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Pornográficos ou perigosos?: subjetividades de gênero nos romances de Adelaide Carraro (1963-1985)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

ADRIANA FRAGA VIEIRA

PORNOGRÁFICOS OU PERIGOSOS? SUBJETIVIDADES DE GÊNERO NOS

ROMANCES DE ADELAIDE CARRARO (1963-1985)

FLORIANÓPOLIS 2020

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ADRIANA FRAGA VIEIRA

PORNOGRÁFICOS OU PERIGOSOS? SUBJETIVIDADES DE GÊNERO NOS

ROMANCES DE ADELAIDE CARRARO (1963-1985)

Tese submetida ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Doutora em História, com área de concentração em “História Global”.

Orientadora: Prof.ª Drª. Janine Gomes da Silva

Florianópolis 2020

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ADRIANA FRAGA VIEIRA

PORNOGRÁFICOS OU PERIGOSOS? SUBJETIVIDADES DE GÊNERO NOS

ROMANCES DE ADELAIDE CARRARO (1963-1985)

O presente trabalho em nível de doutorado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Profa. Dra. Joana Maria Pedro

Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

Prof. Dr. Jair Zandoná

Universidade Federal de Santa Catarina -UFSC

Profa. Dra. Maria Teresa Santos Cunha

Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de doutora em História

_____________________________ Prof. Dr. Lucas de Melo Reis Bueno Coordenação do Programa de Pós-Graduação

____________________________ Profa. Dra. Janine Gomes da Silva

Orientadora

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Às mulheres que trazem sentido e afeto à minha vida (Júlia, Mariana, Cida e Valéria), e para tantas outras que desafiam os processos de subjetivação e enquadramento.

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AGRADECIMENTOS

À professora Janine Gomes da Silva, por me orientar no caminho das pedras, pela confiança que sempre expressou e pela condução firme, mas sempre gentil. Muito obrigada pela disponibilidade constante, pelos ensinamentos, pela liberdade que sempre me concedeu e o respeito sempre dispensado. Graças a essa condução, saio do doutorado carregada de memórias felizes que sempre me tranquilizaram nas horas difíceis.

Sou muito grata às professoras Tânia Regina Oliveira Ramos e Maria Teresa Santos Cunha por terem participado do exame de qualificação e terem realizado considerações fundamentais para a condução e conclusão do trabalho. Mas também pela forma carinhosa como o fizeram, sugerindo e não impondo, elogiando e mostrando as correções necessárias, sempre apontando caminhos possíveis. Foi de fato, outra experiência marcante e muito feliz.

Agradeço aos membros da banca, professoras Maria Tereza, Joana Maria Pedro e ao professor Jair Zandoná por aceitarem o convite e dedicarem seu tempo para ler este trabalho. Essa tese não poderia ser construída e finalizada sem estas contribuições.

Aos colegas da turma 2016 e aos docentes do Programa de Pós-Graduação em História que somaram e partilharam seus percursos, conhecimentos e experiências, transformando minha sensibilidade e me tornando uma pessoa melhor. Em especial ao grupo das “três mosqueteiras”, Dulceli Tonet Estacheski e Talita Gonçalves Medeiros, ambas tornaram minha estada em Florianópolis mais alegre e significativa, foram companheiras incríveis de jornada. Dulce, obrigada por me receber em sua casa no Paraná com tanto carinho, pelas confidências e ensinamentos; Talita, por me ajudar a encontrar um espaço de moradia e por dividir algumas das agruras de viver longe de casa. Juntas, as “três mosqueteiras” se inseriram em um propósito, partilharam tristezas e lágrimas, ajudando-se mutuamente, aplaudindo as conquistas e partilhando experiências que com certeza tornaram-se memórias muito queridas. Foi impossível não me emocionar neste momento da escrita. Vocês sempre estarão no meu coração!

Minha gratidão à colega Rejane, cuja amizade e solidariedade não esquecerei jamais. Ao Charles, Bruna e tantos/as outros/as amigos/as, que embora não citados, estão em minhas memórias e no meu coração, demonstraram um afeto genuíno ao comemorar e se orgulhar comigo. Muito obrigada, a caminhada sem esses afetos não teria sido a mesma.

À Mariana, minha filha, por estar comigo nesta trajetória de estudante da UFSC, viemos juntas em 2016 para Florianópolis, ela na condição de acadêmica do Curso de Odontologia. Foi uma experiência inusitada carregada de altos e baixos. Mas predominando sempre aquele

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sentimento de amparo e cuidado, de saudade e da alegria do retorno. Uma experiência linda que fortaleceu nossos laços de mãe e filha, e nesse percurso solidificamos juntas a noção de que o sucesso só vem antes do trabalho no dicionário. Obrigada por ser tão carinhosa enquanto eu muitas vezes não conseguia corresponder em razão das demandas e dilemas.

Ao Marco, meu companheiro, pelo apoio incondicional, esteve ao meu lado em todas as situações de forma firme e amorosa, incentivando e compreendendo as intermináveis horas de estudo e trabalho, e acima de tudo sempre orgulhoso, fazendo das minhas conquistas, as suas próprias. À Cida e a Júlia, cada uma a seu modo, foram capazes de compreender os momentos de ausência e dificuldades, sempre oferecendo suporte e amor. À Valéria, minha mãe, por sua presença cuidadora e gentil. À Cookie e a Lola.... Meus animaizinhos queridos! A existência de vocês tornou meus dias mais leves e felizes.

À família Coan, por estar na torcida e se orgulhar dessa conquista! A Deus, por me trazer serenidade e confiança, guiando meu coração pelas escolhas certas da vida.

À Adelaide Carraro (In memoriam), por escrever uma literatura forte e sensível, por transformar minhas subjetividades e me inspirar para a realização desta tese.

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Quem soube de mim em outros tempos Já não sabe de mim agora

Pois quando me quebraram

Meus pedaços foram arrumando novos lugares Mais lindos e mais fortes

Pra se encaixar nessa mulher que hoje escreve Com punhos firmes e nenhuma culpa

De existir como bem quer

Do livro “Tudo Nela Brilha e Queima”

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RESUMO

Adelaide Carraro (1929-1992) foi uma escritora de intensa produção literária no contexto da ditadura civil-militar no Brasil. Escrevia temas considerados fortes e polêmicos, ligados a questões sociais, sexualidade e política em uma época de intensa repressão cultural. Em suas obras são recorrentes temas ligados à sexualidade, ao casamento, ao adultério, à maternidade, ao aborto, à prostituição, à virgindade, à masturbação, à homossexualidade, entre outros. Em meio a temáticas, de certa forma, “espinhosas” para a época, a autora sai em defesa da libido feminina e do direito ao corpo, sem deixar de lado alguns dos valores tradicionalmente defendidos pela sociedade. Por abordar questões envolvendo a libido feminina e masculina suas obras foram classificadas como eróticas e pornográficas pelos censores que avaliaram treze dos quarenta e seis livros publicados. A despeito da censura, sua obra obteve ampla aceitação e foi sucesso de vendagens entre as classes populares. Os primeiros livros são autobiográficos e as composições literárias subsequentes prosseguiram ancoradas em narrativas de vida que ela afirmava recolher do cotidiano de São Paulo, oferecendo-as ao público como “estórias-verdade”. As relações de gênero, as representações sobre o corpo e a sexualidade, e as mazelas sociais marcam o conjunto de sua obra, que demonstra a intenção de propor a construção de novas subjetividades de gênero para um público predominantemente feminino dos anos 1970 e 1980. Esta tese analisa as subjetividades de gênero normativas e dissidentes oferecidas pela escritora brasileira Adelaide Carraro em sua produção literária e autobiográfica, centrada entre os anos de 1963 e 1985, período de contexto da ditadura civil-militar e emergência dos movimentos feministas. O estudo articula a vida e a obra da autora, entendendo-as como inseparáveis na compreensão da produção de subjetividades que serão oferecidas no discurso literário. As intersecções entre literatura, autobiografia e subjetividade estão alinhavadas ao contexto de repressão política e cultural do período, que deixou marcas em sua escritura e provocou uma complexa relação de atração-repulsa entre a escritora e o regime civil-militar estabelecido no Brasil em 1964. A literatura é um campo privilegiado para o estudo das sensibilidades que orientam a produção de sentidos e subjetividades de uma época, sendo a fonte principal desse estudo ao lado de autobiografias, entrevistas, jornais e processos de censura.

