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O empuxo-à-mulher: uma solução à problemática dos sexos nas psicoses paranóicas?

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Academic year: 2021

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Diego Felipe Portolann1 RESUMO

O presente artigo trata-se de uma revisão bibliográfica da leitura freudiana do Caso Schreber, e da primeira clínica estrutural lacaniana acerca das psicoses, compreendida a partir da noção de foraclusão do Nome-do-Pai, na análise do caso referido. Buscou-se descrever, a partir da teoria psicanálitica, o fenômeno do empuxo-à-mulher, definido por Lacan em 1973, constituindo-se como um processo abrupto de feminização que invade o sujeito psicótico sob a forma de um gozo desregulado. Nota-se que, devido a foraclusão do significante primordial/fálico, o sujeito psicótico está elidido da partilha sexual, isto é, não podendo posicionar-se do lado masculino nem do lado feminino da sexuação. Assim, busca-se enlaçar os elementos referidos situando que o efeito do empuxo-à-mulher é reconhecido como uma solução precária mas que, associado ao trabalho do delírio, garantiu a estabilização de Schreber. Por fim, conclui-se que o efeito não contempla uma solução aos casos de psicoses paranóicas, assim como também não é tão frequente, mas está situado claramente no nível da sexuação ao sujeito psicótico. Como consequência, resta ao psicótico o desafio, que é o mesmo para todo o ser falante, de situar seu sexo e sua existência no Outro.

Palavras-chaves:Schreber. Foraclusão. Partilha dos sexos. Empuxo-à-mulher. Abstract

This essay is a bibliographic review of the Freudian reading of the Schreber Case, and of the first Lacanian structural clinic on psychoses, understood from the notion of foreclosure of the Name-of-the-Father, in the analysis of the referred case. We sought to describe, based on psychoanalytic theory, the phenomenon of buoyancy-to-woman, defined by Lacan in 1973, constituting itself as an abrupt process of feminization that invades the psychotic subject in the form of unregulated jouissance. It is noted that, due to the foreclosure of the primordial / phallic signifier, the psychotic subject is eluded from sexual sharing, that is, not being able to position himself on the male or female side of sexuation. Thus, we seek to link the mentioned elements, situating that the effect of the buoyancy-to-woman is recognized as a precarious solution but that, associated with the work of the delusion, guaranteed Schreber's stabilization. Finally, it is concluded that the effect does not include a solution to the cases of paranoid psychosis, as well as it is not so frequent, but it is clearly situated at the level of sexuation to the psychotic subject. As a consequence,

1Psicólogo nos CAPS AD e CAPS Infantil, ambos pela instituição Hospital Bom Pastor de Ijuí/RS. Artigo apresentado ao Programa de Pós Graduação lato sensu em Psicologia Clínica: Práticas Clínicas nas Instituições, pela UNIJUÍ/RS, ao grau pretendido de Especialista em Psicologia Clínica. Orientadora: professora e psicanalista, membro da APPOA, Tânia Maria de Souza. Ijuí, 2020.

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the psychotic is left with the challenge, which is the same for every speaking being, to situate their sex and their existence in the Other.

Key-words: Schereber; Division of the sexes, foreclosure, bouyonacy to

woman.

Introdução

Ao recordarmos da célebre leitura freudiana acerca das Memórias do presidente Schreber (1911, [1903]), testemunhamos a sua tese de que o delírio psicótico é algo passível de interpretação, operando como uma tentativa de cura, uma forma de reorganizar o aparelho psíquico. Schreber constrói uma metáfora delirante de ser A Mulher de Deus, acreditando que a transformação de seu corpo em mulher, para fins de propósitos divinos, obedecia a uma ordem superior à sua vontade. Num primeiro momento lhe soa inadmissível, experimentando sofrimentos terríveis lutando contra a sua feminização, até que reconcilia-se. A condição delirante, para Freud, ocorre como um mecanismo de defesa da própria pulsão homossexual.

