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Uma História dos Bancos de Sangue do Cordão e Transplantação

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Academic year: 2021

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Uma História dos Bancos de Sangue do Cordão e Transplantação

O meu interesse em células estaminais sanguíneas e sangue do cordão remonta aos tempos do meu estágio em hemato-oncologia pediátrica na Duke. Durante o meu estágio, trabalhei no desenvolvimento de novos medicamentos para a leucemia, baseados em análogos do metabolismo das purinas e tratei de um doente adolescente com leucemia linfoblástica aguda de células T, utilizando uma nova medicação contra a leucemia, a 2’ – desoxicoformicina, um inibidor da adenosina desaminase. Durante os cinco dias em que decorreu o tratamento, a leucemia de células T do doente converteu-se em leucemia de fenótipo mieloide diante dos nossos olhos. Subsequentemente estabeleci uma linha celular a partir destas células leucémicas, a DU-528, e consegui provar que esta leucemia surgiu de uma célula progenitora comum linfoide-mieloide, o que então me levou ao estudo das células estaminais e progenitoras hematopoiéticas. Hal Broxmeyer, que se viria a tornar um pioneiro no uso do sangue do cordão umbilical como fonte de células dadoras para a reconstituição de medula óssea, foi o meu mentor no período em que estudei células estaminais hematopoiéticas normais e malignas isoladas da medula óssea, fígado fetal e sangue do cordão. Na prática clínica, tratei de crianças com leucemias e discrasias sanguíneas, incluindo um menino chamado Matthew Farrow, de Salisbury (Carolina do Norte), com anemia de Fanconi (FA) e falência medular em evolução. Esta doença genética, que surge de uma mutação nos genes que codificam as enzimas responsáveis pela reparação do ADN, está associada a um conjunto de graves problemas médicos e de desenvolvimento. O prognóstico para a condição do Matthew era reservado: a maioria das crianças com anemia de Fanconi morre com insuficiência de medular ou leucemia na primeira década de vida, a não ser que sejam tratadas com um transplante de medula óssea proveniente de um dador HLA (Human Leukocyte Antigen) compatível.

O Matthew não tinha nenhum dador familiar compatível, mas quando a sua mãe engravidou novamente, o feto foi testado in útero para verificar se estaria afetado com FA e, caso não estivesse, se seria compatível com o Matthew. Foi realizada uma amniocentese e as amostras foram enviada para a Arlynn Auerbach, uma investigadora de renome da Universidade Rockefeller em Nova Iorque, que foi a primeira pessoa a descrever as mutações responsáveis pela anemia de Fanconi e que estabeleceu o registo de pacientes com FA. A Dra. Auerbach confirmou que a irmã do Matthew era saudável e compatível com ele. O que aconteceu a seguir foi uma notável convergência de visão, dedicação e colaboração inovadora nesta área terapêutica emergente.

Naquela altura, o único tratamento potencialmente curativo para a anemia de Fanconi era um transplante de medula óssea de um dador familiar compatível e saudável. No entanto, no Memorial Sloan Kettering

Cancer Center (MSKCC), uma equipa liderada por Ted Boyse, Judy Bard e Hal Broxmeyer, explorava as

potenciais utilizações de sangue do cordão em transplantação e terapia celular. Apesar do sangue do cordão ter sido, até então, considerado como resíduo hospitalar, o trio tinha formado uma empresa – a Biocyte

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-para desenvolver aplicações terapêuticas com sangue do cordão e obtido uma patente -para o congelamento e armazenamento de sangue do cordão para uso futuro. A investigação do Dr. Broxmeyer tinha confirmado que o sangue do cordão era enriquecido em progenitores hematopoiéticas com elevado potencial proliferativo – ainda mais do que a medula óssea – e colocou a hipótese de o sangue do cordão poder servir como substituto em transplantes de medula óssea. Enquanto isso, o Dr. Boyse tinha realizado testes preliminares como prova de conceito em ratos, apesar das diferenças biológicas limitarem a utilidade dos estudos em modelo animal.

