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História de Dois Amantes

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HISTÓRIA DE DOIS AMANTES Autor

ENEAS SILVIO PICCOLOMINI Composição, impressão e acabamento

SEMEDO - Soc. Tipográfica, Lda. - Castelo Branco Depósito Legal

211 343/04

Título original De duobus amantibus c. 1470

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ENEAS SILVIO PICCOLOMINI

HISTÓRIA

DE

DOIS AMANTES

Apresentação por José V. de Pina Martins, Presidente da Academia de Ciências de Lisboa Professor jubilado pela Universidade de Lisboa

Leitura, introdução e notas por Melba Ferreira da Costa

Tradução de Arnaldo Espírito Santo, Professor de Estudos Clássicos da

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4 Abreviaturas Ep. – Epístola B. N. – Biblioteca Nacional Inc. – Incunábulo N. S. – Nova Série

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A modos de prefácio – José V. de Pina Martins Introdução – Melba Ferreira da Costa

Estrutura da novela Considerações gerais

Manuscritos e edições da novela Bibliografia a) Obras consultadas b) Obras de referência Cartas Carta I Carta II

História de dois Amantes

Textos Texto I Texto II Texto III

Cronologia das obras de Eneas S. Piccolomini

7 9 35 47 53 61 61 64 67 70 75 155 161 171 181

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A modos de prefácio

Eneas Silvio Piccolomini (1405-1464) foi, antes de exercer o ofício de Pontífice Romano (1458), um cultor das letras humanas, profanas e sagradas, das humaniores litterae, um verdadeiro humanista. Entre as suas obras mais importantes distinguem-se tratados de filosofia moral e de educação dos filhos, manuais de gramática e de retórica, estudos de geografia e história sobra a Boémia e a Germânia, uma monografia cosmológica e uma outra acerca da Europa, que teve uma larga difusão nos séculos XV e XVI. Escreveu também numerosas epistolae e orationes, que representam um manancial para o conhecimento da cultura quatrocentista. É também autor de uma novela sentimental concebida e escrita nos anos juvenis, da qual virá a arrepender-se, principalmente nos últimos anos da sua vida, quando foi eleito papa.

A De duobus amatibus historia é, porém, no seu género, uma pequena obra-prima que teve um brilhante percurso nas literaturas europeias dos séculos XV e XVI, e foi conhecida em Portugal, embora não se possa afirmar que tenha exercido uma influência profunda na novela sentimental de Bernardim Ribeiro, ao contrário do êxito que obteve, por exemplo, como fonte de alguns aspectos, não secundários, da novela sentimental castelhana.

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Da bibliografia de Pio II faz também parte uma carta endereçada a Maomé II exortando-o, com ingenuidade, a converter-se ao cristianismo. Esse texto deve remontar aos últimos anos da sua vida, quando no seu espírito surgiu o propósito de uma cruzada contra o Islão. Não obstante este propósito – o de exortar o sultão a converter--se a Cristo – documenta uma intenção de diálogo, que é uma das características da forma mentis dos humanistas.

A De duobus amatibus historia é, pela primeira vez, traduzida em português e editada em Portugal. Trata-se de uma versão primorosa da autoria do grande latinista que é o Prof. Arnaldo Espírito Santo, também ele cultor notável das humaniores litterae.

É de louvar a iniciativa desta edição por parte da Senhora Dr.ª Melba Ferreira da Costa, antiga directora da Biblioteca do Palácio da Ajuda. Publica-se assim entre nós – e pela primeira vez – este valioso texto: uma novela sentimental das letras latinas da Itália do Quattrocento.

