

1.1 – POR QUE É IMPORTANTE?

Antes de trabalhar com a teoria proposta por Ronald Dworkin da concepção do direito como integridade, é fundamental que pensemos acerca de alguns elementos que permeiam uma análise crítica da referida teoria. Para tanto, necessitamos compreender aquilo que Dowkin chama de “Teorias Semânticas do Direito”, visto que este conjunto de teorias trabalha a partir de pressupostos que traçam armadilhas a uma aplicação coerente e interpretativa, como constrói Dworkin, do direito. Podemos dizer, em resumo, que compreendem a atividade judiciária a partir do pressuposto de que para uma verdadeira e real divergência acerca do direito, critérios mínimos e absolutos devem ser aceitos. Na realidade, trazem à tona uma espécie de regra fundamental oculta que deve estar contida, mas não reconhecida na prática jurídica. Criando, assim, uma barreira à atividade interpretativa, pois uma redução das possibilidades de divergência figura como um impedimento à atividade interpretativa que deve desenvolver o juiz (DWORKIN, 2007, p. 40 - 41).

Neste contexto, Dworkin nos diz que não devemos entender como verdadeira uma afirmativa que compreende o direito como uma simples questão de fato, ou seja, que trabalha a divergência entre juízes como concernente apenas a fatos concretos e históricos, não admitindo as questões de moralidade que permeiam a lide e podem gerar divergências, portanto, não consideram divergências acerca da natureza do direito (DWORKIN, 2007, p. 38 – 39). As ditas Teorias Semânticas negam a existência de divergências teóricas na atividade judiciária, pois afirmam que o direito possui critérios lingüísticos definidos e firmes, portanto, juízes e advogados seguem uma regra comum quando usam as palavras e a palavra direito. Dizem então, que as regras para o uso da palavra direito o conectam com o fato histórico, mas essa relação é estabelecida sem que as pessoas tomem consciência.

Portanto, as Teorias Semânticas do Direito negam o caráter dinâmico e construtivo da

comunidade, visto que há uma espécie de verdade absoluta a partir da qual todas as

interpretações devem produzir-se, sob pena de serem consideradas “falsas”. Logo, não

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2066 se coaduna com a uma concepção geral de coerência pautada a partir da relação que deve ser estabelecida com a dinamicidade do corpo social.

Após essa objeção preliminar, podemos iniciar o debate acerca do direito como integridade. Deparamos-nos, então, com a afirmação inicial de que devemos partir, tendo a interpretação construtiva e a conceituação da integridade como principio distinto da equidade, da justiça e do devido processo legal, defendidos por Dworkin:

tratar o direito como integridade como concepção correta do direito. Ou seja, assumir que as afirmações jurídicas são proposições interpretativas, entendendo-as como um processo político em desenvolvimento. E com isto, admitindo a existência de uma única razão de princípio que solucione os casos apresentados, ou seja, há sempre um argumento que se baseia em um conjunto coerente de princípios capaz de solucionar os casos concretos, há sempre uma resposta correta a ser proferida pelos juízes.

Feita esta intervenção inicial, para prosseguir na perspectiva de defesa do direito como integridade, é necessário compreender que o motivo pelo qual Dworkin não trabalha com a idéia de regra comum e critérios lingüísticos, mas sim de constante construção, reside na natureza interpretativa da teoria. Nesta perspectiva, percebendo a interpretação como o relato de um propósito, como uma forma de ver o que é interpretado, não sendo possível desvencilhar-se inteiramente das intenções e concepções de cada intérprete, sem confundir isto com discricionariedade, pois mesmo a atividade criativa do juiz e sua liberdade de interpretação necessitam de alguns mecanismos de controle, mecanismos estes que Dworkin exemplifica através da atividade interpretativa e de uma visão hermenêutica da atividade judiciária.

Dworkin nos faz uma descrição do que seriam as várias formas de interpretação de uma prática social, a mais conhecida – de tão conhecida nem sempre é detectada – é a conversação. Nela ocorre a interpretação dos sinais que uma pessoa faz. Em seguida, o autor nos fala da interpretação científica: diz que um cientista coleta dados e depois os interpreta, ou seja, a partir de uma análise empírica. Em terceiro fala da interpretação artística: o intérprete busca justificar um ponto de vista acerca do significado, tema ou propósito da obra de arte. A forma de interpretação sobre a qual se desenvolve este estudo – a interpretação de uma prática social – é semelhante à interpretação artística, pois ambas pretendem interpretar algo criado pelas pessoas como entidade distinta delas, e não o que as pessoas dizem, como na interpretação da conversação, ou fatos não criados pelas pessoas, como no caso da interpretação científica (DWORKIN, 2007, p.

60 - 61).

A partir destes conceitos, Dworkin constrói o que chama de interpretação criativa:

interpretação artística e interpretação de uma prática social, a partir da relação e aproximação dessas duas formas de interpretar.

A defesa da interpretação criativa de desenvolve a partir de uma afirmação categórica: a

interpretação criativa é construtiva (DWORKIN, 2007, p. 63). Ao descrever a prática

sob análise, a interpretação criativa se preocupa com o propósito e não com a causa,

entendendo aqui propósitos como os propósitos do intérprete. Em linhas gerais, a

interpretação construtiva se apresenta como a imposição de um propósito a um objeto

ou prática, a fim de torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou do gênero aos

quais pertença. Do ponto de vista construtivo, a interpretação criativa é um caso de

interação entre propósito e objeto.

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2067 Portanto, o que chamamos de perspectiva construtiva do direito perpassa, inicialmente, pelo entendimento do que seria a interpretação construtiva. E para tanto devemos admitir que uma teoria da interpretação é, antes de tudo, uma interpretação da prática dominante de usar conceitos interpretativos, entendendo que a atitude interpretativa decide não apenas o porque uma prática existe, mas também o que ela agora requer.

Valor e conteúdo se confundem. Nesta perspectiva, a interpretação construtiva trabalha para uma proposição que seja capaz de compreender a prática analisada e o corpo social sob o melhor ângulo, ou seja, demonstrando-a sob sua melhor luz. Deve, então, primeiramente haver a etapa pré-interpretativa na qual são identificadas as regras e os padrões que se considera fornecerão o conteúdo experimental da prática. Em segundo lugar deve haver a etapa interpretativa, em que o intérprete se concentra numa justificativa geral para os principais elementos da prática identificada na etapa pré- interpretativa. Por último, deve haver a etapa pós-interpretativa ou reformuladora à qual se ajusta a idéia daquilo que a prática realmente requer para melhor servir à justificativa aceita na etapa interpretativa, desenvolvendo o propósito da prática social naquele exato momento (DWORKIN, 2007, p. 81 – 82).

E é na etapa pós-interpretativa que o trabalho renovador e criativo do direito surge, pois novas proposições serão formuladas na busca por aperfeiçoar a comunidade e demonstrá-la sob sua melhor luz. Entendendo isto como a busca por construir um judiciário mais atento aos clamores sociais, portanto, mais conectado com os elementos determinantes nos costumes e práticas sociais. O que, em grande medida, atribui a juizes e advogados um papel importante para a consolidação do Estado Democrático de Direito, na perspectiva da democratização do Judiciário.

A relação entre a interpretação, a atividade de juízes e advogados e a idéia de intenção em Dworkin está intimamente ligada à necessária manutenção dos valores pessoais e isto associado à idéia de formação da subjetividade de cada intérprete: um produto do que chamamos de sociedade personificada. A idéia de intenção do autor, quando se torna um estilo de interpretação, implica em si mesmo as convicções artísticas do intérprete, entretanto, a teoria de Dworkin compreende a intenção de uma maneira bem mais complexa, pois ao mesmo tempo em que atrela a interpretação às intenções do intérprete, coloca-lhe mecanismos de controle e combate à discricionariedade. Para tanto, admite a existência de um ente personificado capaz de gerar vontades e características próprias a um grupo e que esses elementos devem nortear a atividade jurídica, assim coloca o interlocutor não apenas como ouvinte, mas como participante de um processo que é interativo. Na medida em que ao admitirmos a existência da comunidade personificada aceitamos também que o corpo social gera obrigações e direitos que são exercidos por todos os cidadãos, isto significando que o papel desenvolvido por cada pessoa no interior da comunidade é valorizado, tornando-se responsável e parte ativa no processo de construção das convicções e princípios sociais.