A Dra. Auerbach, que tinha estado a trabalhar com o Broxmeyer em alguns dos aspetos biológicos dos pacientes com anemia de Fanconi que se converteram de um fenótipo de doença para outro, estava consciente de um interesse mútuo. O grupo esperava aplicar a sua abordagem terapêutica em pacientes humanos, mas os seus planos ficaram em standby, quando uma família interessada em participar acabou por não ser elegível para o procedimento – no caso deles, descobriu-se que o potencial irmão dador também tinha anemia de Fanconi. Foi nesta altura que a Dra. Auerbach nos abordou para perguntar se estaríamos interessados em utilizar o sangue do cordão - da irmã de Matthew como dador para o seu transplante. Falámos com os pais de Matthew, que falaram com o Matthew – na altura com 5 anos de idade – para saber se ele achava que o transplante era uma boa ideia. Em última instância, foi o Matthew que tomou a decisão final, que foi sim.

Gordon Douglas, um obstetra do Hospital de Nova Iorque viajou e ficou em Salisbury, na Carolina do Norte, durante várias semanas, para estar presente no parto da irmã do Matthew para que pudesse recolher o sangue do seu cordão. Logo a seguir ao nascimento da irmã do Matthew, o sangue do cordão - foi recolhido para um frasco de “boca” larga contendo heparina para evitar a coagulação. A tipagem HLA foi confirmada na Duke e o sangue do cordão foi levado para o laboratório de Hal Broxmeyer no MSKCC, criopreservado, após a adição de dimetilsulfóxido, mas sem nenhum outro processamento, no seu congelador de azoto líquido usado para investigação. Perguntámos à Dra. Eliane Gluckman, uma especialista em transplantação de doentes com FA no L´Hopital St. Louis, em Paris, se ela poderia realizar o transplante, e ela concordou. Esperámos até que a irmã de Matthew tivesse 6 meses de idade para que pudesse servir como dadora backup de medula óssea, caso o enxerto das células de sangue do cordão falhasse. Através de uma colaboração internacional envolvendo o meio académico e empresarial, foram angariadas verbas para que o Matthew e a sua família pudessem ir até Paris para a realização do transplante. A Blue Cross Blue Shield e o L’Hopital St.

Louis cobriram as despesas médicas. A Biocyte financiou o envio, através do Dr. Broxmeyer, da unidade de

sangue do cordão de Nova Iorque para Paris. O Matthew foi preparado para o transplante com quimioterapia de baixa intensidade e irradiação linfoide total porque, devido ao defeito na reparação de ADN, os doentes com FA não conseguem tolerar as doses de quimioterapia e radioterapia mieloablativas habituais. O Dr. Broxmeyer transportou a amostra congelada num recipiente de transporte refrigerado – um lugar no avião

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para ele, outro para as células do cordão – e chegou no dia do transplante. Apesar do Matthew ter tido uma reação adversa à infusão, não ocorreram complicações significativas e, 19 dias depois, as células do sangue do cordão da sua irmã foram incorporadas no seu organismo, tendo efetivamente curado Matthew da sua anemia Fanconi. Agora, com trinta e poucos anos, o Matthew leva uma vida saudável e normal.

Após este sucesso inicial, outros investigadores ampliaram este trabalho, ao tratarem outros irmãos HLA compatíveis usando sangue do cordão, geralmente para leucemias. O sangue do cordão não só funcionava, como apresentava vantagens relativamente à transplantação com medula óssea, incluindo menores taxas de doença do enxerto contra o hospedeiro aguda, uma complicação dos transplantes em que as células do dador atacam o recetor. Esta descoberta teve particular interesse para o investigador Pablo Rubinstein, do New

York Blood Center, que estava a investigar se o sangue do cordão de dadores não familiares armazenado

poderia ser aplicado com sucesso em doentes sem dador compatível, quer no seio familiar, quer no registo de dadores de medula óssea. Com o apoio de uma bolsa de investigação do National Heart, Lung, and Blood

Institute (NHLBI), Pablo estabeleceu o primeiro banco público de sangue do cordão nos Estados Unidos. Em

1993, a equipa da Duke, que tinha iniciado o nosso programa de transplantação pediátrica em 1990, realizou o primeiro transplante de sangue do cordão de um dador não relacionado num rapaz de 4 anos com leucemia de células T. Ao longo dos 2 anos seguintes, foram realizados 25 transplantes e o sucesso destes primeiros transplantes estabeleceu o sangue do cordão como uma alternativa viável para o transplante de doentes sem um dador compatível, relacionado ou não relacionado, abrindo caminho para o desenvolvimento desta nova área. Os relatórios subsequentes do banco do New York Blood Center confirmaram estes resultados em crianças e adultos.

