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A vontade livre na Filosofia do Direito de Hegel

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Academic year: 2021

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Free will in Hegel´s Philosophy of Right

Flávio Gabriel Capinzaiki Ottonicar

1

Resumo: Nas

Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito de Hegel, a vontade é o ponto de partida do espírito subjetivo em direção à vida ética. A vontade é universalidade na medida em que é pensamento puro, abstraída de todo e qualquer conteúdo, apenas forma do pensamento. É também particularidade, enquanto vontade de um sujeito determinado em relação a um objeto determinado, um “eu” que se determina por um “não-eu”. É, ainda, singularidade na união da universalidade da vontade pura, enquanto pensamento, e da particularidade do sujeito desejante em relação a um objeto determinado, culminando na vontade livre. Neste trabalho pretendemos expor de forma sucinta o desenvolvimento da vontade até o momento de sua objetivação na forma da vontade livre, conforme a descrição feita por Hegel na introdução das Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito.

Palavras-chave: Hegel. Filosofia do Direito. Vontade livre.

Abstract:

In Hegel´s Elements of the Philosophy of Right, free will is the starting point of subjective spirit toward ethical life. Free will is universality as well as pure thinking, without any content, just shape of thought. It is particularity as will of a determined subject in relation to determined object, an I determined by a Not-I. Moreover, free will is singularity from the union of universality of pure thinking and particularity of the I in opposition to its contrary, culminating in free will. This paper aims to expose the development of will until it becomes objective in way of free will, as it is described by Hegel in the introduction of his work Elements of the Philosophy of Right.

Keywords: Hegel. Philosophy of Right. Free will.

* * *

1. Introdução

Hegel é reconhecidamente um dos maiores expoentes da filosofia do século XIX. Sua produção filosófica, entretanto, ultrapassa seu próprio tempo, projetando seu nome na relação dos pensadores mais lidos da história da filosofia.

Nas Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, obra publicada em 1821, Hegel trata da realização da vontade livre no interior do Estado moderno. Para Hegel, as

1 Graduado em filosofia pela Universidade Estadual Paulista – Unesp, Campus de Marília. Orientador:

Ricardo Monteagudo. E-mail: fottonicar@gmail.com

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instituições históricas representam a realização da vontade, que é livre, por isso o direito é resultado da liberdade da vontade.

Já na introdução da obra, Hegel indica a vontade livre como objeto da ciência do direito. A vontade livre se realiza nas estruturas históricas e se efetiva no mundo, nas suas instituições e normas morais. A ideia do direito se apresenta, dessa forma, como a racionalidade realizada. Se, como afirma Hegel, a vontade é livre e o sistema do direito é precisamente a efetivação da liberdade, então as instituições políticas constituem o domínio da liberdade efetivada. Assim o objeto da filosofia do direito não será outro senão examinar o direito como a esfera da liberdade realizada.

A vontade se objetiva de acordo com o desenvolvimento de momentos, pelos quais se torna plenamente livre na objetividade. Há, portanto, diferentes momentos pelos quais a vontade se efetiva. Através da confluência desses momentos será possível à vontade realizar sua liberdade no mundo. O primeiro desses momentos é marcado pela universalidade da vontade em si, enquanto autorreferente. No âmbito da autodeterminação, a vontade se apresenta como puro querer, o querer que é apenas em si, não se inclinado a nenhum elemento específico. Por isso mesmo trata-se do momento da vontade marcado pela universalidade e pela autoreferencialidade. No segundo momento há o trânsito da vontade para um objeto particular, que traz à tona a vontade particularizada e determinada pelo particular ao qual se inclina. Quando a vontade traz para si um objeto determinado, ela deixa de se manifestar como puro querer e passa a se manifestar como o querer algo específico, determinado e particular. A particularidade do objeto da vontade a torna particular também, já não se trata mais do puro querer mas do querer um outro. Por fim, no terceiro momento, emerge a vontade singular marcada pela síntese da contradição entre o puro querer e o querer algo que marcam os dois primeiros momentos.