E aqui está o grande diferencial do direito como integridade: trabalhar com as práticas sociais – e com o direito - como um processo que se constrói a partir de dois agentes – locutor e interlocutor.

E para o desenvolvimento desta teoria jurídica capaz de solucionar os conflitos a partir

da manifestação da “vontade” da sociedade personificada, justificando o monopólio da

força coercitiva pelo Estado, fundamentalmente, por pressupor que a comunidade como

um todo pode se engajar nos princípios de equidade, justiça ou devido processo legal

adjetivo de algum modo semelhante àquele em que certas pessoas podem engajar-se em

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2068 convicções, ideais ou projetos, é fundamental que pensemos acerca das concepções de ceticismo interno e externo, pois ao aceitarmos a interpretação construtiva como mecanismo correto de interpretação necessitamos transpor as barreiras que os céticos nos colocam justamente diante da perspectiva da existência de uma única resposta correta a questões controversas. A concepção do ceticismo interior se interessa pela substância das afirmações - não porque nenhuma concepção que torna uma prática melhor possa ser realmente certa, mas porque uma concepção é certa: aquela segundo a qual uma interpretação bem-sucedida deve oferecer o tipo de unidade que, em sua opinião, nenhuma interpretação pode oferecer. O ceticismo interior busca através de uma atitude interpretativa generalizante, questionar todas as possíveis interpretações específicas de um objeto ou prática social. Já o ceticismo exterior é uma teoria metafísica e não uma posição interpretativa. Sua teoria é, na verdade, uma teoria sobre a posição ou classificação filosófica das afirmações. Ceticismo dito exterior por não ser engajado: afirma deixar o verdadeiro procedimento da interpretação à margem de suas conclusões (DWORKIN, 2007, p. 97 - 98). Aqui se encontra o velho argumento de que a moral em nada deveria influenciar as decisões tomadas pelo juiz. Trata-se de uma concepção cética que parte do pressuposto real de que nem todas as etapas da elaboração do material jurídico são coerentes em si, ou seja, a supremacia legislativa dá força a algumas leis que em principio são incoerentes com outras. Entretanto, essas contradições não são tão abrangentes a ponto de tornar a tarefa do juiz “Hércules" sem sentido ou impossível.

Os céticos, então, propõem que não pode haver uma única resposta correta, coerente e pautada em princípios capaz de solucionar casos controversos. Mas a interpretação construtiva e a aceitação da integridade propõem exatamente o oposto: a integridade é capaz de garantir uma única razão de princípio, coerente e correta, capaz de solucionar casos controversos. Já que a interpretação busca mostrar a melhor forma do objeto ou prática analisado, garantindo uma resposta “certa” a questões de valor estético, moral ou social e também a questões relativas ao significado de textos e práticas, pois fundamental é analisar a atividade jurídica a partir da função de justificar o monopólio da força coercitiva pelo Estado, da aceitação da comunidade personificada, subjetividade e moral levadas em conta,existência de um conjunto coerente de princípios e da análise política dos Tribunais. Mesmo porque juízes diferentes pertencem a tradições políticas diferentes e antagônicas, e as interpretações de diferentes juízes serão regidas por diferentes ideologias. E isso faz com que o direito ganhe em poder, pois se mostra sensível e capaz de abarcar as fricções e tensões de suas fontes intelectuais.

Por fim, a construção interligada do direito que propomos nos leva a pensar na

coerência como elemento que deve ocupar grande parte de nossa discussão,

essencialmente a noção de coerência de principio, que é central na construção dos

argumentos da integridade, sendo que aqui temos a necessidade de uma coerência

entendida em um sentido mais horizontal e menos vertical. Na verdade, compreendendo

que as decisões do passado permitem ou exigem a coerção, mas a prática atual deve ser

organizada de maneira a ser justificada por princípios suficientemente atraentes e para

oferecer um futuro honrado. Ou seja, a teoria apresentada por Dworkin considera, em

grande medida, a complexificação cada vez maior do corpo social, pois, trata-se de uma

concepção do direito que nos permite justamente essa percepção da constante

construção, ou seja, mutante de acordo com a dinâmica social. Sem, contudo, confundir

essa capacidade de adequação com ausência de segurança ou previsibilidade. Mas sim

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2069 como um aspecto do direito como integridade que o aproxima da realidade dos fatos sociais e que estimula mesmo princípios como o da fraternidade e, ainda, vincula o juiz a coerência com as decisões do passado e com a “vontade” da sociedade personificada que se expressa de uma única maneira nos atos oficiais, ainda que essa “vontade” seja composta por fatores diversos.

1.2 – O IDEAL POLÍTICO DA INTEGRIDADE

A defesa da integridade, a partir dos elementos já mencionados neste trabalho, deve ser compreendida desde o plano da titularidade, no qual todos os cidadãos são titulares de direitos, sem qualquer tipo de distinção, tanto no plano temporal que mantêm esses sujeitos como titulares de direitos em qualquer tempo, quanto no plano cultural, em que se devem respeitar as diferenças entre as culturas das distintas comunidades, sem deixar de lado alguns elementos que devem servir de orientação a qualquer construção interpretativa das práticas sociais, como o principio da igualdade e da fraternidade. Por fim, é salutar esclarecer que a integridade é uma virtude que se mantém dentro das comunidades políticas e não entre elas, de tal modo que qualquer opinião que tenhamos sobre o alcance das exigências de coerência contém suposições sobre o tamanho e a natureza dessas comunidades e se mantém na comunidade na qual nos encontramos.

Portanto, como nos coloca o próprio Dworkin, a integridade é um princípio político distinto da equidade e da justiça e pressupõe que entendemos e aceitamos que no interior da comunidade personificada por diversas vezes conflitos não poderão ser solucionados somente com base na equidade ou na justiça, pois serão apresentadas situações em que teremos tanto razões de justiça quanto de equidade que manterão o conflito como genuíno e será campo da integridade que, satisfatoriamente, solucionará esses conflitos, podendo até mesmo contrariar a equidade ou a justiça da maneira como as entendemos, mas garantindo que todo ato da comunidade personificada seja coerente, que não renuncie um principio que mais a frente poderá adotar, justamente porque a integridade se apresenta como o que Dworkin chama de conjunto de princípios, coerente em si mesma. Assim, ao trazer essa concepção do principio da integridade para o campo do direito, nossa percepção compreenderá a prática jurídica tanto como produto de uma interpretação abrangente quanto como sua fonte de inspiração.

A partir deste entendimento, podemos afirmar que temos dois princípios, basicamente, de integridade política: um princípio legislativo que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente; e um principio jurisdicional que demanda que a lei, tanto quanto possível, seja vista como coerente nesse sentido. A integridade, essencialmente, assume uma postura não-dogmática (DWORKIN, 2007, p.

213).

Então, o argumento em favor da integridade, se pauta por uma virtude política, mas não

uma virtude especial da política porque o Estado ou a comunidade sejam uma entidade

distinta, mas sim porque a comunidade é um agente moral distinto e as práticas sociais e

intelectuais que tratam a comunidade desta maneira devem ser protegidas. Não

esperamos defender a integridade a partir dos parâmetros comumente aceitos, pois

sabemos que às vezes a integridade entrará em conflito com aquilo que, de uma maneira

geral, recomendam a equidade e a justiça. Mesmo porque os conflitos são comuns entre

ideais políticos, já que os princípios que aceitamos podem seguir caminhos opostos,

portanto, se acreditamos que a Integridade é um ideal distinto, um terceiro ideal político,

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2070 aceitamos também que por vezes teremos que sacrificar a justiça ou a equidade em nome da integridade.

