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ENTRE UMA PISCADA E UMA PISCADELA: O SIGNIFICADO DE UM OLHAR NO CONTEXTO FEMININO SATERÉ-MAWÉ

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ENTRE UMA PISCADA E UMA PISCADELA: O SIGNIFICADO DE UM OLHAR NO CONTEXTO FEMININO SATERÉ-MAWÉ

Solange Pereira do Nascimento1 Resumo: Entre uma piscada e uma piscadela: o significado de um olhar no contexto feminino Sateré-Mawé nasceu de um contexto peculiar em campo que segue como orientação metodológica os estudos de gênero e da fenomenologia onde a voz e a atitude dos sujeitos foram de suma importância para entendermos o contexto cultural e as relações de gênero que estão presentes na vida dessas pessoas. O objetivo é refletir sobre o significado do olhar quando estamos diante de um universo significativo culturalmente que são os povos indígenas da Amazônia Brasileira, principalmente no contexto feminino.

Palavras-Chave: Gênero. Mulher Sateré-Mawé. Olhar. Fenomenologia. Amazônia.

Localização do Estudo

Estamos a mais de 500 quilômetros de distância entre a capital do Estado do Amazonas e o município de Maués, mais exatamente na Comunidade Santa Maria no rio Urupadi. A viagem é de uma beleza sem igual. A água do rio reflete com nitidez a copa das árvores em seu leito e por uma imprecisão dos sentidos, a sensação é a de voarmos por sobre a mata, pois, pela velocidade do motor a imagem do verde da floresta refletida nas águas, torna-se única. A voadeira como o próprio nome revela, vai abrindo o caminho cortando as águas e o silêncio tranquilo de um lugar guardado no coração do verde amazônico aos poucos vai revelando o espaço social dentro da Terra Indígena Sateré-Mawé. Entre uma curva e outra, avistamos araras, papagaios, macacos, garças e uma diversidade enorme de fauna e flora. Os pássaros encantam toda a viagem entre gorjeios, tão afinados que poderíamos comparar a uma sinfonia.

A vida flui suavemente pelos rios da Amazônia e de vez em quando somos seguidos por botos que pulam e brincam ao lado do barco ou à frente fazendo verdadeiros malabarismos, nos encantando o olhar.

A viagem se torna dessa forma um verdadeiro passeio onde os pulmões podem de fato sentir e absorver o mais puro ar da floresta. Depois de praticamente três horas, a viagem vai chegando ao fim e de longe avistamos a comunidade que está localizada acima de um barranco de aproximadamente uns 10 metros de altura. Lá nós fomos acolhidos afetuosamente por um povo generoso e alegre que nos faz sentir em casa.

1 Mestra em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia/UFAM. Professora da Universidade do Estado do Amazonas.

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A cada chegada, nos dirigimos para o barracão central que é o espaço reservado para acolher a comunidade e os visitantes. O lugar por excelência das discussões, dos atos públicos da comunidade e também das celebrações como diz Nascimento (2010). A cuia de sakpó posta sobre um estrado de madeira nos convida a comungar da vida desse povo nos dias que juntos passaremos.

A cada ida temos um objetivo específico e dessa vez a nossa tarefa foi o de aplicar o formulário de campo – um questionário denso. Queremos ouvir especificamente as mulheres da comunidade, afinal o nosso objetivo maior é entender a forma como se dá as relações de gênero entre homens e mulheres no universo indígena Sateré-Mawé mais especificamente.

A princípio poderíamos perguntar se é possível falar em gênero dentro desse universo tão culturalmente peculiar, já que o conceito de gênero remete para uma construção social de relações dadas ao longo do processo histórico. Ora, esse conceito alcançaria esse universo cultural de tradição de dezenas de séculos e de cunho organizativo falocêntrico? Poderíamos afirmar ou não se é possível perceber elementos na fala, na organização social desses sujeitos, nos olhares, no modo de fazer e de ser uns perante os outros que seja possível encontrar o fio condutor de discussão que nos leve a pensar sobre essa dimensão humana sem preconceitos ou sexismo? Esses termos são de fato apropriados para entender essa realidade tão própria? Essas são algumas das indagações que nos propomos expor ainda que firmados na insustentável leveza do ser2 de nossas construções intelectuais. Apenas um olhar.

