LUCÍA, São Paulo, v. 1, n. 1, março/2021 - 69 - ISSN: 2763-521X - www.tendadelivros.org/lucia COBRA, ERCÍLIA NOGUEIRA
Aline Lemos [1]
Resumo
A autora constrói uma narrativa gráfica a partir de colagens e desenhos, exploran-do a vida de Ercília Nogueira Cobra (1891-?) e suas obras, Virgindade Anti-Hygienica (1924) e Virgindade Inutil: Novella de uma revoltada (1927). Em seu manifesto e em sua ficção semibiográfica, Ercília narra uma utopia em construção, em que a heroína é capaz de questionar e enfrentar as restrições sociais impostas às mulheres e trans-formar sua realidade. Partindo das pesquisas historiográficas sobre o contexto e a escrita de Cobra, a autora explora o potencial de sua história e suas lacunas através do potencial das linguagens narrativas visuais.
Palavras-chave: feminismo; sexualidade; ficção especulativa; quadrinhos; art déco.
Meu primeiro contato com a obra de Ercília Nogueira Cobra ocorreu enquanto pesquisava a literatura de ficção científica produzida no Brasil nos anos 1920 e 1930. As pesquisadoras Susan Quinlan e Peggy Sharpe, que editaram e comentaram seus textos em 1996, consideram-na uma escritora de vertente modernista e uma das precursoras da ficção científica utópica brasileira [1]. Em Virgindade Inutil: Novella de
uma revoltada (1927), Cobra retoma os argumentos de seu manifesto Virgindade Anti--Hygienica (1924) na forma de ficção especulativa. Narra uma utopia em construção,
em que a heroína é capaz de questionar e enfrentar as restrições sociais impostas às mulheres e transformar sua realidade. Desde o início, os escritos de Ercília cobraram de mim uma resposta muito pessoal. Como historiadora, porém, não tive a oportuni-dade de expressar o quanto eles me tocaram.
Mais de noventa anos depois, o teor provocativo dos textos continua chaman-do a atenção. Quilan e Sharpe apontam que “Tanto o ensaio como o romance defen-dem a educação e a total liberdade sexual para a mulher como o intuito de ensinar--lhe a autossuficiência e a capacidade de viver em harmonia com o mundo ao seu redor”. Em um contexto de amplos debates e grande pressão para adequação das mulheres à submissão e à vida privada familiar, a voz de Ercília destoava até mesmo
1 Aline Lemos vive e trabalha em Belo Horizonte como cartunista e artista visual. É licenciada e mestre em His-tória e Culturas Políticas pela UFMG (2008-2014) e estudante de Artes Plásticas na Escola Guignard. Desde 2014 produz publicações independentes e realiza oficinas e palestras sobre o tema. Seu livro Artistas Brasileiras (Editora Miguilim, 2018) recebeu o prêmio HQ MIX 2019 na categoria Homenagem. Atuou como curadora do Festival In-ternacional de Quadrinhos (Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte, 2020) e arte-educadora nos cursos “Vidas, Quadrinhos e Relatos” (Lei Municipal de Incentivo à Cultura, 2016), e FIQ-Jovem (Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte, 2016 e 2018).
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das suas contemporâneas feministas. A radicalidade de suas posturas diante do ca-samento, religião e amor livre levou as comentadoras a compará-la às anarquistas de sua época.Ela pode ter colaborado em uma revista anarcossocialista chamada
Gesta ou Giesta, mas definia-se como livre-pensadora.A figura de Ercília parece um tanto isolada em seu tempo e esquecida na posterioridade, apenas recentemente retomada por alguns pesquisadores. Maria Lúcia Mott, sua primeira biógrafa, relata as dificuldades durante a pesquisa nos anos 1980, quando muitos de seus interlocu-tores não a consideravam relevante.
O que me atraiu mais profundamente foi a criativa elaboração dos aspectos políticos e sociológicos através da linguagem ficcional especulativa. No centro do meu interesse pela ficção e pelas linguagens visuais está o grande poder da imagina-ção para organizar e reorganizar nossos modos de estar no mundo. Os livros de Co-bra me tocaram como exemplos dessa potência. Não por acaso, inspiraram algumas de minhas primeiras experimentações visuais. Em Melindrosa: folhetim erótico político
fantástico do século XXI (2015), desenhei as aventuras de uma personagem
vagamen-te inspirada em Cláudia, a personagem de Ercília vagamenvagamen-te inspirada nela mesma. Atualizada pelo meu olhar contemporâneo, a caricatura déco convoca com seu apelo veloz e sensual um contexto de contradições e grande foco nas transformações da figura feminina. Partiram daí as investigações para conferir uma visualidade à vida e aos escritos de Ercília Nogueira Cobra nestes desenhos, que fiz em 2018.
Devo a Ercília a possibilidade de articular em Melindrosa meus próprios ques-tionamentos e utopias para a contemporaneidade. Ciente dessa dívida, tive o desejo de retroceder um passo na ficção e retomar sua história de vida em uma narrativa biográfica. Sem abandonar a imaginação, desnudei no traço e nos recortes de jornais a transparência do meu olhar e do caminho percorrido ao descobrir Ercília. Traduzi trechos de sua obra na forma de quadrinhos à feição das tirinhas políticas de Pagu, tão ousadas e desconhecidas quanto os textos de Cobra. Meu objetivo era explorar o potencial de sua história e de suas lacunas através do potencial das linguagens grá-ficas narrativas. Diante da provocação da escritora não exatamente modernista, não totalmente feminista ou anarquista e não necessariamente autora de ficção científi-ca, mas em tensão criativa com todos esses campos, tal foi a resposta que encontrei como não mais historiadora e ainda não artista.
Referências
COTRIM, Alvaro. J. Carlos: época, vida, obra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. FURLANI, Lucia Maria Teixeira. Croquis de Pagu – e outros momentos felizes que fo-ram devorados reunidos. Santos: UNISANTA, 2004.
LUCÍA, São Paulo, v. 1, n. 1, março/2021 - 71 - ISSN: 2763-521X - www.tendadelivros.org/lucia
MOTT, Maria Lúcia. “Biografia de uma revoltada: Ercília Nogueira Cobra”. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 58, p. 89-104, ago. 1986.
QUINLAN, Susan; SHARPE, Peggy. Duas modernistas esquecidas: Adalzira Bitten-court e Ercília Nogueira Cobra: visões do passado, previsões do futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/UFG, 1996.