Nesta perspectiva, a partir da aceitação dos conflitos entre o que determinam os princípios, chegamos ao que Dworkin chama de “soluções conciliatórias” ou “soluções salomônicas”. A aceitação da equidade política nos faz acreditar que nenhum grupo dentro do corpo social deve exercer maior controle ou ter mais direito que os demais, no que tange às decisões políticas. Entretanto, a existência de diferentes opiniões e diferentes formas de pensar conduz a conflitos que por vezes nos colocam diante da opção de uma solução conciliatória, ou seja, uma solução a partir de acordos e negociações que permitisse a participação proporcional de todos, isto de maneira salomonica. Contudo, a integridade rejeita veementemente este tipo de conciliação, na medida em que acreditamos na necessidade de que cada ponto de vista tenha voz e seja respeitado no decorrer dos processos políticos, e a decisão deve basear-se em algum principio coerente, cuja influência se estenderá até seus limites naturais de autoridade (DWORKIN, 2007, p. 216 - 217).

As soluções conciliatórias acabam sempre por tratar pessoas diferentes de maneira diferente, mas sem nenhum principio coerente que justifique essa diferenciação.

Dworkin se opõe às soluções conciliatórias por acreditar que o Estado não pode utilizar- se de princípios que justifiquem parte de seus atos, mas rejeitá-los quando vai justificar o restante. O Estado personificado não pode carecer de coerência de principio.

Podemos tomar como exemplo a questão do aborto. Os que não compreendem o aborto como um direito de autonomia da mulher sobre o próprio corpo, mas sim como assassinato, podem aceitar que uma lei conciliatória produz mais injustiça que uma proibição cabal e menos que uma liberação total. O outro lado da questão estruturar-se- ia da mesma maneira. Contudo, o Estado enquanto ente personificado de representação social não pode compactuar com esta estrutura, mas sim deve pautar-se por um conjunto coerente de princípios capaz de justificar a postura assumida. Logo, um Estado que legaliza o aborto explicitamente assume a Integridade enquanto principio norteador, pois compreende o direito da mulher, enquanto sujeito político diferenciado, de ter autonomia sobre o próprio corpo e de autodeterminar-se. Trata-se de uma diferenciação que possui uma razão de principio para ocorrer que não reside na equidade e nem na justiça.

Como dissemos anteriormente, então, a virtude política promovida pela integridade a partir do ideal de auto-governo promove as idéias de legitimidade e obrigação política, na medida em que o papel desempenhado por cada cidadão é aprofundado no sentido de desenvolver as normas públicas de sua comunidade, pois se exige que tratem as relações entre si mesmos como se estas fossem regidas de modo característico. A integridade, portanto, promove a união da vida moral e política dos cidadãos.

Entramos, agora, na discussão acerca da justiça, pois esta virtude nos é colocada como

uma questão de resultados: uma decisão política provoca injustiça, por mais equitativos

que sejam os procedimentos que a produziram, quando nega às pessoas algum recurso,

liberdade ou oportunidade que as melhores teorias sobre a justiça lhes dão o direito de

ter. Então, há uma razão de equidade, segundo o autor, para defendermos o processo de

criação conciliatório. Há uma razão de equidade para aceitar que é preferível atenuar

danos ou ainda criar leis que busquem um meio termo nas relações sociais que

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2071 permanecer em alguma situação de injustiça. Trata-se do velho ditado do antes pouco do que nada. Mas ainda não conseguimos produzir uma razão de justiça que seja da comunidade personificada para negarmos a estratégia conciliatória, na medida em que mais individualmente conseguimos, de acordo com o autor, determinar que a conciliação acarreta mais injustiças que ganhos sociais. Então, a busca que Dworkin nos coloca é a de uma razão de justiça comum a todos para rejeitar antecipadamente a estratégia conciliatória, ainda que, em certas situações, cada um de nós preferisse a solução conciliatória àquela que será imposta se a estratégia for recusada. Não é possível, portanto, definir uma razão de justiça clara contra as decisões conciliatórias, em contrapartida possuímos razões de equidade para endossá-la.

Chegamos, então, a conclusão de que não teremos condições de explicar a hostilidade pela conciliação interna recorrendo a princípios de equidade ou justiça do modo como definimos essas virtudes. Assim, o ponto fundamental onde se percebe que a explicação mais natural de por que, quando adotamos a integridade como virtude, nos opomos às leis conciliatórias é justamente pelo ideal de Estado que não pode adotar conciliações internas, pois agiria sem a devida observância de princípios fundamentais e estruturantes da organização social. O que a integridade condena é a incoerência de principio entre os atos do Estado personificado.

E, por fim, através da integridade se justifica o uso da força coercitiva, pois com a aceitação da integridade como virtude transforma a comunidade em uma forma especial de comunidade, especial num sentido que promove sua autoridade moral para assumir e mobilizar o monopólio de força coercitiva. A integridade protege contra a parcialidade, a fraude e outras formas de corrupção oficial, por exemplo. A integridade também contribui para a eficiência do direito. Uma comunidade que aceite a integridade tem um veículo para a transformação orgânica, mesmo que este nem sempre seja totalmente eficaz, que de outra forma sem dúvida não teria.

1.3 – A INTEGRIDADE NA APLICAÇÃO DO DIREITO

Adotamos até aqui a exposição do princípio da integridade, mas em que momento exatamente ocorre o encontro da integridade com o direito?

A integridade no direito surge justamente na perspectiva de solucionar conflitos, mesmo aqueles em que a justiça ou a equidade não garantam respostas coerentes e, por diversas vezes, entrando em conflito com o que determinam estes princípios, no âmbito da atividade judiciária. Pois, um conjunto coerente de princípios sobre a equidade, a justiça e o devido processo legal adjetivo é o que deve ser aplicado a cada caso apresentado de maneira a garantir que a situação de cada pessoa seja justa e eqüitativa de acordo com as mesmas normas, mas sempre que esses princípios entrarem em conflito entre si a integridade surge como este conjunto geral capaz de solucionar os conflitos.

O direito como integridade força o juiz, pois se trata de uma concepção do direito

inflexivelmente interpretativa, a identificar direitos e deveres a partir do pressuposto que

foram elaborados pela comunidade personificada, trabalhando o direito como produto

de uma interpretação abrangente e como sua causa (DWORKIN, 2007, p. 272). Pois, a

relação estabelecida por Dworkin entre coerção oficial e um conceito de direito deve,

necessariamente, ao contrário da lógica assumida pelas escolas positivistas clássicas do

direito, ser justificada. A sanção é um objeto que deve ser justificado pelo conceito de

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2072 direito. Então, se a interpretação que a teoria de Dworkin propõe vai ao encontro do poder por parte da autoridade política, garante, então, a legitimidade para o exercício desse poder, assim a prática jurídica é tanto fonte da interpretação que justifica e garante a legitimidade, como produto final.

Os juízes que aceitam o ideal da integridade decidem os casos difíceis tentando buscando um conjunto coerente de princípios sobre os direitos e deveres das pessoas, assim, a melhor interpretação da estrutura política e da doutrina jurídica de sua comunidade. Tendo em vista que quem quer que aceite o direito como integridade deve admitir que a verdadeira história política de sua comunidade irá às vezes restringir suas convicções políticas em seu juízo interpretativo geral. Logo, interpretar no direito, a partir da perspectiva da integridade, requer, necessariamente, um delicado e profundo equilíbrio entre convicções políticas dos mais diversos tipos (DWORKIN, 2007, p.

305).