Lacan dá continuidade aos estudos sobre a psicose, afirmando que não se pode recuar diante de tal, valorizando fortemente a escuta do delírio. A tendência à feminização nas psicoses ou fenômeno do empuxo-à-mulher – em francês, pousse-à-la-femme –, como Lacan chamou em 1973, refere-se à tese que refuta a lógica freudiana acerca da teoria libidinal da homossexualidade psicótica. Para o autor, a homossexualidade, referência clara na posição de Schreber, apresenta-se não como uma causa do processo psicótico, mas como um sintoma interno a esse processo.

Na manifestação do empuxo-a-mulher, o sujeito experimenta-se como objeto de um Outro total, sem limites, posição cuja relação com o delírio assume formas variadas. Tal fenômeno decorre de uma pressão inerente a estrutura psicótica, devido a impasses que o sujeito sofre no processo de sexuação. Observa-se, a partir do caso do presidente Schreber (FREUD 1911, [1903]), um impasse a partir do momento que este é convocado a responder do lugar de homem ou mulher.

Do ponto de vista do sujeito, a realidade é psiquica, isto é, embora a diferença anatômica entre os sexos apresente-se discursivamente no corpo,

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não se nasce psiquicamente homem ou mulher. A constituição sexuada do sujeito requer um posicionamento frente à operação da castração - caminho descrito por Freud a respeito do Complexo de Édipo (1924). Quando há essa insrição, o sujeito submete-se à lógica fálica, inscrevendo-se no lado masculino ou feminino da partilha sexual. Neste artigo, assume-se o pressuposto de que, na psicose, o sujeito não registrou o processo simbólico da castração,portanto a escolha de objeto homossexual, balizada pelo falo, tal como na neurose, não lhe é possível.

Interroga-se, então, sobre os recursos disponíveis ao psicótico para poder valer-se diante da divisão dos sexos, posto que a diferença sexual, não simbolizada, não lhe escapa. Em outras palavras, o empuxo-àmulher marcaria um imperativo de sexuação nas psicoses paranóicas?

A hipótese é de que o empuxo-à-mulher, submetido a um trabalho psíquico como o delírio, conforme veremos no caso Schreber, pode ser considerado como uma alternativa ao sujeito de responder por sua condição sexuada, alcançando, por um momento, a estabilização. O delírio, comumente presente nos casos de psicose paranoica, é reconhecido como tentativa de cura, pois reconstrói a realidade produzindo uma significação alternativa à fálica, que não adveio.

Esse trabalho está organizado em 3 partes: O caso Schreber, sublinhando pontos fundamentais da preciosa leitura freudiana do caso. Em seguida, Lacan e a problematização do sexo nas psicoses, pretende-se abordar os efeitos da foraclusão do significante Nome-do-Pai diante do encontro com o real do sexo para o sujeito psicótico, destacando sua impossibilidade de situar-se sob a partilha dos sexos: ser homem ou mulher. Na tentativa de enlaçar essas questões, aborda-se Schreber e o efeito

empuxo-à-mulher, compreendendo que essa foi uma maneira especial que

Schreber construiu para situar sua existência no Outro.

Além dos autores citados, buscou-se também autores famliarizados com o tema, como Collete Soler, em sua conferência As Lições das Psicoses (2017), entre outros, bem como revistas online. Por fim, concluo sobre como as pesquisas corroboram com o objetivo desse trabalho.

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O caso Schreber

A psicanálise, nascida do interesse de Freud pelo campo enigmático da histeria, muito cedo deparou-se com o desafio de tentar explicar, com sua metapsicologia, quais seriam os mecanismos da gênese das psicoses. Ao publicar o Caso Schreber (1911), reconhecido entre os psicanalistas como marco inicial das psicoses na psicanálise, Freud constatou que alguns traços tomados como caricaturas da loucura – alucinações, delírios e etc, - constituem, na verdade, alguma significação para o sujeito assim como os chistes, a fala, os sonhos e os sintomas para os neuróticos.

A respeito da história de vida de Schreber, sublinha-se alguns pontos importantes. Sua carreira profissional foi marcada por grandes conquistas, destacando-se desde muito cedo na área jurídica. Já na vida conjugal, um casamento que não lhe concedeu filhos – motivo de grande frustração para Schreber, que sempre manteve-se na esperança. Além disso, duas crises (1884 e 1893) que o arrebataram totalmente, sendo oficialmente declarado, em 1902, pelo Sanatório de Sonnenstein, como incapaz.

