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Reflexões sobre a questão da cidadania na história das ideias

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Academic year: 2021

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0 UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO

GRANDE DO SUL – UNIJUÍ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS – MESTRADO E DOUTORADO

EDUARDO LEMOS LEAL

REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DA

CIDADANIA NA HISTÓRIA DAS IDEIAS

Sob orientação da professora Drª. Helena CopettiCallai

Ijuí 2013

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1 EDUARDO LEMOS LEAL

REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DA

CIDADANIA NA HISTÓRIA DAS IDEIAS

Sob orientação da professora Drª. Helena CopettiCallai

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensuem Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, como requisito parcial para à obtenção do título de Mestre em Educação nas Ciências.

Ijuí 2013

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2 L732r Leal, Eduardo Lemos.

Reflexões sobre a questão da cidadania na história das ideias / Eduardo Lemos Leal. – Ijuí, 2013. –

72 f. ; 30 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí e Santa Rosa). Educação nas Ciências.

“Orientadora: Dra. Helena CopettiCallai”

1. Cidadania. 2. História. 3. Política. 4. Educação. I. Callai, Helena Copetti. II. Título.

CDU: 372.71(091)

Catalogação na Publicação

Aline Morales dos Santos Theobald CRB10/1879

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3 EDUARDO LEMOS LEAL

REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DA CIDADANIA NA HISTÓRIA DAS IDEIAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado doRio Grande do Sul – UNIJUÍ, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação nas Ciências.

Aprovada em 18 de dezembro de 2013. BANCA EXAMINADORA: __________________________________________ Drª. Helena CopettiCallai (Orientadora/UNIJUÍ) __________________________________________ Drª. Anna Rosa Fontella Santiago

(UNIJUÍ)

_________________________________________ Drª. Maria Simone VioneSchwengber

(UNIJUÍ)

__________________________________________ Drª. Vânia Maria de Oliveira Freitas

(UNICRUZ)

Ijuí 2013

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4 RESUMO

O presente trabalho discute a questão da cidadania através da observação de alguns dos aspectos que podem ser percebidos na história das ideias políticas ocidentais no que diz respeito aos variados significados que a mesma adquire ao longo dos tempos. Aborda também a problemática que cerca o referido tema na atualidade, como o papel do homem e do cidadão nos embates em que seus direitos foram sendo gradualmente conquistados. Este estudo é fruto de uma pesquisa bibliográfica, realizada no intuito de dialogar com diferentes perspectivas que já trataram, ou que ainda tratam de refletir sobre a questão da cidadania. Visto que a mesma foi sendo ampliada ao longo dos tempos e, na mesma medida, vindo atender cada vez mais a um maior número de pessoas, o direito a ter direitos configura-se como uma das maiores conquistas da humanidade ao passo que os valores igualitários e universais difundidos a partir do século XVIII foram sendo legitimados. Por fim, partindo do pressuposto moderno de que a cidadania deve ser estimulada na escola, nos reportarmos a constituição da cidadania no Brasil, para em seguida encerramos nosso estudo questionando conceitualmente sobre o que consiste a ideia de educar para a cidadania, e sobre quais seriam as possíveis contribuições que o ensino de história pode nos oferecer no intuito de corroborar com a formação crítica dos cidadãos do nosso tempo.

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ABSTRACT

This present paper discusses the issue of citizenship by observing some of the aspects that can be perceived in the history of Western political ideas with regard to the various meanings that it acquires over time. Also addresses the issue surrounding the said topic in the news, as the role of man and citizen in clashes in which their rights were gradually conquered. This study is the result of a bibliographic research, conducted in order to dialogue with different perspectives that have treated, or even try to ponder the question of citizenship. Since it was expanded over time and to the same extent, coming to meet increasingly larger numbers of people, the right to have rights is configured as one of the greatest achievements of humanity while egalitarian values and universal broadcast from the eighteenth century were being legitimized. Finally, based on the modern assumption that citizenship should be encouraged at school, we refer to the constitution of citizenship in Brazil, for the following we ended our study questioning about what is conceptually the idea of educating for citizenship, and about what would be the possible contributions that the history teaching can offer us in order to corroborate with the critical formation of citizens of our time.

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6

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...07

CAPÍTULO I: Das transformações do conceito de Cidadania na História das Ideias ...10

CAPÍTULO II: A questão da Cidadania na obra de J.-J. Rousseau: Natureza, Sociabilidade e Contrato Social ...23

CAPÍTULO III: Um olhar sobre a questão da Cidadania presente nas Constituições brasileiras...34

CAPÍTULO IV: Das relações entre Cidadania e Educação ... 47

O Ensino de História e a Questão da Cidadania ... 55

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 64

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7 INTRODUÇÃO

O estudo aqui traçado destaca aspectos conceituais referentes à discussão político-filosófica da questão da cidadania na história das ideias1 que, desde sua origem, esteve vinculada ao tema da inserção política dos indivíduos ao meio social, pois comocomo Andrade (2002, p. 33) bem define, o sentido deste tipo de ação traz em si a pretensa ideia de preservação e do fortalecimento de laços na sociedade civil, portanto seu intuito será sempre o de garantir a unidade do grupo pela confecção de status de identidade coletiva.

Todavia, cabe salientar que a questão da cidadania não pode ser descrita como produto uniforme de um mesmo processo histórico linear, pois, se observarmos mais de perto, seu significado sempre apresentará características próprias e distintas de acordo com os paradigmas contextuais vividos por cada povo em seu respectivo tempo histórico. Ainda assim, pode-se afirmar que alguns traços comuns foram sendo gradualmente incorporados aos estatutos dos Estados modernos, como os direitos sociais que ainda fazem parte da noção contemporânea de cidadania, dentre estes o direitoao trabalho assalariado, o direito à saúde e, fundamentalmente, à educação de qualidade que deve ter por objetivo a formação integral do homem e do cidadão.

1 “A História das Ideias, mais comumente conhecida hoje, pelo menos em inglês, com história intelectual

e associada com a história do pensamento político que é praticada por John Pococke Quentin Skinner, coloca a ênfase nas grandes ideias e nas dos pensadores maiores. Seu irmão alemão (ou seria sua irmã?), a história conceitual, associada com o falecido ReinhartKosselleck, também enfoca grandes ideias, como individualismo ou revolução, embora historiadores dessa escola examinem uma gama mais ampla de textos do que os colegas anglófonos. Ambas as escolas históricas apresentam sua pesquisa como uma cura para o anacronismo, destacando as muitas mudanças de significado de palavras-chaves ao longo dos séculos, e o consequente perigo de interpretar mal as ideias de Maquiavel [digamos] ou de Rousseau porque seus conceitos de liberdade, por exemplo, eram muito diferentes dos nossos” (BURKE, 2009, p. 117-118).

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8 De acordo com estas perspectivas, o primeiro capítulo desteestudo procura contrastar e distinguir algumas das metamorfoses sofridas pela ideia de cidadania ao longo dos tempos, desde seu surgimento na Antiguidade Clássica, até seus desdobramentos conceituais difundidos na modernidade2, isto no intuito de melhor compreender os encontros e desencontros que fizeram parte destes processos até que chegássemos ao entendimento que temos hoje sobre o que é ser cidadão, pois consideramos que as experiências históricas do passado devem ser observadas como referências de valor que nos permitem visualizar de forma dinâmica os momentos pelos quais os direitos do homem e do cidadão foram sendo elaborados, conquistados e, posteriormente, reconhecidos por seus supostos valores igualitários e universais.

Neste sentido, destacamos que foi primeiro na obra de Jean-Jacques Rousseau que a questão da cidadania igualitária veio ganhar forma na história das ideias políticas da modernidade e, por este motivo, o segundo capítulo deste trabalho procura refletir sobre a ideia de cidadania daí subjacente, visto que no contexto de sua época Rousseau foi capaz de visualizar com clareza boa parte das contradições de uma sociedade que se encontrava em pleno processo de transformação no que se refere às relações entre indivíduo, sociedade e Estado.