Nesta perspectiva, os juízes adeptos da integridade assumem um compromisso com a coerência e, portanto, com a história e o precedente. Para Dworkin a aceitação do precedente como elemento vinculante coloca o juiz como construtor na cadeia do direito. O que em muito contribui para o comprometimento principiológico da atividade jurisdicional, na medida em que assume uma relação com o passado e responsabilidade com o futuro. Já que as decisões passadas influenciam nas atuais, assim como as atuais influenciarão no futuro.

Para tanto, o teste de adequação e justificação, pautado na integridade, deve ser desenvolvido pelo juiz a partir de todas as hipóteses de melhor interpretação do caso apresentado, na perspectiva de testar e garantir que a decisão proferida seja a mais justa, equitativa, a melhor decisão possível. Pois, a integridade afirma que o juiz não pode confiar apenas nas suas convicções pessoais sobre justiça e equidade, porque não são morais. O juiz deve escolher entre as interpretações que sobrevivam ao teste de adequação e não há uma interpretação melhor que a outra, caso mais de uma sobreviva ao teste (DWORKIN, 2007, p. 277 - 278). As convicções sobre a adequação exigirão um limiar a que a interpretação do direito deve atender para tornar-se aceitável.

Entretanto, juízes de tradições e culturas diferentes racionalizarão esta exigência de maneira diversa, mas quem quer que aceite o direito como integridade deve admitir que a história política da comunidade vai restringir suas convicções políticas em seu juízo interpretativo geral. O julgador deve decidir entre as interpretações aceitáveis, buscando a única que apresente sua melhor luz do ponto de vista da moral política, a estrutura das instituições e decisões da comunidade, sendo que neste momento suas convicções políticas e morais estão diretamente engajadas.

Entretanto, a adequação lhe impõe uma restrição, sendo que essa restrição não é referente aos fatos ou a uma espécie de consenso interpessoal, mas uma restrição estrutural de diferentes tipos de princípios dentro de um sistema de princípios autêntico.

Desta maneira, Dworkin refuta qualquer tipo de subjetivismo exacerbado, restringindo

as convicções políticas dos juízes. Logo, o teste de adequação busca argumentos que

digam exatamente porque as partes teriam direitos e deveres legais, isto justificando o

reconhecimento daquele direito ou dever. Já que, ao contrário do que ocorre com o

Legislativo, o Judiciário necessita justificar principiologicamente suas ações, motivo

pelo qual a coerência de principio que a integridade propõe se constrói na atividade

judiciária e exige que os juízes aceitem as determinações legislativas como se

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2073 houvessem sido criadas nestes mesmos parâmetros, o que não é a realidade na maioria dos casos, em razão da supremacia legislativa (DWORKIN, 2007, p. 292). Mas a integridade determina que os mesmos princípios que norteiam a atividade de juízes e advogados devem ser enraizados na comunidade como um todo, inclusive na atividade legislativa.

Deve ficar claro para nós que um juiz que decide de acordo com a integridade o faz manifestando um desejo da comunidade personificada, logo, manifestando um conjunto coerente de princípios que regem a vida e as práticas sociais da comunidade como um todo. Isto porque a comunidade ao aceitar a integridade, como já dissemos antes, torna- se uma comunidade especial, uma comunidade de princípios. Mas como exatamente isto se manifesta? A comunidade de princípios constrói-se como um ente personificado capaz de manifestar as vontades do corpo social, enquanto grupo, expressando ações coerentes, justas e equitativas. A comunidade de princípios age sempre com integridade através das decisões dos juízes, da coerção oficial, dos atos estatais e nas relações entre seus membros. E isto requer dos cidadãos mais responsabilidade e confere mais importância ao papel social desempenhado por cada um, na medida em que as relações sociais se constroem a partir da prerrogativa dos direitos em contrapartida aos deveres que cada um assume na organização social, aumentando assim a importância da participação de cada um na construção e aplicação desse “corpo coerente de princípios”, trata-se da responsabilidade especial que a prática social atribui a cada cidadão pelo fato de pertencer a determinado grupo.

Podemos trabalhar a tradução da integridade na organização social com o principio da Fraternidade: a fraternidade entre os cidadãos e nos atos oficiais é a manifestação máxima de uma comunidade de princípios, comunidade construída como uma comunidade com coerência.

A comunidade de princípios que a integridade nos propõe se consolida na perspectiva da aceitação das “obrigações associativas”, que têm como fundamento a prática interpretativa, pois é um processo interpretativo que nos conduz a afirmar ou rejeitar essas obrigações. E para compreendê-las, o que nos conduz a um entendimento mais claro do que exige a concepção do direito como integridade, necessitamos compreender que a aceitação destas obrigações nos traz o dever de honrar nossas responsabilidades no ato das práticas sociais, na medida em que as obrigações associativas traduzem responsabilidades especiais que a prática social atribui aos cidadãos, pelo fato de pertencerem a um determinado grupo social; mas que esse dever se concretiza a partir de certas outras condições e não apenas o simples fato de estar em um grupo social.

Entretanto, a questão da escolha é entendida por Dworkin de maneira bastante complexa, pois as relações entre os indivíduos não se caracterizam como um compromisso contratual, mas na verdade se consolidam através de uma série de eventos, normalmente não percebidos racionalmente com a carga de compromisso. Nesta linha de raciocínio a reciprocidade ganha grande destaque, mas a reciprocidade que, para Dworkin, as obrigações associativas requerem é mais abstrata que fazer ao outro apenas aquilo que ele faria por nós, trata-se na realidade de aceitar uma responsabilidade que somente se concretiza a partir das idéias do outro sobre integridade e interpretação.

Assim, Dworkin nos coloca que para as responsabilidades de um grupo serem

compreendidas como verdadeiras obrigações fraternais, algumas atitudes devem ser

assumidas: primeiro, devem considerar as obrigações do grupo como especiais, dotadas

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2074 de caráter distintivo no âmbito do grupo; segundo devem admitir que essas responsabilidades são pessoais; terceiro, os membros podem ver essa responsabilidade como decorrente de uma responsabilidade mais geral, interesse de cada um pelo bem- estar dos demais membros do grupo; quarto, os membros devem pressupor que as práticas do grupo mostram não apenas interesse, mas um igual interesse por todos os membros (DWORKIN, 2007, p. 238 - 243 ).

Portanto, as responsabilidades de cada membro de uma verdadeira comunidade de princípios, com obrigações associativas fraternais, são especiais e individualizadas, traduzindo um interesse mútuo que desvela um igual interesse, sendo que as obrigações fraternais caracterizam-se como totalmente voluntárias.

1.4 – UMA OBJEÇÃO CÉTICA

Para responder a algumas objeções colocadas a aplicação do direito como integridade, é necessário que as conheçamos de uma maneira mais global.

Fundamentalmente, os parâmetros de um dos debates mais acalorados da filosofia jurídica da pós-modernidade: o embate teórico entre Ronald Dworkin e sua crítica, aqui representada pela explanação do professor Jeremy Waldron, que traz consigo uma questão elementar: a existência de um corpo legal confuso é inerente a complexificação social que presenciamos hoje. Ou seja, acreditar que somente haverá um único argumento de princípio realmente subordinante em casos difíceis seria irreal. Mas Dworkin trabalha com a noção de princípios contraditórios, portanto, que não poderiam ser agrupados sem ferir a coerência, desta maneira, o emprego do principio da integridade como elemento capaz de solucionar conflitos entre princípios responde a esta parte da crítica. Pois, não é porque nossa construção jurídica possui uma pluralidade de autores e mesmo elementos contraditórios que não poderemos construir uma teoria que resolva essas contradições e seja coerente, isto tomando como instrumento fundamental os princípios e os métodos da interpretação construtiva.