Uma etnografia do olhar

Sempre ouvimos dizer que os olhos humanos são a janela da alma e que por esse motivo conseguem de uma forma ou de outra expressar o que sentimos. Ou seja, numa breve metáfora, podemos dizer que “os olhos falam”. E é nesse sentido que falamos sobre uma etnografia do olhar a partir da perspectiva do diálogo vivenciado no trabalho de campo que antes de ser uma conversa entre pessoas, ocorre primeiro com a natureza - esse espaço aberto que nos circunda. O silêncio do rio, a cantiga dos pássaros, a distância da cidade que se torna sem percebemos o caminho preparatório que se faz necessário para nos ensinar a silenciar. “Open your eyes” é um convite a abrir não somente os olhos, mas, todos os sentidos de maneira natural para permitir a manifestação do outro e com ele ser capaz de dialogar numa abertura que não seja conduzida, dada, forjada, manipulada, mas simples, natural, no tempo de sua vontade.

2 A Insustentável Leveza do Ser (em checo Nesnesitelná lehkost bytí) é um livro publicado em 1984 por Milan Kundera. O romance se passa na cidade de Praga em 1968. Foi adaptado para o cinema pelo diretor Philip Kaufman sob o nome de The Unbearable Lightness of Being.

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Quantos diálogos não são travados apenas pelo olhar? O que dizer então dos amantes que se deleitam no olhar e sintetizam o que foi dito num abraço, como num desejo sublime de transmitir tudo o que foi sentido e dito por outros sentidos que não fosse preciso usar a fala. A boca, como o espaço da pronúncia, da verbalização do pensamento e por ser única pode às vezes ser egoísta e expressar apenas a vontade de quem fala num rompante descabido pela falácia do principiante angustiado e ávido de conhecimento.

Neste sentido, penso que a imagem do “homem pensante” tem a nos ensinar na relação com o outro principalmente quando estamos envolvidos pela pesquisa. A primeira atitude de quem dialoga deve ser o da escuta, da atenção, saber perceber o outro e penetrar no seu universo para que de fato aconteça o fim último da dialogia que é a compreensão e o respeito por aqueles com os quais nos relacionamos. O campo é, portanto, a experiência mais profunda e rica que Heidegger (1978) chama de aletheia. “A aparência dissimula o ente e o faz aparecer tal como ele propriamente não é. A Aparência, além disto, encobre-se a si mesma, como aparência, posto que se mostra como Ser. Acrescenta Heidegger que por dissimular essencialmente a si mesma, ao encobrir e dissimular o ente, que dizemos com razão: as aparências enganam”. Assim, a aletheia é a verdade, é dizer sobre o que de fato está na realidade manifesta, em oposição ao que está oculto, não manifesto e no engano; o verdadeiro é o evidente ou plenamente visível para a razão.

Rubem Alves (2011) in variações sobre o prazer diz que para se alcançar a sabedoria é preciso esquecer, portanto, o oposto do que entendemos por ciência (o acúmulo de conhecimentos, métodos, informações, técnicas) que nos impede de esquecer. O esquecimento então estaria relacionado com a experiência da contemplação, todavia, contemplar não é em silêncio fazer elucubrações sobre algo a ser pensado, mas, é tão somente sentir o prazer das sensações sejam elas frutos do corpo (sentidos), sejam da alma (espiritual) e gozar.

Entre uma piscada e uma piscadela como metaforiza Geertz (1989). Eu na minha atitude de pesquisadora, ali sentada com um questionário de sete páginas nas mãos e com uma caneta a postos para registrar a resposta tão esperada da pergunta feita sobre as relações entre homens e mulheres.

