Encontro da Geometria com a ´
Algebra
Proponho-lhe uma viagem at´e ao s´eculo XVII, mais precisamente ao ano de 1637. Uma viagem com menos de 400 quil´ometros! Perd˜ao, quero dizer, menos de 400 anos. Foi s´o para lhe dar a ideia de que n˜ao passaram assim tantos anos. Espero que aceite esta viagem ao s´eculo do iluminismo matem´atico1, pois trata-se de um per´ıodo particularmente
importante, n˜ao apenas na hist´oria da matem´atica, mas sobretudo na hist´oria geral da humanidade.
As grandes ideias encaixam-se geralmente em duas categorias: uma pequena parte resulta do produto criativo de uma ´unica pessoa, vindo ao mundo subitamente como um relˆampago num dia claro; as restantes resultam de uma longa evolu¸c˜ao que fermentou na mente de muita gente durante anos, d´ecadas ou mesmo s´eculos. A maioria dos conceitos matem´aticos pertence `a segunda categoria. No entanto, de quando em vez surgem ideias inovadoras. Por vezes, ainda mais curiosa ´e a forma como essas ideias aparecem. ´E o que acontece com a hist´oria que lhe vou contar.
Ren´e Descartes (1596-1650) foi um matem´atico e fil´osofo francˆes que tinha uma sa´ude muito d´ebil e, por esse motivo, passava parte das manh˜as na cama, sempre que lhe era poss´ıvel. A observa¸c˜ao do zumbir de uma mosca no canto do quarto onde estava deitado inspirou-lhe uma ideia brilhante. Enquanto deitado, Descartes compreendeu subitamente que a posi¸c˜ao da mosca em qualquer momento podia ser representada por trˆes n´umeros, cada um indicando a distˆancia da mosca ao ch˜ao e `as paredes que se juntavam no canto. Esta vis˜ao tridimensional levou-o a postular que a cada ponto do espa¸co se pode associar um conjunto de trˆes n´umeros (a que hoje chamamos coordenadas do ponto) e a cada linha ou corpo uma equa¸c˜ao matem´atica.
Para identificar qualquer ponto do plano, Descartes come¸cou por tra¸car duas retas perpendiculares, x e y, chamadas eixos, que constituem o sistema de referˆencia ou refe-rencial, a partir do qual pode ser identificado qualquer ponto2. Em cada eixo considerou
uma unidade de medida, cuja contagem come¸ca no ponto onde os dois eixos se cruzam, a que se chama origem do referencial. Inicialmente, Descartes apenas considerou coor-denadas positivas, at´e porque naquela ´epoca os n´umeros negativos ainda n˜ao estavam consolidados, mas rapidamente os seus seguidores alargaram o referencial aos n´umeros negativos.
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O Iluminismo foi um movimento que surgiu em Fran¸ca do s´eculo XVII e defendia o dom´ınio da raz˜ao sobre a vis˜ao teocˆentrica que dominava a Europa desde a Idade M´edia. Segundo os fil´osofos iluministas, esta forma de pensamento tinha o prop´osito de iluminar as trevas em que se encontrava a sociedade.
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Descartes come¸cou por n˜ao usar eixos perpendiculares mas rapidamente se apercebeu que uma curva era mais facilmente interpretada num referencial ortogonal (eixos perpendiculares).
x y b O 1 2 3 −1 −2 1 2 3 −1 −2 x y b O bB bA bC
Referencial cartesiano Representa¸c˜ao de pontos
Assim, se partirmos da origem do referencial, ponto O, identificado pelo par de n´umeros (0, 0), e andarmos trˆes unidades para a direita e duas unidades para cima, ob-temos um novo ponto, designado por A, ao qual correspondem as coordenadas (3, 2). A identifica¸c˜ao de qualquer ponto do plano ´e feita pela sombra (quer dizer, pela proje¸c˜ao perpendicular) que provoca em cada eixo. Por exemplo, o ponto B est´a uma unidade `a direita do eixo vertical, por isso a sua ‘sombra vertical’ ´e 1. Relativamente ao eixo horizontal, B est´a duas unidades abaixo, por isso a sua ‘sombra horizontal’ ´e −2. Desta forma o ponto B fica identificado pelas coordenadas (1, −2). Os n´umeros 1 e −2 chamam-se coordenadas do ponto B e o par (1, −2) chama-chamam-se par ordenado, significando que existe uma ordem que deve ser respeitada para escrever as coordenadas do ponto. Assim, primeiro escreve-se a abcissa, coordenada que faz a identifica¸c˜ao com o eixo horizontal ou eixo das abcissas (neste caso o eixo Ox ), seguida da ordenada ou coordenada que faz a identifica¸c˜ao com o eixo vertical ou eixo das ordenadas (neste caso o eixo Oy)3.
Assim, as coordenadas (1, −2) e (−2, 1) identificam pontos diferentes, como se pode ve-rificar pela localiza¸c˜ao dos pontos B e C no referencial. Desta forma, as coordenadas de qualquer ponto s˜ao sempre ´unicas e obtemos sempre um ´unico ponto se conhecermos as suas coordenadas.