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ABSTRACT

Adelaide Carraro (1929-1992) was a writer of intense literary production in the context of the civil-military dictatorship in Brazil. She used to write about strong and controversial topics related to social issues, sexuality and politics in a time of considerable cultural repression. In her books, themes related to sexuality, marriage, adultery, motherhood, abortion, prostitution, virginity, masturbation, homosexuality, among others, are quite common. In association with thorny themes for that time, the writer defends the female libido and the bodily integrity, without neglecting some of the values traditionally defended by society. For addressing issues involving female and male libido, her books were classified as erotic and pornographic by censors who evaluated thirteen of her forty-six published books. Despite censorship, her work was widely accepted and successfully sold among the grassroots classes. Her early books are autobiographical and her subsequent literary compositions continued based on the narratives of life she claimed to observe in the daily life of Sao Paulo city, providing them to the audience as "true stories." Gender relations, representations of body and sexuality, and social weaknesses mark the whole set of her work, which reveals the intention to propose the construction of new gender subjectivities for a predominantly female audience of the 1970s and 1980s. This research aims to analyze the normative and dissident gender subjectivities offered by Brazilian writer Adelaide Carraro in her literary and autobiographical production, centered between 1963 and 1985, the period of the civil-military dictatorship and the emergence of feminist movements. The study seeks to articulate the author's life and work, taking them into account as inseparable in understanding the production of subjectivities that will be offered in the literary discourse. The intersections between literature, autobiography and subjectivity are aligned with the context of political and cultural repression of the period, which left marks in her writing and gave rise to a complex attraction-repulsion relationship between the writer and the civil-military regime established in Brazil in 1964. Literature is a privileged field for the study of sensitivities that guide the production of meanings and subjectivities of an era. It is the main source of this study along with autobiographies, interviews, newspapers and censorship processes.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Reportagem na Revista o Cruzeiro (1963) ... 49

Figura 2 – Contracapa do livro FEL - Falência das Elites (1965) ... 49

Figura 3 – Asilo Casa da Criança e do Trabalho (1935) ... 59

Figura 4 – Maria Préstia no asilo Casa da Criança e do Trabalho (1936) ... 61

Figura 5 – 5º aniversário do asilo Casa da Criança (1938) ... 73

Figura 6 – 6º aniversário da Casa da Criança (1939) ... 74

Figura 7 – Visita de Leonor Mendes de Barros à Casa da Criança (1940) ... 79

Figura 8 – Adelaide Carraro na revista O P’asquim (1977) ... 84

Figura 9 – “O Best seller de Adelaide” – Revista Fatos e Fotos (1963) ... 88

Figura 10 – Adelaide Carraro em autorretratos – Revista O Cruzeiro (1963)...105

Figura 11 – Adelaide Carraro e a escritora Maria Carolina de Jesus ...109

Figura 12 – Contracapa do livro “O Túmulo que Chora” (1978) ... 110

Figura 13 - Anúncio Comercial da revista Placar...114

Figura 14 - Anúncio Comercial no livro MAD.(A marca do adultério)...,,,.114

Figura 15 - Contracapa do Livro ML (Mulher Livre)...115

Figura 16 - Contracapa do livro GT (Gente)...115

Figura 17 – Capa do livro “Escritora Maldita?” (1976)... 140

Figura 18 – Capa da Revista Literária Escrita (1977)... 142

Figura 19 – Adelaide Carraro na Revista Manchete (1980) ... 143

Figura 20 – Capa do livro “O Túmulo que Chora” (1978) ... 144

Figura 21 – Capa do livro “Mulher Livre” (1979)...145

Figura 22 - Fotografia de Ângela Diniz...145

Figura 23 - Capas com sugestão afetiva e sexual...213

Figura 24 - Capas com sugestão de nudez ...214

Figura 25 - Capas sobre a mercantilização da sexualidade da mulher...216

Figura 26 - Trio de capas mulheres seminuas...216

Figura 27- Capa dupla do livro “Eu e o governador”...217

Figura 28 - Capa do livro Submundo da Sociedade... ...218

Figura 29 - Capa do Livro Carniça...219

Figura 30 - Capa dupla do livro “Os padres também amam”...220

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Figura 32 - Capas com títulos que remetem a sexualidade...222

Figura 33 - A censura sobre Cassandra e Adelaide...229

Figura 34 - Ilustração de reportagem da revista Stillus...239

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Dados relativos aos protagonistas ...275

Tabela 2 – Caracterização dos personagens e desfechos das tramas ... 276

Tabela 3 – Dados relativos às capas ... 279

Tabela 4 – Dados técnicos das obras ... 280

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS 1. Autobiografias de Adelaide Carraro

GOV – Eu e o governador EMP – Eu mataria o presidente FEL – Falência das Elites CT – O Comitê

GT – Gente – o dia em que fui presa CAR – Carniça

OPD- O Passado ainda dói

2. Livro de Cartas (recebidas de leitores) EM – Escritora maldita?

3. Romances de Adelaide Carraro ADP – A amante do deputado ACD- O Amante da Condessa OAM- Os Amantes

PRO – A Professora ADT – A Adúltera AVI – A Viúva

MAD – A marca do adultério MFL – A Mansão Feita de Lama MS – Mãe Solteira

CAST – O castrado TRA – O Travesti ML – Mulher livre

PPD – De prostituta a Primeira Dama PTA – Os padres também amam RTM – Os ricos também matam OTC- O Túmulo que Chora SS – Submundo da sociedade VDM – A vingança do metalúrgico FGH – Fogo – Só para Homens SP – Sexo Proibido

FS – Fugitivo do Sexo

CSM- O Caipira Super Macho ECD – Escuridão

SMA- Socorro! Estou Morrendo de AIDS POD – Podridão

ASC – Asco- Sexo em Troca de Fama ORG – Orgia na TV

VHA- A Verdadeira História de um assassino NHS- Na Hora do Sol

DC- Depois do Crime ES – O Enigma do sequestro OPV- O Pervertido

GF- Gosto de Fel ESR – Eu Sou o rei 4. Jornais

JCP – Jornal Correio Paulistano DN – Jornal Diário Nacional

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO... 21

2 CAPÍTULO 1: ADELAIDE CARRARO: A ARTESANIA DE UMA ESCRITORA DE ROMANCES EM SEUS REENCONTROS COM O TEMPO...43

1.1 Memória e autobiografia em Adelaide Carraro: convergências, interações e tessituras na elaboração de subjetividades literárias ... 43

1.2 Sobre a autobiografia Eu Mataria o presidente: Leituras/memórias da Era Vargas em parágrafos de subjetividades ... 57

1.3 Sobre a autobiografia Eu e o Governador: entre denúncias políticas e as escritas de si ... 85

3 CAPÍTULO 2: GÊNERO, CLASSE E RAÇA NAS PÁGINAS DO ROMANCE: CONSTRUÇÕES E INTERSECÇÕES LITERÁRIAS EM UM DISCURSO DE “VERDADE”... 108

2.1 Ficção, autobiografia e romance: Adelaide Carraro e o discurso da “verdade” .... 108

2.2 As (des) construções binárias de gênero, classe e raça nos romances ... 121

2.3 Construções literárias de uma “escritora maldita” na metrópole paulista... ... 139

4 CAPÍTULO 3: SUBJETIVIDADES DE GÊNERO NA LITERATURA DE UMA “ESCRITORA MALDITA”...159

3.1 Casamentos, adúltérios e conjugalidades: entre normatividade e transgressão... 159

3.2 Notas de subjetividades sobre maternidade e aborto nas páginas literárias de Mãe Solteira e Escuridão.. ... 172

3.3 Dispositivos do corpo e da sexualidade (des) construindo o “sexo frágil” e afirmando a libido da mulher ... 179

5 CAPÍTULO 4: MARCADA PARA CENSURAR ... 207

4.1 “O que quer esse texto?”Discurso narrativo e efeito pornográfico em questão ... 207

4.2 Na contra (capa) da ordem... 212

4.3 A Censura e o regime civil-militar: uma escritora de pornografias na lista do Index... 223

4.4 “Largo ou não largo a caneta?”: subjetividades de uma escritora censurada ... 241

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 258

7 FONTES ... 264

8 REFERÊNCIAS ... 268

9 APÊNDICE A – TABELAS ... 275

10 APÊNDICE B – SINOPSES DAS AUTOBIOGRAFIAS...283

11 APÊNDICE C – SINOSPSES DOS ROMANCES...292

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INTRODUÇÃO

Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem todas posso contar.

