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O CÂNONE LITERÁRIO NA EJA

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O CÂNONE LITERÁRIO NA EJA

CLARICE LAGE GUALBERTO (UNIVERIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS).

Resumo

Esta pesquisa surgiu da necessidade de se criar mais atividades apropriadas aos alunos da educação de jovens, adultos e idosos (EJA), pois, em comparação com a educação infantil ou básica regular, há poucos materiais didáticos específicos para essa área. Essa necessidade foi percebida a partir do trabalho desenvolvido pela UFMG por meio do PROEF 1 – Programa de Ensino Fundamental para Jovens e Adultos – 1º segmento. Foi decidido trabalhar o cânone literário brasileiro visto que há uma grande distância entre a literatura e os alunos de EJA. Isso acontece basicamente devido ao pensamento errôneo de que a literatura chamada erudita é difícil de ser interpretada e compreendida, ainda mais por alunos de EJA, que estão iniciando sua prática de leitura e escrita. Dessa forma, esta pesquisa tem por objetivo relatar experiências de atividades que trabalham alguns autores do cânone literário brasileiro, bem como contribuir com idéias de exercícios para o trabalho na EJA. Ela também visa a mostrar que é possível aproximar os alunos a uma cultura que dificilmente lhes é acessível e possibilitar aos estudantes de EJA o interesse pela literatura. Finalmente, a pesquisa tem como objetivo fazer com que os alunos percebam que eles são capazes de interpretar e entender textos literários.

Palavras-chave:

Cânone, Literatura, EJA.

INTRODUÇÃO

Por meio da prática docente no projeto desenvolvido pela UFMG, PROEF 1 - Programa de Ensino Fundamental para Jovens e Adultos - 1º segmento, foram levantadas algumas questões que propiciaram o início desta pesquisa. Os alunos mencionados aqui frequentam a intitulada "continuidade", ou seja, o nível após a alfabetização. Os conteúdos dessa fase têm como referência o segundo ao quinto ano do ensino fundamental. Tais estudantes ingressam nesse nível com a habilidade da escrita - ainda com alguns erros de ortografia e pontuação - e da leitura de textos curtos (duas frases em média). Esta pesquisa surgiu, então, primeiramente, da necessidade de se criar mais atividades apropriadas aos alunos da educação de jovens, adultos e idosos (EJA), pois, em comparação com a educação infantil ou básica regular, há poucos materiais didáticos específicos para essa área.

Em segundo lugar, este texto é resultado de uma inquietação no que se refere ao ensino de literatura para o público em questão. Foi decidido trabalhar o cânone literário brasileiro visto que há uma grande distância entre a literatura e os alunos de EJA. Segundo o manual do Leitura para Todos, publicado pelo MEC em 2006, existem em média 68 milhões de jovens e adultos que foram alfabetizados, mas não leem obras literárias. Portanto, se a leitura literária não faz parte do cotidiano de uma parcela considerável dos jovens e adultos, o cânone então está ainda mais distante desse público. Isso se deve também ao pensamento errôneo de que a literatura chamada erudita é difícil de ser interpretada e compreendida, ainda mais por alunos de EJA, que estão iniciando sua prática de leitura e escrita. Assim, pode-se notar um certo receio em trabalhar o cânone literário na EJA.

Dessa forma, esta pesquisa tem por objetivo relatar experiências de atividades que trabalham alguns autores do cânone literário brasileiro, bem como contribuir com

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ideias de exercícios para o trabalho na EJA. Ela também visa a mostrar que é possível aproximar os alunos a uma cultura que dificilmente lhes é acessível e possibilitar a esses estudantes o interesse pela literatura. Garantindo assim, o "direito à literatura" discutido por Antônio Cândido (1995). Finalmente, a pesquisa tem como objetivo fazer com que os alunos percebam que eles são capazes de interpretar e entender textos literários, apresentando a literatura "como uma atividade interessante e desafiadora, que contribua para a autonomia e independência." (RAMOS, 2004: 109)

O CÂNONE LITERÁRIO

Antes de abordar diretamente o assunto, é importante deixar claro que objetivo aqui não é propriamente definir o que é o cânone literário, mas sim de discutir, de forma breve, a problemática que o envolve.