Feliz porque percebi que minha entrevistada sabia falar minha língua (português) e me pareceu que naquele momento a figura de um homem que estava sendo intérprete já não se fazia mais necessária naquele momento porque eu agora iria travar um diálogo aberto com aquela jovem senhora e dela conseguiria todas as informações necessárias para minha pesquisa. Ledo engano, a resposta teve seu início não, porém, o fim dito em minha língua, porque interrompida pela piscada do intérprete. Ora de português para o Sateré-Mawé e eu ali no meio de um diálogo de olhares súbitos, me restando

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apenas à possibilidade de guardar aquela informação do olhar sem entender nenhuma palavra do que fora pronunciado para que de palavra passasse a olhar e de olhar em silêncio. Como traduzir o implícito e o explicito e também o simbólico?

Deveria eu ficar chateada por aquela cena rápida de uma piscadela inusitada? O que ele me deu como resposta era de fato a fala da jovem senhora ou a fala de um outro eu (no caso ele mesmo) preocupado com o que ela teria dito e como seria interpretado por mim. O que mais foi significativo naquele momento? A pergunta feita a partir do meu desejo de resposta objetiva ou o que pude captar naquela rápida piscadela que não saiu de minha mente até este exato momento que partilho com você? Sinceramente foi o olhar e a resposta eu provavelmente nunca irei saber na sua totalidade.

Daquele olhar eu tirei muitas lições como pesquisadora e uma delas foi que nosso olhar deve ser [... nítido como um girassol] como diz Alberto Caieiro ou ainda um olhar atento porque como diz Maturana (1997)3 "un ser humano, una persona; alguien que puede hacer distinciones y especificar lo que distingue como una entidad (un algo) diferente de sí mismo, y puede hacerlo con sus propias acciones y pensamientos recursivamente, siendo capaz siempre de operar como alguien externo (distinto) de las circunstancias en las que se encuentra él mismo". É isto que depende de mim neste exato momento em que a ciência é o único caminho com seus métodos e técnicas para extrair dos sujeitos a verdade?

Provavelmente me resta amadurecer as inúmeras perguntas sobre a linguagem do olhar travada entre o intérprete e a jovem senhora. O que eu não poderia saber? Ou será que o que eu estava querendo saber talvez não fosse invasivo demais, ou melhor, não fizesse parte do seu ethos?

Analisaremos a questão aqui exposta sob a ótica do conceito de gênero.

Bem, se no mundo ocidental onde as relações de gênero como pensamos são construídas a partir de um referencial histórico de dominação do homem sobre a mulher Bourdieu (2009) e se essas relações perpassam pelo poder de um indivíduo de sexo oposto sobre o outro como diz Foucault (2011) como então saber se o conceito de gênero responde a esta particularidade cultural do mundo indígena onde as relações entre homens e mulheres se definem diferentemente do que conhecemos em relação à cultura branca? Koch-Grünberg (2004, p. 563) assim relata sobre as relações entre homens e mulheres no mundo indígena no alto rio negro.

Aqui eu conheci a vida rica da alma, com a qual se distingue a mulher indígena. Ela não é apenas um animal de carga, embotado, como muitos observadores superficiais a apresentam. Enquanto o homem dedica mais as suas forças ao bem da comunidade, a vida

3 MATURANA, Humberto. La Realidad: ¿Objetiva o construida? Vol. II - Fundamentos biológicos del conocimiento.

México: Universidad Iberoamericana/Iteso, 1997, p. 228-229.

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da mulher realiza-se no circulo estreito da família. Com os deveres principais na família, ela assume também os direitos principais. Sua vida é rica de penas e de trabalhos, mas exatamente por meio disto é que ela encontra a ocasião de desenvolver as suas capacidades e levar ao pleno desabrochar as suas qualidades da alma. Sua grande inteligência está agradavelmente unida com uma pura bondade, que ela emprega não apenas para com os membros da sua família e da sua tribo, mas, mesmo para com os estranhos que lhe conquistam sua confiança.

O relato de Grünberg é no mínimo curioso e carregado de um certo preconceito, mesmo não sendo talvez, o que ele gostaria de ter afirmado, mas, que provavelmente não teve como dizer de outra forma. Ele diz “não é apenas um animal de carga...” ou seja, é um animal de carga também.

Depois ameniza a observação falando da importância do seu trabalho em família. Ele foi enfático em afirmar que as mulheres sofrem duras penas e que a divisão sexual do trabalho é acentuada no mundo indígena e mais penosa para a mulher. Digamos que o apenas foi um jeito sutil de chamar atenção sobre as relações de gênero.