Apenas para ilustrar o alcance de sua contribuição, convém recordarmos que foi Rousseau quem inaugurou, ainda que teoricamente, os princípios da cidadania sob a inspiração de ideais amplamente democráticos ao exigir a participação direta do povo no exercício das atividades políticas de seus Estados, cabendo aos governos o dever de acatar e operacionalizar as decisões que deveriam ser expressas nas assembleias populares, pois sua validade ganha importância pela compreensão de que os homens podem e devem intervir na ordem histórico-social dos Estados legitimamenteconstituídos quando estes já não correspondam mais as expectativas e as necessidades de seus respectivos povos.

2 Peter Burke esclarece que “o conceito de moderno foi empregado na Europa Ocidental mais ou menos

continuamente do século XII ao XX, mas em cada século mais ou menos foi empregado com significado diferente. [...] Foi somente no fim do século XVIII que a modernidade ampliou seu significado para se tornar o que o filósofo alemão Jürgen Habermas chama de projeto, à medida que o futuro parecia mais e mais maleável, capaz de ser planejado. Havia uma nova confiança na possibilidade de melhorar a condição humana pela ação politica. A proclamação do ano I, durante a Revolução francesa foi uma ruptura simbólica com o passado que implicava encarar modernidades anteriores como parte de um

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9 De fato, não seria absurdo afirmar que o impacto desta perspectiva permanece presente e atual, bem como fundamento válido para as discussões que se travam sobre a questão da cidadania, fundamentalmente no que trata da estreita relação que deve existir entre os temas da política e da educação, pois, como sabemos, uma é o fundamento e o complemento da outra ao passo que podem contribuir para a formação ética do homem que se pretende tornar cidadão.

Ao trazermos nossa investigação para mais próximo da nossa realidade, o terceiro capítulo desta pesquisa procurou observar os desdobramentos da questão da Cidadania no Brasil que, desde meados do século XX, passou a ser estimulada pelo Estado no intuito de colaborar tanto com o progresso econômico e social do país, bem como para auxiliar na construção da identidade nacional, a qual serviu de parâmetro para a consolidação da unidade do povo enquanto nação. Neste sentido, procuramos observar a importância das Constituições nacionais neste processo dinâmico em que gradualmente foram sendo incorporados aos nossos estatutos os direitos sociais que ainda hoje são destinados aos cidadãos, dentre eles o direito a educação, que deve ter por objetivo a inclusão social igualitária para todos e sem distinções.

Já no último capítulo, este trabalho foca sua atenção nas relações que implicam termos como política e educação, bem como na ideia de “educar para a cidadania”, isto para verificar de que forma os laços entre cidadania e educação estão sendo orientados e como estes definem as prioridades do nosso sistema educacional que, em princípio, foram elaborados no intuito de desenvolver tanto a consciência cívica, social e cultural do aluno com o pretenso objetivo de prepará-lo para a vida e para o mundo do trabalho, mas também para que este se reconheça como parte de um processo que é dotado de historicidade, portanto, igualmente capaz de ser aperfeiçoado.

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10 CAPÍTULO I:

DAS TRANSFORMAÇÕES DO CONCEITO DE CIDADANIA NA HISTÓRIA DAS IDÉIAS

“Cidadania não é uma definição estanque, mas um conceito histórico, o que significa que seu sentido varia no tempo e no espaço”

(PINSKY e PINSKY, 2010, p. 9).

Neste capitulo a preocupação central é organizar através de pesquisa bibliográfica o caráter dinâmico que a questão da cidadania percorreu ao longo dos tempos em sua transição das teorias para as práticas sociais, isto para verificar em que medida as noções antigas e modernas ainda podem servir de parâmetro para a análise das características que esta ideia adquire conceitualmente no mundo contemporâneo.

Conforme defende Pinsky (1998, p. 18-19), atualmente a ideia geral que abrange o termo cidadania pode ser descrita como a concessão de um status de identidade que permeia as relações entre os indivíduos em uma determinada sociedade, caracterizando-se assim como o fundamento responsável pela legitimidade dos direitos e deveres que determinam tanto o espaço, como os limites da atuação dos cidadãos, aqueles indivíduos que estabelecem um contrato ético com seus iguais em troca da estabilidade social que deve ser administrada por um Estado gestor.

Nesse sentido, também é necessário destacar que a cidadania contemporânea engloba em sua essência importantes garantias sociais, civis e políticas, as quais concedem aos cidadãos o direito de participação nas esferas públicas que são responsáveis tanto pela elaboração, como pela ratificação das regras sociais que são destinadas a todos os membros dessa comunidade. Ainda assim, o conceito de cidadania não apresenta na história da humanidade apenas um entendimento linear e uniforme em sua estrutura, até porque sua acepção estará sempre relacionada a uma realidade singular na qual os homens redefinem suas características de acordo com as convicções hegemônicas de cada povo em seu respectivo período histórico.

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11 Em todo caso,é fato que o termo cidadania sempre esteve relacionado à vida em sociedade, tendo sua origem calcada no desenvolvimento das atividades comerciais da antiguidade clássica que culminaram no surgimento das polis gregas da Antiguidade, e foi nesse período, sobretudo na Cidade-estado de Atenas (após as reformas políticas de Clístenes em 509 a.C.), que surgiu o modelo de administração pública (democracia) que reconhece aos homens livres nascidos na cidade o direito de participação na vida política que definia os rumos da administração de toda a Cidade.

O fundamento de toda a democracia é a liberdade, (realmente costuma-se dizer que somente neste regime participa-se da liberdade, pois este é, segundo se afirma, o fim de toda a democracia). Uma característica da liberdade é ser governado e governar por turno; [...] Outra é viver como se quer; pois dizem que isto é resultado da liberdade, já que é próprio do escravo viver como não se quer. Este é o segundo traço essencial da democracia e como decorrência de não ser governado por ninguém, se possível, ou então, por turno. Esta característica contribui para a liberdade fundamentada na igualdade (ARISTÓTELES Apud PINSKY, 2012a, p. 87).

De acordo com a concepção clássica grega, Aristóteles (1988, p. 45) definira cidadão como aquele indivíduo que estaria apto a governar e a ser governado, no entanto, não se poderia julgar que fossem cidadãos “todos aqueles que a Cidade não pode prescindir”. Por essas palavras, Hanna Arendt (1972) percebe que a dupla definição aristotélica de homem – enquanto animal político (zôonpolitikón) e enquanto animal racional (zôonlógonékhon) – não teria por objetivo a disseminação da cidadania para todos, até porque, naquele contexto, “aqueles que trabalhavam não eram cidadãos, e os que eram cidadãos eram, antes de tudo, os que não trabalhavam ou que possuíam mais que sua força de trabalho” (1972, p. 45).

Convém lembrar junto com a autora que, para os gregos, o trabalho era uma questão apolítica em sua essência, e por esse motivo o ócio era tido como condição necessária para a atividade do cidadão, sendo que este deveria dedicar-se integralmente às questões públicas no intuito de bem ordenar o destino de sua cidade.

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12 Romão esclarece:

Quando Aristóteles usava o vocábulo „cidadão‟, ele estava se referindo às minorias privilegiadas, as quais competiam às tarefas humanas, isto é, as artes do pensar e da direção, reservando aos demais as embrutecedoras atividades manuais que, por sua natureza, impediam a cidadania (ROMÂO, 2000, p. 222).