(LISPECTOR, 1975, p.50)

Conheci a obra de escritora Adelaide Carraro quando tinha oito anos em uma tarde do verão de 1983. Recordo-me que naquele dia olhava pela janela e fitava a rua sem cobertura asfáltica enlameada pela chuva, e as casas escuras de pirita do carvão que circundavam a minha vizinhança, tão comuns na paisagem de Criciúma/SC; cidade que por décadas afirmou sua economia na extração do carvão mineral. Um recente e efêmero temporal impedia-me de realizar as brincadeiras e traquinagens com os amigos pelas ruas do bairro como costumeiramente fazia, mas ocorreu-me que um prédio recentemente construído no bairro possuía um elevador. A brincadeira consistia em subir e descer apertando vários botões ao mesmo tempo, uma distração apreciada pelas crianças com as quais convivi.

Entrei no prédio sorrateiramente e comecei a brincar, mas logo a brincadeira perdeu a graça, pois o elevador parou e as portas, ao abrirem-se, revelaram as paredes de concreto da construção. Foram apenas alguns segundos de desespero, suficientes para que eu, muito assustada e com o coração aos sobressaltos, resolvesse descer assim que o elevador parasse no próximo andar solicitado. Ao descer procurei a escada como rota de fuga, mas avistei de forma inesperada uma caixa de papelão cheia de livros repousados ao lado da porta de um dos apartamentos. As imagens das capas aguçaram-me a curiosidade, sobretudo porque eram “expressamente proibidas para menores de 18 anos”. Eu de fato acreditava estar diante de um “tesouro” que poderia valer horas de distração, e assim resolvi levar alguns livros, tantos quantos a força física fosse capaz de suportar, e sai silenciosamente temendo ser surpreendida por algum adulto.

Retornando para casa e consciente que fazia algo errado, resolvi que o melhor local para esconder o produto do “crime” era o porão de chão batido, local que os adultos dificilmente visitavam porque só conseguiam entrar ali agachados. Um buraco foi cuidadosamente escavado e forrado com plástico para acondicionar os nove livros que eu havia conseguido carregar comigo, e assim poder me dedicar a uma leitura clandestina, dadas às circunstâncias em que

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22 eles foram obtidos. Todas as manhãs, após o café, eu me dirigia até o porão e me entregava às leituras que rendiam horas de distração e muito prazer; sempre vigilante aos movimentos da minha mãe que às vezes, entre os afazeres domésticos, voltava sua atenção para mim. As histórias de Adelaide Carraro me acompanharam até o início da adolescência, livros que eu muitas vezes revisitei; tornaram-se de fato “culpados” pela competência leitora que eu singularmente apresentava estando em pleno processo de alfabetização, destoando dos colegas de classe e despertando suspeita na “tia Maria”, minha professora do terceiro ano.

A pequena coleção foi mantida em segredo com muito cuidado por vários anos e no fim da adolescência comecei uma tarefa quase “arqueológica” para adquirir o restante da obra composta por quarenta e seis livros1. Quando visitava o porão todos os dias para ler e reler essas

histórias fui atingida por experiências literárias marcantes; graças à Adelaide Carraro tornei-me leitora de literatura na vida adulta, escritora que ao lado de Cassandra Rios2, foi considerada

pela crítica literária e pela censura do regime civil-militar de 1964 como uma das pornógrafas do Brasil (OTERO, 2003).

Adelaide Carraro (1929-1992) foi uma escritora que ficou conhecida no Brasil por produzir uma literatura erótica rotulada de pornográfica 3. Infere-se que o rótulo de escritora

pornógrafa pode ser decorrente das imagens de mulheres seminuas nas capas dos livros e a um estilo narrativo erótico, características que serviram para os censores do período ditatorial vetar muitas obras e acrescentar em outras a advertência de que se tratava de um conteúdo “expressamente proibido para menores de 18 anos”.

1 Formar esse arquivo pessoal exigiu tempo e paciência. Após os nove títulos obtidos na infância, passei a garimpar as demais obras na década de 1990. Alguns foram comprados pelo reembolso postal e outros doados por amigos que sabiam da minha apreciação pela escritora. Mesmo assim, a coleção só avançou em 2005 quando passei a visitar sebos de várias cidades. Em 2014 faltavam quatro livros e para adquiri-los investi na Internet, entrei em contato com vendedores/as cadastrados no site da Estante Virtual, informei meu interesse e dados de contato. Foi nessa forma de investimento que também consegui adquirir revistas que traziam reportagens sobre Adelaide Carraro.

2 Cassandra Rios (1932-2002) é filha de espanhóis, mas foi criada em São Paulo no bairro de Perdizes. Tornou-se escritora de romances nos anos 1960 nos quais o amor lésbico e outras sexualidades desviantes figuravam como temáticas centrais. Durante os anos 1970 teve 17 obras apreendidas pela censura do regime civil-militar brasileiro. In: (SILVA, 1989).

3 A palavra pornografia, em seu sentido etimológico – pornos (prostituta) e grafo (escrever) sugere uma “escrita sobre prostitutas”. Sendo ainda interessante pontuar que pornos deriva do verbo pememi (vender). Entretanto, essa referência etimológica foi se transformando culturalmente e se associando a significados mais amplos e carregados de subjetividade, nomeando qualquer tipo de manifestação contrária aos valores morais estabelecidos. Uma discussão mais detalhada a respeito do termo pornografia e obscenidade será tratada no quarto capítulo desta tese. In: (LONDERO, 2016, p. 65).

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23 Sua obra é composta por 46 livros, sendo sete autobiografias, um livro de cartas, quatro paradidáticos 4 e trinta e quatro romances. Taxada de “escritora maldita” 5, mesmo censurada e

perseguida conseguiu obter a fidelidade de um público leitor interessado nas tramas romanescas publicadas, muitas das quais alcançavam grande sucesso editorial na época. O próprio processo de compra dos livros favorecia o anonimato e o segredo para os leitores que assim o desejassem, já que eles não estavam disponíveis nas livrarias mais próximas. A compra era solicitada à editora e ocorria por meio de reembolso postal, aguardavam o livro pelo correio e podiam usufruir de uma leitura considerada imprópria na privacidade do quarto.

O primeiro livro, Eu e o Governador (GOV) foi escrito em 1963 e tornou-se o seu best-seller, sendo o texto mais polêmico com ampla repercussão e sucesso de vendas com muitas reedições. Como escritora, caracterizou-se pela voracidade e urgência na escrita, lançando em média um livro a cada seis meses, a partir de histórias que ela dizia recolher do cotidiano da cidade de São Paulo. Nas entrevistas e prefácios, nunca se apresentava como escritora de ficção, tampouco se preocupava com o apuro jornalístico das histórias que lhe inspiravam. Usava a verossimilhança para compor o que ela chamava de “verdade nua e crua”, explicitando claramente a ideia de que a experiência humana contém em si uma verdade que precisa ser transposta para o relato. A metáfora da “verdade nua e crua” seduziu-me na infância, tornando-me uma leitora a crer ingenuatornando-mente em “estórias-verdade”, mas motivando-tornando-me também para a elaboração desta tese.