Quando o termo "cânone literário" está presente em algum discurso (seja de especialistas ou estudantes da área), tem-se a noção de que o cânone é o corpo de autores - como, por exemplo, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, entre outros - considerados, institucionalmente, como sendo geniais, no que se refere ao domínio da língua escrita, às temáticas que promovem reflexões e transmissão de valores essenciais aos seres humanos. Assim, merecem ser amplamente estudados tanto pela comunidade acadêmica quanto no ensino fundamental e médio. De acordo com Sandra Franco (FRANCO, 2008):

O Cânone brasileiro foi criado a partir da primeira metade do século XIX, quando alguns autores escreviam bosquejos, florilégios, além de antologias, mais tarde biografias e edições de obras, sendo influenciada pela crítica romântica européia visando à configuração de uma literatura nacional. O papel do crítico é fundamental, tendo em vista que são eles quem definem o que é ou não canônico. Esta definição está envolta em um contexto histórico e por jogos de interesse e de poder. A crítica literária se une à história literária e torna possível uma visualização do conjunto da produção estética de cada época, já que o crítico realiza a função de mapear autores e obras, estabelecendo, inclusive o cânone literário do país, a partir de certos paradigmas. (p. 3)

Para Cosson (2004), o cânone é uma questão "eminentemente política" (p. 95). Isso se deve ao fato de que "o cânone apresenta o que interessa à classe dominante do sistema, fora desse contexto, a obra não tem existência. Se um autor serve às necessidades do sistema, ele é escolhido; senão, não." (FRANCO, 2008: p. 6)

E já que o termo "cânone" traz essa noção elitista, Celdon Fritzen (2006) cita o termo "refundação constante do cânone", ou seja, há que se refletir continuamente sobre quem faz parte desse grupo: "É o leitor que atribui um valor atual ao passado, do qual são selecionadas obras que possam figurar como dignas de atuarem no futuro. Há, portanto, uma atividade formativa no trabalho do crítico, envolvendo julgamento e ação." (p.9)

É importante lembrar que este artigo não visa a solucionar essa problemática política e excludente que o cânone abrange. Mas sim de reafirmar a necessidade de trazê-lo à sala de aula, não apenas pela tradição e por serem obras ricas no que tange a temática e a linguagem. É pertinente trabalhar, de maneira criteriosa, essa literatura em sala para formar alunos poliglotas em sua própria língua, como diz o professor Bechara (2002). Ou seja, estudantes capazes de ler o cânone assim como leem outros tipos de textos, realizando, portanto, julgamentos e demais inferências acerca da obra. Com essa afirmação, inicia-se um debate sobre a formação de

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leitores literários. Ou seja, alunos que não possuem a crítica como profissão, mas que precisam ser capazes de ler, selecionar e formar opiniões sobre textos. Assim, questiona-se: o cânone literário é trazido para a sala de aula? Qual é o procedimento escolhido pelos professores para trabalhar com esse tipo de texto literário? Para discutir esse assunto, o item a seguir irá abordar tal problemática. O CÂNONE EM SALA DE AULA: ENSINO REGULAR X EJA

Apesar do ensino de literatura já ser amplamente discutido, no que se refere ao ensino de literatura para alunos em idade escolar, ainda existem lacunas no contexto da EJA.

Uma das problemáticas bastante frequentes é a chamada "escolarização da leitura literária". Esse conceito, criado por Magda Soares (1999), questiona a polêmica prática do ensino da literatura. Segundo Rildo Cosson (2004):

Muito já se falou sobre os danos sofridos pelo conhecimento quando transportado para o ambiente escolar. As adaptações didáticas e os fins pedagógicos são comumente criticados pelo seu caráter redutor e até deformador dos princípios e teorias do saber feito ciência. No caso da leitura e da literatura, reclama-se, particularmente, da artificialização do ato de ler transformando em exercício (...) (p. 96)

Com a mesma temática pode-se citar Afrânio Coutinho, que descreve os dois principais tratamentos dados à literatura em sala de aula: o filológico e o histórico. Segundo o autor, os professores de literatura reduzem o seu ensino, em primeiro lugar, à "exposição da ambiência histórica, social ou econômica, que teriam condicionado a produção da obra, e da vida do seu autor em todos os pormenores exteriores." (COUTINHO, 1952: 20)

