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ALTISSIMA POVERTÀ DE GIORGIO AGAMBEN: UMA APRESENTAÇÃO

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Academic year: 2021

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ALTISSIMA POVERTÀ

DE GIORGIO AGAMBEN:

UMA APRESENTAÇÃO

Ésio Francisco Salvetti*

Giorgio Agamben nasceu em 1942, na Itália. Até 2009 foi professor de Filosofia e estética na Universidade de Veneza (IUAV). Com a publi-cação do primeiro volume da série Homo sacer, em 1995, o autor passou a ocupar um lugar cada vez mais destacado no panorama do pensamen-to político contemporâneo. Até o momenpensamen-to, esta série está composta por sete volumes. Nos propomos apresentar o último volume da série que é intitulado Altíssima povertà: regola monastiche e forma di vita. Através do exemplo do monaquismo, Agamben buscou mostrar o que significa uma forma-de-vita, isto é, uma vida que se liga estreitamente à sua for-ma. Para isso, enfrenta o problema da relação entre regra e vida. Ana-lisa como se definiu o dispositivo através do qual os monges puderam realizar o ideal de uma forma de vida comum. A grande novidade do monaquismo não foi a confusão entre vida e norma, mas sim a identifi-cação de um plano de consistência impensável, que os sintagmas vita vel

regula, regula et vita, forma vivendi, forma vitae procuraram

denomi-nar. Neles tanto a regra como a vida perdem os significados familiares para fazer sinal em direção a um terceiro, a forma-de-vida. É através da forma-de-vida dos franciscanos que Agamben vê a possibilidade de tornar o direito inoperoso.

A obra está dividida em três partes gerais: Regra e vida; Liturgia e regra; Forma-de-vida. Na primeira parte, o autor enfatiza a singularidade da concepção de forma vitae ou forma-de-vida, específica do modo de vida monacal. Na segunda parte Agamben analisa a relação entre

forma--de-vida e direito. Tomando como paradigma a vida monástica , mostra

como a relação entre regra e vida foi articulada. Na terceira e última parte

* Professor no IFIBE, doutorando em Filosofia na Universidade Federal de Santa Ma-ria (UFSM) em cotutela com a Università degli Studi di Padova, bolsista CAPES.

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do livro, numa interpretação da mensagem franciscana em relação à po-breza e ao uso, o autor vê a possibilidade de pensar uma forma-de-vida, isto é, uma vida humana desativada de todo o direito e um uso do corpo que não se subtraia a uma apropriação. O intento é pensar uma vida que não possa ser dada em propriedade, mas apenas uso comum.

Agamben inicia o percurso retornando aos séculos IV e V da era cristã para estudar uma literatura particular, estranha à prática ecle-siástica, que nasce nesses anos: as regras monásticas. Posteriormente, aprofunda os principais aspectos da experiência franciscana. Apesar das várias regras encontradas, Agamben ressalta que, por mais que se pareçam, não são obras jurídicas. Neste cenário, algumas questões sur-gem como fundamentais e permanecem como pano de fundo para o desenvolvimento de toda a obra: “Che cos’è una regola, se essa sembra confondersi senza resídui con la vita? E che cos’è una vita umana, se essa non può piu essere distinta dalla regola?” (2012, p. 15).1

Depois de uma breve análise da origem dos cenóbios, fica claro que os elementos que definem a vida dos monges é o koinós bíos, habitus,