A primeira enfermidade, que ocorreu por volta de 1884, teve como sintoma grave uma crise de hipocondria, sendo tratado diretamente pelo Dr. Flechsig, na Clínica Psiquiátrica de Leipzig, permanecendo internado por um período de 6 meses. Ressalta-se que sua crise manifestou-se num curto período de tempo após a tentativa em candidatar-se ao Reichstag, e ser derrotado publicamente. Nesse período, tinha 42 anos, era casado há 6 anos, com 19 anos de carreira jurídica; deflagrando seu primeiro colapso nervoso.

A segunda crise teve início por volta de 1893, agravou-se, e foi transferido para o sanatório de Sonnenstein aos cuidados do Dr. Weber, até 1902. Em seu relatório sobre Schreber, descreveu que o paciente apresentava fortes crises de insônia e hipocondria, ideias convictas de perseguição, visuais e auditivas, curiosamente endereçadas ao seu antigo médico, Dr. Flechsig. Segundo Almeida (2015), ocorre aí o desenvolvimiento da complexa estrutura delirante como único sintoma da enfermidade. No entanto, Schreber mostrava-se inteiramente “normal”, mostrava-sem aparentes perturbações que impossibilitasmostrava-se mostrava-seu convívio em sociedade.

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A medida que sua condição mental se agravava, o esforço do seu delírio o acompanhava na tentativa de agregar algum sentido ao seu infortúnio. Schreber é invadido por delírios e alucinações que envolviam religião e questões sexuais. Acreditava que seu corpo devia ser transformado em mulher para, em seguida, sofrer algum abuso por Flechsig. Nessa mudança, passou a acreditar que engravidaria de Deus, e que era um enviado encarregado de melhorar o mundo.

Além do auto-sacrifício, só parecia restar, no domínio do possível, alguma outra saída de um tipo terrível, jamais verificado entre os homens. Mas a partir daí tive a absoluta convicção de que a Ordem do Mundo exigia imperiosamente de mim a emasculação, quer isso me agradasse pessoalmente ou não e, portanto, por motivos racionais, nada mais me restava senão me reconciliar com a ideia de ser transformado em mulher (SCHREBER, 1903/2006, p. 147, apud ALMEIDA, 2015).

A ideia de ser transformado em mulher, inicialmente, era inaceitável, fazendo com que Schreber experimentasse sofrimentos apavorantes. Schreber passou anos lutando contra tal ideia até que reconciliou-se com o propósito divino que teria sua causa: “uma vez que teria aceitado o caráter incurável de sua doença, a Ordem das Coisas exigia do presidente a sua emasculação para fins de abusos sexuais.” (Ibid. 67, apud ALMEIDA, 2015).

Precisamente nesse momento da crise, Schreber, na tentativa de reivindicar sua autonomia, redige as suas Memórias (1903). Entretanto, em 1911, além de sua doença ter se agravado, também ocorreram a morte de sua esposa e de sua mãe; Schreber não resistiu e veio a falecer no sanatório de Dozen, em Leipzig.

Freud, ao saber de sua publicação (Memórias) aborda o fenômeno de forma muito cuidadosa, fazendo sua leitura a partir de suas descobertas sobre a neurose (recalque), somado aos ensinamentos da psiquiatria da época.

Para Freud ([1911], 1996), a ideia germinal do delírio de Schreber decorria do seguinte pensamento do presidente ainda em seu estado de vigília: “seria belo ser mulher e submeter-se ao ato da cópula” (p.24). Nas Memórias, Schreber conta que reage a essa fantasia de feminização com tremendo repúdio e indignação, não reconhecendo essa afirmação como um pensamento seu. Almeida argumenta:

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No entender de Freud, isso significa uma tentativa de construir um remendo mediador para aceitar a ideia, a princípio rechaçada. O rechaço à irrupção da tendência homossexual é tão intenso que provoca uma catástrofe interior e também a reconstrução delirante; é uma ameaça narcísica, concluiu Freud (1911/1996). A partir dessa hipótese, Freud constatou que as fantasias de transformação em mulher poderiam ser elemento comum nas paranoias, pelo fato de, na origem da patologia, subsistir uma defesa poderosa contra a corrente de impulso homossexual – uma defesa contra o narcisismo ameaçado (FREUD, 1911/1996, apud ALMEIDA, 2015, p. 20).