Em segundo lugar, Coutinho descreve a perspectiva filológica que identifica a "análise literária com análise gramatical, estudo de estilo, do ponto de vista da estilística e da literatura, com análise sintática ou levantamento de vocabulário." (COUTINHO, 1952: 21)

Somadas a essa deficiência no ensino da literatura, ainda constatam-se as opções dos professores. No caso do ensino regular, geralmente observa-se uma escolha cega por parte dos docentes. Isto é, eles trazem (quase somente) o clássico para sala de aula muitas vezes devido à tradição e, obviamente, pelo exímio domínio da língua que as obras canônicas apresentam. Mas, segundo Magda Furtado (2004), "muitas vezes, a postura do professor diante de um texto clássico é tão reverencial que tem como conseqüência o afastamento dos alunos, temerosos de causar algum "ruído" na interpretação daquela obra." (p.103) Constitui-se, portanto, um amplo debate sobre a deficiente transposição do cânone para a sala de aula no ensino regular e o excesso com que isso é feito. E, como fruto dessa discussão, Furtado (2004) comenta que existem muitos defensores da verdadeira abolição do estudo dos clássicos na escola.

Em se tratando do ensino para jovens, adultos e idosos, a questão se inverte. Se anteriormente foi abordado o fato problemático de os professores optarem frequentemente pelo cânone, os docentes de EJA (dos alunos de continuidade) parecem apresentar um grande receio pelo trabalho dessa literatura em sala. Verifica-se, então, com raras exceções, a falta do cânone na EJA; e, na maioria das vezes que este é trabalhado, os textos são utilizados apenas para análises e exercícios gramaticais e ortográficas ou propõem questões que se restringem ao estudo de sua estrutura e à localização de informações explícitas no texto. Os

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docentes optam, portanto, por textos - não menos importantes - de linguagem e estrutura mais simples como cordéis, contos e cantigas populares. Essa questão ainda se amplia quando os professores se deparam com o escasso número de materiais didáticos específicos para esse público. Não há um propósito aqui de se analisar amplamente os livros didáticos de EJA, mas essa é uma questão pertinente e que merece ser citada. O arquivo ANEXO 1 apresenta duas atividades do livro

Viver, Aprender - Educação de Jovens e Adultos, que mostram como a maneira de

trabalhar o cânone apresenta as características citadas anteriormente. Dessa forma, percebe-se uma sutil idéia no âmbito da EJA de que, os alunos não conseguem fazer inferências e interagir com o texto canônico de outras formas, como se essa literatura fosse muito difícil para o nível em que os estudantes estão. E, assim, as duas categorias de ensino (o EJA e o ensino) se distanciam do que é proposto pelo PCN[1]:

A leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção de significado do texto, a partir dos seus objetivos, do seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo que sabe sobre a língua. Não se trata simplesmente de extrair informação da escrita, decodificando-a letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica compreensão no qual os sentidos começam a ser constituídos antes da leitura propriamente dita. (PCN: 1997:41) Dessa forma, essas questões aumentam ainda mais a distância existente, tanto no sentido da compreensão como no acesso, entre os alunos e a literatura, especificamente a canônica.

Percebe-se nos alunos de EJA uma imensa ansiedade para que o processo de leitura se aperfeiçoe. Em se tratando dos estudantes da continuidade, isso é ainda mais frequente. Visto que eles possuem restritas habilidades de leitura e escrita, esses alunos almejam compreender textos mais extensos do que aqueles a que estão acostumados. No que se refere ao cânone, geralmente nota-se uma curiosidade e grande expectativa. Uma vez que os alunos abordados aqui são de Belo Horizonte e a maioria deles possui filhos que frequentam o ensino regular, percebe-se que eles já ouviram falar de autores canônicos. E então, quando algum texto deles lhes é apresentado, percebe-se que os alunos se sentem valorizados e até mesmo gratos pelo professor ter optado por trazer determinado texto para a sala de aula. O tópico a seguir, pretende descrever algumas atividades satisfatoriamente realizadas a partir de alguns autores do cânone literário, visando a contribuir com idéias para o trabalho deste tipo de literatura em sala.