O primeiro estudo publicado sobre Adelaide Carraro foi de Waldenyr Caldas (2001). A problemática principal que orientou seu trabalho reside em dois aspectos principais, o da sexualidade e o alcance social. Trata-se de um viés sociológico que levou Caldas a realizar entrevistas com 421 leitores, vendedores de livrarias no centro de São Paulo e com a própria Adelaide Carraro. O estudo das obras da escritora constitui-se, segundo ele, de extrema

4 As autobiografias e romances podem ser consultadas separadamente na lista de siglas e nos apêndices B e C. Os títulos paradidáticos são: CARRARO, Adelaide. Meu professor, meu herói. São Paulo: L.Oren, 1982; Estudante I – Estoria verdade de uma geração em conflito consigo mesmo. São Paulo: L.Oren, 1982; Estudante II – Mamãe querida. São Paulo: L.Oren, 1988; Estudante III - por um Brasil sem racismo. São Paulo: L.Oren, 1991. Nesta tese os quatro títulos paradidáticos não serão considerados como corpus documental porque seguem uma orientação literária diferente do conjunto.

5 Discutiremos no segundo capítulo as possíveis razões que levaram Adelaide a ser rotulada de “escritora maldita”. O rótulo aparece como título de um dos livros autobiográficos da escritora publicado em 1976 e em propagandas produzidas pela editora Lóren para aguçar a curiosidade dos leitores. Entretanto, muitos outros escritores/as também eram chamados de “malditos da literatura” em razão dos temas que abordavam ou da forma de escrita. Em 1977, a revista paulista Extra publicou um dossiê intitulado de “Malditos Escritores”, tratava-se de um dossiê de contos escritos por nomes como Plínio Marcos, Chico Buarque, Antônio Torres, Wander Piroli, Marcos Rey, Márcio Souza, Aguinaldo Silva, Tânia Faillace, e João Antônio. In: RIAUDEL, Michel. Malditos VS marginais? Teresa Revista de Literatura Brasileira, número 15; São Paulo, 2015, p. 89.

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24 importância, menos pela qualidade literária do que por sua ressonância 6 junto ao público.

Caldas classifica o trabalho de Adelaide Carraro como “paraliteratura de imaginação” (CALDAS, 2001, p.119), cuja narrativa segue a fórmula dos romances populares do século XIX, os quais, respeitando a linearidade do enredo, preocupam-se em determinar a sorte de todos os personagens e os últimos acontecimentos da trama. E nisso reside, na opinião de Caldas, a fórmula do seu sucesso, ou seja, parte de um modelo padrão de narrativa que contém todos os elementos de aceitação por parte do grande público. Assim como a tessitura de uma teia segue uma racionalidade própria e constante, o discurso de Adelaide também o faz, cria estruturas recorrentes (expressões clicherizadas), deixa de lado a tensão verbal (trabalho estilístico mais apurado da linguagem), traz esquemas prontos de sentimentalização, segue uma linearidade e peca pela falta de criatividade temática.

Mas se existe uma estrutura pré-determinada e, com efeito, conhecida do grande público, se os discursos e temas são redundantes, em que reside o sucesso de venda de Adelaide Carraro? Para Caldas a fórmula está dada a priori, cabendo ao autor adicionar apenas um “tempero”, usar o modelo e com ele compor uma narrativa que provoque sentimentos e sensações em seu público leitor. Segundo ele, os personagens literários de Adelaide Carraro apresentam um comportamento sexual padronizado, os homens se caracterizam “como seres perversos, perigosos, que em seus contatos com as mulheres objetivam basicamente o prazer corporal da relação sexual” (CALDAS, 2001, p. 120). As mulheres, por outro lado, são ingênuas, puras e desprovidas de malícia, até encontrar um homem que a desvirtue em seu comportamento sexual. Conclui analisando os perigos ideológicos que o discurso da autora pode incutir no seu público leitor, levando-os a absorver concepções deformadas da sexualidade, transformada em mercadoria, condicionada a um ato de interesse. Além disso, sua força, carisma e liderança junto ao público leitor, podem criar imagens deturpadas e estigmatizantes sobre a classe dirigente política (CALDAS, 2001, p.175). Sendo assim, a obra de Adelaide Carraro “não comportaria um estudo literário capaz de contribuir com qualquer outra coisa que não fosse a constatação de uma literatura, de um tipo de romance, amoldado ao modelo linear” (CALDAS, 2001, p. 79).

6 O conceito de ressonância envolve difusão e apropriação. As narrativas literárias ressoam discursos, subjetividades, produzindo diferentes ecos naqueles/as que a leem. GrenBlatt, entende ressonância como “(...) o poder do objeto exibido de alcançar um mundo maior além de seus limites formais, de evocar em quem os vê as forças culturais complexas e dinâmicas das quais emergiu e das quais pode ser considerada pelo espectador como uma metáfora ou simples sinédoque”. In: (GRENBLATT, 1991, p. 250).

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25 Contrariando a opinião de Caldas, Pedro de Castro Amaral Vieira realizou um estudo literário comparativo entre a obra de Adelaide Carraro e a de Cassandra Rios. Apesar de observar que todo escritor é a figura do seu tempo ele não se detém no contexto de produção, mas nas características literárias que aproximam e distanciam as duas autoras consideradas como pornográficas. Analisou treze livros de Adelaide e concluiu que em sua obra o corpo feminino é um território em constante disputa pelos homens, o sexo e os órgãos sexuais são recorrentemente descritos com adjetivos que realçam os aspectos negativos. O sexo decorrente do amor romântico é quase inexistente, e os homens são destituídos de sua humanidade, retratados como “monstros”.

Guardados os devidos distanciamentos teóricos e metodológicos, e das críticas que Vieira (2010) tece a Caldas (2001) por realizar uma análise demasiadamente pejorativa sobre Adelaide Carraro, ambos concordam em alguns aspectos. Para eles, essa é uma literatura direcionada aos interesses dos grupos populares, os enredos até pretendem à crítica política, mas encenam relações de gênero violentas que vitimizam as mulheres e demonizam os homens. Questiono-me, situando-se nesse debate, como uma literatura de ampla abrangência pode ter tanto sucesso, se ressalta relações sociais e sexuais transgressoras, más e violentas, e recorre a recursos grotescos de linguagem? Se ela partiu de uma fórmula dada a priori, como sugere Caldas, qual foi o “tempero” acrescentado, quais sentimentos e sensações são oferecidos a ponto de seduzir um amplo público leitor?

Conjectura-se que a defesa de alguns dos valores morais vigentes como a manutenção da família e do casamento, a virgindade e a sexualidade heteronormativa, associados de forma aparentemente contraditória aos da revolução sexual em curso, despertou a curiosidade de um público feminino que vivenciava a cada década a apresentação de uma nova ética conjugal e sexual. A dicotomia entre o velho e o novo seduziu mulheres que passaram a consumir essa literatura, muitas vezes de forma clandestina. Meu argumento e tese deste trabalho é que o “tempero” literário que a escritora adicionou à sua receita, e que a tornou um perigo aos olhos dos poderes que se constituíram a partir de 1964, está centrado na apresentação de algumas das novas subjetividades de gênero trazidas pelo movimento feminista dos anos 1960 e 1970.

Para Suely Rolnik, “subjetividade é o perfil de um modo de ser, de pensar, de agir, de sonhar, de amar, etc. que recorta o espaço, formando um interior e um exterior” (1997, p.1). Comungando com as reflexões de Rolnik (1997; 2006), Scott (2006) e Butler (1995), entendo como subjetividades de gênero a construção íntima de posicionamentos e sentimentos sobre o que significa ser homem ou ser mulher, posicionamentos construídos a partir de encontros,

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26 afetos e das relações de poder estabelecidas entre as pessoas, criando modelos de identificação cultural. Os posicionamentos culturais constroem um mundo cognitivo nos indivíduos e mobilizam expectativas e correspondências sociais sobre valores relativos à sexualidade, à conjugalidade, entre outros.