Nessa perspectiva, tanto em Atenas, como na maioria das Cidades-Estado da Grécia Antiga, só eram considerados cidadãos os homens livres e filhos de pais e mães bem nascidos, ou seja, homens de posse e/ou pertencentes à aristocracia, o que correspondia, aproximadamente, há cerca de um décimo da população total daquelas cidades. Nesse cenário, mulheres, escravos (geralmente estrangeiros cativos) e camponeses não possuíam, como já ficou claro, o status de cidadão, o que também demonstra um significado um tanto elitista deste conceito naquele período. Todavia, foi por esse modelo hierarquizado de sociedade que os gregos instituíram sua ideia de ordem pública, a qual foi se deteriorando em virtude da inexistência de um Estado grego unificado, e que acabou por sucumbir em decorrência domínio imposto pelos romanos em meados do séc. III a.C.

Na Roma Antiga, encontravam-se características convergentes com o modelo grego no que diz respeito à adoção do sistema escravista, mas também distinções próprias sobre sua ideia de cidadania. Segundo Cremonese (2001, p. 41), “se o homem grego era um homem contemplativo com direito à reflexão filosófica, à participação nos interesses da polis, o homem romano era voltado para a práxis”, e inclinados para uma visão endógena de mundo, os romanos compreenderam que o Estado deveria garantir a perpetuação de seus costumes através da imposição de suas leis para todos os povos governados por eles.

Assim, o modelo de cidadania proposto pelos romanos deixou de ser algo restrito ao sentimento comunitário daqueles que regiam a ordem social de um determinado território específico para representar também a todos os habitantes livres que se encontravam sob a tutela de Roma, o que garantia ao povo em geral o direito de escolher seus representantes nas assembleias constituídas.

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13 Mas se à princípio a cidadania romana foi concebida para um contexto republicano, posteriormente foi redefinida para o modelo autoritário do Império, e ao passo em que todo o poder passou a se concentrar nas mãos dos imperadores, o antes privilegiado status de cidadão foi perdendo sua característica original, o que na prática transformava os cidadãos romanos em meros súditos da vontade imperial, bem como das regalias usufruídas pelas classes mais abastadas.

Com o declínio do Império romano em 476 d.C., ocorre então um gradual processo de descentralização política no continente europeu, o que culminou no surgimento do Sistema Feudal que foi predominante no Ocidente cristão. Assim, com o desaparecimento do Império que garantia a unidade administrativa naqueles territórios, boa parte da sociedade, antes predominantemente urbana, viu-se forçada a buscar proteção junto aos grandes proprietários de terra que ainda mantinham exércitos particulares para a defesa de suas posses.

Cabe lembrar que esse período coincidiu com o fortalecimento do cristianismo no Ocidente, o que também transformou a Igreja Católica romana numa importante instituição política que dava sustentação ao regime de suserania e vassalagem, e neste contexto “a ideia de cidadania desaparece na medida em que a polis e a república [...] são substituídas pela concepção da coletividade organizada como república Cristiana, que associa a ordem e a unidade da sociedade cristã à coordenação da igreja” (ANDRADE, 2002, p. 38).

Na perspectiva medieval europeia ocorre então a submissão dos poderes temporais terrenos diante da universalidade atemporal da moral cristiana difundida pela Igreja, a qual não se opunha diretamente aos valores comuns daquele período, como a conformidade social, muito menos com a divisão das sociedades em três categorias distintas – Senhores (nobres), Servos (trabalhadores rurais) e Clero (membros da Igreja) – que apresentavam em si mesmas os limites da atuação de cada uma delas de acordo com uma suposta interpretação da vontade divina.

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14 Neste contexto, foi marcante a contribuição de Agostinho na definição do papel do indivíduo cristão em sociedade. Considerado um dos grandes arquitetos intelectuais do cristianismo medieval, Agostinho utilizou-se da razão legada pela filosofia clássica para justificar sua interpretação teológica, na qual ficou evidenciada a necessidade da submissão dos fundamentos da cidade terrena aos desígnios da Cidade de Deus, até porque, segundo o autor, “sabemos que há uma Cidade de Deus da qual aspiramos ser cidadãos movidos pelo amor que seu fundador infundiu a nós” (2000, p. 988).

De acordo com essa doutrina, o homem terreno seria, antes de tudo, um ser dotado de alma; daí decorre que seu principal dever consiste na obediência aos mandamentos divinos em uma hierarquia onde tudo estava voltado para Deus, ficando os valores terrenos em um patamar secundário, seguidos pela política e, por último, pelo indivíduo. Em síntese, pensava-se no homem, fundamentalmente, como um servo de Deus, consequentemente, súdito das instituições terrenas que o representavam. Assim, entre os fundamentos da Cidade de Deus e da cidade dos homens de Agostinho, não parece restar espaço para se pensar o homem enquanto cidadão, ao menos não nos moldes fundados à moda antiga anterior, a qual só seria resgatada com maior ênfase entre os séculos XIV e XV sob a influência da Renascença italiana que anunciou ao mundo o surgimento de um novo paradigma humanista que se efetivara gradativamente no pensamento moderno.

Na prática intelectual dos inícios dos tempos modernos, humanista é a figura humana ligada à rejeição das formas culturais da Idade Média e à renovação do pensamento da Antiguidade clássica [...]. Humanista é aquele que, no interior de sua relação com o divino, renasce pela busca de uma verdade captada e interrogada por um homem na direção e em benefício do homem. Ir ao encontro de uma verdade humana como construção e como objeto: essa mudança de perspectiva será o eixo de reflexão dos humanistas renascentistas (HILSDORF, 1998, p. 13).

Influenciadas por esse espírito reformista, e pelo ressurgimento das atividades comerciais no Mar Mediterrâneo, as Cidades-estado italianas tornaram-se então fecundas para a disseminação dessas tendências que se opunham ao teocentrismo medieval. Desse modo, também ressurgiram as discussões acerca de um projeto ideal de

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15 cidadania, sendo este sensivelmente inspirado no idealismo da filosofia clássica grega, fato que se materializava no pressuposto segundo o qual haviam pontos de convergência entre a afirmação do cidadão das antigas polis com as aspirações ambicionadas pelos humanistas italianos, até porque, para eles, “ambas enfrentavam a problemática do homem livre e sua inserção no mundo natural e social, e os antigos lhe davam uma orientação, uma resposta para seus problemas” (HILSDORF, 1998, p. 13).

Já num sentido oposto ao que fora adotado pela maioria de seus contemporâneos, e um tanto descontente com os fundamentos políticos de seu tempo, Maquiavel distanciou-se sensivelmente da ordem idealista dos filósofos clássicos da antiguidade, tendo ele se dedicado em seus estudos a analisar a possibilidade da instauração de um regime mais estável e que garantisse a ordem social na Península Itálica, fato que em seu tempo caracterizava-se como um problema cíclico de oscilações entre momentos de paz sucedidos por barbárie nas constantes lutas entre importantes famílias rivais que reivindicavam o poder para si.

Portanto, a solução de Maquiavel para essa questão estaria na política, mais especificamente na formação de um governo forte o suficiente para fazer reinar a paz e difundir o bem comum aos seus cidadãos; mas é evidente que o conteúdo de sua obra abriria precedentes para uma interpretação depreciativa uma vez que foi atribuída a ela a ideia de que “os fins justificariam os meios”, e que caberia ao governante utilizar-se de todos os artifícios possíveis, éticos ou não, para que este viesse a consolidar-se no poder.