A sociedade indígena4 é diferenciada do mundo branco com suas singularidades culturais e sua cosmovisão de mundo, todavia, não podemos deixar de dizer que é uma sociedade que ainda vive sob os moldes patriarcais de dominação. Não é comum encontramos as mulheres vivendo e se relacionando de outro modo que não seja o de continuar subjugada em nome de uma tradição como se não fosse possível novos fazeres, novas experiências que pudesse proporcionar uma outra dinâmica de organização social. Assim seria possível que as mulheres assumissem cargos específicos dentro da comunidade que pela tradição ainda pertence aos homens.

São muitos os questionamentos que nos fazemos quando nos deparamos com o outro desconhecido e tão diferenciado culturalmente. Todavia, na busca de algum entendimento sobre aquela piscadela é o que de fato quero me deter a partir da ótica do gênero. Desde já peço desculpas porque obviamente discordaremos em algum ponto, todavia, para mim, fazer ciência é desvelar o que precisa ser dito e como o processo científico é plural, descontínuo e sem prazo de validade o que nos permite amadurecer e rever conceitos, provavelmente o que eu disser agora talvez tenha ressonância apenas no futuro ou talvez não. É um risco que corremos quando expomos nossas ideias.

Teihard de Chardin, in o fenômeno humano (s/d) diz que [... a história do mundo vivo se resume na elaboração de olhos cada vez mais perfeitos no seio de um Cosmos, onde é possível ver cada vez mais].

Para Chardin, os olhos humanos seria então a abertura principal para captar todas as manifestações fenomênicas presentes no mundo, tornando-se cada vez mais perfeitos. Apesar de o

4 Aqui falo no sentido amplo do termo querendo dizer todos os povos indígenas.

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homem moderno buscar cada vez mais respostas fora de si mesmo pelas inúmeras possibilidades de desvendar o mundo circundante, é também um buscador de si mesmo, porque não consegue encontrar todas as respostas e aceita-las integralmente a partir somente do que é percebido. Para os fisiólogos gregos, o homem é microcosmos e dentre todas as coisas, a mais complexa e é a partir deste olhar humano que é possível compreender todas as coisas.

É unânime no meio científico, principalmente entre os psicólogos da percepção que a maioria absoluta das informações que o homem moderno recebe lhe vem por imagens. Para BOSI (1972, s/p)

A cultura grega acentuadamente plástica enlaçava pelos fios da linguagem o ver ao pensar.

EIDOS = forma ou figura é o termo afim à idea. Em latim com pouca diferença de sons (eu vejo) e idea. E os etmologistas encontram na palavra história (grega e latina) o mesmo étimo id, que em eidos e idea. A história é uma visão pensamento do que aconteceu. A frontalidade dos olhos no rosto humano remete a centralidade do cérebro. O ato de olhar significa um dirigir a mente para um “ato de in-tencionalidade”, um ato de significação que, para Husserl, define a essência dos atos humanos. Nessa interpretação BOSI (1972) faz a distinção em alguns idiomas situando a diferença entre “olho” e “olhar”.

E continua o autor:

Se em português os dois termos aparentemente se casam, em outras línguas a distinção se faz clara ajudando o pensamento a manter as diferenças. Em espanhol: ojo é o órgão; mas o ato de olhar é mirada. Em francês: oeil é o olho; mas o ato é regad/regarder. Em inglês:

eye não está em look. Em italiano, uma coisa é o occhio outra é sguardo. Creio que essa diversidade em tantas línguas não deve ser mero acaso. Trata-se de uma percepção inscrita no corpo dos idiomas pela qual se distingue o órgão receptor externo (olho) e o movimento interno do ser que se põe em busca de informações e de significações, que é propriamente o (olhar).

A distinção entre o olho e o olhar nos revela não apenas uma diferença puramente linguística, mas nos remete a uma análise fenomenológica do sentido do olhar. O mundo se dá ao olho humano segundo o discurso de Epicuro e Lucrécio (apud, BOSI, 1972) porque a natureza desenvolve um movimento constante, veloz, febril, desprendendo da superfície dos seres os simulacra (eidola, em grego), figuras que duplicam sutilmente a forma superficial das coisas. Os simulacros, por serem materiais, embora tenuíssimos vem ao encontro dos nossos olhos, trazidos que são pelos raios da luz solar, estrelar ou lunar.

