Maria Jos Vaz Pinto
1. Numa passagem famosa e assaz desconcertante do livro II da
Repblica,
Plato sustenta que no h motivo para um deusmentir',
mas quepode
haver muitas e boas razes para os homens o fazerem! 0 que est emquesto
anoo
e o estatuto depseudos
e uma distino,
introduzida um pouco antes, marcara adiferena
entre o que se deve entender por "verdadeira mentira" e a que no passa de uma "mentira empalavras".
Aprimeira,
detestada por deuses e porhomens2,
corresponde
ignorncia
e ao engano que se instalam naalma quanto ao que mais
importante
para cadaum3;
asegunda,
"aque consiste em
palavras",
objecto
doelogio platnico
em circuns tnciasespecficas
que convm esclarecer. Em termosglobais,
a mentira empalavras
quando
til nodesprezvel4.
1 Repblica II 382 e: "Tudo o
que relativo a divindades e a deuses totalmente alheio mentira. (...) Deus absolutamente simples e verdadeiro em palavras e em actos, e nem ele se altera nem ilude os outros, por meio de aparies, lalas ou envio de sinais, quando se est acordado ou em sonhos." Todas as citaes deste
dilogo so feitas a partir da seguinte edio: Plato, Repblica, trad. de Maria
Helenada Rocha Pereira, Lisboa, F. CalousteGulbenkian, 1972.
2 Ibid, II 382 a.
3 Ibid, II 382 a-b:
"Ningum aceita.de livre vontade, serenganado na parte
principal
de cada um e sobre os assuntosprincipais,
mas receia, acima de tudo, que amentira a se instale". Com efeito, "o que ningum
quereria
aceitar era serenganado, e ficar no erro na sua alma em relao verdade, permanecer na
ignorncia".
4 Cf. ibid, II 382 b-d.
Revista da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, n." 10, Lisboa, Edies
Plato caracteriza esta ltima como "uma
imitao",
no isentade mistura,
daquilo
que a almaexperimenta5,
eexemplifica algumas
dassituaes
em que aoportunidade
justifica
que a ela se recorra:contra os
inimigos,
ou para desviar osamigos
dealgum
mal;
na composio
defbulas,
"por
no sabermos onde est a verdade emrelao
aopassado",
visando umaaproximao
verosmil ao que se desconhece6.
O
quadro
em que se defende esta inslitaposio
insere-se numcontexto muito
particular:
movemo-nos,partida,
no domnio dafico, pois
se trata deproceder edificao
de "uma cidade empala
vras7" e nestaimpe-se
delinear oplano
para aformao
dos seus cidados e, de um modo maispreciso,
dos futurosguardies.
Esseprojecto
surgeigualmente
como umaconstruo
ideal:"eduquemos
estes homens em
imaginao8",
assumindo-se os interventores nodilogo
a si mesmos como "fundadores de umapolis9"
, no noplano
imediato, mas de uma realidade
possvel.
A ideia condutora desseprojecto
a conscincia dapremncia
de comear amoldagem
do indivduo desde ainfncia,
respeitando
agradao
das dificuldades edas
carncias,
adaptadas
no s s diversasidades,
mas squalidades
e
predisposies
dos destinatrios. Nestequadro
depreocupaes,
apoesia
tradicional banida dapaideia
da cidade ideal e o quedespole
ta a sua excluso o facto de se tratar deuma "mentira sem nobreza". O
objectivo
desta curta e modestacontribuio
para o estudointerdisciplinar
do conceito de representao o de tentarinquirir
em que moldes seequaciona
na reflexoplatnica
acategoria
depseudos,
de forma a entender os critrios de "nobreza" que eventualmente distinguem
os discursos entre si. O que determina umaarticulao
emtorno de trs
interrogaes:
Qual
arelao
da "mentira empalavras",
enquantorepresentao
mimtica(mimsis),
com a mousik e com apoisisl Quem
pode
e nopode
mentir na cidade ideal? Comodeslin-5 Ibid, II 382 b.
Ibid., II 382 b-d: "E na composio de fbulas que ainda h pouco referamos, por no sabermos onde est a verdade relativamente ao passado, ao acomodar o mais
possvel a mentira verdade, no estamos atornar til amentira?"
Ibid., II 369 b: "Fundemos em imaginao umacidade".