A autora complementa

Nessa fase da psicose de Schreber, o que se observa é que, apesar das tentativas contrárias e repudiosas contra as fantasias homossexuais, elas não retrocedem; ao contrário, manifestam-se numa verdadeira imposição de transformação em mulher, que Schreber passa a experimentar em seu corpo e em suas vísceras. (Ibid.)

Se, no início Schreber acusou Flechsig de ser seu perseguidor, o causador de sua enfermidade, com o passar do tempo atribuiu esse sentido a Deus, tornando-o seu perseguidor. Entretanto, mesmo reconhecendo Deus como causador de seus infortúnios, Schreber submete-se à sua vontade, afinal reconhecia o seu poder de Criador. Schreber compreendia que, para ser o Redentor do mundo conforme a Ordem das Coisas (FREUD, 1996 [1911], p.31), ele devia transformar-se em mulher, independentemente de sua vontade. A causa divina parecia lhe causar menos resistência, se comparado a figura do médico; isso satisfez seu Eu (megalomania) e sua fantasia (transformação em mulher).

Freud (Ibid.) propõe, então, o postulado de que a causa desencadeante da paranoia de Schreber decorre de uma manifestação, a princípio recalcada, da libido homossexual. A partir do mecanismo de projeção, “a percepção interna é suprimida e, seu conteúdo, após sofrer certo tipo de deformação, ingressa na consciência sob a forma de percepção externa (p. 73), isto é, a contradição de uma proposição homossexual inconsciente.

A respeito do caso, sublinha-se dois pontos essenciais: o impulso homossexual e o delírio de redentor, pois acreditava ser o único a salvar o mundo a partir de sua relação com Deus. Schreber em momento algum teria manifestado comportamentos que sugerissem uma conduta homossexual, mesmo que latente. A feminização de Schreber, segundo Freud (Ibid. p. 70),

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decorre de uma “fixação no seu próprio narcisismo”, isto é, momento anterior à escolha de objeto. Schreber é o próprio objeto, e seu processo de feminização não se dá por uma escolha, mas por algo que se “impõe ao sujeito, retornando e causando extremo horror. Ele se vê tomado no real por um processo abrupto de feminização” (ALMEIDA, 2015, p.21).

Sobre a possível fantasia feminina ter surgido em Schreber, ascendendo à posição de ser a “Mulher de Deus”, através do delírio de redentor, Freud acredita numa possível frustração ou privação na vida real. Sabe-se que Schreber nunca teve filhos, motivo de muita tristeza para a sua vida conjugal. Sendo assim, Freud diz que “Schreber pode ter formado uma fantasia de que, se fosse mulher, trataria o assunto de ter filhos com mais sucesso, e pode ter assim retornado à atitude feminina que apresentara, em relação ao pai, nos primeiros anos de sua infância” (FREUD, 1996, [1911], p. 79).

Lacan e a problemática do sexo nas psicoses

Referindo à forma como a neurose e psicose se relacionam com a realidade, inferimos que o Nome-do-Pai é o significante responsável, através de uma cadeia simbólica, em nortear e representar o sujeito para vários outros significantes. Nestes termos, constitui-se uma estrutura neurótica, condenado a girar em torno de um centro único, cuja medida de todas as coisas é o falo, que, do ponto de vista simbólico, partilha e alinha os sexos, e, do ponto de vista imaginário, aponta para o desejo se inscrevendo como objeto de desejo do Outro.

Quando a inscrição desse significante paterno não ocorre, permanecendo abolido e, inclusive, isento de comandar a cadeia simbólica, constitui-se numa estrutura psicótica. Assim, em razão dessa não-significação fálica, cria, no discurso, consequências avassaladoras para o sujeito, que fica sem rumo frente a uma enxurrada de significações sem ponto de basta. A não inscrição desse significante central, cujo papel seria de internalizar os parâmetros fálicos da relação do sujeito com o Outro, incidirão diretamente sob as questões sexuais.