Procurar-se-á, no presente trabalho, expor de forma sintética o desenvolvimento da vontade livre na introdução da obra Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, de Hegel, e analisar a maneira pela qual se dá o revelar-se dessa mesma vontade livre enquanto elemento fundamental a partir do qual se desenvolve o direito.

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Volume 9, 2016.

2. Vontade livre e Filosofia do Direito

O conceito de vontade livre é determinante na teoria do direito de Hegel.

Segundo Hegel, para além do mero conjunto de leis positivas, o objeto do direito é a vontade livre:

O terreno do direito é, em geral, o espiritual e seu lugar e ponto de partida mais precisos são a vontade, que é livre, de modo que a liberdade constitui sua substância e sua determinação e que o sistema do direito é o reino da liberdade efetivada, o mundo do espírito produzido a partir dele mesmo, enquanto uma segunda natureza.

(HEGEL, 2010, §4, p.56)

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.

A vontade livre, enquanto “ponto de partida” do direito, é tratada por Hegel no âmbito do jogo dialético característico de seu sistema filosófico. A ideia de vontade ganha forma a partir da confluência tríplice dos seus momentos constitutivos, como um corpo dividido em três partes: a universalidade, a particularidade e, por fim, a singularidade que, sem excluir as duas anteriores, as supera constituindo a liberdade objetiva.

A vontade contém: α) O elemento da pura indeterminidade ou da pura reflexão do eu dentro de si, no qual estão dissolvidos toda delimitação, todo conteúdo dado e determinado, imediatamente ali presente pela natureza, pelos carecimentos, pelos desejos e pelos impulsos, ou então seja pelo que for; [ela contém] a infinitude indelimitada da abstração absoluta, ou da universalidade; o puro pensar de seu si mesmo.

(HEGEL, 2010, § 5; p.57)

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.

No primeiro momento a vontade se caracteriza como o eu abstraído de toda determinação, referido a si mesmo. O pensamento puro, a forma da vontade abstraída de todo e qualquer conteúdo específico. Neste momento a vontade é universal na medida em que não se pode identificar nela nenhum sujeito desejante, pois, ao esvaziar o pensamento de todo o conteúdo determinado, o sujeito determinado se esvai também, tornando-se indeterminado. Só se pode considerar o sujeito pelo seu objeto, não havendo objeto, não há, igualmente, sujeito e, não havendo objeto desejado, não há sujeito desejante. Neste sentido, trata-se de uma vontade meramente reflexiva, voltada para si mesma. Como sob este aspecto a vontade é sem conteúdo algum, afirma-se que

2 Utilizamos neste trabalho a edição brasileira das Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito (Trad.

Paulo Meneses et al. São Leopoldo: Unisinos, 2010).

3 No presente trabalho todos os colchetes nas citações são da edição brasileira.

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ela é abstrata, vazia e puramente negativa, sendo, contudo, livre, porque tem a si própria como referência e move-se em direção a si mesma. A caracterização da vontade, neste momento inicial, corresponde à autoafirmação do eu independentemente de limitações impostas por elementos particulares.

Considerada no âmbito da universalidade, tem-se a manifestação absoluta da vontade relacionando-se apenas consigo mesma. Isolada na sua interioridade, a vontade se apresenta como destituída de qualquer conteúdo e sua indeterminidade é garantida pelo “puro pensamento de si mesmo”, o pensamento vazio que não se inclina a qualquer objeto externo.

Ao se inclinar, entretanto, para um objeto exterior determinado, a vontade passa a ser determinada por ele. Antes marcada pela universalidade, a vontade agora se revela particularizada, projetada num outro particular exterior. Por isso o segundo momento da vontade é marcado pela particularidade. Trata-se da vontade em relação a um objeto determinado:

O eu é igualmente a passagem da indeterminidade desprovida de diferença à diferenciação, ao determinar e ao pôr de uma determinidade enquanto conteúdo e objeto. –Esse conteúdo pode tanto ser dado pela natureza ou ser produzido a partir do conceito do espírito. Mediante esse pôr de seu si mesmo enquanto um determinado, o eu entra no ser-aí em geral; – [é] o momento absoluto da finitude ou da particularização do eu (HEGEL, 2010, § 6; p. 58).