Ibid., II 376 d: "Eduquemos estes homens emimaginao, como se estivssemos a
inventaruma histriae nos encontrssemos desocupados".
Ibid., II, 379 a: "De momento, nem tu nem eu somos poetas, mas fundadores de uma cidade."
dar o
paradoxo
de se incluir sob adesignao
comum depharmakon
(remdio,
antdoto)representaes
todspares
como a mentira e averdade?
2. Sendo uma
imitao,
a referida "mentira empalavras"
mani-festa-se em sons e em sinais, numlogos
oral ou escrito,comparvel
pintura
e escultura. Fazendo uso depalavras
para dar corpo ao quevisa, constitui-se como literatura, revestindo-se de uma natureza
complexa
que releva depelouros mltiplos:
ser correcto situ-lasimultaneamente sob o
patrocnio
das musas, enquanto quemousik,
eentre as actividades
produtivas
que geram determinados efeitos,enquanto que
poisis.
Assim,importa
realizar umadescodificao
preliminar,
no querespeita
ao sentido corrente dos termos gregos. Nesta ordem deideias,
nopode
deixar de se ter presente que a educao
pela
msica,preconizada
comodisciplina propedutica
fundamental,
equivale
educao pelas
artes, nomeadamente as que culti vam formas de ritmo e demedida,
assim como a discusso dapoesia
no se atm de modoalgum
ao discurso em verso e com mtrica, masa todas as actividades que relevam do "fazer" e do
"criar",
emespecial
as queproduzem
logoi.
A mesma
elucidao
se deve levar a cabo com aprpria
noo
depseudos
que tommos comoobjecto
de reflexo.Contraposto
ao engano radical que seapresenta
como mal absoluto e coincide com aignorncia
instalada naalma,
maisprecisamente
com aignorncia
que se desconhece a si mesma, a mimese a quecorresponde
a "mentira" empalavras
no se institui necessariamente como umainteno
fraudulenta de confundir os
espritos,
mas como recurso aalgo
que da ordem dailuso,
dafico,
daimagem,
e que ser boa ou m consoante o uso que se lhe d10. Por
conseguinte,
uma tal realidadepode
serqualificada
em termos de "nobreza" ou de "no nobreza",impon-do-se
investigar qual
opadro
de "utilidade" que o fundador da cidadetem em mente ao definir as
categorias
opostas.3. Os
exemplos
invocados por Plato para ilustrar um recursolegtimo
mentiraajudam-nos
a entender melhor o que est emjogo.
Quem pode
e nopode
mentir? Ou, dito por outraspalavras,
em queVeja-se nesse sentido, Julius A. Elias, Plato 's Defence of Poetry, Lo
MacMillan Press, 1984, pp. 2-3; em especial, sobre "a nobre
{gennaion)
mercasos a dita
"imitao
empalavras"
tem umafuno
positiva,
ou mesmo salvfica, aponto
de Plato a denominar depharmakon
(remdio,
antdoto, meio decura)?
Aqueles
a quem se atribui uma talprerrogativa
so emprimeiro
lugar
os mdicos: "Se narealidade,
a mentira intil aos deuses, mas til aos homens sob a forma de remdio, evidente que tal remdio se deve dar aos mdicos, mas osparticulares
no devem tocar-lhe"". O mesmo raciocnio seaplica
aosgovernantes:
"Se aalgum
compete mentir,
aos chefes dacidade,
por causa dosinimigos
ou doscidados,
para benefcio da cidade; todas as restantes pessoas no devem provar deste recurso12". Numaprimeira abordagem,
o que parece determinar tal assimetria nos direitos de uns e de outros o facto de haver neles uma manifesta discre
pncia
no querespeita
ao saber erepresentao
global
do quepode
ser considerado "til". De
qualquer
modo,
sealgum
dos que nosuposto mentir for
apanhado
afaz-lo,
dever ser severamentepuni
do:
pe
em risco, de modosubversivo,
a segurana dacidade,
como otripulante
incautopoder
provocar onaufrgio
do navio13.Mas o
exemplo
mais clebre e mais controverso ser certamenteo da "nobre mentira" que se institui como esteio fundador da ordem social e
poltica
dapolis
eprincpio regulador
da ideia dejustia:
referimo-nos ao mito narrado no final do livro III daRepblica,
emque se conta que todos os homens foram moldados e criados no inte
rior da terra e dela nasceram, irmanados nessa mesma ascendncia
terrestre14; mas que as diversas
estirpes
humanas,assignadas
sdife-1 Ibid., III 389 b. Por
"particulares" entenda-se "leigos", ou seja, os que so
ignorantes da cinciaem causa.