Lacan, no seminário 3, afirma: “As duas vertentes, macho e fêmea, da sexualidade, não são dados, não são nada que possamos deduzir de uma

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experiência. Como poderia o indivíduo se achar nisso aí, se ele já não tivesse o sistema do significante [...]” ([1955-56], 1988, p.283). Isto implica dizer que, se há foraclusão desse significante paterno, significa que haverá consequências na relação com o significante fálico e, portanto, na identificação com o sexo: ser homem ou mulher.

Seguindo o referencial lacaniano, não se fala necessariamente em dois sexos, mas sim, duas formas de gozar. A partilha dos sexos se dá sob o ângulo do gozo: de um lado, tem-se o gozo sexual (ou gozo fálico) e do outro, tem-se o gozo Outro. Ha duas posições discursivas: uma masculina e a outra feminina a respeito do sexo. O masculino, por estar remetido totalmente à norma fálica, constituem-se em um coletivo regido pela normativa fálica; já a mulher, por ser representada uma-a-uma, não estaria toda submetida a castração. Explico.

Ao recordarmos do mito freudiano O Pai da Horda, em Totem e Tabu (FREUD, 1913), embora todos os homens estejam sujeitos à castração, existe pelo menos um que não foi submetido a essa ordem: o Pai tirânico da horda primitiva, possuidor de todas as mulheres que acabou morto por seus filhos. É a partir deste acontecimento mítico que se forma o conjunto dos homens: é necessário existir alguém que escape à norma, uma exceção, para que, a partir deste, se constitua o grupo, o universal. Esse ancestral funda a classe dos homens, isto é, um conjunto fechado, cuja fronteira é delimitada pelo falo (gozo fálico), que significaria ainda dizer que o homem é fálico e, portanto, todo fálico.

No lado da mulher, a situação é diferente. A mulher, embora alienada ao significante, não é totalmente regida pela função fálica; ela é não-toda assujeitada à ordem simbólica. Conforme Lacan, “que tudo gira ao redor do gozo fálico, é precisamente o de que dá testemunho a experiência analítica, e testemunho de que a mulher se define por uma posição que apontei como o não-todo no que se refere ao gozo fálico. ([1972-73], 1985, p.15).

Há para a mulher um ponto de indeterminação que resulta da ausência do significante sexual – contrário ao lado do homem, marcado pelo significante da exceção. O não-todo permite falar de uma e outra mulher, mas não da mulher. Segundo Lacan, “para se introduzir como metade a se dizer das mulheres, o sujeito se determina a partir de que, não existindo suspensão na

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função fálica, tudo possa dizer-se dela, mesmo que provenha do sem razão.” ([1973], 2003, p. 466). Daí o aforismo lacaniano de que A mulher não existe, denotando o impossível do universal da mulher.

Para Catão,

Sem a exceção, consequentemente, não existe a regra universal para todas as mulheres. Se a exceção funda a regra, com a ausência de uma exceção, a universalidade, o ‘para todo x’ não se aplica. O conjunto universal só pode ser fundado na presença de um que esteja fora da regra do ‘todo’, assim, se do lado feminino não há essa exceção, inviabiliza a universalidade do ponto de vista da função fálica, ou seja, é impossível falar de ‘todas as mulheres’, e não haveria “A Mulher”, numa categoria universal afirmativa, donde se produz as famosas frases “A Mulher não existe”, e “a mulher é não-toda”. (CATÃO, 2013)

.

O conceito de não-todo do lado feminino da partilha sexual, remonta a descoberta freudiana, em seu texto, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade ([1905] 1976), partindo da percepção da criança acerca da diferença anatômica sexual. O menino, possuidor do pênis, constrói uma fantasia de ameaça de castração quando constata a ausência do órgão na menina. Já para a menina, a identificação da ausência do pênis representa, desde cedo, a evidência da consumação da castração real.