Entretanto, Jean-Jacques Chevallier afirma haver em O Príncipe um grande segredo revelado apenas ao final de seu último capítulo, intitulado de Exortação à tomada da Itália e à sua libertação dos bárbaros, no qual se anuncia um Maquiavel idealista e patriota, esperançoso por um novo tempo, de uma nova configuração política, bastante diferente do habitual enfoque acusatório recaído sobre o caráter do pensador florentino:

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16 Este segredo, este grande segredo de amor e de nostalgia, é à Itália. Um violento amor da pátria despedaçada, subjugada e devastada, arde no íntimo do coração desse funcionário de espírito tão implacavelmente positivo, de olhos frios, tão abertos sobre a dureza e a realidade, sobre a sua selvageria até. O sonho de um libertador, de um redentor da Itália, atormenta Maquiavel [...]. Republicano de coração, Maquiavel imaginara, sem dúvida, a realização de uma república italiana (CHEVALLIER,1982, p. 42).

Ao que tudo indica, ao redigir sua inflamada carta endereçada ao “Magnífico Lourenço de Médicis”, Maquiavel não procurava por um tirano cruel e sem escrúpulos, mas sim por um governante virtuoso e engajado em suas atribuições, embora não rejeitasse o uso da força quando necessário. Assim, o conteúdo de O príncipesurge na obra de Maquiavel como o único meio capaz de proteger seu povo da autodestruição, o que só seria possível através da formação de um Estado Soberano.

Não se deve, portanto, deixar passar esta ocasião: a Itália, tanto tempo passado, há de ver, enfim, a chegada do seu redentor. E faltam-me palavras para exprimir com que amor seria ele recebido em todas aquelas províncias que padeceram com o alúvio invasor dos estrangeiros; com que sede de vingança, com que inabalável fé, com que devoção, com que lágrimas” (MAQUIAVEL, 2001, p. 152).

Igualmente convencido da ideia de que o fortalecimento do Estado seria o caminho mais apropriado para garantir a paz entre os homens, Thomas Hobbes difundiu na Inglaterra do século XVII o ideal contratualista como fundamento chave para a solução dessa questão. No modelo de contrato social de Hobbes, o Estado, dotado de um poder soberano e absoluto, centralizado na figura do monarca, se tornaria a condição para a própria definição da sociedade, responsabilizando-se por meio das leis da mediação das relações entre seus membros associados, o que se daria pelo consentimento de que isso seria benéfico para todos uma vez que conformaria os interesses individuais a um poder maior que representasse o bem estar coletivo. É necessário salientar que a proposta de Hobbes parte de uma compreensão a respeito da natureza humana que, sendo má, detonaria por si própria numa luta de todos contra todos, e vem daí a tese defendida pelo autor de que os homens deveriam abrir mão de certos direitos ao conformarem-se ao contrato:

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17 O direito de todos os homens a todas as coisas não deve ser retido, mas alguns direitos devem ser transferidos ou renunciados, pois se cada um retém seu direito sobre tudo, segue-se necessariamente que alguns, através do direito, podem invadir e outros, pelo mesmo direito, se defenderem contra os primeiros, pois na necessidade natural de todo o homem está o empenho em preservar seu corpo e tudo aquilo que considera necessário para protegê-lo (HOBBES, 2004, p. 41).

Se a princípio a tese de Hobbes parece encaminhar o destino político da humanidade ao absolutismo monárquico, devemos antes considerar que sua doutrina limitou a liberdade, que seria natural no homem, justamente por considera-la a gênese originária da barbárie, e é possível imaginar em que medida limitada o exercício da cidadania dar-se-ia nesse modelo. Contudo, não seria totalmente incabível supor que em seus fins estaria incutido um pretencioso projeto de cidadania, não aquele legado da antiguidade grega, que correspondia à participação política como condição, mas sim um novo, que buscava a realização do homem pelo Estado atravésda regência das leis.

Já em um momento posterior, John Locke questionará o ideal político de Hobbes ao propor novas práticas advindas das aspirações de uma burguesia ascendente que, já naquele momento, cobrava por maior representatividade nas decisões de ordem política e, sobretudo, econômicas do Estado Inglês.

Certamente os contextos históricos vivenciados por estes dois pensadores tiveram forte influência sob suas teses em torno da cidadania. Conforme Weffort (2006, p. 8-9), “Hobbes é contemporâneo da Revolução inglesa de 1640, e Locke vive na época da Revolução Gloriosa de 1688”, pois enquanto o primeiro procurou defender em sua obra o reestabelecimento da monarquia como forma de conter os excessos cometidos durante a instauração da República comandada com mãos de ferro por Oliver Cromwell entre os anos de 1649 e 1653, o segundo rechaçava veementemente os moldes pelo qual esta fora restaurada em 1660, e exigia que o poder real fosse limitado por assembleias que deveriam representar os interesses do povo, o que só foi posto em prática após a Declaração dos Direitos de 1689 (Bill ofRights), este fruto dos desdobramentos da Revolução Gloriosa que instituiu o parlamentarismo na Inglaterra.

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18 Diante de perspectivas tão distintas, o poder soberano proposto por Hobbes já traria em si mesmo o seu modelo de organização da sociedade, que deveria ser dirigida pelo monarca com rigidez para o bem maior da sociedade que, nesse cenário, colocava a todos na condição de súditos do poder real. Já com Locke, a ideia de cidadania surge amparada pela adoção da representatividade política dos interesses do povo como forma de proteger o indivíduo contra os abusos do Estado e da nobreza, o que acrescentaria direitos civis e políticos aos cidadãos, sobretudo, o direito a vida, a liberdade, a propriedade e ao usufruto dos bens constituídos pelo seu trabalho.

Locke também propôs a adoção de dois poderes distintos para a composição de um governo ideal, contudo, estes poderes seriam complementares entre si. Ter-se-ia, então, o poder legislativo, sustentado pela participação representativa dos cidadãos na regulamentação jurídica do Estado, e o poder executivo, que deveria garantir o cumprimento das leis que fossem provenientes da vontade expressa pelas assembleias, assegurando os pressupostos da liberdade enquanto uma lei natural positiva.

A liberdade dos homens sob governo importa em ter regra permanente pela qual se viva, comum a todos os membros da sociedade e feita pelo legislativo nela erigido: a liberdade de seguir minha própria vontade em tudo quanto à regra não prescreve, não ficando sujeito à vontade inconstante, incerta e arbitrária de qualquer homem; como a liberdade de natureza consiste em não estar sob qualquer restrição que não a lei da natureza (LOCKE, 1978, p. 43).

Cabe destacar que o sentido de liberdade defendido por Locke – no qual prevalece o respeito aos direitos individuais de cada cidadão – também foi capaz de influenciar a noção moderna de cidadania, a qual foi sendo moldada em meio a Revolução Inglesa (1640 – 1688) que limitou o poder monárquico absolutista naquele país ao adotar o parlamentarismo como forma de governo e que posteriormente desencadeou no surgimento do ideal capitalista liberal burguês em meio ao desenvolvimento progressivo da Revolução Industrial iniciada ainda no século XVIII. Contudo, o direito a participação política foi, “pelo menos até o final do século XIX, uma prerrogativa associada à posse de bens materiais”, portanto, “seus fundamentos universais [...] traziam em si a necessidade histórica de um complemento fundamental: a

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19 inclusão dos despossuídos e o tratamento dos iguais com igualdade” (MONDAINI, 2010, p. 131).

Na década de 1950, T. H. Marshall tornou-se referência ao investigar o processo histórico que a constituiu a questão da cidadania na Inglaterra. De acordo com seus estudos, o autor percebeu que a evolução deste conceito deveria ser considerada a partir de três momentos distintos3, que simbolizaram as conquistas graduais dos direitos civis no século XVIII, dos direitos políticos no século XIX, e dos direitos sociais no século XX. Segundo Marshall (1967, p. 64), “nos velhos tempos, esses três direitos estavam fundidos num só”, o que seria indício de que a concepção inicial de cidadania teve em seu princípio um sentido geral, em que o governo concentrava as funções legislativas, executivas e judiciárias, mas com as frequentes pressões da sociedade civil organizada, esta lógica foi sendo modificada ao ponto de estender sensivelmente o grau de direitos e de participação a todos os membros da sociedade em um processo histórico de longa duração.