A escritora oferece subjetividades tradicionais que reafirmam o casamento na mesma proporção em que a critica como metáfora da prisão dos sonhos e liberdades femininas; decreta a virgindade como valor, mas sugere que se repense a importância social atribuída a uma membrana. Subjetividades que defendem a equidade de gênero no que se refere ao direito ao corpo e à sexualidade da mulher, desvinculando as práticas sexuais da noção de pecado e do lugar da domesticidade; ao mesmo tempo em que reafirma a heteronormatividade e patologiza o amor homossexual. Assim, questiono-me sobre as relações de gênero e de ética sexual construídas pela autora a ponto de torná-la um sucesso de vendagem nas décadas de 1960 e 1970, mas também uma das recordistas em títulos censurados pelo regime militar 7. O estudo

da constituição de novas subjetividades de gênero na literatura de Adelaide Carraro, publicadas em plena época do movimento feminista dos anos 1970 e da ditadura civil-militar, constitui o enfoque principal desta tese.

Esta proposta se diferencia em relação aos dois trabalhos já citados sobre a escritora em vários pontos, articula vida e obra, entendendo-as como inseparáveis para a compreensão da construção dos enredos e das narrativas; busca pensar além das características literárias e discursivas em torno do binômio sexualidade/política, situando-as dentro e a partir das relações de gênero estabelecidas; e inserindo o componente das subjetividades como de vital importância na compreensão da aceitação e/ou rejeição de posições e valores sociais, culturais e políticos por parte da autora. Além disso, articulo as categorias gênero, classe e raça, entendendo-as de forma relacional e interseccional, categorias que possuem um peso discursivo considerável nesse discurso literário. Por outro lado, procuro situar a autora dentro do seu tempo histórico, realizando um movimento de compreensão das relações estabelecidas entre ela e o regime civil-militar brasileiro, desnudando motivações e colocando em xeque discursos que levaram a censura de um número considerável de suas obras. Nesta relação importa ainda pensar as subjetividades que expressou diante das arbitrariedades e violências sofridas ao longo do

7 Adelaide Carraro teve treze títulos censurados em um total de cem obras classificadas como eróticas e vetadas pelos censores. Os livros vetados pela censura foram: Carniça; O castrado; O Comitê; De prostituta a primeira

dama; Escuridão; Falência das elites; Os padres também amam; Podridão; Sexo em troca de fama; Submundo da sociedade; A verdadeira história de um assassino; Mulher livre e Os amantes. In: (REIMÃO, 2014, p. 75-90).

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27 processo de convivência com o regime político de exceção. Questões que serão tratadas no decurso do último capítulo desta tese.

Situar uma escritora em seu tempo histórico também implica pensar no modo como ela dialoga com os valores culturais e sociais que marcam as mudanças e permanências de sua época. Nesse sentido, o discurso literário de Adelaide está voltado a temas relacionados ao casamento, ao adultério, à maternidade, à sexualidade, ao aborto, ao incesto, à prostituição, à virgindade, à masturbação, entre outros. Em meio a temáticas de certa forma “espinhosas” para a época, a autora sai em defesa da libido “feminina” e do direito ao corpo, sem, no entanto, deixar a defesa de alguns dos valores tradicionalmente defendidos pela sociedade. Por abordar conflitos envolvendo a libido de mulheres e de homens é que suas obras são rotuladas de pornográficas. Historicamente, as diferenças sexuais sempre foram pensadas como atributos individuais e imutáveis, mas nas últimas décadas, as considerações a respeito do sexo e do gênero vêm questionando esse discurso e reelaborando novas formas de pensar sobre o “masculino” e o “feminino” 8. Joan Scott (1995) chamou a atenção para o determinismo

biológico que colocava as mulheres numa posição social subalterna, buscando compreender porque se atribuiu valores culturais ao “feminino” e “masculino” que acentuavam as desigualdades entre homens e mulheres. A partir de novas reflexões e considerações, o gênero passou a ser visto como uma elaboração cultural, o resultado de um processo histórico e social que atribui valores de identificação ao “feminino” e “masculino”, os quais podem ser influenciados por diferenças de classe, etnia, geração etc. De atributo individual e imutável, o gênero passou a ser o efeito de relações que constroem e reconstroem continuamente certas identificações (SCOTT, 1995).

Dentro do pensamento feminista desenvolvido a partir do final dos anos 1960, o gênero passou a ser o resultado de um conjunto de identificações culturais por meio do qual as pessoas se relacionam e se compreendem, mas o sexo ainda estava preso ao determinismo biológico e a construção discursiva ligada a identificações binárias. Nicholson (2000) adverte para os riscos em conceber o corpo como uma “porta-casacos” da cultura, suporte pelo qual os diferentes registros culturais se inscrevem e se manifestam. Essa noção essencialista impede que as

8 O uso adjetivo das palavras “feminina/o” e “masculino/a” é considerado problemático pelo pensamento feminista atual por ser universalizante e marcado por uma lógica binária de representações culturais sobre as categorias gênero, sexo, sexualidade e corpo, problematizando e ocultando o reconhecimento que marca as diferenciações na identidade de cada um. Sempre que os termos forem aqui utilizados estarão marcados pelos usos das aspas para demarcar um entendimento dos problemas e implicações que o uso traz implícito. Para esta discussão ver: PEDRO, Joana Maria e GROSSI, 1998.

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28 diferenças entre homem e mulher sejam devidamente pensadas (NICHOLSON, 2000). Este foi um dos “problemas de gênero” mapeados e discutidos por Judith Butler, para quem a binariedade sexo/gênero é uma noção equivocada, pois realiza uma oposição que atrela o sexo à natureza e o gênero à cultura, não levando em consideração que ambos são constituídos discursivamente pela cultura. Para Butler, as identidades são resultado de performances construídas pelo sujeito a partir de um leque de referências, em um jogo de identificações e diferenciações entre um “eu” e um “outro”. De modo que sexo e gênero são efeitos de posicionamentos ligados a construções identitárias estabelecidas em contextos culturais diversos (BUTLER, 2016, p. 24-27).

Posicionamentos que deslocam a representação material e simbólica inscrita historicamente nos corpos, criando novos modos de ser, vestir, falar, portar-se e mostrar-se que fogem aos padrões definidos e impostos culturalmente ao que significa ser homem e ser mulher. Esses deslocamentos foram captados pela crítica feminista que, por outro lado, também passou a pensar nos significados relacionados ao conceito de masculinidade e sua posição hegemônica em relação às mulheres. Conceito que reforça modelos de identificação dentro e a partir de instituições como a família ou a escola, mobilizando expectativas e correspondências sociais (LOURO, 2000); criando imagens deformadas e produtos culturais que se materializam em discursos de poder sobre os corpos e objetos aos quais se impõe (BUTLER, 2000), orientando-os em uma suporientando-osta in/adequação ao consumo com base no discurso de gênero (MATOS, 2001). Para Connell, o próprio conceito de masculinidade precisa ser repensado em reconhecimento de que o mundo humano é plural, diversificado e cambiante (CONNELL, 2013, p. 241-242).

As reflexões apontadas pelos estudos de gênero mostram muitos alertas para os quais a atenção deve ser redobrada no momento de análise das fontes. Sobretudo em relação às categorias dadas como naturais que constroem hierarquias discursivas sobre os significados possíveis e permitidos ao “masculino” e “feminino”, aos homens e às mulheres. As relações de gênero apresentadas pela autora são, com efeito, consideradas pelos poderes instituídos como transgressoras, patológicas e pecaminosas porque atribui muita importância à nudez e à sexualidade, sobretudo das mulheres. A sociedade, por outro lado, interessou-se em entender como se desenrolavam por meio dos personagens, essas novas relações. Não se observa, na obra de Adelaide, o gênero como uma história isolada das mulheres ou dos homens. Não o homem, não a mulher, mas os homens e as mulheres, diferentes uns em relação aos outros e entre eles/as próprios/as, contudo, só compreensíveis em uma perspectiva relacional.

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29 Com a ajuda dessas balizas teóricas busco mapear na literatura de Adelaide Carraro as permanências e as mudanças em termos de valores de gênero, a forma como as relações são propostas, construídas e constituídas discursivamente, quais subjetividades são defendidas e/ou rejeitadas em meio ao conservadorismo do regime civil-militar por um lado, e ao liberalismo dos contextos culturais e feminista dos anos 1970 por outro. Além do gênero, a subjetividade é outra categoria central para este estudo, e me conduz a conhecer mais sobre o funcionamento dos processos subjetivos por meio das reflexões de Suely Rolnik, e com ela realizo “uma insólita viagem à subjetividade” (1997).