horologium e meditatio. O cenóbio nasce como oposição à solidão do

anacoreta e também à anarquia dos sarabaítas. A primeira característica que se destaca é a koinós bios, a vida em comum. Outra característica é o habitus, que significava “modo de ser e de agir”, que passou a designar também modo de se vestir. Isso se tornou tão importante que passou a fazer parte de todas as regras monásticas. Não se esgotava no modo de se vestir, pois se entendia que o hábito deveria significar um modo de vida. Habitar junto era mais que condividir um lugar e uma veste. Era, antes de tudo, condividir os habitus. Por isso, entende-se que os mon-ges seguem uma regra e uma forma-de-vida. Desta forma, o cenóbio representa uma tentativa de fazer coincidir hábito e forma-de-vida em um habitus absoluto e integral. Outro elemento importante colocado em prática nos cenóbios foi a divisão dos horários. O termo horologium é referência à distribuição das orações nos diferentes momentos do dia. Os monges deveriam constituir-se em relógio vital. Cada momento de-veria corresponder ao ofício: oração, leitura e trabalho manual. Com a divisão temporal, a vida foi transformada em ofício. Com isso, o ideal de vida monacal transformou-se em mobilização integral da existência

1 O que é uma regra, será que ela se confunde, sem dúvida, com a vida? E o que é uma vida humana, será que ela não pode mais ser distinguida da regra? (Tradução nossa).

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por meio do tempo. Outra característica extraída das literaturas monás-ticas foi a meditatio. Não é meditação no sentido moderno, mas designa recitação de memória (solitária ou comum) da regra de vida.

O fator decisivo dessas características é que regra e vida entram em uma zona de indistinção recíproca. “Una norma che non si rife-risce a singoli atti ed eventi, ma all’interna esistenza di un indiví-duo, alla sua forma vivendi, non è più facilmente riconoscibile come diritto, così come una vita che si istituisce nella sua integralità nella forma di una regola non è più veramente vita” (2012, p. 39).2 Como os

preceitos não são separados da vida dos monges, cessam de ser legal. Assim, os monges não são mais “regolari”, mas “vitali” (2012, p. 39). A minuciosa regulamentação de todos os detalhes da existência tende a uma indecidibilidade entre regra e vida. Essas características confi-guraram-se como um fenômeno novo e estranho à tradição jurídica romana. Por isso, Agamben vê a necessidade de analisar melhor a re-lação entre regra e direito.

Um exame do texto das regras monásticas revela que há uma espé-cie de contradição ou ambiguidade em relação à esfera do direito. Elas anunciam, com firmeza, verdadeiros e próprios preceitos de comporta-mento, mas contêm também um elenco detalhado das penas para aque-les que transgridem as regras. Agamben destaca que o texto das regras insiste para que os monges não considerem as regras como um disposi-tivo legal. A pena aplicada aos monges não é prova suficiente do caráter jurídico, mas as regras mesmas “[...] in un’epoca in cui le pene avevano un carattere essenzialmente afflittivo, sembrano suggerire che la puniz-zione dei monaci ha un significato essenzialmente morale” (2012, p. 44).3

Neste sentido, o monastério foi o primeiro lugar no qual as regras se inscrevem não tanto no marco de um dispositivo legal, mas como uma arte ou uma técnica. Por isso, Agamben afirma que nos encontra-mos frente a algo que é mais que um simples conselho, mas também não é lei em sentido estrito.

2 Uma norma que não se refere a atos e eventos singulares, mas à existência interna de um indivíduo, a sua forma vivendi, não é facilmente reconhecida como um di-reito, assim como uma vida, que se dá em sua integralidade na forma de uma regra, não é mais verdadeiramente vida (Tradução nossa).

3 Em uma época em que as penas tinham um caráter essencialmente aflitivo, pare-cem sugerir que a punição dos monges tem um significado essencialmente moral (Tradução nossa).

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O autor está convencido de que o debate sobre a natureza das re-gras jurídicas se torna inteligível se não nos esquecermos que elas se so-brepõem ao problema teológico da relação entre a Lei Mosaica e o Novo Testamento. Esta relação foi elaborada nas cartas paulinas e culminou com a enunciação de Cristo, o Messias, que é o telos nomou, o fim e o cumprimento da lei. O certo é que a vida dos cristãos não está sob uma lei e não pode ser, em nenhum caso, concebida em termos jurídicos. É neste contexto que se deve situar as regras monásticas.