Os olhos recebem passivamente com prazer ou não contanto que estejam abertos tudo o que se lança ao seu campo visual, tudo o que é visto pelo homem. O efeito desse encontro fantástico pode ter um nome: conhecimento.

Para conhecer então, basta abrir os olhos, imergir em um oceano de partículas cintilantes e nele engolfar-se sensualmente. Conhecer é ser invadido e habitado pelas imagens errantes de um cosmos luminoso (LUCRÉCIO, De rerum natura (I a.C - IV, 28). É preciso partir do mundo para o sujeito. É nas imagens que parece residir o princípio da visão, e sem elas nenhum objeto nos pode

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aparecer. Os olhos não podem conhecer as leis da natureza; por isso, não queiras atribuir à vista o erro do espírito (nec possunt oculi natura rerum; proindi animi vitium hoc oculis adfingere noli (LUCRÉCIO, IV, 381-82).

Diria que a experiência do campo é assim. O olhar do observador nunca conseguirá captar todos os objetos, todos os fenômenos, sejam eles, materiais ou imateriais. O campo é uma vastidão de significados e significantes que não se deixa abarcar num único sentido. A pluralidade de significações com a qual me deparei na comunidade indígena aqui exposta é incomensurável e na perspectiva de gênero me pergunto: o que de fato guarda aquele olhar, aquela piscadela?

Pensar as relações sociais entre homens e mulheres nessas sociedades a partir da conceituação ocidental de gênero é ainda incipiente e penso que o conceito não abarca toda a dimensão dessas relações, todavia, é certo que não estamos mais falando de sociedades sem contato e esse é um fator determinante para tecermos conjecturas ainda que frágeis epistemologicamente, porém não sendo possível perceber de outra forma que não seja essa transversalizada pelo poder masculino, portanto, não podemos prescindir das teorias de gênero. Esse é de fato um novo olhar do qual não podemos deixar de pensar quando passamos dias e dias convivendo com essa gente.

Não falamos mais de pessoas isoladas, sem contato com outros povos e sim de realidades pós-contato onde a dimensão do simulacro permeia toda a dimensão do ser, do fazer, do conhecer e do conviver. Portanto, a imagem de índio hiper-real como fala Alcida Ramos não existe e o que nos é possível conhecer sobre essas pessoas é aquilo mesmo que se nos revela a partir dos nossos olhares que se ampliam na medida que também permitimos nos abrir a outros horizontes de compreensão da realidade procurando tecer os fios que são possíveis para apresentar ainda que distorcida a imagem criada por nós o que significa esse processo de interetnicidade.

Nesse sentido, o texto de Cecília McCallum5 em relação aos estudos de gênero na etnia Kaxinawá pode nos ajudar a entender como esse conceito ocidentalizado não pode ser utilizado para compreender todas as relações que perpassam a convivência entre homens e mulheres dentro da pluralidade cultural indígena nas suas mais diversas etnias, mas, como também não podemos achar que não é possível as teorias de gênero para entender esses povos.

A autora do texto nos diz que ao perceber que na comunidade onde desenvolveu sua pesquisa de doutorado não via na escola a participação das mulheres, ficou perplexa e reunindo-as para um diálogo onde ela pudesse entender melhor o que estava acontecendo, elas responderam que não estavam interessadas em aprender o português ou qualquer coisa que se referisse à escrita do

5 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v.19, n 33, p. 87 – 104, jan./jun.2010

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branco, mas queriam conhecer, entender e aprofundar a escrita verdadeira que para elas era o registro através dos desenhos corporais que elas carregavam em seus corpos.

Nesse contexto posso dizer que uma das coisas que me chamou atenção entre as Sateré- Mawé no rio Urupadi foi o fato de que elas à medida que iam sendo indagadas não respondiam de imediato e gastavam minutos e minutos para responder o que eu havia perguntado. Aquele olhar voltado para cima parecia querer lembrar alguma coisa ou entender melhor o que eu estava perguntando pelo fato de que não estava havendo uma correspondência entre minha fala e a compreensão de mundo delas.