De acordo com Rolnik, o processo vivencial e a cultura em seus vários modos – artística, musical, filosófica, literária, só é produzida a partir da orientação de um modo de subjetivação específico, por outro lado e reciprocamente, essa mesma cultura também orienta a delineação de novas subjetividades no campo individual. Constatação de que a compreensão do processo de subjetivação que levou Adelaide a construir sua obra literária a partir de uma orientação ética específica, deve levar em consideração as relações de forças que atuaram na delineação do seu modo de ser, pensar, sentir, das escolhas possíveis e das sonhadas, dos caminhos trilhados e dos desejados, da constituição subjetiva de ser mulher ou de ser escritora, dos medos e angústias que levaram as in/decisões, fugas ou embates, mudanças ou permanências.

Junto com Rolnik realizo então uma viagem imaginativa para tornar inteligível o complexo processo de formação da subjetividade humana, criada por forças variáveis e efêmeras a partir de um conjunto ilimitado de combinatórias oriundas do meio familiar, profissional, social, afetivo etc. Cada força combinatória cria um perfil de subjetividade capaz de encapsular um modo de existência, subjetividade que procura uma estabilidade possível, desejada, ainda que efêmera pela sua própria constituição. Toda subjetividade é transitória, temporária porque mesmo contida em um interior secreto e ilusoriamente inatingível, não está imune às forças externas cotidianas que estão em permanente agitação em seu exterior; para Rolnik “a experiência da desestabilização reiteradamente repetida ao longo de toda nossa existência, é efeito de um processo que nunca para e que faz da subjetividade “um sempre outro”, “um si e não si ao mesmo tempo” (ROLNIK, 1997).

A subjetividade é como as dobras da pele, que fazem e se refazem quando do contato com o ambiente externo, processo instável, desestabilizador, transitório e contínuo. A pele contém a subjetividade e a separa do mundo exterior, mas não funciona como uma barreira porque é formada por poros condutores de impressões, opiniões, sentimentos, afetos, orifícios por onde flui a comunicação. A permeabilidade da “pele”, metáfora de uma fronteira imaginária entre

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30 um eu interior e o exterior referente, é o que torna possível o contínuo devir subjetivo; causado pela “fricção” de contato e desencadeando um estado de estranhamento que nos afeta de forma cotidiana nos mais diferentes aspectos. Esse estado provoca incômodos, inquietude e desassossego, isso porque desestabiliza certezas, provoca mudanças e questionamentos - nem sempre desejável -, desfaz ligações identitárias. O processo ilimitado de formação e dissolução das subjetividades não tem uma fluidez fácil, costuma ser interrompido para aqueles que se agarram às identidades, do mesmo modo que um viciado à sua dependência aos tóxicos. O vício consiste em resistir à desestabilização, negar a possibilidade de abertura a novas perspectivas. Para estes, as forças que impulsionam a criação de novas dobras subjetivas são portadoras de sofrimentos e embates cotidianos capazes de manter a estabilidade das antigas dobras, e com elas as velhas certezas, ainda que reacionária e paralisante no que Rolnik chama de potência criadora humana (ROLNIK, 1997).

Em Cartografia Sentimental Suely Rolnik (2006) especifica mais detalhadamente o seu entendimento sobre a formação dos processos de subjetivação em relação às realidades políticas, sociais e culturais, processo que ela denomina de micropolíticas do desejo. Para se apropriar de “universos psicossociais”, Rolnik assume a posição de cartógrafa, porque para ela as cartografias, diferentemente do mapa, acompanham as transformações da paisagem que em seu caso são psicossociais. Paisagens psicossociais são mundos cognitivos criados e desmantelados a partir de encontros que produzem afetos capazes de compor um território existencial (2006, p. 24-25). Um novo universo psicossocial é produzido por meio do desejo enquanto sinônimo de produção, mudança, técnicas de subjetivação diante dos mais variados contextos cotidianos. Todos nós possuímos o que Rolnik chama de “corpo vibrátil”, ele é responsável por acionar a produção do desejo em três movimentos distintos, sempre que for tocado por um referente cognitivo externo. E sempre que o movimento do desejo acontece, novas subjetividades são criadas.

Nossos territórios existenciais não são fixos, eles podem ser desestabilizados pelo despertar do nosso “corpo vibrátil” quando se torna sensível a qualquer fator externo de a(fe)tivação, um passeio, um poema, sonoridades, ideias, cheiros, encontros ou desencontros. Sendo o desejo produzido por afetos e intensidades, qualquer desorientação do “corpo vibrátil” funciona como fator de (des)afetivação; provocando em nós um contra movimento que repele a capacidade de afetar e ser afetado. Momento em que os territórios existenciais alimentados por afetos que não fazem mais sentido são abandonados, e a sensação de desorientação nos leva a viver o movimento do desejo como caos porque ele não encontra mais conexões para se

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31 expressar. A dissolução de dobras subjetivas que modificam territórios existenciais é uma experiência de caotização da existência humana, experiência que desorienta, desestrutura o sujeito em sua direção para fabricar outros mundos. Mundos psicossociais são produtores do real social, o movimento do desejo produtor de subjetividades e territórios só existe em relação com a realidade, com o real social e dele não se opõe ou dissocia. A subjetividade vive com o exterior e por meio dele se constitui e o constitui, não vive em exterioridade com o mundo social, ao contrário, o produz dialeticamente em um movimento incessante de criação e destruição (ROLNIK, 2006, p. 42-46).

Nesse momento coloco-me a refletir sobre uma das subjetividades propostas por Adelaide às suas/seus leitoras/es, aquela que se refere a defesa da libido das mulheres, a noção de que o corpo “feminino” é repleto de zonas erógenas, e atribuindo-lhe, por natureza, um direito inalienável de sentir prazer sexual, direito historicamente concedido ao homem. Em termos biológicos, o corpo “feminino” é apresentado por Adelaide em uma relação de equivalência erógena ao “masculino”, deslocando e transformando o discurso do prazer vinculado à noção do pecado e, sobretudo do sexo como atividade vinculada à reprodução. Penso que subjetividades liberais se tornaram mais “palatáveis” às leitoras mais conservadoras porque mesclavam-se com outras culturalmente defendidas, como a defesa da virgindade e do casamento. Novas propostas no exercício das relações de gênero mesclavam-se com as já existentes, penetravam nos orifícios sensoriais, criavam um conjunto de combinatórias e delineavam um novo perfil subjetivo.

Ao pensar na produção de subjetividades de gênero na literatura interrogo-me sobre aspectos relativos à vida da autora, uma vez que o sujeito não está separado de sua época e das sensibilidades construídas ao longo das vivências e experiências do tempo. Suspeito que algumas das formas de subjetivação propostas nos romances podem ter se originado nos processos vivenciais anteriores à vida de Adelaide como escritora, como assinala Nicolau Sevcenko, ao usar a metáfora da árvore nos diz que todo autor é produto de seu tempo e a obra um resultado das condições políticas, sociais e culturais de uma época, as quais são, em última instância, a condição mesma de sua possibilidade de existência:

Fora de qualquer dúvida: a literatura é antes de mais nada um produto artístico, destinado a agradar e a comover, mas como se pode imaginar uma árvore sem raízes, ou como pode a qualidade dos seus frutos não depender das características do solo, da natureza, do clima e das condições ambientais? (SEVCENKO,1999, p. 20)

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32 Desse modo, as subjetividades literárias não podem ser pensadas fora do campo contextual que as tornaram possíveis, o que inclui a construção subjetiva do eu individual da escritora, suas referências e elaborações existenciais. Adelaide Carraro narrou-se de diferentes maneiras e suportes, exercitou escritas de si em autobiografias, prefácios, entrevistas, autorretratos e até como personagem- narradora dos romances. Ao me debruçar sobre o “espaço biográfico” (ARFUCH, 2010) por ela criado, percebi que a literatura constituía também uma forma de reencontro com o tempo, exercício contínuo de escrita de si, pela qual o eu subjetivo se reconstitui e se ressignifica continuamente.