O CÂNONE EM SALA DE AULA: TENTATIVAS

Serão descritas aqui duas atividades realizadas em diferentes datas e que demandaram muito planejamento para aumentar as chances de sucesso dessa tarefa. Em primeiro lugar, foi considerado o objetivo. Além dos que já foram mencionados aqui, chegou-se à conclusão de que o maior deles seria a experimentação. Já que o ensino de literatura é tão criticado e problemático, haveria saídas? Com base na discussão realizada até aqui, foram feitas tentativas de conseguir trabalhar a literatura canônica sem torná-la pedante. Assim, essas atividades foram elaboradas para ver a reação dos alunos e realmente trocar experiências de idéias que surgiram a partir do texto. E, após esse contato e formulação de opiniões, haveria a possibilidade de trabalhar as questões estruturais do texto. E em relação ao contexto histórico e sobre o autor, essa apresentação até poderia existir, mas sem o caráter de exercícios e questões. Seria mais como uma conversa, uma outra história que o professor levaria aos alunos. Aumentando a curiosidade e interesse deles, e não reduzindo o estudo de literatura a isso, como foi dito anteriormente.

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A primeira atividade foi realizada em novembro de 2006 e foi resultado do trabalho final da disciplina "Literatura na Escola", ministrada pela professora Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova[2]. A turma de EJA era composta de 20 alunos, todos do sexo masculino com a idade média de 40 anos. Isso se deve ao fato de que eram todos trabalhadores das obras chamadas "Campus 2000", que visavam à reestruturação de algumas partes da universidade. O texto escolhido foi o conto "Felicidade Clandestina" (ANEXO 2), de Clarice Lispector, o qual discorre sobre uma menina que gostava muito de ler e desejava um livro específico. Mas uma colega, que promete várias vezes lhe emprestar, faz com que o desejo da protagonista seja acompanhado por uma grande angústia.

A atividade procedeu da seguinte forma: as cadeiras da sala foram dispostas em forma circular. Foi lançada a pergunta: "o que é felicidade para você?" E, então, cada aluno respondeu. Em seguida, questionou-se qual é o significado da palavra "clandestina". Foi feita uma tempestade de idéias. Foi proposto que eles procurassem, no dicionário, em grupos, o significado das palavras discutidas anteriormente, e então foi feita uma comparação com as ideias previamente mencionadas e que foram anotadas no quadro pela professora. Após esse procedimento, discutiu-se o que seria uma felicidade clandestina. Os alunos responderam de diversas formas, tais como: "felicidade clandestina é uma coisa boa, mas proibida; que a gente não pode ter." (Antônio Zeferino, 53 anos) Em seguida, os alunos foram requisitados a procurar em revistas imagens do que representasse para cada um a sua própria felicidade clandestina. Após uns vinte minutos, cada aluno apresentou sua figura selecionada, justificando a sua escolha. Por exemplo, um deles recortou a imagem de uma ilha e disse que seu sonho mais íntimo e, segundo ele, proibido, era morar num lugar como aquele. Só após toda essa dinâmica, o texto foi distribuído para cada um, e, assim, foi disponibilizado um tempo para que fizessem uma leitura silenciosa e, em seguida, foi feita uma leitura em voz alta. Cada aluno leu um trecho. Após esse momento, iniciou-se uma discussão, para que os alunos comentassem oralmente o que acharam do texto e manifestassem dúvidas acerca do vocabulário ou da própria história. Esse procedimento ocupou todo o tempo de aula, duas horas e meia.

A segunda atividade foi realizada em abril de 2009, com uma outra turma que, apesar de ter o mesmo número de integrantes, possui seis mulheres. O texto escolhido foi o conto "Uma Esperança" (ANEXO 3), também de Lispector. A autora narra um episódio acontecido em sua casa, no qual o inseto verde comumente chamado de "esperança" pousou em sua parede. Ao longo da história, a escritora joga com o duplo sentido dessa palavra, abordando o "pouso" da esperança em sua vida familiar. Em comparação com a primeira atividade, o procedimento desta vez foi bem diferente. Por existir a ambiguidade no texto, não houve um tipo de discussão prévia. Já no primeiro instante de aula o texto foi distribuído e os alunos foram orientados a lê-lo com bastante atenção, podendo se deslocar, se necessário, a outros lugares que achassem melhor para leitura do texto. Assim que os estudantes terminavam de ler, a professora chamava cada um para uma conversa individual, em que ele expunha o que achou da história. O principal objetivo aqui era saber se o aluno percebeu o duplo sentido do texto. Ao fim da conversa com cada um, foi feita uma discussão com toda a sala, e assim, foram apresentados conceitos como ambiguidade e conhecimento prévio, a partir de perguntas como: "quais são os significados da palavra ‘esperança' nesse texto?", "quem nunca tinha ouvido falar que esperança também poderia ser inseto iria conseguir entender por completo o texto?" Dessa forma, foi trabalhada novamente a questão da oralidade - fundamental para alunos de EJA.