A mulher pode experimentar tanto o gozo fálico, inscrito no registro simbólico, quanto um outro tipo de gozo, o gozo suplementar (LACAN, [1972] 1985, p.99), para além do falo, uma vez que não-toda mulher tem relação com o gozo fálico. Além disso, ela também tem uma relação com o gozo do Outro sexo, o gozo da mulher, gozo que decorre da falha desse significante no campo do Outro, S (A). Esse gozo suplementar, sem limites, fora dos parâmetros fálicos e, portanto, da linguagem, pode, no entanto, ser experenciado por ela sem que nada saiba dele.

Retornando ao caso Schreber, Freud já apontava em sua análise do caso o processo de feminização do presidente como saída para seus impulsos homossexuais, ao passo que também salientava a fantasia de homossexualidade como causa inicial das psicoses paranoicas.

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Lacan, por outro lado, embora utilize desse ensino freudiano, remete-nos essa questão a uma abordagem da “ausência do significante macho primordial com o qual durante anos ele pode parecer [...] ter seu papel de homem.” ([1955-56], 1988 p. 286). Parafraseando o autor, “esse homem, apesar de apresentar todas as características de virilidade, logo de saída se apresenta sob a forma de uma questão sobre seu sexo, um apelo que vem de fora, como na fantasia - como seria belo ser uma mulher sendo copulada” (Ibid.).

Apesar da virilidade representar alguma coisa para Schreber, mesmo que imaginariamente, o que se apresenta tanto no início quanto no estado final do seu delírio, apontava na direção da sua transformação num corpo de mulher. Nessa medida, Lacan, indagado sobre a questão da partilha sexual na psicose, provoca-nos o seguinte questionamento

A questão que se coloca é a de saber se nos encontramos diante de um mecanismo propriamente psicótico que sería imaginário e que iria da primeira entrevisão de uma identificação e de uma captura na imagem feminina, até o desabrochar de um sistema do mundo em que o sujeito está completamente absorvido em sua imaginação de identificação feminina. (Ibid, p.77).

A resposta para essa pergunta estaria no que Lacan também afirma como uma “Verwerfung (foraclusão) primitiva, ou seja, que alguma coisa não seja simbolizada, que vai se manifestar no real.” (Ibid. p. 98). O pensamento vivenciado por Schreber em seu estado de vigília é o manifesto de uma significação que não se parece com nada, assim como também não se pode ligá-lo a nada, “sob a forma de uma irrupção no real e uma estranheza total [...]” (Ibid. p.103), “jamais entrou no sistema da simbolização” (Ibid. p.102), é um fenômeno psicótico.

Lacan enfatiza que não se trata da “emasculação, nem feminização e muito menos fantasia de gravidez” (Ibid. p.103), mas, essencialmente de uma função feminina que escapou à normatização fálica, encontrada apenas no nível da procriação; e isso diz de um gozo irredutível ao simbólico.

Aqui, referimo-nos ao complexo de Édipo enquanto período constitutivo para o sujeito, pois este implica na simbolização da Lei edípica e, concomitantemente, numa inscrição na partilha dos sexos. Ao atravessar o

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Édipo o sujeito simboliza a falta no Outro (registra a castração) e se insere na lógica fálica, ou seja, o falo passa a operar como regulador do gozo. Na psicose, não ocorreu a inscrição desse significante fálico, consequentemente não há a simbolização da Lei edípica enquanto processo de identificação entre os sexos.

Na impossibilidade de identificação sexual, em detrimento da impossibilidade de nomear-se dentre os sexos, o psicótico poderá sofrer o efeito empuxo-à-mulher.

Schreber e o efeito empuxo-à-mulher

Sem acesso à função fálica para posicionar-se sexualmente, resta ao psicótico inventar uma solução própria para solucionar um problema, que é o problema de todo o ser falante: o de inscrever seu ser, e de situar seu sexo na linguagem (A). A inoperância fálica dá lugar a um retorno do gozo que pode assumir a forma de empuxo-à-mulher, correspondendo a um gozo sem limites.