Ao longo dos anos seguintes, o sangue do cordão foi utilizado como fonte alternativa de células estaminais e progenitores hematopoiéticos na transplantação de células estaminais hematopoiéticas (HSCT) em todas as indicações para as quais anteriormente se utilizava medula óssea. Isto incluiu o tratamento de doentes com neoplasias hematológicas, síndromes de imunodeficiência congénitas, insuficiências medulares, hemoglobinopatias e doenças metabólicas hereditárias. O NHLBI patrocinou um programa denominado ‘COBLT’, de 1997 a 2004, que financiou a criação de três bancos públicos de sangue do cordão e cinco estudos prospetivos multicêntricos, para testar a utilização de sangue do cordão em crianças com neoplasias hematológicas e doenças genéticas não-malignas. Apesar do desafio inicial resultante do facto de uma unidade de sangue do cordão geralmente não conter células suficientes para transplantar de forma segura um indivíduo adulto, em 2005, Juliet Baker e John Wagner demonstraram que a utilização de duas unidades de sangue do cordão num mesmo transplante resultava em melhores taxas de enxerto e de sobrevivência em adultos. De 2005 a 2012, fui co-investigadora principal com o Dr. John Wagner num ensaio clínico aleatorizado multicêntrico para testar se a utilização de duas unidades de sangue do cordão teria resultados superiores aos de apenas uma unidade em crianças com neoplasias hematológicas, e surpreendentemente,

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em crianças que receberam uma dose adequada de células de uma única unidade de sangue do cordão, um cordão era suficiente.

Nos dias de hoje, o sangue do cordão armazenado de dadores não relacionados é utilizado na rotina em doentes que não tenham um dador adulto compatível, relacionado ou não. Aproximadamente 800.000 unidades não relacionadas estão armazenadas em bancos públicos e mais de 5 milhões de amostras estão armazenadas em bancos privados. Em 1998, a Duke estabeleceu o Carolinas Cord Blood Bank no âmbito do programa COBLT e, hoje, é um dos maiores bancos dos EUA. Atualmente, o sangue do cordão de dadores não relacionados é a única fonte de células estaminais hematopoiéticas regulamentada pela Food and Drug

Administration e, até à data, foi atribuída a sete bancos públicos de sangue do cordão americanos a Biologic License Applications.

Para além da utilização de sangue do cordão de dadores não relacionados como fonte de células para HSCT, o sangue do cordão emerge agora como uma terapia celular promissora. O sangue do cordão não é apenas um “saco de sangue de células estaminais” e novas terapias estão a potenciar a atividade de monócitos e outras células presentes no sangue do cordão. Com esta finalidade, produzimos uma célula do tipo macrófago/microglia a partir de sangue do cordão para ser utilizada como terapia adjuvante de administração intratecal em crianças com leucodistrofias congénitas e submetidas a HSCT. Esta célula promove a remielinização do cérebro em modelos animais e poderá parar a progressão da doença mais rapidamente nestes pacientes. Além disso, a segurança das infusões autólogas de sangue do cordão - em crianças com paralisia cerebral e outras lesões cerebrais adquiridas, sem recurso a quimioterapia ou imunoterapia, foi demonstrada por mim e por um dos meus colegas da Duke, em 2010. Subsequentemente, estamos a testar o sangue do cordão como terapia celular atuando através de sinalização parácrina, que promove a reparação celular endógena em doentes com encefalopatia hipóxico-isquémica, AVC em adultos e, tal como demonstrado no artigo publicado na secção inaugural de sangue do cordão desta revista, no autismo. Embora os resultados sejam preliminares, demonstram que no futuro terapias com células do sangue do cordão, poderão estabelecer-se como novos tratamentos para doenças incapacitantes, que causam dificuldades ao longo da vida e que, atualmente, não têm opções de cura.

Na minha opinião, o sangue do cordão tem ainda um longo caminho de desenvolvimento pela frente. É notável que algo que é continuamente descartado possa salvar vidas. Enquanto o potencial de sangue do cordão em HSCT é amplamente reconhecido, continuará a expandir o acesso a dadores para pacientes de ascendência minoritária que necessitam de dadores para HSCT para doenças malignas e não-malignas, como a anemia falciforme. Ainda mais emocionante, prevejo que o uso das células do sangue do cordão, tanto em contexto autólogo como alogénico, como terapias celulares no campo emergente da medicina regenerativa,

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neste momento ainda pouco desenvolvido, vá emergir como um dos maiores avanços das novas terapêuticas na medicina na próxima década.

Tradução do artigo original da Dra Joanne Kurtzberg publicado na revista científica Stem Cells TRanslational Medicine 2017, 6: 1309-13011

Referências

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