Neste estágio, tem-se a vontade caracterizada pelo seu caráter particular, que coloca para si um objeto determinado e torna-se, assim, uma vontade determinada.

Dessa maneira, pela afirmação de si mesmo como determinado, o eu transpõe-se no ser- aí, o que marca momento da finitude ou a particularização do eu. A vontade agora não apenas quer, mas quer algo, esse algo, sendo específico e restrito, especifica e restringe a vontade que o deseja.

A vontade particularizada coloca a si mesma uma determinação introduzindo algo exterior no interior da sua própria autoafirmação. O elemento externo encerra em si mesmo o elemento da objetividade, assim, a vontade, pelo momento da particularidade, se põe frente ao mundo objetivo. Quando particularizada, a vontade que agora é determinada, além de se autorreferenciar e autodeterminar, também se projeta na existência empírica. Esse é o momento no qual a vontade se objetiva.

Para Hegel, portanto, a vontade livre não se estabelece pela exclusão do outro,

mas, de outra maneira, se estabelece pela inclusão do particular e delimitado que

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Volume 9, 2016.

particulariza e delimita, tornando a vontade finita. A liberdade da vontade, em Hegel, se fundamenta no “estar com outro”, em vez do estar consigo mesma no âmbito da universalidade da pura volição indeterminada.

Ainda não é neste momento que surge completamente o indivíduo. Embora ele já comece a se delinear na sua relação com a coisa, o indivíduo apenas aparece totalmente, na forma de consciência de si, frente a outro indivíduo, pois a determinação do eu se dá a partir de um estado que é a negação do eu (cf. HEGEL, 2010, §7, p. 59). A consciência de si tem, portanto, um significado que implica em autorreconhecimento diante do outro, do não eu, trata-se, portanto, de um conceito relacional. Assim, para Hegel, a individualidade se determina pelo indeterminado: “O eu determina-se na medida em que é vinculação da negatividade consigo mesma; enquanto é essa vinculação consigo, ele é também indiferente em relação a essa determinidade”

(HEGEL, 2010, §7; p.60).

Se compreendemos um conceito a partir de seu contrário, assim também podemos compreender a liberdade pela determinidade da própria vontade. A liberdade só é liberdade na própria determinidade do querer. A liberdade se concretiza no mundo objetivo, na sua relação com o todo. Assim, a vontade livre concretiza sua liberdade no âmbito do espírito objetivo.

A liberdade em Hegel não se confunde com a espontaneidade da manifestação imediata dos sentimentos. Esta espontaneidade presumivelmente entraria em choque com as leis positivas, que configurariam a coerção do Estado contra a vontade livre.

Antes, porém, Hegel concebe a liberdade como institucionalizada no interior do Estado:

Quando ao direito positivo e às leis são opostos o sentimento do coração, a inclinação e o arbítrio, assim ao menos não pode ser a filosofia que reconhece tais autoridades. – Que a violência e a tirania possam ser um elemento do direito positivo, isso é contingente e não concerne a sua natureza (HEGEL, 2010, §3, nota; p.49-50).

Chama atenção a posição contrária à tradição jusnaturalista moderna segundo a

qual os homens seriam livres no estado de natureza. Hegel diferencia aquilo que o

homem é segundo o seu conceito, e aquilo que o homem é segundo a sua natureza. Em

havendo um estado de natureza, nele o homem não seria homem segundo seu conceito,

mas viveria sob o império dos instintos e dos apetites naturais. Este homem instintivo

não é livre, pois obedece passivamente aos seus instintos e é completamente subjugado

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pela condição natural. Portanto só se pode falar em liberdade quando o homem nega sua condição natural para tornar-se histórico:

O homem é, segundo a existência imediata, em si mesmo algo natural, externo ao seu conceito; é apenas pela formação de seu corpo e de seu espírito próprios, essencialmente pelo fato de que sua autoconsciência se apreende como livre, que ele toma posse de si e se torna propriedade de si mesmo e em relação aos outros (HEGEL, 2010, §57, p. 93).