Um fato me chamou a atenção. Estive na casa de uma das mulheres da comunidade e enquanto nós conversávamos e dessa vez eu estava acompanhada por uma intérprete (a professora da comunidade) e sendo necessário saber a idade de minha entrevistada fui pega de surpresa porque ela estava fazendo aniversário naquele dia, mas, ela mesma não sabia. Por um acaso tinha uma medalhinha na bolsa dentro de uma caixinha e a presenteei num gesto de carinho ao que ela sorriu, e guardou o presente.

Veja, são compreensões de tempo e de mundo diferentes de quem está situado em outra realidade. A construção de compreensão do mundo é dada de formas diferentes para diferentes pessoas, lugares e culturas ainda que numa mesma região geográfica, no caso a Amazônia.

Para as mulheres da comunidade uma das situações mais relevantes de desconforto é o trabalho na roça e do sol excessivo na cabeça durante essas atividades. A elas cabem a coivara, o plantio e a colheita que normalmente é realizada com a ajuda dos filhos que a partir de cinco anos já são ensinados a trabalhar para garantir o seu próprio sustento.

Essa foi uma fala coletiva das mulheres a respeito do sol que machuca e agride principalmente a saúde delas. Dores de cabeça, irritação na vista (muitos casos de catarata) talvez pelo excesso da fumaça tanto das coivaras como torrefação da farinha nos fez perceber que é possível sim, analisar as relações de trabalho e convivência a partir do conceito de gênero porque a própria divisão do trabalho é distinta entre os sexos e com uma carga maior de afazeres (casa, roça e filhos) para as mulheres.

É possível sim, que aquela troca de olhares tenha sido uma forma de silenciar a fala das mulheres como uma expressão de não permitir expor as emoções do olhar na perspectiva de Lucrécio porque talvez esconda uma realidade que precise ser ocultada para continuar existindo na dimensão do coletivo indígena.

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Num encontro de alteridades femininas, o olhar, os gestos, a fala, a expressão corporal, o andar, o aproximar-se, o conversar, o rir, o afastar-se, nunca passa despercebido. De um jeito ou de outro nós mulheres sabemos fazer uma leitura do corpo umas das outras, independente do lugar, do espaço ou da cultura.

Desse modo penso que ao falar do corpo feminino não podemos dissocia-lo da realidade na qual ele está inserido. É preciso observar a construção desse corpo a partir do lugar onde ele se encontra e da sua visão de mundo. O corpo seja ele feminino ou masculino é parte de uma construção histórica, de um momento de mundo situado numa realidade própria de um espaço também próprio.

Isso significa que há em curso um processo de descontaminação do corpo humano, mais especificamente do feminino, uma vontade de descontaminação de humanidade, onde a dimensão natural do ser, ora reificada, ora negada, é isenta de valor em ambos os casos e faz parte de um modelo de civilização (global) que tem projetos bem definidos (ROTANIA, 2000).

Ora, dessa forma, podemos entender que o corpo está em transição e isso indica transformações, adaptações, passagens, preparação para um outro estágio da civilização humana.

Para Rotania (2000)

Os corpos estão em transição, sujeitos a transformação radical. Os corpos das mulheres oferecem maior vulnerabilidade, e são colocados também em risco os corpos, a liberdade e a consciência dos homens e das mulheres do futuro. Trata-se de uma vontade que não só interpreta de uma determinada maneira, mas também modifica efetivamente o vivente à luz dessa interpretação.

Dizer, pois, que os corpos estão em transição, requer pensar num constante processo de mudança que altera todas as formas de viver, de ser e de estar no mundo num contínuo vir-a-ser onde não há mais lugar para um pensamento determinado, uma atitude cristalizada no tempo, mas, um processo natural de adequação dessa existência em todos os espaços estabelecidos.