2 Ibid., Veja-se a
passagem, imediatamente a seguir, em que se reconhece umdireito
anlogo ao professor de ginstica e ao piloto do navio, negando-se o mesmo
respectivamenteao alunoe ao marinheiro.
3 Cf. ibid., III 389 d: "Se
apanhar algum a mentir na cidade (...) castig-lo-, a ttulo de que introduz costumes capazes de derrubar e deitar a perder uma cidade, tal como se fosse um navio." S os chefes podem mentir porque so os que tm a "chave" do til, na medida em que, submetidos a uma educao conveniente, conhecem o que as coisas so em si mesmas, para l das aparncias. Veja-se sobre
este ponto o estudo de Nicole Loraux, N de la Terre, Mxthe et politique Athnes, Paris, d. du Seuil, 1996.
Ibid., III 414 d-e: "Tentarei, cm primeiro lugar, persuadir os prprios chefes e os
soldados, e seguidamente tambm o resto da cidade, de que quanta educao e
instruo lhes demos, todas essascoisas eles imaginavam que as experimentavamc lhes sucediam como em sonhos, quando, na verdade, tinham sido criados e moldados no interior da terra, tanto eles como as suas armas e restante
equipamento; e que, depois de eles estarem completamente forjados, aterra, como
rentes classes, tm distintas misturas de metais na sua
constituio
congnita:
ouro, prata, ferro ebronze,
consoante os casos. Assim, muito embora lhes caiba fomentar a solidariedade e aunio,
dado odestino comum de terem nascido da me terra, a
desigual
composio
da sua natureza vocaciona-os para tarefasespecficas,
comdignidades
eresponsabilidades divergentes
nahierarquia
do todo15. O mito pordemais conhecido e tem sido ao
longo
dostempos
amplamente
discu tido. O que nos interessa ressaltar o facto de ele serapresentado
comoparadigmtico
da "nobreza" de uma mentira16. O que est em causa areapreciao
de umarepresentao fictcia,
que se assume como mimese e comopoiese,
reivindicando ttulos de nobreza para um dizercuja
"utilidade" emerge, no de circunstnciaspontuais,
mas deargumentos
de fundo. Torna-sepatente
que no cerne de toda aproblemtica
est oprprio
conceito deimitao,
envolvendo na suadefinio
arelao
constitutiva entreoriginal
ecpia,
entre realidade e simulacro.Quais
so imitadores e os poetas que devem ser banidos,quais
os imitadores e os poetassusceptveis
de coabitar com a filosofia?4. Para situar o
posicionamento
de Plato emrelao
arte emgeral
e a suacondenao
expressa dapoesia,
no mbito doantigo
"diferendo entre a filosofia e apoesia17",
focaramos sucintamentealguns tpicos.
Perante o universo "saturado de mimese" como apolis
descrita naRepblica^,
aderimos ao modo de ver dos quejul
gam que o que pesa fundamentalmente para Plato soconsideraes
de carctertico-poltico:
ao defender o modelo de cidade em que osua me que era, os deu luz, e que agora devem cuidar do lugar em que se
encontram como de uma me e ama, e defend-la, se algum for contra ela, c consideraros outros cidados como irmos, nascidos da terra."
15 Ibid., III,
415 a-b: "O deus que vos modelou, queles de entre vs que eram aptos para governar misturou ouro na sua composio, motivo por que so mais
preciosos; aos auxiliares, prata; ferro e bronze aos lavradores e demais artfices" (ibid. 415 a).
16 Pretende-se
que todos queiram o bem comum e que cada classe realize bem a sua tarefa prpria: "Como arranjaremos maneira de, com uma nobre mentira, daquelas que se forjam por necessidade, (...) convencer disso, sobretudo os prprios chefes,
e, se no forpossvel, oresto da cidade?" Cf. ibid., III 414 b-c.
17 Ibid., X 607 b.
18 Cf.
o sugestivo ensaio de Stanley Rosen, "The Quarrel Betwccn Poetry and
governo cabe
filosofia,
ope-se
a todos os eventuais concorrentesque se arvorem em
paladinos
de outras propostas.Da,
o combatemovido, no apenas aos
poetas,
mas tambm a retricos e asofistas19.