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Ambas as atividades foram extremamente ricas no que diz respeito à discussão e consequente exposição de ideias dos alunos. Se por um lado eles se assemelham aos estudantes de ensino regular por aprenderem conteúdos similares e estarem no início de sua prática de leitura, por outro lado, percebe-se a diferença no sentido da vivência, da vasta experiência de mundo que eles trazem consigo. E isso contribui muito para que o os estudantes entendam textos que aparentam ser inadequados para a fase de aprendizado em que estão. Nesse ponto, cabe ao professor mostrar aos alunos que a história de vida de cada um é muito importante e que tem valor, pois é notório o quanto eles se envergonham de sua própria jornada por ela não ter sido acompanhada de estudos.

Foi percebido também que é necessário desenvolver critérios e traçar objetivos claros para o trabalho com literatura em sala de aula. Não há que se desprezar, a literatura de linguajar e estrutura mais simples ou, por exemplo, o uso de poemas com o objetivo de fazer um exercício ortográfico ou comparar textos em versos e em prosa para que sejam analisadas as diferenças. É indispensável, no entanto, o constante questionamento dos propósitos das atividades e dos textos escolhidos para serem trabalhados. Assim, segundo Ramos (2004):

Utilizando obras que empregam uma linguagem atual, familiar pelos recursos estilísticos e pela temática, personagens delineados, problemas conhecidos, soluções possíveis, estabelece-se o processo de sedução. Posteriormente, propõem-se aos alunos novas obras, rompendo com a acomodação e exigindo uma postura de pesquisa, fundada na reflexão crítica, que promove a expansão das vivências culturais e existenciais dos sujeitos leitores.

Dessa forma, é possível concluir que o trabalho com o cânone literário na EJA precisa ser bem planejado e a seleção dos textos deve ser bem cautelosa, pois é necessário observar vários quesitos em relação às particularidades de cada turma (local, número de integrantes e a idade de cada um, tempo de aula, entre outros) para saber como trabalhar o cânone literário em sala. O professor, portanto, não precisa ter medo de levar esse tipo de literatura para a sala de aula. De acordo com Ramos (2004), o docente "precisa ter como objetivo a formação de um leitor maduro e crítico, que conviva com diferentes tipos de textos (...)" (p.112).

Finalmente, reafirma-se que é possível realizar atividades bem sucedidas com o cânone literário. Vale salientar que a escolha desse tipo de literatura não está baseada numa visão restrita e tradicional de que certos autores precisam ser trabalhados apenas porque fazem parte do cânone. Tal decisão se preocupa mais com o cumprimento do "dever" de se trabalhar o cânone do que com o procedimento em sala de aula. Essa escolha deve estar fundamentada no que foi insistentemente dito aqui, ou seja, o professor deve ter como objetivo formar um aluno que seja capaz de ler uma grande variedade de textos, conseguindo interpreta-los e formar opiniões acerca deles. Assim, o aluno jovem, adulto ou idoso perceberá a importância de ter voltado a estudar, pois gradativamente desenvolverá uma mentalidade crítica, hábil a julgar não só textos, mas toda a realidade que o rodeia, deixando o lugar da passividade e tornando-se um ser verdadeiramente atuante em sua sociedade.

REFERÊNCIAS

BECHARA, Evanildo. Ensino da gramatica: opressão? liberdade?. 5. ed. São Paulo: Ática, 1991.

CADEMARTORI, Ligia. Literatura para todos: conversa com educadores. Brasília: Ministério da Educação, 2006.