Enquanto ser natural o homem é marcado pela exterioridade, que se manifesta na condição de imediatidade. A exterioridade propicia a luta pelo reconhecimento na relação de servidão. Essa relação de submissão e de domínio de um homem pelo outro, seja pelo senhor e o escravo, seja o soberano e seu súdito, é característica da exterioridade do estado de natureza. Se os homens permanecessem arraigados no estado de natureza permaneceriam sujeitos ao domínio coercitivo e violento próprio da imediatidade da natureza. Se, no entanto, tomam conhecimento da própria liberdade pelo cultivo do espírito, passam a se reconhecer como livres a partir do pressuposto comum da liberdade nas relações que implicam em recíproco reconhecimento:

O ponto de vista da vontade livre, com a qual começam o direito e a ciência do direito, situa-se já além do ponto de vista não-verdadeiro, segundo o qual o homem enquanto ser natural e enquanto conceito somente sendo em si é, por isso, suscetível de escravidão. Esse fenômeno anterior, não-verdadeiro, concerne ao espírito, que está, antes de tudo, apenas no ponto de vista de sua consciência; a dialética do conceito e da consciência ainda apenas imediata da liberdade provoca aí a luta pelo reconhecimento e a relação do senhorio e da servidão (HEGEL, 2010, § 57, nota, p. 94).

As teorias modernas do direito natural impossibilitam que se atinja uma

totalidade orgânica que seja capaz de sustentar relações de necessidade internas dessa

totalidade. Por isso a hipótese do estado de natureza não pode fundamentar o estado

civil, pois trata-se de mera exteriorização imediata. O Estado não pode estar fundado

sobre o arbítrio dos indivíduos em estado de natureza, não pode ser apenas o resultado

de determinações particulares. Pois só quando o homem se liberta do domínio do

impulso instintivo que o subjuga na natureza é que ele e passa a se reconhecer livre em

relação a outros indivíduos livres. Esta liberdade se estabelece no estado civil, ou seja,

ao tomar consciência de si o homem já abandona o estado de natureza. Na natureza não

é possível a autodeterminação livre e autorreferencial do em si e do para si, assim, no

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estado de natureza, a vontade está completamente sujeita às determinações exteriores, às leis da necessidade e do acaso.

Se a vontade supera o puro querer, abstrato e indeterminado, transitando para o querer algo, particular e determinado, ao inclinar-se para um objeto, a vontade deixa de estar junto de si para se ultrapassar em um outro, deixando para trás a universalidade do sujeito que está consigo mesmo

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. Em razão deste aspecto contraditório surge, como síntese, o terceiro momento da vontade, a singularidade:

γ) A vontade é a unidade desses dois momentos; – a particularidade refletida dentro de si e por isso reconduzida à universalidade – singularidade; a autodeterminação do eu em pôr-se em um como o negativo de si mesmo, a saber, como determinado, delimitado, e permanecer junto a si, ou seja, em sua identidade consigo e sua universalidade e na determinação de não fundir-se senão consigo mesmo. – O eu determina-se na medida em que é vinculação da negatividade consigo mesma; enquanto é essa vinculação consigo, ele é também indiferente em relação a essa determinidade [;] ele a sabe como sua e da ideia, como uma mera possibilidade pela qual não está ligado, porém nela ele apenas é, porque nela se põe (HEGEL, 2010,

§7, p. 59-60).

Para relacionar os aspectos contraditórios da vontade, Hegel enredará argumentos que partem da ideia de vontade que é livre em si em direção à ideia que é livre em si e para si. Neste sentido, ele analisa a ideia da vontade sob o aspecto de um certo grau de determinidade, segundo o qual a vontade pode ser natural, arbitrária (Willkur) e autodeterminada.

Segundo sua determinidade, a vontade é natural quando se restringe aos instintos mais elementares; aos desejos e inclinações mais naturais. Nela o indivíduo se percebe como tal, mas não percebe seus desejos como produto do seu discernimento, assim:

O sistema desse conteúdo, tal como se encontra já imediatamente na vontade, é somente uma multidão e uma variedade de impulsos, cada um dos quais é o meu, de maneira geral, ao lado de outros, e ao mesmo tempo é algo universal e indeterminado, que tem toda a espécie de objetos e de modos de satisfação (HEGEL, 2010, §12, p.