Subjetividade, memória e escrita de si percorrem toda a sua produção literária e me fazem questionar sobre sua infância e adolescência, sobre como o passado é tecido e afirmado na escrita autobiográfica; e se em torno do qual é possível perceber elos de identificação, alinhavamentos com as histórias narradas nos romances literários. Se as narrativas autorreferenciais são capazes de iluminar alguns dos deslocamentos subjetivos apresentados posteriormente na vida adulta em outras narrativas de caráter romanesco; se são oriundos de desconfortos, tristezas, violências e embates discursivos a respeito de opiniões, situações e conflitos que fizeram parte da sua história de vida. Suas autobiografias revelam-se a partir de traumas e sofrimentos, e, para Arlette Farge, o sofrimento também deve ser percebido pelos historiadores como “lugares para a história”:

O sofrimento é considerado desde então como a evidente consequência deste ou daquele fato, ou de tal decisão política; é um bloco em si, uma entidade não estudada enquanto tal. Os gestos que o provocam, as racionalidades que a ele conduzem, as palavras que o dizem de tal e tal maneira e aquelas que o acompanham – para suportá-lo ou negá-suportá-lo, heroizá-suportá-lo ou lamentá-suportá-lo – não figuram sobre um objeto pleno sobre o qual refletir e como algo que entra em interação com os acontecimentos. Há sistemas relacionais e culturais que fazem das palavras de sofrimento um mundo a compreender, e não um dado inevitável (FARGE, 2015, p.14-15).

Acredito ser de suma importância refletir sobre os sofrimentos narrados nas autobiografias porque é pelo olhar do sofrimento que ela reinterroga a vida e as memórias, orienta o processo da escrita literária e constrói suas subjetividades. Em termos metodológicos, as subjetividades de gênero foram buscadas na leitura e fichamento dos romances, entrevistas e autobiografias, fichamentos selecionados em quatro grupos de categorias como eixo organizador da análise. O primeiro grupo refere-se às autobiografias e entrevistas, nelas busquei conexões entre a vida e obra, indícios de subjetividades oferecidas nos romances. O segundo grupo envolve a compreensão das características literárias de sua obra por meio do perfil da heroína/herói no que concerne a aspectos físicos e morais, condição social, idade, escolaridade,

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33 profissão e ambiente urbano/rural onde as tramas se desenrolavam. O terceiro grupo buscou mapear as subjetividades de gênero nos romances utilizando as categorias ligadas ao casamento, à virgindade, ao corpo, ao sexo, à sexualidade, ao adultério, à prostituição, à masturbação, à homossexualidade, ao aborto e à família. Um quarto eixo direcionou meu olhar para a forma como classe e raça são discursivamente construídas e o modo como se articulam ao gênero nos romances.

A metodologia incluiu leituras e releituras de cada título para cada um dos quatro grupos de análise, momento em que os fichamentos eram registrados em grupos separados. As entrevistas nos periódicos possibilitaram um contínuo confronto e complementariedade das análises obtidas nas fontes literárias. Além do fichamento por grupos de categorias, foram elaboradas sinopses divididas em dois apêndices diferentes, um para as autobiografias e outro para os romances, os quais constam ao final do trabalho com suas respectivas capas. Além das sinopses foram elaboradas siglas para os livros, uma para cada título a fim de favorecer uma leitura mais fluída do texto, das siglas criadas, treze foram retiradas da tese de Vieira (2010) para seguir uma padronização já apresentada.

Para uma visão panorâmica e abrangente das características físicas e psicológicas dos personagens, espaços e enredos, cinco tabelas foram elaboradas, e estarão inseridas como apêndice para não interferir na fluidez de leitura do texto. As tabelas possibilitaram a visualização geral de alguns dados técnicos importantes como o ano de publicação, número de edições, editoras, entre outros. Para a análise das capas construiu-se uma tabela específica catalogando dados relativos ao número de capas elaboradas para um mesmo título, autoria, a nudez oculta/revelada/sugerida, mulher/homem ou ambos e a relação direta/indireta da imagem da capa com o conteúdo do livro. Objetivou-se observar em que medida as capas poderiam sugerir aos/as leitores/as e aos censores que o conteúdo do livro era de cunho pornográfico, se as capas dialogavam ou distanciavam-se dos conteúdos narrados que pretendiam ilustrar. A análise das capas também busca compreender, para além da imagem erótica e/ou pornográfica, outros sentidos que possam instigar e posicionar a censura e o público leitor.

No decurso do fichamento dessas obras precisei estudar o conceito de romance de forma a lapidar meu entendimento sobre essa categoria. Nesse sentido foram valiosas as contribuições de Edwin Muir acerca da Estrutura do romance (1928). O romance não é, ao menos não é só, uma narrativa de acontecimentos que se dispõem em uma sequência temporal. Os romances se organizam em várias estruturas que não podem ser classificadas por um padrão, ritmo ou ponto de vista. Estruturas que embora múltiplas postulam uma necessidade comum, todas possuem

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34 enredos com princípios internos próprios. Enredo, segundo Muir, são cadeias de eventos, os quais podem ser organizados diferentemente por seus autores. Os eventos narrados em cadeia, diferentemente de uma sequência, instigam a curiosidade e mobilizam as mais diversas emoções. Desse modo o enredo define o tipo de romance, que pode ser de ação, de personagem, dramático ou epocal, embora em certos romances os tipos possam se confundir (1928, p. 8-13), tornando-se mistos, como é o caso de Adelaide Carraro, uma análise que vamos retomar no segundo capítulo.

Partindo das orientações de Edwin Muir e refletindo sobre como Adelaide estrutura o seu romance, pude também compreender e conjecturar sobre o tipo de realismo que ela insistentemente avisa que faz, rejeitando o rótulo de literatura de ficção para o seu trabalho. Nesse sentido foram valiosas as contribuições de Karl Schollhammer (2012) ao definir e analisar formas de expressão literárias que se dedicaram a criar e estabelecer efeitos de realidade ou de sentido em suas obras, sem necessariamente dar continuidade ao chamado realismo histórico que se desenvolveu no século XIX. Para este autor a “paixão pelo real” marcou as artes no século XX, e a literatura expressou essa tendência com muita força, rejeitando um efeito apenas referencial para absorver também a interioridade subjetiva. Ou seja, essa nova perspectiva buscou pensar a realidade social, cultural e histórica para além da representação mimética, sem mediação e a partir da crítica de que a semelhança pode criar falsa consciência de estar representando o real. Essa nova forma de realismo que se desenvolve em contraposição ao realismo histórico do século XIX, postula como sendo necessário criar uma distância reflexiva na produção do discurso, e descarta de modo radical a possibilidade mimética da linguagem, que, diferente do visual não é capaz de fazer uma cópia sensível da realidade. Limites que trouxeram para o debate a importância da verossimilhança, a única representação realista possível que a literatura pode se permitir (2012, p. 130-132). E embora Adelaide insista na ambição de uma “verdade nua e crua”, possível apenas pela linguagem e apostando no apelo comercial da expressão, deixa claro em um prefácio que o seu discurso é baseado na verossimilhança (EMP, p. 15-16). E por meio dele, busca transgredir convenções, relacionar sua literatura com os problemas sociais e transformar a compreensão de mundo dos seus leitores por meio da ilusão de realidade. Um tipo de realismo que se quer verossimilhante e engajado na produção de agenciamentos afetivos, muito distante, portanto, do realismo histórico do século XIX.