O surgimento sequencial dos direitos sugere que a própria ideia de direitos, e,

portanto, a própria cidadania, é um fenômeno histórico. O ponto de chegada, o ideal da cidadania plena, pode ser semelhante, pelo menos na tradição ocidental dentro da qual nos movemos. Mas os caminhos são distintos e nem sempre seguem linha reta. Pode haver também desvios e retrocessos, não previstos por Marshall. O percurso inglês foi apenas um entre outros. A França, a Alemanha, os Estados Unidos, cada país seguiu seu próprio caminho” (CARVALHO, 2012, p.12).

Na França do século XVIII, muitos pensadores identificados com o movimento iluminista também vieram a adotar o tema da liberdade como meta coletiva a ser alcançada. Dentre esses notáveis intelectuais, destacaram-se figuras emblemáticas como Montesquieu, Voltaire e Rousseau que, embora apresentassem divergências entre si, fomentaram consideravelmente os debates que vieram a constituir a ideia moderna de cidadania. Neste cenário que antecedeu a queda do absolutismo francês, questões como

3 “O autor que desenvolveu a distinção estre as várias dimensões da cidadania [Marshall] sugeriu que ela

se desenvolveu na Inglaterra com muita lentidão. Primeiro vieram os direitos civis, no século XVIII. Depois, no século XIX, surgiram os direitos políticos. Finalmente, os direitos sociais foram conquistados no século XX. Segundo ele, não se trata de sequência apenas cronológica: ela é também lógica. Foi com base no exercício dos direitos civis, nas liberdades civis, que os ingleses reivindicaram o direito de votar, de participar do governo do seu país” (CARVALHO, 2012, p. 11).

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20 a divisão racional dos poderes do Estado (Montesquieu), a liberdade de expressão (Voltaire) e a soberania popular (Rousseau) foram amplamente discutidos entre os intelectuais iluministas, pois estes defendiam uma ruptura para com os paradigmas vigentes naquele período e exigiam reformas amparadas nos princípios da igualdade e da liberdade da qual seriamos supostamente dotados em nossa natureza. Contudo, foi primeiro na América que essas tendências vieram a se estabelecer na prática.

Embora não se possa afirmar que exista uma relação direta entre a Revolução Americana e o movimento iluminista francês, é possível verificar que os fundadores da República norte-americana tinham muito em comum com as aspirações difundidas na França do século XVIII, pois ambas defendiam reformas amparadas nos pressupostos da liberdade e da igualdade entre os homens, o que também pôde ser percebido no texto de Declaração de Independência dos Estados Unidos da América que fora redigido por Thomas Jeferson no ano de 1776:

Consideramos estas verdades auto evidentes: que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu criador de certos Direitos inalienáveis, que entre eles estão a Vida, a Liberdade e a busca da felicidade. – Que para assegurar esses direitos Governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento de seus governados. – Que, sempre que qualquer forma de Governo se torne destrutiva desses fins, é Direito do povo alterá-la ou aboli-la, e instituir um novo governo, assentando sua fundação nesses princípios e organizando os seus poderes da forma que lhe pareça mais conveniente para a realização de sua Segurança e Felicidade (2009, p. 219).

Apesar do caráter local da Declaração de 1776, seu conteúdo repercutiu na França como exemplo salutar a ser seguido por aqueles que desejavam abolir o absolutismo naquele país durante a Revolução que se iniciou no fim do século XVIII. Embora estes eventos revolucionários apresentassem características e motivações singulares em si, a linguagem universalista adotada pelos americanos também pôde ser percebida no texto da Declaração dos Direitos do Cidadão de 1789, onde os reformadores declaravam que todos os cidadãos, e não apenas os franceses, “nascem e permanecem livres e iguais em direitos”, da mesma forma que todos devem ter o direito de participação na elaboração das leis do país (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO, 2009, p. 225-226).

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21 Liberdade, igualdade e fraternidade, eis aí os precedentes históricos mais próximos da noção contemporânea de cidadania, todavia, há de se considerar o caráter liberal que essas aspirações tomaram nas décadas e nos séculos seguintes, onde não foram mais admitidas e nem toleradas as regras que naturalizavam a desigualdade entre os homens, embora estas diferenças emergissem veladamente a partir de a uma variedade de fatores que se relacionam tanto com forma de acesso a propriedade privada, bem como pela estruturação das economias nacionais capitalistas, o que colocou no topo da questão a defesa dos interesses particulares dos cidadãos em detrimento do sentimento comunitário que, nesse contexto, constituiu um interesse secundário.

Sobre esta questão, Todorov sustenta que, para os defensores do liberalismo, são os indivíduos que devem demonstrar iniciativa em suas atividades particulares, até porque a lógica do pensamento liberal sugere “a suspenção das intervenções públicas no domínio econômico” (2012, p. 96), e foi por esse ideário um tanto individualista que se desenvolveu a noção contemporânea de cidadania, pela qual fomos cercados de direitos igualitários (civis, políticos e sociais) que supostamente contemplariam a liberdade humana, mas que na prática são limitados em sua acessibilidade pela condição social ou mesmo econômica do cidadão para que este possa vir a se beneficiar efetivamente dos progressos científicos e tecnológicos do mundo capitalista.

Neste sentido, os fundamentos competitivos que se criaram em torno da ideia de livre mercado ainda parecem muito distantes de garantir uma inclusão social justa, igualitária e homogênea como fora preconizado pelos pensadores iluministas. Ainda assim, vale a pena considerar as palavras de Hobsbawm (1998, p. 269-270) sobre o principal legado que nos foi deixado através do desenvolvimento histórico do pensamento iluminista do século XVIII:

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22 Creio que uma das poucas coisas que nos separam de uma queda acelerada nas trevas é o conjunto de valores herdados do Iluminismo do século XVIII. Não é uma concepção muito popular nesse momento, quando o Iluminismo pode ser descartado como algo que vai do superficial e intelectualmente ingênuo até uma conspiração de homens brancos mortos usando perucas para fornecerem fundamento intelectual ao imperialismo ocidental. Pode ser ou não isso tudo, mas é também o único fundamento para todas as aspirações de erigir sociedades adequadas a todos os seres humanos que viverão em algum lugar desse planeta, e para a afirmação e defesa de seus direitos humanos enquanto pessoas (HOBBSBAWM, 1998, p. 269-270).

De fato, entendemos que o legado moderno iluminista não deve ser submetido a reducionismos práticos pelo que a humanidade veio a fazer destes preceitos que recomendavam a validadeda ideia de progresso, muito menos generalizações objetivas, pois em meio ao clima otimista proporcionado pelo espírito reformista das luzes do século XVIII, Jean-Jacques Rousseau distanciou-se da perspectiva defendida por seus contemporâneos já no seu primeiro discurso de caráter político ao fazer uma nova leitura sobre as relações entre ciências, artes e moral, duvidando que as duas primeiras fossem a causa da terceira, e o que chama a atenção nessa formulação é o seu ponto de partida: uma reavaliação acerca dos elementos que constituem a sociabilidade humana, e é neste sentido é que anunciamos nosso próximo capítulo, que tratará de analisar a ideia de cidadania universal e igualitária na perspectiva de J.-J. Rousseau.

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23 CAPÍTULO II:

A QUESTÃO DA CIDADANIA NA OBRA DE J.-J. ROUSSEAU: NATUREZA, SOCIABILIDADE E CONTRATO SOCIAL

Neste capitulo as bases para a reflexão decorrem das leituras a partir da obra de Rousseau, pois, dentre outros aspectos abordados por este pensador, está à questão da cidadania, nosso objeto de estudo nessa dissertação. Os vários estudiosos que se dedicam à reflexão sobre a temática e sobre Rousseau trazem importantes contribuições para que sejam levantadas questões abordando problemas de nossa época. Com esta minha inserção na temática procuro refletir sobre estes problemas considerando aspectos que julgo pertinentes para a análise e que podem auxiliar na compreensão da formação para a cidadania.