Os corpos das mulheres em especial, passaram por mudanças significativas desde os anos 70 para cá. Corpos guardados, escondidos, reservados, moeda de troca em casamentos arranjados, reprodutores de outras vidas, traduzidos como espaço de recreação da libido masculina (prostituição), calado, santificado, casto (freiras), enfeitiçados e enfeitiçantes (as práticas com ervas, curas e doenças), esquecidos, não traduzidos, falantes, expostos (arte), públicos, altivos, conquistadores. A conquista de lugares que foram roubados ao longo da história e de um novo

“cogito” com novos referenciais de mundo.

Os homens Sateré-Mawé não negam a possibilidade das mulheres se tornarem líderes em sua comunidade, todavia, não percebemos nenhum esforço da parte deles em oferecer

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possibilidades a elas de mudarem sua condição. A proibição da língua portuguesa como dizia Pereira (2009) como forma de evitar o contato com o homem branco em tempos remotos, continua praticamente até hoje. As mulheres mal falam o idioma nacional e ainda assim são proibidas de se pronunciarem precisando de um intérprete para se comunicar com a sociedade envolvente.

Quantas coisas não foram ditas naquela entrevista. Quantas coisas ficaram em silêncio sobre a vida dessas mulheres que no processo de tradução masculina foram reinterpretadas ou mesmo nem ditas por medo ou vergonha.

Não podemos olhar o diferente como algo ‘sagrado’ a ponto de não ser tocado ou avaliado.

Não podemos também cair na ingenuidade de pensar que essas pessoas desconhecem a realidade do mundo que os cerca a ponto de não interagir com este mundo e saber lidar com ele de uma forma ou de outra. Nada é desprovido de intencionalidade. Portanto, as relações são sim forjadas e tem um sentido para continuar sendo assim. Dominação ou não, o tempo dirá, porém, o que nos resta é a incógnita do olhar.

Referências

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Editora Planeta do Brasil, 2011

BOSI, Alfredo. Fenomenologia do Olhar. In: CONRAD, Mueller. Luz e Visão. RJ: José Olympo, 1972

HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1978 In:

BATISTA, João Bosco, “Existência e Arte ”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano I - Número I – janeiro a dezembro de 2005

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 6ª ed. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2009

CHARDIN, P. Teilhard de. O fenômeno Humano. São Paulo: Edit. Cultrix, s/d

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Org. e trad. De Roberto Machado. RJ: Edições Graal, 2012

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Ed. LTC, 1989.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. De Márcia Sá Cavalcante Schuback. Parte I. 13ª ed. RJ:

Vozes, 2004

KOCH-GRÜNBERG. Dois anos entre os indígenas: viagens ao noroeste do Brasil (1903 -1905) – Manaus: EDUA/FSDB, 2005

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NASCIMENTO, Solange P. do. Vida e trabalho da mulher indígena: o protagonismo da tuxaua Baku na comunidade Sahu-apé em Iranduba/AM - Dissertação (Mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia) – Manaus: UFAM, 2010.

PEREIRA, Nunes. Os índios Maués. 2ª ed. Manaus: Editora Valer e Governo do estado do Amazonas, 2003

RAMOS, Alcida Rita. O índio hiper-real. In:

www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_28/rbcs28_01.htm (Acesso 09/06/2012)

MACCALUM. Cecília. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v.19, n 33, p. 87 – 104, jan./jun.2010

ROTANIA, Alejandra Ana. Formas atuais de intervenção no corpo das mulheres. In: FARIA, Nalu;

SILVEIRA, Maria Lucia.(Org.). Mulheres, corpo e saúde. São Paulo: SOF, 2000. 72p. p.11-24.

(Coleção Caderno Sempre Viva)

etween a wink and a wink: a look at female Sateré-Mawé context

Abstract: Between a blink and a wink: the meaning of a female gaze in the context Sateré-Mawé was born of a peculiar context in that field as follows methodological orientation and gender studies of phenomenology where the voice and attitude of the subjects were of paramount importance to understand the cultural context and gender relations that are present in their lives. The aim is to reflect on the meaning of the look when we are faced with a universe that are culturally significant indigenous people of the Brazilian Amazon, especially in the context feminine.

Keywords: Gender. Women Sateré-Mawé. Look. Phenomenology. Amazon.

Referências

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