Nessa ordem deideias,
umaimportante
clivagem
se ir estabelecer, do
ponto
de vista dos fundadores dacidade-modelo,
entre as imitaes
a proscrever e as que so de incentivar: condenam-se ascpias
de modelosperniciosos
doponto
de vistamoral,
como se critica todaa
imitao
que levealgum
aprotagonizar
como seus aspaixes
e os conflitos alheios, nomeadamente os dos deuses e dosheris;
em contrapartida,
admite-se que"quanto
poesia,
apenas se devem receberna cidade hinos aos deuses e encmios aos vares honestos"20.
Mas o nosso
quotidiano
est to saturado de mimese como a descrio
dapolis
ideal: ser descabido atribuir a Plato uma insensibili dade drstica quanto arte comotal,
ou apretenso
de que aimitao
se reduza a uma mera
repetio
do que se intentacopiar. Importa
destacar os diversos elementos que convergem na suacomplexa
concepo
da referida mimsis que dever ser entendida noplano global
da sua viso da realidade e dosaber, atendendo,
de modoprivilegia
do,
precisamente
dimensorepresentativa
que suporta ainterpreta
o
inerente a toda acriao
artstica21. Acriao/ fico
sempre19 Cf. Julius A. Elias, Plato's
Defence of Poetry, op. cit., p. 3: "Podemos ver como seria alheio ao pensamentode Plato separaro ataque aos poetasdo seu tratamento em relao a toda a classe de artistas. E, para l disso, podemos ver a coerncia total dos seus argumentos contra os sofistas, os retricos, os polticos, os
demagogos (...); sem dvida, contra todos aqueles que fossem susceptveis de
influenciaraopinio pblica naagora, tribunais, e assembleias; assimcomo de dar forma a essa sensibilidade que mais subtilmente subjaz s crenas comuns,
inconscientemente sustentadas, e assim produz um ethos, o elo social das
convices ticas c religiosas que unificam um povo"; Cf. tambm Eric A.
Havclock, "The Supreme Music is Philosophy", in Preface to Plato, Cambridge/
Massachusetts/London,TheBelknapPress of Harvard Univ. Press, 1982,pp. 276-31 1.
20 Rep. X 607 a.
21 Veja-se nessa
ptica, o importante estudo de W.J. Verdenius, Mimesis, Plato's Doctrine ofArtistic Imitation and its Meaning for us, Lciden, E.J. Brill, 1972.
Contra os que acusam Plato de ter esquecido que a verdadeira arte "cria", e no
"imita", sustenta que a doutrina platnica da imitao artstica se baseia na
concepo da arte como "interpretao", baseada nos princpios gerais da sua
filosofia. A chave para entender esta a estrutura hierrquica da realidade: a
imitao platnica est associada ideia de "aproximao" c no significa uma
mera cpia, pois a obra de arte, para l da manifestao fenomnica, visvel, tem
sempre uma relao indirecta com a natureza essencial das coisas. Cf. D. Babut, Sur la notion 'imitation dans les doctrines esthtiques de la Grce Classique", in
Parerga, Choix drticles de Daniel Babut (1974-94), Lyon, Maison de 1'Orient
uma
construo
apartir
de uma realidade dada, no sendo de menosprezar a sua
dupla
dimenso fenomnica einteligvel:
para l daexpresso
sensvel mediante aqual
se tornaapreensvel
pelos
diferen tessujeitos,
visarepresentar
o que a coisa em si mesma, na proporo {logosl
ratio)
que a constitui na suaessncia,
na sua idealidade22.Para tornar mais acessvel esta
ideia,
recorreramos anlisemuito didctica, levada a cabo no
dilogo
OSofista pelo
porta-voz de Plato que oEstrangeiro
de Eleia. O contexto da discusso o da"caa"
ao sofista: se este consegue fazer crer que mais sbio do que toda agente
acerca de todas ascoisas,
urge desmascar-lo como umfalsificador,
como umperito
dosimulacro,
protagonista
de uma sabe doriaaparente.
Um momento crucial desseprocedimento
o da especificao
das modalidades de mimtica. Curiosamente, no contextoem se
pe
oproblema,
a mimtica abordada apartir
dosexemplos
dapintura
e daescultura,
bem como dosdiscursos,
as"imitaes
empalavras"
que Platoaqui
denomina"imagens
falantes"(eidla
lego-mena)73.