No conjunto de sua obra, Rousseau dedicou-se a investigar os fatores que, a seu ver, estariam interpostos entre o homem e sua felicidade, pois acreditava que esta última teria sido comprometida em meio aos eventos que corroboraram para a formação de sociedades corruptas e desiguais. Mas a partir do pressuposto de que o homem fora degradado em sua natureza pelas suas próprias escolhas no percurso civilizatório da humanidade, e de que tal deformidade não seria oriunda de nenhum processo natural, Rousseau entendeu que os homens poderiam, em princípio, recuperar ao menos uma parte de sua integridade originária. Se o ponto de partida dessa perspectiva advém de sua crença na boa natureza humana, o problema que se apresentava para o ele seria o de como conservar a qualidade original dessa condição, bem como o de integrar o homem a vida civil na condição de cidadão, pois, para o autor, as causas que deformam e degeneram a condição humana no estado civil seriam artificiais, e estariam diretamente relacionadas a um processo de desnaturação mal conduzido pelas sociedades existentes.

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24 Segundo Nicholas Dent, a maioria dos intelectuais modernos procurou sustentar suas teses acerca da sociabilidade humana através da analise de uma suposta “condição pré-civil (e, por vezes, pré-social) do homem que dão nome de estado de natureza” (1996, p. 130). Dentre as razões para terem recorrido ao estudo dessa temática, uma estaria relacionada ao desejo de alguns em discutir as dimensões civis e políticas das sociedades existentes, isso com o propósito reparar certos inconvenientes que as pessoas teriam sofrido nesse imemorialestágio primitivo.

Para Hobbes, por exemplo, as características verificadas no estado natural deveriam ser suprimidas no estado civil, pois “os homens não podem esperar uma conservação durável se permanecerem em seu estado de natureza, ou seja, de guerra, e isso se deve a igualdade de poder que existe entre eles” (2004, p. 40). Mas é necessário destacar que essa ideia parte de uma concepção a respeito da natureza humana que, sendo má, detonaria por si própria numa luta de todos contra todos. Isto porque ele concebeu o estado de natureza como um estado amoral, no qual todos os homens poderiam se valer de sua condição de liberdade para alcançar seus objetivos sem nada dever a seus semelhantes, independentemente do caos e da desordem que isso pudesse representar. De acordo com essa tese, Hobbes pressupôs que não se deveria pensar a sociedade em primeiro plano para posteriormente idealizar a confecção do Estado, mas sim entendê-los concomitantemente4.

Em oposição à perspectiva de Hobbes, outra razão bastante utilizada para descrever o estado de natureza estaria relacionada à ideia de que as disposições políticas dos governos constituídos deveriam preservar certas leis naturais, dentre elas a liberdade de todos os homens para seguirem suas inclinações particulares em tudo quanto à legislação não os proibisse de almejar.

4

“O direito de todos os homens a todas as coisas não deve ser retido, mas alguns direitos devem ser transferidos ou renunciados, pois se cada um retém seu direito sobre tudo, segue-se necessariamente que alguns, através do direito podem invadir e outros, pelo mesmo direito, se defendem contra os primeiros (pois na necessidade natural de todo o homem está o empenho em preservar seu corpo e aquilo que considera necessário para protege-lo). E disso segue-se a guerra, pois aquele que não renuncia a seu direito sobre todas as coisas, atua contra a razão da paz, ou seja, contra a lei da natureza” (HOBBES, 2004, p. 41).

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25 Para Locke, isso só seria possível porque ele acreditava que o estado de natureza já seria um estado moral em si mesmo, pois o autor sustentava a existência de uma razão natural que “ensina a todos os homens, se quiserem consultá-la, que, sendo todos iguais e independentes, nenhum deve prejudicar o outro, quanto à vida, à saúde, à liberdade, ao próprio bem” (LOCKE apud CHEVALLIER, 1982, p.106). Assim, como a liberdade dos homens não poderia ser submetida a qualquer restrição senão aquelas prescritas pelas leis da natureza, os defensores dessa hipótese acreditavam que a liberdade dos homens sob governo deveria ser garantida pelo mesmo princípio (LOCKE, 1978, p. 43). Embora Rousseau também considerasse oportuno debater sobre a existência de um estado de natureza do homem, este fora contrário às tendências filosóficas que se debruçaram anteriormente sobre o assunto.

Para determinar qual é a mentalidade e o gênero de vida dos primitivos, Rousseau raciocina sobre o princípio de que o homem natural leva uma existência solitária, sem nenhum comércio com seus semelhantes, sem reconhecê-los individualmente, sem mesmo suspeitar que eles são da mesma espécie que ele. [...]. Para ele, o isolamento do homem natural é a noção fundamental da qual todo o resto é deduzido como uma consequência. É por tê-lo ignorado que nenhum daqueles que falaram do estado de natureza foi capaz de concebê-lo exatamente (DERATHÉ, 2009, p. 204-205).

No que confere ao estado de natureza do homem, Rousseau apresenta então ao menos duas perspectivas distintas quanto a seu significado: na primeira delas, presente no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, a noção de natureza descreve hipoteticamente o homem pelas suas qualidades essenciais e faculdades distintivas (homem natural). Essa leitura pretendia reparar um suposto equívoco cometido por seus contemporâneos que tentavam conceituar a natureza humana a partir da descrição de características que só poderiam ser atribuídas ao homem civilizado; Já na segunda perspectiva, que perpassa boa parte do Contrato social e do Emílio, o estado de natureza passa a ser entendido como ponto de partida para se pensar a questão da sociabilidade humana, pois a primeira noção fornece o suporte teórico que Rousseau considerava necessário para o exame do plano real no qual a humanidade vive e desenvolve faculdades virtuais.

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26 Para Rousseau, “por infelicidade, aquilo que menos conhecemos é justamente o que mais nos importaria conhecer, a saber, o próprio homem” (2005a, p. 151). Cabe destacar que, para o autor, nenhum dos pensadores de seu tempo teria sido capaz de definir de forma segura sobre o que é natural e o que é artificial no comportamento humano, pois a metodologia aplicada por eles estaria limitada a análise sistemática das sociedades que tinham diante de seus olhos, o que para Rousseau não seria adequado para determinar os reais traços da condição humana, pois, para ele, a arte de relacionar fatos “não nos ensina de modo algum a conhecer verdades primitivas que servem de elementos a outras” (idem, p. 149). Por essa lógica, Rousseau entendia que seria praticamente impossível remontar o estado natural por vias empíricas, até porque, para ele, trata-se de um estado que já não existe mais e que talvez nunca tenha existido de fato:

Comecemos, pois, por descartar todos os fatos, pois eles não se prendem a questão. Não se devem tomar as pesquisas que se podem realizar sobre esse assunto por verdades históricas, mas somente por raciocínios hipotéticos e condicionais, mais apropriados pra esclarecer a natureza das coisas do que para lhes mostrar a verdadeira origem (ROUSSEAU, 2005b, p. 161).

Assim, Rousseau acreditou que a real conjectura do estado natural não poderia ser descrita por nenhuma verdade factual, mas apenas por hipóteses das quais poderiam ser deduzidas algumas conclusões parciais, portanto, na impossibilidade de se obter provas incontestáveis ou mesmo definitivas sobre o assunto, ele entendeu que o estado de natureza só poderia ser compreendido através do estudo do homem considerado em si mesmo a partir de uma hipotética condição de isolamento deste em relação aos demais, pois seus traços originais emergem exclusivamente dos ditames da natureza, e não daquilo que as circunstâncias sociais vieram a acrescentar a essa constituição primitiva. Nesse caso, o estado de natureza surge na obra do autor como o recurso metodológico que lhe permite examinar e isolar as características que pertencem ao homem natural, bem como as características artificiais que moldaram gradativamente o comportamento do homem em seu estado civilizado.