Além das autobiografias, dos romances e entrevistas concedidas a revistas de circulação nacional, este estudo usa como fonte jornais e processos movidos pelo Departamento de

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35 Censura do regime militar. O periódico Correio Paulistano9 foi pesquisado na Hemeroteca

Digital e ajudou a situar temporalmente vários aspectos que ficaram obscurecidos pelos relatos da memória nas autobiografias, proporcionando ainda a possibilidade de confronto e maior segurança na análise. Os processos encontrados no Arquivo Nacional de Brasília aliaram-se a muitas informações dadas pela escritora nos prefácios sobre a tempestuosa relação entre ela e o regime militar. O entrecruzamento das fontes entre acusador (a censura) e a acusada (Adelaide Carraro) permitiu desvelar significados ocultos por trás das ações do aparato repressivo e os impactos diretos e indiretos na vida da escritora e na escrita literária.

O recorte temporal desta pesquisa está situado entre 1963, ano em que Adelaide lança-se como escritora com a publicação da primeira autobiografia, e 1985, término oficial da ditadura civil-militar. Após esse período, publicou mais cinco livros até o seu falecimento em 1992. Optou-se por esse recorte temporal porque é o momento histórico no qual se situa a ampla maioria de sua produção editorial, uma obra fortemente marcada e influenciada pelo contexto político do regime civil-militar situado entre 1964 e 1985. Saliento que esta não é uma cronologia rígida, na medida em que foi necessário recuar aos anos 1940 e 1950 onde se inscreve o período de infância e adolescência da escritora, tematizado em seus dois primeiros livros. Esse recuo é necessário na medida em que busco compreender valores, normas e práticas que informaram uma escrita de si, constituindo-se em subjetividades oferecidas, transformadas ou negadas no discurso literário.

Na análise das autobiografias da escritora não estou em busca de realizar um trabalho biográfico ou mesmo de trajetória de vida, os quais demandariam outras perguntas e maior fôlego; mas de entender, em uma chave de leitura proposta por Margareth Rago, para quem as escritas autorreferenciais “ao contrário de um mea-culpa, afirmam a necessidade e a importância das rupturas subjetivas realizadas e buscam legitimá-las” (RAGO, 2013, p.58); como a escritora se constitui discursivamente, que releitura realiza de sua trajetória pessoal, e em torno de quais subjetividades redesenha o processo da escrita literária.

Margareth Rago buscou mulheres que produziram dialeticamente uma “escrita de si”, a partir da militância feminista no contexto do regime militar brasileiro. São autobiografias subjetivas constituídas no processo mesmo da escrita, diferenciando-se das “escritas sobre si”, de tipo confessional na qual o indivíduo se torna um escafandrista e mergulha em seu eu interior.

9 O periódico foi fundado em 26/06/1854 e circulou em São Paulo até sua extinção em 1963. No período da República Velha tornou-se porta-voz do Partido Republicano Paulista (PRP), atuando em favor das oligarquias rurais e realizando oposição a Getúlio Vargas.

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36 Essas “escritas de si” são singulares, portadoras de um pequeno “x” que as tornam exemplares na compreensão de um fato histórico mais abrangente, porque não se prendem a uma identidade específica e aos padrões normativos, características relacionadas com autobiografias confessionais. Rago entende essas autobiografias, inspirando-se em Michel Foucault, como práticas livres nas quais as mulheres se auto constituem de forma ativa a partir de uma orientação ética específica (RAGO, 2013, p. 54).

Professoras, intelectuais, freira, prostituta..., mulheres que militavam a partir de agendas diferenciadas, porém entrecruzadas. Surpreende-nos uma narrativa de modos particulares de expressão e de constituição de si, formados a partir de contextos variados, mas vinculados em uma relação dialética com o mesmo processo histórico. A pluralidade de “eus” em uma mesma narrativa de si é buscada por Rago a partir de um percurso crítico e analítico sobre como o indivíduo se tornou o que é, e em que medida isso pode contribuir para a compreensão do mundo social em uma escala mais abrangente. O estudo com autobiografias, nesse projeto, nega a “ilusão biográfica” e demonstra como a fragmentação de uma vida pode tornar mais inteligível os processos pelos quais o mundo social e cultural tomou forma.

O que essas experiências feministas particulares podem contribuir para a compreensão de um quadro político específico, como o da ditadura militar no Brasil? Para a autora, a publicização de uma escrita de si é “absolutamente necessária para a reconstrução das relações sociais no mundo democrático”. Por um lado, as experiências íntimas publicizadas por meio de autobiografias se tornam ferramentas políticas de ajustes sociais, permitindo que a sociedade reflita criticamente sobre os interesses que estão por trás das ações estatais, criando e determinando regras, interdições, sanções e abusos sobre as liberdades individuais e coletivas. Por outro lado, mostram as singularidades da experiência política e as racionalidades próprias que as constituem, revelando formas particulares de ser e pensar criativamente. Assim como as generalidades das práticas e discursos vinculados a um mesmo processo histórico, criando novas possibilidades de existência e de questionamento frente à ordem instituída. Quando os testemunhos dessas vidas individuais, aparentemente díspares, se cruzam na narrativa histórica, compreendemos outras formas de des/afetos provocados pelas ações institucionais do regime militar. Essa compreensão é relevante para que o discurso histórico não incorra no risco de generalizações incapazes de captar a complexidade e a pluralidade da vida humana acerca de uma mesma experiência histórica.

As escritas de si fazem parte de uma gama de discursos subjetivos nos quais Leonor Arfuch chamou de “espaço biográfico”. Escritas que proliferaram no mundo contemporâneo

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37 desde os anos 1980 em um contexto de queda dos regimes totalitários e de uma crescente tendência de valorização da memória. Das formas canônicas tradicionais: biografias, autobiografias, confissões, cartas, apologias, às formas plurais de relatos subjetivos do mundo virtual; narrativas que criaram um espaço biográfico heterogêneo e multiforme. Arfuch alerta para a intenção de autenticidade que todo relato autobiográfico traz de forma implícita, pois a experiência vivida e o fluxo narrativo que a faz reviver não podem ser interpretados como mimeses (ARFUCH, 2010). Trata-se, no caso, de uma reflexão que, ao contrário de valorizar o impulso narcisista que toda “escrita de si” pode camuflar, sugere buscar as contradições, conflitos, as desistências e os fracassos.

São nas práticas de escrita autógrafas, surgidas no século XVIII, que Arfuch situa o que chama de “espécie de infância da subjetividade”, momento fundacional da esfera do privado no qual o Estado absolutista atuou na imposição de novos códigos de comportamento para controlar as emoções e as pulsões. Essas práticas subjetivas autógrafas passaram a articular uma relação entre leitura, escrita e conhecimento de si, onde a solidão e a meditação tornaram-se molas propulsoras a redesenhar, tomando de empréstimo a expressão de Arfuch, o “espaço interior do pensamento” (ARFUCH, 2010, p. 40). O século XVIII cria então uma nova literatura, constituída no âmbito privado a partir dos deslocamentos subjetivos trazidos pelos sentimentos e sensações vividos pela experiência que afetou os modos tradicionais de ser e existir, obrigados a transmutarem-se pelas imposições políticas e sociais de uma época. Apesar de íntima, essa literatura nunca se conteve na esfera do privado, violada desde sempre em prol da publicidade, da busca pelo olhar cúmplice do leitor acerca das subjetividades expostas.

Segundo Philippe Lejeune, a resposta para entender o fascínio atemporal que a autobiografia provoca não está na narrativa linear de uma intimidade. O fascínio reside no lugar que a narrativa outorga ao leitor, convidando-o a participar do enredo por meio do “pacto autobiográfico”. Por meio dele o leitor se certifica de que a pessoa e discurso são os mesmos, os quais lhe são assegurados com o uso do nome próprio, promessa da manutenção de uma identidade entre autor, narrador e personagem (LEJEUNE, 2014, p. 29-30). Arfuch se questiona se é possível a coincidência da identidade entre o “eu narrativo” e o “eu retrospectivo”, argumenta que se o narrador já não é mais o mesmo daquele que protagonizou as histórias, a fidelidade e o reconhecimento a essa identidade narrada não está garantido pelo uso do nome próprio, como sugere Lejeune. Para Arfuch, a vantagem que a autobiografia confere ao enunciador é a possibilidade de confrontar-se “entre o que era e o que chegou a ser, isto é, a construção imaginária de si mesmo como outro” (ARFUCH, 2010, p. 54-56). De modo que no

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