A diairesis ou diviso dicotmica ir estabelecer duasesp
cies deimitao:
a) umaimitao
eikstica,quando
serespeita
a simetria constitutiva do modelo, ouseja
asrelaes
de comensurabili-dade entrecomprimento,
largura
eprofundidade;
b)
umaimitao
fan
tstica,
quando
osartistas,
pondo
de lado a verdade, sacrificam aspropores
exactas para as substituirpelas
queproduzem
iluso. Ora umadistino
destetipo
teria um suporte naprpria evoluo
da arte dotempo,
quer no domnio dapintura
quer no da escultura: ter-se-iaregistado
umaprogressiva
ateno
aoponto
de vista doespectador
e necessidade de incluir narepresentao
asdistores
convenientesMditerranen, 1994, pp. 283-303; e de Maria Villela-Pctit, os seguintes artigos
"Heidegger, Platon et 1'art grec", in Monique Dixsaut org., Contre Platon II, Paris, Vrin, 1955, pp. 77-100 e "La question de I'image artistique dans le
Sophiste",
in Pierre Aubenque dir., tudes sur le Sophiste de Platon, Napoli, Bibliopolis.pp. 55-90.
22 Seg. D. Babut
(op. cit. pp. 284-5 e 289-291). embora no haja um termo grego especfico para "imaginao criadora", esta no estranha experincia artstica grega, o que ressalta da associao estreita entre mimsis e
poisis.
Cl. Aristteles,Potica, cap. 9. Vinca-se simultaneamente o carcter subjectivo da criao e a
vertente objectiva mediante a qual a obra de arte expressa a dimenso universal e
inteligvel
da realidade.23 Cf. Plato,
Sofista 234 c. Com efeito, "o produtor de imagens reivindica poder fazer e produzir todas as coisas por uma arte nica", caraclcrizda como um jogo
aos
desejados
efeitospticos24.
Destamaneira,
relevava-se uma mimtica detipo
sofstico,
visandoproduzir
efeitosfictcios,
ajusta
dos s sensibilidades de que cada
sujeito
medida,
oposta a uma mimtica detipo
filosfico que se subordina busca da homoisis ou dasemelhana
com omodelo,
to correcta quantopossvel.
O
princpio
norteador daimitao
que a filosofia cultiva o do conhecimento verdadeiro e esse pano de fundo que d sentido ao que Plato defendequando
refere osparmetros
mediante osquais
podemos ajuizar
de uma obra de arte:"primeiramente,
conhecer anatureza do
objecto; seguidamente,
saber em que medida correcta aimitao;
porfim,
saber que utilidade tm todas asimagens
reprodu
zidas por meio depalavras,
de melodias e de ritmos25". Noutras pas sagens, acentua-se aconvergncia
naproduo
deimagens
artsticas de trs elementos: o prazer, autilidade,
averdade26,
constituindo inequivocamente
esta ltima o fundamentosusceptvel
de unificar a nossa viso das coisas.Quando
sepretende destrinar
asimitaes
entre si e sobretudoquando
se busca umprocedimento
seguro para denunciar os simulacros, o recurso a esta diviso por
espcies
que se elucidampelas
suasoposies
recprocas permite
umacompreenso
mais rica das realidades, antes abordadas numa
ptica
sobretudonegativa
ecrtica,
recuperando
apossibilidade
de estabelecer umavalorizao
positiva
de conceitos. Desta forma sedistingue
a boa da mimitao,
como sepoder
separar a boa da mretrica,
e a boa da mpoesia.
O carcter benfico ou malfico destas artes indissocivel da "utilidade" de que se falava antes e que naptica platnica
nunca seria redutvel a critrios relativistasavulsos,
implicando
sempre uma cargaontolgica
e tica. O imitador, no sentido mais elevado do termo, o que conhe
ce a realidade em si mesma. O que habilita o filsofo a ser rei a
mesma
prerrogativa
que o habilita a dizer "mentiras com nobreza", entenda-sefices
benficas: a posse do talpharmakon
que consiste em conhecer osoriginais
e desse modo no seperder
no mundo dascpias27.