Acompanhado de diversos juristas, Waldron concentra suas críticas no constitucionalismo, defendido por Dworkin, que considera um mecanismo institucional nitidamente antidemocrático e contraditório com a coerência. Pois, trabalharia com um modelo alicerçado na primazia da constituição, que consagra um catálogo de direitos fundamentais, e no mecanismo de controle de constitucionalidade das leis (WALDRON, 2005, p. 324). E assim, aponta Waldron, o argumento dos defensores do constitucionalismo, de que este teria o valor de salvaguardar as minorias, seria falacioso, pois, a própria maioria que, em algum momento, decidiu sobre os limites de futuras decisões, deliberaria sobre o futuro das minorias. Sendo mais preocupante o fato que, diante da imprecisão lingüística e a vagueza dos conceitos, o conteúdo do que seriam limites acabaria por consistir naquilo que o órgão responsável pelo controle de constitucionalidade decidisse, também por maioria, sendo que esse órgão não seria representativo.

Para Jeremy Waldron, enquanto crítico do direito como integridade, o que chama de

legislatura consistiria em representantes da comunidade unidos para estabelecer, solene

e explicitamente, esquemas e medidas comuns, um procedimento efetivamente

democrático. A partir do qual o Poder Judiciário trataria de desenvolver direitos

preexistentes, tornando implícita a legislação do órgão. Assim, os tribunais também

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2075 tomariam suas decisões pautando-se pelas regras de maioria, caindo, portanto, na mesma arbitrariedade que as determinações do Legislativo podem assumir (WALDRON, 2005, p. 331 - 332).

Portanto, boa parte da crítica ao direito como integridade parte da idéia da falta de segurança jurídica, de comunidade personificada, em suma, do suposto universalismo de Dworkin, com base numa descrição de democracia aliada com a pretensão de buscar uma teoria do direito que esteja ligada ao ideal de auto-governo, no fundamento de sua legitimidade e na tarefa de se contrapor à visão otimista dos tribunais, que ele alega ser majoritária, a sua a posição otimista do legislativo, defendendo a legislatura como uma fonte do direito respeitável e coerente. Já Ronald Dworkin desenvolve em sua teoria uma técnica de decisão baseada no modelo do juiz Hércules, jurista de capacidade sobre-humana, e alicerçada em seus conceitos de regras e princípios e argumentos de princípio e argumentos de política. Os argumentos de princípios estariam ligados às exigências de justiça ou outros padrões de moralidade, como a equidade e a igualdade, e os argumentos de política aos objetivos a serem alcançados pela sociedade.

É salutar dizer que as duas teorias são normativas, ou seja, não se dispõem a descrever realidades, mas sim a prescrever modelos e condutas com a finalidade de aprimorar instituições já existentes e, em especial, determinar a forma para a melhor tomada de decisão, ou na linguagem adotada por Dworkin, mostrar essa realidade sob sua melhor perspectiva, sob a melhor luz. Assim, é possível destacar um ponto comum entre os autores, que foi tratado pelo próprio Jeremy Waldron, quando justificava seu interesse sobre a legislação, pois pensa que é necessário uma teoria ou um modelo de legislação que busque o que o juiz “Hércules” de Dowrkin pretende, pelo raciocínio adjudicatório.

Como já dissemos, a velha relação entre a segurança jurídica e a indeterminação surge na crítica de Waldron, isto se explica pela colocação do autor que não haveria garantia alguma, na argumentação desenvolvida por Dworkin, de que uma interpretação coerente será encontrada, menos ainda que, caso essa interpretação seja desenvolvida, seria a única capaz de solucionar o caso apresentado coerentemente para ambas as partes, não deixando jamais de lado a premissa da multiplicidade que caracteriza o direito, de acordo com o professor Waldron. Dworkin defende claramente a idéia de uma única resposta possível. Já Waldron, seguindo em vários momentos a escola de estudos jurídicos críticos, movimento filosófico de estudo do direito que se aproxima das chamadas teorias semânticas do direito, representado, neste trabalho, pelas colocações do professor Duncan Kennedy, não admite essa resposta única, coerente e pautada em princípios (WALDRON, 2006, p. 164). Dworkin não admite, como defende Duncan Kennedy, a idéia da existência sempre, na argumentação jurídica, de dois argumentos distintos, nos quais todas as situações concretas devem encaixar-se: um argumento com uma perspectiva mais social, mais altruísta, e outro com uma perspectiva mais individual e que ambos podem se encaixar nos ditames da lei, assim, o juiz deveria estar predisposto a aceitar uma coisa ou outra, não ocorrendo nenhum processo de elaboração que ultrapassasse estes dois marcos. Ao contrário, Dworkin trabalha com a noção de princípios, portanto, de uma análise hermenêutica de cada caso apresentado, mais ainda, trabalha com a idéia de princípios contraditórios, que não podem ser aceitos conjuntamente sem ferir a coerência.

A caracterização apresentada por Waldron, na esteira de Duncan Kennedy, acerca dos

princípios que justificam determinada argumentação jurídica como necessariamente

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2076 pautando ações individualistas ou altruístas, de acordo com Dworkin, encontram-se, na verdade, no estágio pré-interpretativo. Sendo assim, as críticas ao trabalho de Dworkin colocam a função atribuída ao juiz Hércules não como impossível, mas como sem sentido algum, pois a lei simplesmente não seria estruturada a partir de um conjunto coerente de princípios, isto sob a perspectiva do ceticismo interno.

A concepção que a moral em nada deveria influenciar as decisões tomadas pelo juiz, colocada por Waldron, configura-se como uma concepção cética que parte do pressuposto real de que nem todas as etapas da elaboração do material jurídico são coerentes em si, ou seja, a supremacia legislativa dá força a algumas leis que em principio são incoerentes com outras, como já dissemos. Entretanto, para Dowrkin essas contradições não são tão abrangentes a ponto de tornar a tarefa de “Hércules" nem sem sentido e nem impossível.

O trabalho da crítica de Waldron se pauta pelo que o próprio Dworkin caracteriza como parte do ceticismo interno, conceituado em sua argumentação. Este posicionamento de Waldron nos fica claro a partir de sua crença, como acreditam os céticos internos, na impossibilidade de perceber os registros históricos e jurídicos de nossa comunidade como pautados a partir de um conjunto coerente de princípios capazes de ter determinação legal e resultados relevantes. Na verdade, não acredita que possa haver algum tipo de sentimento especial entre os membros da comunidade que culmine com direitos e deveres especiais, já que não admite a idéia de comunidade personificada.

Nesta perspectiva, não haveria nada que correspondesse, na descrição de Dworkin, a uma descrição consistente de um conjunto de princípios que pressupunham que todas ou a maior parte das matérias jurídicas existentes estejam incluídas, a partir de onde poderia ser legítimo inferir respostas para as questões jurídicas que nos confrontamos.

2 – O DIREITO COMO INTEGRIDADE E O PRECEDENTE VINCULANTE 2.1 – O QUE SIGNIFICA A VINCULAÇÃO?

A relação que o direito como integridade propõe com o passado recai muitas vezes na polêmica que se estabelece entre a aceitação e a não aceitação da técnica do Stare Decisis, ou doutrina do precedente. Três são as etapas fundamentais para que compreendamos o Stare Decisis enquanto prática jurídica: conhecer, compreender e comparar (MIRANDA,2007, p. 260). Assim, o entendimento do enunciado “stare decisis non quieta movere” como “mantenha-se a decisão e não se disturbe o que foi decidido”, assume um caráter mais interpretativo, portanto, analítico e em construção constante, em conformidade com o que nos recomenda a integridade, na medida em que garante o respeito e entendimento do precedente, ou seja, da história na aplicação diária do direito, sem com isso engessar a atividade de juízes e advogados.