63).

O sujeito ainda não é capaz de determinar seus desejos e a maneira pela qual cada um deles será satisfeito. No momento em que essa mesma vontade instintiva

4 Para uma discussão mais detalhada sobre a passagem da particularidade para a singularidade da vontade, conferir Rosenfield (1995, p. 33-68).

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evoluir para o arbítrio, o sujeito passará a ser capaz de determinar quais desejos e de que modo serão satisfeitos.

O arbítrio (Willkur) é a vontade que se tornou capaz de decidir, e, justamente por isso, é, agora, vontade de um sujeito desejante e determinado que arbitra, ou escolhe. A forma da vontade é, portanto, determinada pelo arbítrio de quem toma a decisão.

Contudo, o conteúdo da vontade ainda é dado pela natureza, permanecendo, exterior ao sujeito. O conteúdo da vontade, embora seja vontade do sujeito, não é fruto da livre escolha do espírito subjetivo, mas é determinado por um elemento que se encontra fora dele, o conteúdo da vontade está nele mas é imposto por algo que não ele mesmo (cf.

HEGEL, 2010, § 13, p. 63). Assim, Hegel afirma que o arbítrio é livre em si, mas não o é para si: “O arbítrio, em vez de ser a vontade em sua verdade, é antes a vontade enquanto contradição” (HEGEL, 2010, §15, nota, p. 65).

A vontade que é apenas livre em si mesma é o arbítrio, pelo qual se decide como e quando seus desejos serão satisfeitos. Trata-se da vontade não livre porque seu conteúdo volitivo está sujeito a um elemento externo que se impõe de tal forma a não dar espaço para o discernimento. O sujeito torna-se autoconsciente na medida em que deseja algo. O desejo leva-o a inclinar-se ao mundo externo e, assim, começa a reconhecer-se a si mesmo enquanto indivíduo. Este processo cria o sujeito para si, o sujeito capaz de reconhecer-se enquanto tal. A vontade livre é consequência desse processo de conscientização de si mesmo enquanto indivíduo diante outros.

Enquanto o arbítrio se resume na vontade que, embora possua forma determinada, não possui um conteúdo determinado arbitrariamente, a vontade autodeterminada é aquela capaz de decidir entre os conteúdos para os quais se inclina:

Na exigência da purificação dos impulsos reside a representação universal de que eles sejam libertados da forma de sua determinidade natural imediata e do que seu conteúdo tem de subjetivo e de contingente e seriam reconduzidos à sua essência substancial. O que essa exigência indeterminada tem de verdadeiro é que os impulsos sejam o sistema racional da determinação da vontade; apreendê-los assim a partir do conceito, tal é o conteúdo da ciência do direito (HEGEL, 2010, §19; p. 66-67).

Os desejos são ordenados pelo arbítrio. Assim, é o eu desejante que se torna

capaz de ordenar seus próprios instintos determinando sua forma e conteúdo. Para

Hegel, os desejos devem ser ordenados ou classificados pelo arbítrio. A purificação dos

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instintos – que se dá pela ordenação e classificação dos mesmos – é possível pela capacidade da vontade autoconsciente de abstrair de seus desejos integrando a forma e o conteúdo do arbítrio para se tornar, dessa maneira, uma vontade autodeterminada:

[...] e como o impulso é somente uma simples orientação de sua determinidade e como, por isso, não tem sua medida dentro de si mesma, assim essa determinação da subordinação ou do sacrifício é o decidir contingente do arbítrio, que procede a tal propósito com ajuda de um entendimento que calcula em qual impulso há mais satisfação a ganhar ou que procede segundo qualquer outra consideração (HEGEL, 2010, § 17, p. 66).