Expressão cunhada por Lacan em 1973, empuxo-à-mulher, foi introduzida a respeito da analise que fez da psicose de Schreber. Esse conceito refere-se à certeza delirante do psicótico em tornar-se mulher, distinguindo-se da inscrição sujetiva no lado mulher da partilha sexual. Lacan diz

Desenvolvendo a inscrição que fiz da psicose de Schreber por uma função hiperbólica, poderia demonstrar, no que ele tem de sarcástico, o efeito de empuxo-à-mulher, que se especifica pelo primeiro quantificador, depois de precisar que é pela irrupção de Um-pai como sem-razão que se precipita, aqui, o efeito sentido como de forçamento para o campo de um Outro a ser pensado como o mais estranho a qualquer sentido (LACAN, [1973] 2001: 466, grifo meu).

A função hiperbólica remete a um futuro no qual, para o delírio de Schreber, concluiria a sua transformação em mulher; ponto citado, porém não alcançado. O sarcasmo admitido por Lacan, consiste no que depreende do empuxo acerca de ocupar um lugar impossível de exceção, pois esse lugar ou é paterno (no lado masculino), ou é ilogicamente impossível (no lado feminino). Conforme Gama e Bastos (2010, p.145), “mais sarcástico ainda seria fundar o universal masculino por meio da exceção feminina”.

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O empuxo-à-mulher decorre da ausência estrutural da função fálica, isto é, resulta da posição do psicótico sendo arrastado ao ponto que lhe falta um significante para dizer sobre o sexo, pois não há um significante que representaria a mulher. A definição do conceito liga-se ao quantificador existencial do lado feminino, ou seja, não existe nenhuma que não esteja submetida a castração: “para se introduzir como metade e se dizer das mulheres, o sujeito se determina a partir de que, não existindo suspensão na função fálica, tudo possa dizer-se dela, mesmo que provenha do sem razão.” (LACAN, 2001, [1973], p. 466).

A despeito da psicose de Schreber, Lacan opõe-se a todos os comentários que apontam à posição libidinal homossexual uma função causal, desencadeante da psicose. A tese lacaniana consiste em dizer que a transformação em mulher, notável no delírio de Schreber, é a maneira de solucionar algo que é geral a todo o ser falante: “identificar-se no Outro da linguagem, solucionar o furo da existência e do sexo no Outro” (SOLER, 2017, p.18).

É notável que, no delírio de Schreber, não se trata apenas do sexo, mas sim de sua existência. Inicialmente receia a ameaça de eviração sob seu órgão, mas depois reconcilia-se, conforme os propósitos divinos – delírio de redentor. No entanto, é sobre o assassinato de almas (FREUD, [1911] 1996, p.48) que designa uma desordem no mais íntimo do seu ser, sua existência, e esse sentindo nunca está ausente em nenhum caso de psicose.

Se, para Freud, a tese da homossexualidade libidinal incidiria sobre um fator desencadeante da psicose, sendo a própria pulsão uma tentativa de cura sob a enfermidade primaria, que é a retração da libido sobre toda relação de objeto (SOLER, 2017), Lacan, por outro lado, recusa-se a aceitar. Seu argumento, em De uma questão preliminar a todo tratamento das psicoses (1957), é que o psicótico não pode ser homossexual. Não o é como também não pode sê-lo, no sentido de colocar-se na posição de uma mulher em relação a um homem em decorrência da foraclusão do Nome-do-Pai.

Segundo Soler:

A foraclusão do Nome do Pai, que condiciona toda posição de virilidade no filho via transmissão da castração, determina que

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alguém não só não consegue se instalar em uma posição clássica “homem”, mas também não consegue fazê-lo em outra. O nome do Pai é condição para todos os possíveis “homens”. [...] também não consegue esperar encontrar nenhum homem sobre o qual poderia dizer “é um homem” e do qual, então, poderia se colocar como a mulher (2017, p.21)

Como consequência, por falta dessa condição do significante fálico, o conjunto dos “homens” não existe, pois não há uma exceção. A relação de “homem” a “homem”, no sentido anatômico, se reduz à relação especular, narcisista, elidindo a diferença sexual. Na impossibilidade de se posicionar como homem, seja como mulher, o sujeito sofre um forçamento ao campo do Outro, alheio a todo sentido fálico.