Para Agamben, o fato indubitável é que o monastério foi a tentativa extrema e rigorosa de realizar a forma de vida dos cristãos e de definir sua práxis. No entanto, não assumiu a forma de uma liturgia, pois não coincidia com a práxis segundo a qual a Igreja estava elaborando o câ-none do seu ofício. Esse argumento foi melhor desenvolvido por Agam-ben na obra Opus Dei: archeolgia dell’ufficio.

O decisivo nas regras monásticas é a forma-de-vida. Ela não é obje-to de governo, pois não é o cenóbio que nasce da regra, mas o contrário. A vida inaugurada no cenóbio transformou o cânone da práxis huma-na e foi determihuma-nante para a ética e a política da sociedade Ocidental, mesmo que ainda não tenhamos conseguido compreender plenamente a natureza do assunto e as suas implicações. Foi com os franciscanos que o processo de indistinção entre regra e vida, que se inicia com o aparecimento das regras monásticas, alcançou seu mais alto desenvolvi-mento. Esse movimento religioso, fundado por Francisco de Assis, entre os séculos XI e XII, nasceu na Itália e logo se difundiu pela Europa. In-felizmente, por muitas vezes foi mal interpretado, analisando-se apenas os aspectos econômicos e sociais.

Para Agamben, as reivindicações dos franciscanos apresentavam algumas novidades. A principal era o modo de viver “[...] un novun vi-tae genus” (2012, p. 116), que ele chama de vida apostólica ou envangé-lica. A reivindicação da pobreza não era, como na tradição monástica, uma prática ascética ou mortificatória para obter a salvação, mas era parte inseparável e constitutiva da vida apostólica e santa, que os fran-ciscanos declaravam praticar em perfeita alegria.

Essa forma-de-vida praticada com rigor teve consequências no plano doutrinal, produzindo contrastes com a hierarquia eclesial. Para Agam-ben, um estudo sério sobre esse movimento não pode ficar focalizado nes-ses contrastes, deixando na sombra o fato de que é pela primeira vez que

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entra em questão não a regra, mas a vida, não o poder professar este ou aquele artigo de fé, mas o poder viver de um certo modo, praticar alegre-mente e abertaalegre-mente uma certa forma de vida.

Através da forma de vida dos franciscanos, Agamben procura in-terrogar o significado da reivindicação a ser posta essencialmente sobre o plano da vida. O conceito vida, forma-de-vida, forma-de-viver tem novidades que ainda precisam ser decifradas. Foi com os franciscanos que o sintagma forma-de-vida assumiu um carácter técnico da literatura monástica e a vida como tal se tornou decisiva. Os franciscanos adota-ram como princípio que a regra é a própria vida de Cristo. Por isso, Fran-cisco não escreve uma regra, mas uma vida, uma forma de viver, não um código de normas e preceitos. No entanto, isso teve implicações e conse-quências que não foram aceitas pela Cúria Romana, tanto que, em 1230, foi introduzida uma distinção entre o exemplo evangélico e a regra.

Na compreensão de Agamben, a forma não é uma forma imposta para a vida, mas um viver que, no seguimento da vida de Cristo, se dá e se faz a forma. Francisco tem em mente alguma coisa que não pode simples-mente chamar de vida, mas que também não se deixa classificar como regra, por isso às une para formar uma terceira coisa: forma-de-vida. Esse é o terceiro elemento que precisava ser trazido à luz.

Partindo da “altissima paupertas”, conceito com o qual Francisco definiu a vida dos frades menores, os franciscanos reclamavam a abdi-cação do direito, tanto de propriedade como de uso. “Cioè la possibilita di un’esistenza umana al di fuori del diritto” (2012, p. 136).4 A

sepa-ração da propriedade e do uso constituiu o dispositivo essencial para os franciscanos definirem tecnicamente a particular condição que eles chamaram de pobreza. Alguns estudiosos da regra franciscana chegam a afirmar que eles reivindicavam o direito de não haver direito algum.