De maneira resumida, o direito como integridade nos afirma que os juízes decidem os

casos difíceis tentando encontrar, em algum conjunto coerente de princípios sobre os

direitos e deveres das pessoas, a melhor interpretação da estrutura política e da doutrina

jurídica de sua comunidade. Entendendo que o direito decorre sim das decisões tomadas

no passado, mas isso não limita o conteúdo legal ao conteúdo explícito das decisões

judiciais, mas sim ao sistema de princípios necessários à sua justificativa. Desta

maneira, qualquer interpretação aceitável do direito deve ser adequada e coerente.

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2077 O Stare Decisis, no sistema da Common Law, é um sistema em que uma decisão proferida pela corte de maior hierarquia de uma jurisdição será vinculante para todas as cortes de hierarquia inferior pertencentes a mesma jurisdição. Entretanto, é necessário falar no que chamamos de dimensão vertical e horizontal do Stare Decisis, sendo a dimensão horizontal a vinculação de um Tribunal ás decisões que ele mesmo proferiu e a dimensão vertical á vinculação das cortes de hierarquia inferior em relação aos precedentes das cortes hierarquicamente superiores, desde que estejam localizadas na mesma jurisdição.

Devemos levar em consideração na análise do Stare Decisis a necessária vinculação à ratio decidendi, ou seja, a vinculação dos Tribunais aos argumentos que levaram a um determinado julgado. A ratio decidendi é a razão de decidir, ou seja, quais as motivações que levaram o Tribunal a firmar determinado entendimento e quais os argumentos utilizados para fundamentar a decisão. Logo, a vinculação que o stare Decisis propõe é em relação à ratio decidendi, garantindo assim, a dinamicidade e o livre convencimento de cada juiz. Nesta mesma perspectiva, os elementos do overrruling e do distinguishing são fundamentais, pois garantem a possibilidade de superação ou de diferenciação, paralelamente ao mecanismo vinculativo. O overruling determina que um precedente pode ser superado sempre que o Tribunal compreender que a dinamicidade social se encarregou de mudar os parâmetros do caso paradigmático que levou á edição de certo entendimento, já o distinguishing determina que um precedente pode ser afastado, não utilizado, sempre que o juiz compreender que as circunstancias que envolvem o caso sub judice são diversas, em essência, das que levaram à edição do precedente vinculante. Ambos os institutos se perfazem a partir da vinculação á ratio decidendi. Mais ainda, trazem de maneira intrínseca à sua construção a percepção da coerência, da justiça, da equidade e da igualdade. Assim, a prática do Stare Decisis garante algumas das condições necessárias à um judiciário reverenciador do estado de direito e da segurança jurídica. Igualdade perante a lei, previsibilidade, economia e respeito se encontram na busca pela coesão e interpretação da lei.

A doutrina do precedente, nas palavras de Scott Hershovitz, tem como alguns de seus elementos constitutivos a prática de superar um precedente, overrruling, ou fazer uma diferenciação, distinguishing. Elementos esses que reforçam a integridade e são capazes de frear o Stare Decisis, na medida em que o comprometimento com passado e a percepção da cadeia do direito conduz o juiz a agir com coerência e sempre na busca por elaborar o melhor julgado possível, de acordo com parâmetros que já levantamos aqui, já que a jurisprudência elaborada terá papel fundamental na continuação do direito local e precisa ser coerente com as decisões já existentes, tendo maturidade para determinar quando um precedente deve ser superado (HERSHOVITZ, 2006, p. 113).

A relação que se estabelece entre o juiz e o legislador é outro ponto fundamental para

que possamos entender o sistema constitucional e a vinculação ao precedente. O juiz

deve ser entendido mesmo como um antagonista do legislador, pois a partir da

interpretação agregará sentido ao texto legislativo. Sempre buscando a compreensão do

direito como um conjunto, pois a ausência dessa compreensão impossibilita a efetivação

e ampliação de direitos fundamentais, ou seja, a compartimentalização do direito não é

aceita pela integridade (DWORKIN, 2007, p. 301). Em razão dessa complexidade a

abordagem dos direitos deve ser na perspectiva global de ampliação a partir do

trabalho em cadeia. Pois, o direito como integridade pressupõe, necessariamente, uma

atitude interpretativa e nenhuma interpretação pode ocorrer de maneira

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2078 compartimentada, portanto, nenhuma interpretação razoável pode aceitar a idéia de ramos do direito ao invés da compreensão do direito como um conjunto que deve ainda buscar sempre a coerência e a coerência de principio.

Por fim, o impacto sobre uma concepção democrática de Judiciário como um todo é basilar nesta discussão, pois possui influências tanto nas teorias acerca da constitucionalidade quanto no próprio conceito de direito. Então, a integridade no direito segue afirmando que os juízes devem aplicar a legislação por meio da interpretação, querendo com isso dizer que suas decisões devem ajustar-se à uma prática da justiça constitucional e não dogmática, sempre na perspectiva de ampliação de direitos e conectado com a realidade social. Pois, um julgamento interpretativo envolve sim a moral política e o faz de maneira complexa.

2.2 – O PRECEDENTE VINCULANTE COMO MECANISMO DE EFETIVAÇÃO DA INTEGRIDADE.

A defesa do Stare Decisis, ou doutrina do Precedente é feita satisfatoriamente por Scott Hershovitz nos termos da integridade.

A História ocupa papel central na argumentação do principio da integridade, não no sentido que comumente os críticos costumam empregar, mas sim a partir da percepção que a responsabilidade de cada juiz deve sempre ser reforçada, pois todas as decisões tomadas terão implicações futuras. Ou seja, o que foi feito no passado por um juiz terá implicações diretas na aplicação atual e futura do direito, portanto, deve sempre pautar- se pela coerência, equidade, justiça e integridade. Sem com isso confundir o respeito ao precedente com engessamento, na medida em que engajar-se com a história não significa simplesmente seguir o precedente, mas descartá-lo ou superá-lo quando for apropriado e sempre interpretá-lo (HERSHOVITZ, 2006, p. 104).

A partir do ideal do direito como integridade, as Cortes, na verdade, passam a engajar- se e considerar as decisões passadas, os precedentes, buscando sempre um propósito para a atividade interpretativa que está sendo desenvolvida, portanto, trabalhando na concretização dos valores morais e dissolução dos conflitos para garantir que a comunidade represente o melhor exemplo possível daquela determinada prática. É de extrema relevância, contudo, dizer que agir com integridade não significa agir sempre corretamente, no sentido que em alguns momentos os juizes podem cometer erros concretos, mas desde que estejam de acordo com as convicções reais acerca de qual o caminho traçado pela integridade e os princípios que essa adesão pressupõe, isto, intrinsecamente associado a agir de acordo com a moralidade, a construção de uma comunidade de princípios estará resguardada (HERSHOVITZ, 2006, p. 113).

O argumento da moralidade encontra grande espaço na defesa do precedente, tanto de

Dworkin quanto de Hershovitz. Ambos nos dizem que agir com moralidade significa

agir com integridade, isto porque a moral está associada à coerência, intrinsecamente

(HERSHOVITZ, 2006, p. 114). A integridade pressupõe um sério compromisso com a

moralidade. Assim, as mudanças de paradigma inerentes ao corpo social

necessariamente implicam na mudança de um precedente, logo, quando há uma

transformação genuína nas convicções morais da comunidade surge a necessidade de o

Judiciário agir de acordo com esse novo parâmetro moral. Posto que a integridade não

implica em seguir descontroladamente precedentes ainda que equivocados ou em

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2079 desacordo com as concepção subjetivas de cada juiz, mas sim que assumam posturas coerentes com o compromisso moral de representar a comunidade personificada. O overrruling e o distinguishing, aspectos fundamentais da doutrina do precedente, são mecanismos capazes de frear a força da prática de seguir precedentes, mais ainda, caracterizam-se como elementos democratizadores e que combatem os juízes que por ventura se utilizem do precedente para desvincular-se da obrigação de analisar e julgar coerentemente os casos apresentados.