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27 Não tenho a intenção aqui de entrar em discussões metafísicas que não levam a nada. Já vos disse que não queria disputar com filósofos, mas falar a vosso coração. [...] Para tanto basta apenas fazer-vos distinguir nossas percepções adquiridas de nossos sentimentos naturais; pois necessariamente sentimos antes de conhecer, e como não aprendemos a querer nosso bem pessoal e a fugir do que nos faz mal, mas recebemos essa vontade da natureza, do mesmo modo o amor ao que é bom e o ódio ao que é mau são-nos tão naturais quanto a nossa própria existência. Assim, por mais que as ideias venham de fora, os sentimentos que as avaliam estão em nosso interior, e é apenas por meio deles que conhecemos a conveniência ou a inconveniência que existe entre nós e as coisas que devemos procurar evitar (ROUSSEAU, 2005a, p. 166).

Sobre os traços constitutivos da condição humana,Rousseau procurou desvendar as características que seriam comuns à natureza de todos os humanos de todos os tempos e lugares, e sugeriu “que os homens nesse estado, não tendo nenhuma espécie de relação moral, nem deveres conhecidos, não poderiam ser nem bons nem maus, e não tinham vícios nem virtudes” (2005b, p. 187), pois, para ele, o homem só pôde adquirir tais características em meio ao convívio direto com outros homens. Nessa perspectiva, o autor entendeu que a natureza do homem seria essencialmente pura e inclinada para a preservação da sua vida, da sua liberdade e do seu bem estar.

Tal distinção também indicava que o homem que viveu nesse hipotético estado pré-social não deveria ter nenhuma preocupação natural senão aquelas necessárias a sua conservação. Assim, Rousseau deduziu que o homem natural não deveria ser muito diferente dos demais animais que dependiam unicamente de suas forças e de seus instintos para sobreviver, todavia, essa percepção não é definitiva para o autor, pois ele percebe que a natureza humana também é dotada de uma faculdade muito específica que distingue o homem dos demais seres vivos, qual seja: “a faculdade de aperfeiçoar-se; capacidade essa que desenvolve sucessivamente todas as outras, e reside, entre nós, tanto em espécie quanto no indivíduo” (2005b, p. 173).

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28 Ao descrever as primeiras sociedades, Rousseau (2005c, p. 55) indicava que “a mais antiga e a única natural” seria a família. Nela, os vínculos que mantém pais e filhos unidos poderiam ser naturalmente desfeitos ao passo em que os filhos não dependessem mais dos cuidados de seus pais para suprirem suas necessidades vitais. Por outro lado, se os homens continuaram unidos, não fora por nenhuma imposição das leis da natureza, mas sim por uma adesão voluntária despertada pelo desenvolvimento de sua racionalidade. Nesses termos, estado de natureza e estado civil não seriam categorias necessariamente opostas entre si, mas articuladas ao passo que o convívio social possibilita a ativação da consciência do homem que o inclina para a vida em sociedade.

Contudo, Rousseau também adverte para o fato de que os progressos proporcionados pelo desenvolvimento da sociabilidade “representam, aparentemente, tantos passos rumo à perfeição do indivíduo quanto à decrepitude da espécie humana” (ROUSSEAU apud TODOROV, 2008, p. 26), pois, pelo livre arbítrio que o homem dispõe em sua natureza, a perfectibilidade também veio a desencadear naquilo que há pior nas relações entre os homens, e foi nesse sentido que Rousseau elaborou sua critica as sociedades constituídas.

Segundo esta, com o estreitamento das relações civis e políticas, o homem teria deixado de ser livre e feliz ao afastar-se cada vez mais da simplicidade da vida rústica dos primeiros tempos, isso devido à incorporação artificial de uma infinidade de necessidades supérfluas a sua natureza, o que também teria aguçado consideravelmente a vaidade humana e gerado os mais diversos conflitos de interesses entre os homens.

Dessas necessidades artificiais, criadas pelo próprio homem, teriam se originado muitos males que possibilitaram a formação de sociedades desiguais, degeneradas em si mesmas com o auxílio do progresso das ciências e das artes que ostentavam princípios individualistas que não favoreceram a disseminação de valores éticos e coletivos.

Portanto, seria necessário apelar para a consciência dos homens para conceber novas regras que pudessem corroborar tanto para o bem estar dos povos civilizados, como para a felicidade da espécie humana, pois o argumento no qual a humanidade teria se organizado em sociedade devido a uma ação racional trouxe consigo a possibilidade de se pensar no homem como um agente que é capaz de se desdobrar sua própria

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29 natureza, tanto para o mal, como para o bem, e foi justamente dentro dessa perspectiva de perfectibilidade humana, no interior de um contexto favorável a mudanças, que Rousseau concebeu o seu Contrato Social, no qual propôs um modelo de associação política que exigia a universalização da igualdade civil como condição primeira para a estruturação de um governo legítimo, pois se considerarmos que “homem algum tem autoridade natural sobre seus semelhantes e que a força não produz nenhum direito, só restam as convenções como base de toda a autoridade legítima entre os homens” (ROUSSAU, 2005c, p. 61).

Assim, esse seria o problema fundamental que o Contrato de Rousseau pretendia solucionar: “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos só obedece, contudo, a si mesmo” (2005c, p. 69-70).

Conforme Nascimento (1998, p. 194), Rousseau desenvolveu uma forma original de pensar a sociedade pelo Contrato, inovando “principalmente ao propor o exercício da soberania pelo povo”, o que implicaria fundamentalmente no reconhecimento do direito a participação direta e inalienável de todos os cidadãos no exercício das atividades políticas de sua comunidade. Nessa perspectiva, a ideia do Contrato Social rousseauniano vinculava-se a um projeto moral que propunha um tipo de associação entre os homens no qual a radicalização da igualdade civil é vista como condição necessária para a formação de um corpo político soberanoque represente a síntese dos interesses coletivos por uma mesma vontade geral.

Para a cidadania propriamente dita, conforme a entende Rousseau, um direito ocupa uma posição central: é o de participação na formação ou ratificação da legislação soberana. Um indivíduo não é cidadão se for o recipiente passivo da direção legislativa de outros, mesmo que esses outros estejamsinceramente agindo em seu benefício. Goza ainda menos de cidadania se for subjugado pela força ou poder inescapável; isso é servidão. Um cidadão é, antes, alguém que se encontra em pé de igualdade e desempenha um papel igual a par de todas as outras pessoas (igualmente cidadãos) na formação de regras gerais comuns e competentes por meio das quais todos organizarão suas vidas no Estado (DENT, 1996, p. 63).

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30 Nesse modelo em que o povo adquire o status desoberano, o papel do governo é redimensionado a condição de funcionário da vontade geral e, ao mesmo tempo, corpo administrativo do Estado. Mas para que essa vontade geral fosse cumprida, seria necessário criar uma legislação que estivesse de acordo com esses princípios. Por essa via, Rousseau (2005c, p. 108) advogava que o povo, submetido às leis, deveria ser seu próprio autor, pois somente àqueles que se associam compete regulamentar as condições da sociedade. Isso porque o direito legítimo na sociedade do Contrato, segundo o filósofo genebrino, só existiria a partir de convenções que fossem resultantes de processos de discussão em que todos os indivíduos fossem dotados da mesma condição perante os outros.