Esta forma de identificar qualquer ponto do plano ficou conhecida por representa¸c˜ao cartesiana e o sistema de retas passou a chamar-se referencial cartesiano. A palavra cartesiano deriva do nome do criador, pois Descartes assinava as suas obras por Cartesius, nome latino para Descartes. Atualmente, sempre que fazemos a representa¸c˜ao de qual-quer figura geom´etrica num referencial cartesiano estamos a prestar uma homenagem a Descartes. Sim, uma merecida homenagem, pois este sistema revolucionou a matem´atica. At´e ao s´eculo XVII a geometria e a ´algebra desenvolveram-se separadamente. Os talen-tosos matem´aticos gregos resolveram grandes problemas de geometria mas sempre atrav´es de diagramas ou figuras. Os algebristas ´arabes e italianos avan¸caram no desenvolvimento
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Os termos coordenadas, abcissa e ordenada utilizados modernamente foram introduzidos em 1692 por Gottfrield Leibniz. Abcissa deriva do latim abscissa linea que significa linha cortada.
do c´alculo alg´ebrico, nomeadamente na resolu¸c˜ao de equa¸c˜oes. Descartes foi mais longe e mostrou que as figuras podem relacionar-se com as equa¸c˜oes. Ao casar a geometria com a ´algebra, Descartes criou um novo ramo da matem´atica que ficou conhecido por geometria anal´ıtica(embora se devesse chamar geometria cartesiana), que permitiu fazer geometria atrav´es da ´algebra4. Pela primeira vez, duas ´areas separadas e distintas da matem´atica
revelavam n˜ao apenas estarem ligadas mas, principalmente, serem representa¸c˜oes alter-nativas e complementares uma da outra. Como afirma Carl Boyer, Descartes desejava
≪libertar a geometria≫ do uso de diagramas atrav´es de procedimentos alg´ebricos e dar
sentido `as opera¸c˜oes da ´algebra atrav´es da interpreta¸c˜ao geom´etrica.
Esta maravilhosa ideia de Descartes foi publicada em 1637, num apˆendice − A Geo-metria − da sua obra mais famosa: Discurso do M´etodo para Bem Conduzir a Raz˜ao e Procurar a Verdade nas Ciˆencias, onde o fil´osofo francˆes procura aplicar o pensamento matem´atico ao racioc´ınio humano, ficando c´elebre a cita¸c˜ao “Penso, logo existo!”, em que o processo de pensar (duvidar de todas as coisas) exige a existˆencia de um pensador. A Geometria de Descartes ´e o primeiro livro que parece um livro de matem´atica moderna, inaugurando um novo pensamento em matem´atica5 e, talvez, nenhum outro apˆendice
te-nha ganho tanta fama. Atualmente, o trabalho de Descartes ´e de uso muito pr´atico e ajuda a resolver muitos problemas, n˜ao apenas na matem´atica mas na ciˆencia em geral. Por exemplo, os cientistas e os engenheiros recorrem a equa¸c˜oes para descrever linhas quando est˜ao a desenhar os projetos em que trabalham.
O plano que os matem´aticos usam para estudo da geometria anal´ıtica corresponde precisamente ao plano cartesiano, isto ´e, ao produto R × R, que abreviadamente se es-creve R2. Cada ponto do plano ´e identificado por um par da forma (x, y), em que x
corresponde ao n´umero real do eixo das abcissas e y corresponde ao n´umero real do eixo das ordenadas. Assim, o plano corresponde a todos os pares ordenados de n´umeros reais, chamado produto cartesiano, tais que
R2 = R × R = {(x, y) : x ∈ R e y ∈ R}
A ideia de que as linhas podem ser representadas por equa¸c˜oes foi a grande inven¸c˜ao da Geometria de Descartes. Este casamento entre as ideias abstratas (´algebra) e a imagem espacial (geometria) reflete a motiva¸c˜ao de Descartes em tornar a ´algebra e a geometria mais f´aceis de entender, uma ideia que a partir da´ı se tornou recorrente na matem´atica.
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Refira-se que os historiadores modernos apontam o ano de 1637 como o nascimento da Geometria Anal´ıtica, filha de Ren´e Descartes e Pierre de Fermat (1601-1665).
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Descartes tamb´em desenvolveu a nota¸c˜ao alg´ebrica introduzida por Fran¸cois Vi`ete (1540-1603), su-gerindo as primeiras letras do alfabeto (a, b, c) para representar quantidades fixas (constantes) e as letras finais (x, y, z) para representar as inc´ognitas (e vari´aveis), contribuindo ainda para a consolida¸c˜ao dos s´ımbolos que usamos para representar as opera¸c˜oes aritm´eticas fundamentais e o s´ımbolo√a(radical).
Dessa intui¸c˜ao resulta que as equa¸c˜oes em x e y podem ser escritas como linhas. Repare na reta tra¸cada no referencial da figura seguinte.