Ockham, conhecido como um grande teórico franciscano, elaborou, contra a Cúria, uma genial generalização e inversão do paradigma do es-tado de necessidade. Ele parte do princípio presente no Direito Roma-no segundo o qual, em caso de extrema necessidade, cada um tem por direito natural a faculdade de usar das coisas dos outros. Neste caso, os frades menores, por não haver qualquer direito positivo sobre as coisas que usam, têm todavia um direito natural. Portanto, eles renunciaram a propriedade, mas não ao direito de uso, que enquanto direito natural é

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irrenunciável. Ou seja, não é tanto a regra, mas é o estado de necessidade o dispositivo através do qual os franciscanos procuram neutralizar o direi-to. Por isso, Agamben pode afirmar que os franciscanos inventaram uma

forma-de-vida, ou seja, uma vida inseparável de sua forma, propriamente

em virtude da sua radical estranheza ao direito e à liturgia. Pois, a regra e a vida dos frades é esta: “viver em obediência, em castidade e sem nada de próprio, e seguir a doutrina e o exemplo de nosso Senhor Jesus Cristo”.

A separação entre propriedade e uso foi o dispositivo que os francis-canos se serviram para definir tecnicamente a condição chamada por eles de pobreza. No entanto, o momento crítico na história dos francis-canos foi aquele em que o Papa Giovani XXII revogou a possibilidade de separar propriedade e uso. Neste sentido, cancelou o pressuposto no qual estava fundada a regra dos frades menores. Alguns teóricos franciscanos levaram adiante este debate e desenvolveram argumentos interessantes em relação a uso e propriedade, obviamente sem sucesso. Agamben observa que os franciscanos deveriam ter insistido sobre o caráter expropriativo da pobreza e sobre a recusa de qualquer Animus Possidenti da parte dos frades menores. Faltou aos franciscanos uma definição do uso em si mes-mo e não somente em contraposição ao direito. A preocupação de cons-truir uma justificação do uso em termos jurídicos impediu que os fran-ciscanos colhessem as sugestões de uma teoria do uso presente nas cartas paulinas.

A obra cumpre um papel de extrema importância no projeto filosófico de Agamben. Até então as produções deste pensador tinham como objetivo investigar os dispositivos através dos quais o direito captura a vida. Nesta obra, Agamben inicia um giro teórico e começa a apresentar a possibilidade da vida se subtrair a todo o direito. A noção de forma-de-vida passa a ser a categoria inversa à vida nua, que até aí dominou a sua reflexão. Aqui parece que Agamben busca aproximar-se da possibilidade de tornar o direito ino-peroso. Para isso nos apresenta a forma-de-vida dos franciscanos. Contudo, o fato de os franciscanos elaborarem uma doutrina sempre na defensiva dos ataques da Cúria lhes impossibilitou de levar às últimas consequências uso e forma-de-vida. Tudo indica que esta é a investida de Agamben na obra que acreditamos ser a que finalizará o projeto Homo Sacer.

Para concluir, destacamos que esta obra teve recepção positiva na Itália. Publicada em 2011, encontra-se atualmente na terceira edição. No Brasil, a editora Boitempo anunciou a publicação para 2014, com

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tradução do Professor Selvino Assmann, tradutor de várias outras obras do Agamben e sempre com excelente qualidade. Apesar de ainda não ter sido publicada a tradução no Brasil, já foi pauta de discussão em importantes eventos filosóficos. A obra publicada indica caminhos alternativos à biopolítica e se aproxima daqueles conceitos que podem tornar o direito inoperoso. Como a proposta filosófica é recente e radi-cal, acreditamos que Agamben abre caminhos para um profícuo deba-te indeba-terdisciplinar. Nesta perspectiva, a leitura desta obra é indispen-sável para aqueles que querem fazer frente à biopolítica e pensar uma nova ética e uma nova política.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Altissima povertà: regola monastica e forma di vita. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2012. 190 p.

Referências

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