O que conta ter "apedra
detoque",
o "contraveneno" emrelao
sfalsificaes:
a esse saber s tem acesso o filsofo,pelos
-4 Veja-se o
estudo, antes citado, de Maria Villela-Petit, "La question de 1'image
artistique dans leSophiste", emespecial pp. 77-84.
25 Plato. Leis, II 669 a-b. 26 Ibid. II 667 be
ss.
27 Repblica,
X 595 b.
seus dotes naturais,
pela
educao
ajustada, pela
conversopessoal
que o torna esclarecido quanto ao que
principal,
o seu interesseprprio,
a utilidade, no no sentidovulgar
da utilidade aparente, mas de uma utilidade baseada na natureza das coisas. Desfaz-se o pretensoparadoxo,
porque s quem tem o conhecimento das ideias ou dosmodelos tem o antdoto em
relao
s "mentiras sem nobreza" que nos desviam do que bom para ns e,concomitantemente,
s eleadquire
plena legitimidade
paraimpor
"nobres mentiras".Nessa
perspectiva
cobra sentido o que se diz no final do livro IX:mesmo que uma tal cidade, construda em
palavras,
no exista emparte
alguma28,
ela a ideiareguladora
que nospermite
viver no meio das nossasimperfeies29.
O que estjogo
sempre a dialctica do modelo e dacpia,
do ser e daaparncia,
da realidade e do sonho.Na maneira de ver
platnica,
o peso dado dimensocognitiva
darepresentao
no obsta conscincia lcida dasimperfeies
dessas mesmas
representaes,
susceptveis
deaproximaes graduais
a um saber maiscompleto,
e tambm noimpede
o sentidoagudo
das dificuldades de transmisso do saber em termos delinguagem.
Aconsciencializao
dos limites do discurso demonstrativoproporciona
um espao aberto para omito,
para as diversas modalidades derein-troduo
dapoesia
na cidade comandadapela
filosofia30. O que nos parece interessantesublinhar,
para terminar, o reconhecimento da necessidade de utilizar afico
e aimaginao,
mostrando acomple
mentaridade da ideia e daimagem,
da razo e daemoo.
Ao recorrer,em moldes
ajustados,
s denominadas "mentiras" ou"imitaes
empalavras",
trata-se de um uso retrico dologos31,
reconvertido vocao
filosfica. No se tratapois
deextirpar
o sensvel mas sim de orevalorizar,
integrando
os elementoscognitivos,
volitivos, emocionais numa unidadeorgnica,
em que cada um quer para si o que reconhece2S Ibid., IX592 a-b. 29 Cf. com
Repblica, VI 500 e: jamais um Estado poder ser feliz se no tiver sido
delineado porpintores que utlizaram um modelo divino.
30 O ttulo da obra de Elias muito sugestivo: Plato's Defence ofPoetry. De facto, o que se propunha mostrar era que sob o aparente ataque se podiam detectar trs pontos fundamentais: o reconhecimento do carcter
indispensvel
da poesia; o facto de que Plato escreveu boa poesia; a necessidade de recorrei- poesia parapersuadir. Cf. op. cit. pp. 1-2.
}] Sobre o uso retrico do
logos, veja-se o muito esclarecedor ensaio de Barbara
Cassin, "Du faux ou du mensonge la fiction - (de Pseudos a Plasma)", in B.
como bom, na
reorientao
dosdesejos
que arepresentao
correctapossibilita32.
Resumo
Ao promover o
elogio
da "nobre mentira", defende-sc a importnciapedaggica
da mimese e salienta-se acomplementaridade
da ideia e daimagem,
da razo e da emoo, luz da controversa doutrinaplatnica
dapoisis.
Resume
L'loge
platonicien
du "noblemensonge"
rend manifeste1'imporlance
pdagogique
de 1'imitation et releve lacomplmentarit
de 1'ide et de1'image,
de la raison et de 1'motion dans la doctrineplatonicienne
de 1'art.- No
plano intelectual, a dinmica do amor visa o conhecimento das ideias,
correspondendo a um modelo matemtico do saber; no plano emocional, o amor deseja a imortalidade, atravs dacriao, correspondendo a um modelo poiticodo saber. Em relaocom estaabordagem, cf. S. Roscn, The Quarrel belween Poelij
and
Philosophy,
op. cit.; c tambm Martha C. Nussbaum, The fragility ofgoodness, Luck and ethics in Greek
tragedy
and philosophv, Cambridge, Cambridge Univ. Press, 1987.