A caracterização da liberdade como vontade livre é mais facilmente compreendida levando-se em conta o arbítrio, que é livre porque decide e escolhe sobre quais desejos serão satisfeitos e seu modo de satisfação. Entretanto, seu conteúdo volitivo é determinado por circunstâncias externas arbitrariamente e sem qualquer critério. Por outro lado, o espírito autoconsciente é aquele que encerra a vontade livre em si e para si sob regras morais e manifestações institucionais desenvolvidas ao longo de um processo histórico. As instituições históricas surgem como a realização da liberdade da vontade que se autodetermina.

A vontade livre, autodeterminada, se efetiva sob as normas morais e sob as instituições criadas historicamente. Na medida em que se afasta do arbítrio do desejo e domina seus instintos, o espírito subjetivo torna-se portador de uma vontade livre, capaz de se realizar objetivamente. O estabelecimento de instituições éticas e sociais é resultado desse processo de dominação do arbítrio do desejo. Na medida em que o desejo se afasta da esfera instintiva, o conteúdo da vontade vai se tornando produto do querer consciente. É o próprio conceito de liberdade realizado.

A singularidade, momento derradeiro da vontade, que a projeta para a

efetividade, representa a união da universalidade e da particularidade, que são superadas

formando a vontade autoconsciente em si e para si. Assim, o sujeito desejante supera o

arbítrio e assume o controle dos próprios impulsos que são ordenados e medidos dentro

de parâmetros éticos e históricos. O reino do direito emana desse último momento

constitutivo da vontade: a vontade em si e para si, autodeterminada, autoconsciente, que

se sujeita e que quer se sujeitar à eticidade e ao direito.

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3. Considerações finais

O desenvolvimento da vontade, de acordo com o que Hegel propõe na introdução das Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, dá-se através de três momentos distintos mediante os quais é possível identificar o nível de objetivação da liberdade da vontade.

Se a universalidade vazia do primeiro momento da vontade é negada pela particularidade determinada, a conseguinte autorreferencialidade da subjetividade particular não cumpre a exigência conceitual de estar junto de si mesmo. A determinação da vontade na particularidade não é capaz de realizar de maneira plena a universalidade do primeiro momento, para o qual a liberdade subjetiva deveria estar voltada, já que ela ainda se encontra dependente de um outro.

A particularidade revela-se como apenas um aspecto do sujeito que se perfaz no outro e, assim, é o contrário do que deve ser a universalidade do sujeito. Desta forma, em seu segundo momento a vontade deixa de estar junto de si para projetar-se em um outro, a liberdade subjetiva não permanece consigo mesma pois se transporta em seu oposto num movimento reflexionante no qual a vontade passa a ter a necessidade de retornar para si.

A singularidade do terceiro momento da vontade recoloca a universalidade do primeiro momento sem, contudo, abrir mão da particularidade que caracterizou o segundo. Este é o resultado do processo de realização efetiva da vontade livre, que primeiro se apresenta como vontade indeterminada, depois passa a ser a sua própria negação, ou seja, passa ela mesma a ser segundo o outro definido na determinação do seu contrário, até que, finalmente, efetiva a realidade do estar junto de si no seu outro, segundo seu desenvolvimento dialético.

O percurso traçado pela vontade através de cada um de seus momentos

constitutivos até sua objetivação é decisivo na construção argumentativa proposta por

Hegel nas Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito. Da noção de vontade livre se

desdobrará toda a teoria do direito expressa na referida obra. O direito se revela como o

ser-aí da vontade livre efetivada e a partir dessa mesma vontade livre tornada objetiva

constituem-se as estruturas históricas; o mundo do espírito produzido pelo próprio

espírito como uma segunda natureza. A vontade livre em si e para si subjuga os

impulsos do arbítrio projetando-se na existência objetiva.

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Referências

HEGEL, G.W.F. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou direito natural e ciência do Estado em compêndio. Trad. Paulo Meneses et al. São Leopoldo: Unisinos, 2010.

______. Elements of the Philosophy of Right. Trans. by H. B. Bisnet. Cambridge:

Cambridge University Press, 1991.

ROSENFIELD, D, L. Política e Liberdade em Hegel. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1995.

Referências

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