Devemos ser capazes de perceber, finalmente, que mesmo os diferentes aspectos da abordagem do trabalho de um juiz, como as dimensões da adequação e conteúdo, são, em última análise, sensíveis a seu juízo político, como já dissemos (DWORKIN, 2007, p. 307). E em relação ao precedente, o juiz deve mostrar-se sensível a ponto de ser capaz de entender como provisórios os princípios e métodos empíricos do passado mostrando-se disposto a abandoná-los sempre que enfrentar questões difíceis, problemas novos e desafiadores, pois é isso que dele exige o direito como integridade.

Ou seja, o juiz não deve jamais se acomodar e apenas seguir as tendências já determinadas pelos juízes anteriores, mas sim se entender como mais um autor da obra jurídica que está diariamente sendo construída.

Neste aspecto, adentramos no debate da cadeia que se constrói no decorrer do exercício da atividade judiciária, visto que os Tribunais se inserem em um sistema em que é ponto central a relação que um autor, ou juiz, com o autor imediatamente anterior e com o conjunto dos julgados até então elaborados. É o que Dworkin chama de “romance em cadeia”, na verdade trabalhando a partir de uma metáfora em que cada juiz deveria se comportar como autor de um romance escrito em cadeia por vários autores, em que deve haver a criatividade da inovação, ao mesmo tempo em que há coerência com o que foi escrito antes. Visto que a história deve ser una e coerente (DWORKIN, 2007, p. 275 - 276).

Fazendo uma ressalva, devemos admitir com serenidade as limitações à aplicação imediata de todos os aspectos da integridade, fundamentalmente, compreendendo as limitações institucionais, na medida em que os modelos de estado que discutimos nas sociedades atuais têm entraves intrínsecos à consolidação da integridade.

Finalmente, classificamos como o maior desafio do direito como integridade a necessidade de combater a recusa popular em aceitar que existem sim respostas certas em casos difíceis. Ainda que devamos admitir que, em termos de princípios, o direito está longe de ter uma coerência perfeita, e a supremacia legislativa também dificulta a atividade dos juízes adeptos do direito como integridade, mas estes fatores não impedem a aplicação da concepção do direito como integridade.

3 - A JURISPRUDÊNCIA DO STF E A APLICAÇÃO JUDICIAL DO PRECEDENTE

A defesa dos Direitos Fundamentais e do Estado Democrático de Direito, a partir do que

colocamos até aqui, sob a perspectiva da integridade, ocorre com a consolidação do

Constitucionalismo e efetivação da Justiça Constitucional. Então, o estudo da

jurisprudência elaborada pelo Supremo Tribunal Federal, aqui representada pela Súmula

Vinculante, é fundamental em nosso propósito de pensar a atividade judiciária a partir

do principio da integridade.

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2080 Tomaremos, portanto, como objeto de intercâmbio com todos esses elementos levantados o mecanismo da Súmula Vinculante: as súmulas podem ser definidas como entendimentos firmados pelos Tribunais com o intuito de publicizar a compreensão do Tribunal, em relação a determinado tema de sua competência, após reiteradas decisões em um mesmo sentido. Já a Súmula Vinculante atrela a decisão de juizes de instancias inferiores ao entendimento elaborado pelo Tribunal Superior, na dimensão vertical, e o Tribunal à sua própria jurisprudência elaborada anteriormente.

As Súmulas Vinculantes foram defendidas por diversos juristas em nome da segurança jurídica e criticadas com base no princípio do acesso à justiça. A EC nº 45 as regulou acrescentando á Constituição Federal de 1988 o artigo 103-A, posteriormente regulado pela Lei 11.417/2007, garantindo ao Supremo Tribunal Federal o direito de editar, de oficio ou por provocação, súmula que após a devida publicação terá efeito vinculante em relação a todos os órgãos da Administração Publica e demais órgãos judicantes.

(RÊGO, 2007, p. 14).

O efeito vinculante que as decisões do STF no controle concentrado assumiram traz como principal argumento de defesa a busca pela harmonização da jurisprudência constitucional a partir de casos concretos, portanto, garantindo maior controle sobre o juízo de constitucionalidade do Supremo, o que em grande medida dificultava a percepção de sérias agressões aos direitos fundamentais. No entanto, ao conter a sistematização de um conjunto de decisões, o enunciado das súmulas não é suficiente para conhecer as razões que as fundamentaram, o que dificulta o exercício correto da função judicial, pois não é possível, sem analisar os critérios que presidiram as discriminações feitas pelo STF em um caso determinado, decidir se o juiz deve aplicar o precedente a casos semelhantes. Contudo, é salutar dizer que a vinculação ao precedente diz respeito à ratio decidendi, logo, não há que se falar em vinculação estrita ao enunciado específico da súmula. A publicização dos julgados e dos debates dos Ministros/as é importante nesse sentido. Entretanto, a forma como a aplicação das súmulas se processa no Brasil hoje e o papel político desempenhado pelo Supremo e pelas Súmulas, por diversas vezes dificulta essa aplicação mais coerente do mecanismo.

Devemos ter em mente que o mecanismo da Súmula Vinculante possui várias facetas, mas podemos destacar algumas que garantem sua principal justificação, quais sejam a celeridade processual e a segurança jurídica, visto que se apresenta como importante mecanismo de combate ao excessivo número de processos que lotam o Judiciário, muitas vezes ocorrendo a repetição de argumentos e sentenças. Assim a súmula garantiria a uniformização da jurisprudência e a celeridade processual. Entretanto, a problemática da grande concentração da orientação jurídica final em um único órgão de cúpula judicial, sendo que a pressão política que esse órgão enfrentará, em razão de suas atribuições, tem reflexos nas decisões proferidas implica uma possível restrição à atividade interpretativa dos juízes. Além de trazerem consigo, em geral, grande carga de conservadorismo, mesmo em razão do distanciamento da problemática social.

Logo a Súmula Vinculante é um mecanismo que suscita muito debate na doutrina

brasileira, por motivos que vão desde o fato de ser um instituto próprio do sistema da

common law até a possível “mordaça” que representa aos tribunais inferiores. Além da

ameaça que poderia representar a institutos consagrados na doutrina brasileira como a

independência judicial e o livre convencimento do juiz, além de entrave a ampliação e

efetivação dos direitos fundamentais.

(18)

2081 Contudo, o que o direito como integridade nos propõe é justamente a criação de mecanismos eficientes de interpretação, capazes de adequar a cada caso concreto a aplicação ou não de uma possível súmula. Ou seja, a súmula deve passar por um processo interpretativo que lhe atribua sentido, nos moldes da interpretação construtiva.

Com o reconhecimento de um complexo de normas capaz de apresentar soluções às situações concretas, através da aplicação de princípios e interpretação dos textos normativos, além da concepção da atividade judiciária como uma cadeia em que cada juiz é protagonista na consolidação da coerência.

A integridade nos propõe que a Súmula, como texto normativo que é, deve ser encarada sob a perspectiva da interpretação. Não há cabimento pensar na Súmula como um entendimento acabado que deve automaticamente ser seguido pelos Tribunais. O direito como integridade trabalha o mecanismo da vinculação através da interpretação, no intuito de garantir a renovação do direito através da atividade criativa e coerência de principio, na perspectiva de ampliação de direitos e garantia da segurança jurídica e da previsibilidade. Sem com isso cegar o senso crítico e as convicções políticas dos juízes, mas ao mesmo tempo impondo-lhes parâmetros de trabalho no combate ao subjetivismo exacerbado e á discricionariedade.

A partir dos elementos colocados até aqui, trabalharemos algumas das Súmulas já editadas pelo STF, no intuito de analisá-las sob a ótica da integridade. Começaremos pela Súmula Vinculante nº 5. Assim nos diz o texto sumular: “SV N° 5 – A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição.”.