A possibilidade de o sujeito vir a alcançar a estabilização com o trabalho do empuxo-à-mulher deve ser examinada caso a caso, pois o empuxo em si incide sobre a posição puramente objetal do sujeito; é empuxado ao Outro. Em o Aturdito (1973), Lacan parece-nos advertir o efeito não como uma solução, mas como o problema em si, ou seja, como o equivalente à ameaça de eviração em Schreber, mas não como equivalente a solução schrebiana (SOLER, 2017).

Para Soler (Ibid.), a transformação, feminização de Schreber, demonstrou-se precária para uma solução, mas, por um determinado tempo, serviu de estabilização. Parafraseando Lacan, a autora destaca a importância de distinguir a ameaça de feminização [eviração] e a solução pela via da identificação feminina, visto que “ não é por estar foracluido do pênis [eviração], mas por ter que ser o falo, que o paciente estará fadado a se tornar mulher” (LACAN, [1957] 1998, p.571).

O empuxo-à-mulher designaria “a não transmissão da castração” (SOLER, 2017, p. 24), condicionando, então, a foraclusão do homem mais do que a promoção da mulher.

Soler diz:

É coerente com o fato de que a solução de Schreber, a transformação em mulher, é uma transformação bastante especial. Não é a mulher do homem, e sim a mulher de Deus. Pode-se dizer que aí se combina, a solução via identificação à mulher e o tema da redenção da humanidade.[...] Schreber, em sua solução, teve uma recaída, deixando de ser a mulher de Deus e a mãe da humanidade

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futura. O empuxo-à-mulher, como efeito da carência do dizer paterno, não implica sempre a solução tipo Schreber de tornar-se mulher. (Ibid, p.25).

O exemplo de Schreber não significa que o empuxo-à-mulher seja a solução de todos os delírios psicóticos. Mas, parafraseando Soler, podemos aventar a hipótese de que o empuxo à exceção é algo que sempre está presente (Ibid. p.40). O sujeito é convocado não a ocupar o lugar de exceção, enquanto termo lógico que funda a regra, mas uma posição de exceção, no sentido que, por ter a liberdade de viver fora do discurso, mas não fora da linguagem, o psicótico é mestre na cidade; é inédito e absolutamente original.

Considerações finais

Podemos inferir que o psicótico não se inscreveu do lado masculino nem do lado feminino da partilha sexual, restando-lhe o desafio de construir um lugar no Outro, seja pela via da estabilização ou pelo delírio. Schreber, alcançou a estabilização a partir da metafora Mulher de Deus, cuja posição foi tecida pelo trabalho delirante na tentativa de obturar o Outro.

O efeito empuxo-à-mulher consiste, para o sujeito psicótico, em uma tentativa de suprir a carência simbólica da distinção entre os sexos, sendo empuxado ao lado feminino do quantificador sexual, porém sem parãmetros fálicos para regular o gozo – diferenciando-se, portanto, da neurose. O efeito compõem um saber-fazer com o gozo que retorna do real e invade o sujeito.

Em consequência, o empuxo-à-mulher não compunha uma solução para todos os casos de paranóia, porém uma maneira onde o sujeito, a partir do trabalho do delírio, encontra uma estabilização. Observa-se em Schreber, num primeiro momento, o empuxo como regulador de gozo, e em seguida, uma significação no delírio de redentor através da identificação ao corpo feminino.

Quanto a questão inicial desse trabalho,podemos inferir que o empuxo-à-mulher está claramente no nível de sexuação para o sujeito, mas deixa em suspenso a escolha de objeto (SOLER, 2007). Frente ao discurso social estabelecido, o sujeito é convocado não a fundar um lugar de exceção, mas uma posição de exceção que torna-o excepcional.

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Nota-se, também, que a emasculação de Schreber é uma condição especial, no sentido que não aparece com tanta frequência em outros casos de paranóia. Por outro lado, o empuxo-à-exceção é sempre presente, e diz respeito a maneira com que cada sujeito irá inscrever seu ser no Outro.

Assim, concluo a importância do entendimento dessa temática para o diagnóstico estrutural dos casos de psicose paranóica, bem como a direção no tratamento psicanálitico.

Referência

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SOLER, C. O Inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 2007.

Referências

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