1 2 3 −1 1 2 3 −1 −2 x y b O b D(1, 2) b A(−2, −1) b B(−1, 0) b C(0, 1) b E(2, 3) b F
Comparando as coordenadas dos v´arios pontos assinalados sobre a reta verificamos que o valor de y ´e sempre uma unidade maior do que o valor de x. Isto permite-nos escrever y = x + 1. Esta ´e precisamente a equa¸c˜ao que identifica todos os pontos daquela reta. Vejamos a perspetiva contr´aria: para x = 0, 5 obtemos y = 0, 5 + 1 = 1, 5. Isto diz-nos que F (0, 5; 1, 5) dever´a ser um ponto da reta. Representando este ponto no referecial vemos que cai precisamente sobre a reta, portanto, ´e um ponto da reta. Se fizermos isto para outros valores de x acontece exatamente a mesma coisa. Experimente!
O melhor do m´etodo cartesiano consiste em permitir escrever a equa¸c˜ao de uma reta conhecidos apenas quaisquer dois dos seus pontos (afinal, por dois pontos passa uma ´unica reta). Assim, as retas s˜ao descritas por equa¸c˜oes do tipo y = ax+b, em que os parˆametros ae b tˆem significados espec´ıficos, chamados, respetivamente, declive e ordenada na origem. O declive diz-nos se a reta ´e muito ou pouca inclinada, enquanto a ordenada na origem corresponde ao valor onde a reta interseta o eixo Oy, precisamente o ponto (0, b).
Para descobrir o declive calcula-se a raz˜ao entre a varia¸c˜ao das ordenadas e a varia¸c˜ao das abcissas. Por exemplo: determinemos a equa¸c˜ao da reta que passa nos pontos P (1, 0) e Q(0, 1) representada na figura abaixo. Comecemos por determinar o seu declive: temos a = 1−0
0−1 = 1
−1 = −1. Portanto, a equa¸c˜ao da reta P Q ´e da forma y = −1x + b. Como
vemos, b = 1 (porquˆe?), assim a equa¸c˜ao de P Q ´e y = −x + 1. Note-se que este caso ´e imediato. Todavia, se Q tem outras coordenadas substitu´ımos os seus valores na equa¸c˜ao y= −x + b e resolve-se a equa¸c˜ao em ordem a b.
Mais, isto conduz ao reconhecimento de que diferentes tipos de equa¸c˜oes produzem diferentes tipos de linhas. Al´em disso, este m´etodo aplica-se a um grande n´umero de curvas (circunferˆencia, hip´erbole, par´abola, elipse, etc.). Todavia, as curvas tˆem uma equa¸c˜ao mais complicada do que a reta e precisamos de saber um pouco mais de matem´atica. Por agora vejamos apenas alguns gr´aficos. As equa¸c˜oes do 1.o grau, como x + y = 1, ou
equivalentemente, y = −x + 1, produzem (sempre) linhas retas, enquanto as equa¸c˜oes do 2.o grau, como x2 + y2 = 1 produzem linhas curvas fechadas. Neste caso, trata-se
precisamente de uma circunferˆencia, representada abaixo.
1 2 −1 −2 1 2 −1 −2 x y b O 1 2 −1 −2 1 2 −1 −2 x y b O Representa¸c˜ao de x+ y = 1 Representa¸c˜ao de x2 + y2 = 1
J´a a equa¸c˜ao x3 + y3 = 1 produz uma curva aberta. Por´em, qualquer equa¸c˜ao da
forma xn+ yn = 1 com n par produz uma curva fechada. Curiosamente, `a medida que n
aumenta, a nossa circunferˆencia come¸ca a quadrar-se. Parece que estamos perante uma m´aquina que nos conduz `a quadratura do c´ırculo6! Observe as figuras seguintes e tire as
suas conclus˜oes. 1 2 −1 −2 1 2 −1 −2 x y b O 1 2 −1 −2 1 2 −1 −2 x y b O Representa¸c˜ao de x4 + y4 = 1 Representa¸c˜ao de x8 + y8 = 1
Surpreendentemente, o criador do sistema de coordenadas cometeu um erro pessoal. Precisamente, um erro de c´alculo de coordenadas quando aceitou ir para a corte sueca. Descartes n˜ao ponderou suficientemente que as coordenadas de Estocolmo est˜ao muito pr´oximas do P´olo Norte. Tamb´em n˜ao previu que tinha um problema com a coordenada tempo, pois a rainha Cristina gostava de receber li¸c˜oes de filosofia `as cinco da manh˜a. O frio na cama e as madrugadas geladas fizeram com que a sua estada na Su´ecia, iniciada em 1649, terminasse em 1650, devido a uma pneumonia que o conduziu `a morte.
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A quadratura do c´ırculo ´e um dos trˆes problemas cl´assicos da geometria grega que s´o foi resolvido, pela negativa, em 1882. Este problema refere-se `a constru¸c˜ao de um quadrado com a mesma ´area de um c´ırculo dado, o que n˜ao se verifica nesta situa¸c˜ao.