Contudo, o autor reconhece que “o povo, por si, quer sempre o bem, mas por si nem sempre o encontra” e, dessa forma, “a uns é preciso obrigar a conformar a vontade à razão, e ao outro, ensinar a conhecer o que quer” a fim de evitar que os interesses privados dos indivíduos não se sobreponham a vontade geral que é de interesse público (idem, p. 108). Por essa razão, como intuito de sanar esta contradição própria de todas as sociedades quando somados os interesses individuais de cada um, surge na tese de Rousseau a importante contribuição do legislador5.

Figura central para a sistematização das leis, o autor reservou para este um papel de interlocutor ético e político que, ao avaliar a realidade social, pudesse extrair do próprio Soberano aquelas indicações que lhe colocasse na direção do bem comum, e ao captá-las, redigisse-as sob forma de legislação como garantia do cumprimento de uma vontade geral realmente efetiva. Mas embora o legislador seja fundamental na elaboração do conjunto de leis que tornariam possível a consolidação do pacto social, Rousseau também afirma que sua atuação deveria se limitar a realização da síntese da totalidade da vontade geral do povo, e nunca estabelecer-se como o próprio Soberano:

5 “Aquele que ousa empreender a instituição de um povo deve sentir-se com capacidade para, por assim

dizer, mudar a natureza humana, transformar cada indivíduo, que por si mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior, do qual de certo modo esse indivíduo recebe sua vida e seu ser; alterar a constituição do homem para fortifica-la; substituir a existência física e independente, que todos nós recebemos da natureza, por uma existência parcial e moral” (ROUSSEAU, 2005c, p. 110)

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31 Aquele, pois, que redige as leis, não tem nem deve ter nenhum direito legislativo. O próprio povo não poderia, se o desejasse, despojar-se desse direito incomunicável, porque, segundo o pacto fundamental, só a vontade geral obriga os particulares e só podemos estar certos de que uma vontade particular é conforme à vontade geral depois de submetê-lo ao sufrágio livre do povo (ROUSSEAU, 2005c, p. 111).

É neste sentido que Rousseau (2005c, p. 185) reforçava sua convicção de que a soberania popular deveria ser exercida pelo povo, sempre que possível, de maneira direta e inalienável6, até porque cabe a todos os contratantes a tarefa de fiscalizar as possíveis falhas que possam vir a impedir com que a vontade geral seja cumprida. Esta afirmação demarca um dos principais pontos de ruptura da perspectiva de Rousseau para com os ideais defendidos pelos teóricos que pregavam a instituição de um Estado político representativo, classificando-o como um modelo que surgiu para converter em direito o que as classes dominantes já possuíam enquanto força desde a consolidação do direito de propriedade privada. Todavia, a proposição rousseauniana de legitimar a soberania popular não tardou em causar alvoroço entre seus opositores que não aceitavam o princípio da alienação total do indivíduo ao Contrato.

Entre as mais persistentes críticas feitas ao Contrato Social de Rousseau, destaca-se a de o autor submete a liberdade individual à vida civil. Entre elas, consta a réplica do início do século XIX feita por Benjamin Constant em seu ensaio intitulado Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Em sua crítica Constant afirma que Rousseau teria se equivocado por enunciar princípios de uma Antiguidade longínqua que na verdade estaria muito distante das questões e dos interesses modernos7.

6 “Desde que o serviço público deixa de constituir a atividade principal dos cidadãos e eles preferem

servir com sua bolsa a servir com sua pessoa, o Estado já se encontra próximo da ruína. Se lhes for preciso combater, pagarão tropas e ficarão em casa; se necessário ir ao conselho, nomearão deputados e ficarão em casa. À força de preguiça e de dinheiro, terão, por fim soldados para escravizar a pátria e representantes para vendê-la” (ROUSSEAU, 2005c, p. 185).

7 Claro que Constant estava se referindo ao critério da representatividade da vontade geral defendido por

Rousseau, que para ele deveria ser definida por meio da eleição de representantes, e não de forma direta como propunha o ilustre genebrino, pois ele acreditava que “o sistema representativo é uma procuração dada a um certo número de homens pela massa do povo que deseja ter seus interesses defendidos e não tem, no entanto, tempo para defendê-lo sozinho” (1985, p. 23) e, portanto, seria esse o modelo mais justo a ser adotado para a instituição de uma sociedade livre.

(33)

32 Ou seja, a proposição de instituir uma soberania coletiva com elevadíssimo grau de coesão social somente acarretaria prejuízo ao indivíduo, pois sua aplicação jamais suportaria a sustentação das independências individuais que, para Constant, muito mais do que um direito, seria uma necessidade do homem moderno. Em suma, nesta perspectiva o homem se tornaria refém de sua própria condição de cidadão.

No entanto, a necessidade de estabelecer um acordo entre os interesses públicos e privados do cidadão leva Rousseau a posicionar-se em torno dessa questão nos seguintes termos: A noção de soberania, por um lado, coloca o homem frente a um duplo papel, o de “cidadão” enquanto participa do soberano, e o de “súdito” enquanto obedece aos princípios do pacto estabelecido em prol do interesse da totalidade dos membros do corpo político, por outro lado, quando o interesse comum não está em jogo, abre-se a possibilidade para pensar o homem e o cidadão separadamente em um mesmo indivíduo, ou seja, estariam resguardados, assim, as possibilidades e os limites de ação de cada um. Nesse caso, Rousseau, antes de se contrapor às genuínas reivindicações republicanas posteriores, antecipa tanto a ideia segundo a qual ao governo das leis republicanas todos estão igualmente submetidos, assim como a ideia segundo a qual os interesses individuais, quando não se lançam contra os legítimos interesses do bem comum, são igualmente legítimos8.

Eis aí a principal contribuição de Rousseau no que se refere a fundamentação teórica da questão da cidadania: o direito político passa a ocupar gradualmente na história humana o posto de “ideal” a ser alcançado por todos, portanto, a questão da cidadania dependeria fundamentalmente da confecção de um contrato ético entre os homens que, por meio das leis, pudesse orientar as sociedades contemporâneas na direção do bem estar coletivo. Neste sentido, Quirino e Montes (1992, p. 14-15) entendem que este pensamento contratualista serviu de inspiração para boa parte das posteriores Constituições dos Estados modernos, uma vez que em suas obras:

8

“Reduzamos todo esse balanço a termos de fácil comparação. O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar. O que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. A fim de não fazer um julgamento errado dessas compensações, impõe-se distinguir entre a liberdade natural, que só conhece limites nas forças do indivíduo, e a liberdade civil, que se limita pela liberdade geral” (2005c, p. 77-78).

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33 [...] afirma-se pela primeira vez a ideia de que os homens não são apenas súditos, sujeitos de deveres em relação ao poder ao qual são obedientes, mas cidadãos, sujeitos de direitos em relação a esse poder e, em última instância, fonte de onde esse poder se origina. O poder soberano de organizar a vida dos homens em sociedade não mais deriva de deus e se encarna no monarca, mas deriva da vontade dos homens e se expressa nas leis por eles criadas e, em especial, na grande lei de sua Constituição, que funda as nações e as organiza enquanto nações(1992, p. 14-15)

Este esboço de caráter Constitucionalista buscou assim uma ruptura para com as estruturas do modelo proposto pelo Antigo Regime, e foi responsável também por novas reflexões que muito contribuíram na luta dos homens por maior liberdade e, principalmente, por maior espaço e participação na esfera pública que regia as sociedades. Hoje, sentimos que essas noções ganharam vida, tendo elas passado por um longo processo de intensas transformações onde o homem, ao menos conceitualmente, passou a ter seu individualismo reconhecido e valorizado em uma realidade coletiva que pressupõe a igualdade de valor e de oportunidades entre aqueles que são considerados cidadãos. Ainda assim, vejamos no próximo capítulo como estas questões vêm sendo apresentadas, discutidas e gradualmente ampliadas nas Constituições brasileiras ao longo da nossa história.

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