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CALVINO, Ítalo; MOULIN, Nilson. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

CÂNDIDO, Antônio. Varios escritos. 3. ed. rev. ampl. São Paulo: Duas cidades, 1995.

COSSON, Rildo. Entre o cânone e o mercado: a indicação de textos na escola. In: PAULINO, Graça.; COSSON, Rildo (org.) Leitura literária: a mediação escolar. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2004.

COUTINHO, Afrânio. O ensino de literatura. Rio de Janeiro: Dep. de Imp. Nacional, 1952.

FRANCO,Sandra Aparecida Pires. O cânone literário nos materiais didáticos do

ensino médio. 2008. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/.

Acessado em 10/07/2009.

FRITZEN, Celdon. O lugar do cânone no letramento literário. 2006. Disponível em: http://www.anped.org.br/reunioes/30ra/trabalhos/GT10-3679--Int.pdf Acessado em: 06/06/2009.

FURTADO, Magda. Clássicos ou contemporâneos? A mediação da escola na formação do leitor. In: PAULINO, Graça.; COSSON, Rildo (org.) Leitura literária: a

mediação escolar. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2004.

LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina: contos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998 PAULINO, Maria das Graças Rodrigues. Formação de leitores: a questão dos cânones literários. Braga: Universidade do Minho - Revista Portuguesa de Educação, ano/vol. 17, número 001, 2004.

Parâmetros Curriculares Nacionais. Língua Portuguesa. Brasília, 1997.

RAMOS, Flávia Brocchetto. O leitor como produtor de sentido nas aulas de literatura: reflexões dobre o processo de mediação. In: PAULINO, Graça.; COSSON, Rildo (org.) Leitura literária: a mediação escolar. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2004.

[1] Parâmetros Curriculares Nacionais

[2] Professora da UFMG desde 1997. Pós-Doutorado - École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França (2004)

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ANEXO 2

Felicidade clandestina - Clarice Lispector

Felicidade clandestina Clarice Lispector Ela era gorda, baixa, sardenta e de

cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme,

enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia

os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que

qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de

livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez

de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal

da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde

morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra

bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade". Mas que talento

tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com

barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos

imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo

exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem

notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe

emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de

começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente,

informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era

um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele,

comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me

que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o

dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu nao vivia,

eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No

dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num

sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem

para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que

eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em

breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar

pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa

vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias

seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me

esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas

não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era

tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um

sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não

estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais

tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte"com ela ia se repetir com

meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia

que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo

grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às

vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer

me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo?

Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. As vezes ela dizia: pois

o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo

que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as

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olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando

eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa,

apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária

daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve

uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A

senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até

que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa

exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o

pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a

descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a

potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à

porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se

refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora

mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser."

Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é

tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na

mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como

sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as

duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em

casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração

pensativo. Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só

para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas

maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo

comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o,

abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela

coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina

para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia

orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. As vezes sentava-me na

rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase

puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu

amante.

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ANEXO 3

UMA ESPERANÇA

Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica, que tantas vezes

verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a

outra, bem concreta e verde: o inseto.

Houve um grito abafado de um de meus filhos:

- Uma esperança! e na parede, bem em cima de sua cadeira! Emoção dele

também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes

surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em

mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede.

Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não

poderia ser.

- Ela quase não tem corpo, queixei-me.

- Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa para

nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.

Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os

quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros,

três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.

- Ela é burrinha, comentou o menino.

- Sei disso, respondi um pouco trágica.

- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.

- Sei, é assim mesmo.

- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

- Sei, continuei mais infeliz ainda.

Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na

Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não se apagasse.

- Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar

devagar assim.

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Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo

ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.

Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro

uma aranha. Não uma aranha, mas me parecia "a" aranha. Andando pela sua

teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a esperança.

Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu

filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem saber se

chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...

- Mas ela vai esmigalhar a esperança! respondeu o menino com ferocidade.

- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei sentindo

a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz. Depois

devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada:

eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da esperança.

O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e a nossa

esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer.

Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.

Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e

tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar

nas coisas, nunca tentei pegá-la.

Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta,

pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente

que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não

mexia o braço e pensei: "e essa agora? que devo fazer?" Em verdade nada fiz.

Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim.

Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada.

in "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998

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Referências

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