Primeiramente, ninguém está impedido de constituir advogado em nenhum tipo de processo, seja judicial ou administrativo, como preceitua a Constituição Federal no art. 5°, LV. Portanto, no processo administrativo é constitucional falar em garantia da ampla defesa e do contraditório. É salutar, contudo, dizer que a garantia da ampla defesa e do contraditório nos processos administrativos disciplinares não tem o escopo garantir-lhes toda a normatividade dos processos judiciais. Mas sim assegurar que não ocorram casos de abuso de poder e sejam respeitados os direitos dos servidores vinculados ao poder público.

Fundamental é destacar que há grande variedade de posicionamentos e diversidade de

precedentes, para ao final ocorrer a edição desta Súmula. Observamos claramente que

o Supremo Tribunal Federal não se ateve a um dos requisitos fundamentais à edição da

Súmula que é a existência de reiteradas decisões no mesmo sentido, ou seja, a súmula

deveria advir para firmar o entendimento do Supremo e servir de norte a atuação dos

juízes das instancias inferiores, mas isto intimamente associado a pragmática, ou seja,

a partir da existência de diversos casos e decisões no mesmo sentido. Mais grave ainda

é o motivo que efetivamente leva à edição da súmula, qual seja combater um enunciado

em sentido contrário já existente do STJ. No caso agora em análise, a súmula n° 5,

asimples citação do problema da ausência de defesa técnica por si só não determina a

consonância dos precedentes com o texto sumular. Pois, há um verdadeiro afastamento

entre o que é debatido nos precedentes e a edição da súmula. E mesmo a vagueza com

que é publicada acaba por dificultar ainda mais quais seriam os casos em que a

presença do advogado poderia ser exigida enquanto direito constitucionalmente

garantido.

(19)

2082 De maneira análoga, na edição da Súmula nº 09, o STF tem problemas com os precedentes. Assim nos diz o enunciado da Súmula: “SV N° 9 – O disposto no artigo 127 da lei n° 7.210/1984 (lei de execução penal) foi recebido pela ordem constitucional vigente, e não se lhe aplica o limite temporal previsto no caput do artigo 58.”.

Logo, o STF entende que foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 o art. 127 da Lei de Execução Penal, em que perde o direito aos dias remidos o detento que cometer falta considerada grave. Contudo, na análise dos precedentes foi debate fundamental a questão da proporcionalidade da pena em relação ao delito penal. Ou seja, a perda do direito aos dias remidos deveria ser analisada em cada caso concreto sem preponderar sobre o principio constitucional da proporcionalidade.

Observamos um elemento basilar que funciona como entrave a aplicação desta Súmula:

a vagueza do texto. O termo “falta grave” não é conceituado pelo Supremo, mesmo porque há grande relativização na própria construção da expressão, portanto, caindo na indeterminação própria dos textos legais. É salutar destacar ainda que pouco tempo depois da edição da Súmula o próprio STF realizou um distinguishing e decidiu contrariamente ao texto sumular.

Percebemos que as Súmulas acima transcritas têm o condão de restringir direitos, ou seja, limitam o conteúdo dos direitos em questão. Neste caso, algumas observações podem ser feitas. Primeiramente, ambas ofendem, da maneira como estão postas, princípios fundamentais da Constituição Federal: a ampla defesa, o contraditório e a proporcionalidade. É salutar termos em mente que o texto normativo sempre possui uma dimensão pragmática, portanto, sempre estará associado a um fato concreto, existindo uma espécie de pré-compreensão da determinação legal, logo, ao aplicar ou editar uma súmula o texto deve ser escrito ou revisitado com muita atenção ao contexto em que foi elaborado. O atrelamento ao precedente e a relativização da obrigatoriedade de aplicação, partindo da análise de cada caso concreto, garante que as súmulas não permaneçam indo de encontro ao objetivo fundamental da instituição do mecanismo que é resguardar direitos e promover sua ampliação através dos mecanismos da interpretação.

A questão da moralidade, tratada anteriormente, é outro elemento que deve ser levantado nesta análise. Visto que, como nos dizem Hershovitz e Dworkin, agindo com moralidade, necessariamente o juiz estará vinculando suas atitudes á coerência. Mais ainda, a atenção aos deveres morais garante o combate atitudes inconseqüentes de juízes que possam vir a mecanizar sua atividade e apenas seguir precedentes, na medida em que torna a atividade judiciária atenta ás mudanças de paradigma social. Devemos falar aqui do compromisso moral de representar as vontades da comunidade personificada, portanto, a necessária existência de diversos pedidos e sentenças no mesmo sentido antes da edição de uma Súmula Vinculante. Pois assim há a segurança da edição de uma norma que, devidamente interpretada, estará de acordo com os clamores sociais diretos da comunidade e não simplesmente atendendo a pressões políticas.

E para adentrar na polêmica mais atual trazida pelo Supremo Tribunal Federal é necessário que analisemos uma das súmulas mais problemáticas na atualidade: SV nº11.

A Súmula Vinculante nº 11 trata da constitucionalidade do uso de algemas pelo réu nos

diz:

(20)

2083

“SV N°11 – Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à Integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal, do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”.

A variedade dos precedentes utilizados na edição desta súmula é enorme. O primeiro dos casos tratados como precedentes foi um RHC julgado em 1978, portanto, anterior a CF/88. E o último precedente foi julgado em agosto de 2008 em que é anulado Tribunal do Júri onde o réu permaneceu algemado.

Após a análise de todos esses variados precedentes, o Supremo declara com base no respeito à dignidade da pessoa humana e na vedação constitucional de tortura ou qualquer tipo de tratamento degradante, a utilização de algemas. Determina a excepcionalidade no uso das algemas, mas ao mesmo tempo afirma que as particularidades de cada caso devem ser observadas, mesmo no Tribunal do Júri, onde houve forte argumentação no sentido de preservar o réu da opinião leiga dos jurados que poderia ser influenciada pela utilização das algemas.

Não estamos nos opondo à necessidade de serem debatidos os direitos fundamentais dos presos, frente a crescente agressão aos direito humanos da comunidade carcerária no Brasil. Contudo, percebemos que o STF mantém sob a discricionariedade do policial a avaliação acerca da necessidade de utilização ou não das algemas, mais ainda, preocupa-se mais em demonstrar as possíveis violações a direitos fundamentais caso não ocorra o cumprimento da Súmula do que em determinar claramente os parâmetros de sua aplicação.

O Supremo não adotou uma postura de vinculação estrita aos precedentes a partir da motivação que conduziu ás decisões proferidas, para, a partir delas, editar o texto da súmula, vinculação á ratio decidendi. Mais ainda, trabalhou a redação de maneira extremamente aberta, geral, logo, dificultando a aplicação a cada caso concreto.

Aceitamos, a partir do que foi exposto na defesa do direito como integridade, a necessidade de trabalharmos sob a perspectiva da realização de ações comuns nos moldes das obrigações associativas, para uma vida em sociedade, e para tanto será imprescindível a escolha de uma forma de tomada de decisão, abrindo mão de qualquer forma de discricionariedade, na medida em que os juizes devem compreender o complexo de normas que caracteriza o ordenamento e o conjunto de direitos garantidos por ele, e não atuar como se em um ambiente de decisões discricionárias estivesse. Daí a necessidade de pensarmos a vinculação à ratio decidendi, mais ainda, da adoção do método correto na elaboração das súmulas, tornando-as mais acessíveis e claras.

A súmula n° 11 se apresenta como um enunciado generalizante que demonstra dificuldade de compreensão da argumentação jurídica de cada precedente e acaba por relativizar e generalizar sem garantir atenção às especificidades de cada caso, e ainda não efetiva medida alguma que inove realmente a atividade judiciária.

Portanto, percebemos, ao contrário dos outros dois textos analisados, uma tentativa de

ampliação de direitos, garantindo ao réu o direito de não ser tratado como se culpado

fosse. Entretanto, o Supremo deixa nas mãos da autoridade policial a discricionariedade

Referências

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