Lisboa, 27 de Outubro de 2003

José Vitorino de Pina Martins

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Introdução

“… depois a Terra de largos flancos, base segura, oferecida para sempre a todos os seres vivos, e Amor, o mais belo entre os deuses imortais, aquele que desequilibra os membros e subjuga, no peito de todos os deuses e de todos os homens, o coração e a sábia vontade”

Hesíodo

Em meados de quatrocentos, um italiano de seu nome Eneas Silvio Piccolomini afirmava-se nos círculos literários do Sacro Império Romano Germânico sediado em Viena de Áustria. Consciente do seu mérito, incontestado, aceita o desafio para evocar, de pluma em punho, dois amantes tocados daquele brando fogo da alma e força da mente a que chamam Amor. Expressões do Poeta, prosador de estilo, artista-sensível à descrição, viva e irreverente, de um caso maravilhoso, quase inacreditável, no qual dois loucos um no outro se incendiaram. Assim o disse e o contou e o espalhou, por cantos e recantos, até à raia portuguesa. Aí, parou. Quinhentos anos passados o vate regressa, no rasto de quem era, quem foi ou quis ser, em algumas

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Antonium Federighi, efige funerária de Silvio Piccolomini e V

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10 décadas de vida.

É comum dizer-se que nada adianta dar a conhecer a biografia do homem com o perfil vincado na sua vasta obra. Contudo, tal asserção, discutível, não se quadra com a de um escritor ausente do contexto editorial português. A avaliar pelo silêncio das fontes bibliográficas nacionais e outras, a voz do autor em causa não teve ressonância significativa em Portugal. Excepção feita ao Tratado de la miseria de los cortesanos, versão castelhana do De curialium miseria tractatus, que João Barreira publicou em Coimbra em 15631. Sendo assim, impõe-se fixar alguns pontos vitais do seu percurso.

Eneas nascia em 1405 sob signos premonitórios, em Corsignano, um burgo próximo de Siena, envolto em velhos pergaminhos, tão velhos quanto vazios de conteúdo. Com efeito, pelos anos cinquoenta de trezentos, assiste-se em Itália ao esgaçar do tecido social e daí à ascensão de uma nova classe que faz ruir o poderio dos nobres. Possuidores de castelos e fortalezas, os Piccolomini trocam Roma por Siena, no século XIV.

O avô Eneas sucumbe jovem, deixando viúva Molinina, mais jovem ainda, a braços com o recém-nato Sílvio. Casada em segundas núpcias, Molinina entra nos

1 António Joaquim Anselmo na sua Bibliografia das obras impressas em Portugal no séc. XVI, Lisboa, 1926, dá erroneamente a autoria a Pio IV em vez de

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domínios áureos dos Tolomei, mercadores e banqueiros ancestrais, enquanto as portas das artes liberais abriam-se para o filho. Alcançada a maioridade, Sílvio alista-abriam-se nas hostes dos Visconti. Meio de sobrevivência, meio aliás oposto à sua estirpe. O sucesso de uma longa batalha jurídica contra o poder instalado permitiu-lhe receber de volta algum património usurpado em Corsignano, onde se fixa. Do casamento com Vitória Fortguerri, igualmente nobre mas falha de recursos, floresce uma vasta prole de dezoito filhos, dez sobreviventes, desses, três até à idade adulta: Eneas, Laodemia e Caterina. Os outros, levou-os a peste que então grassava. Longe da indigna servidão em que se sentia como soldado, Sílvio Piccolomini, fiel aos valores próprios da sua classe, luta pela autonomia, lado a lado com Eneas (“como fazem os nobres”, diria mais tarde) no gerir das sua terras.

De entre vários factos da infância de Eneas, importa relevar um, pela forte incidência, digamos cunho marcante ao longo da vida. Refere ele mesmo que, em uma representação teatral infantil, coube-lhe precisamente o papel de Papa, com todo o cerimonial do beija-pés afecto ao pequeno elenco cénico. Outrotanto a sua mãe sonhava, dias antes do parto, que dera à luz um menino portador de uma mitra na cabeça. Lembra também que aos oito anos foi investido por um búfalo de que se livrou “por milagre”. Homem do Renascimento,

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humanista consumado a par com um clima de visões, sonhos, premonições, enfatizado nas memórias. Mais adiante retomamos esta faceta da sua mentalidade.

Aos dezoito anos deixa a terra natal, leste a um mundo novo de estranhas vivências, nunca pensadas ou sonhadas. Siena era o alvo para um jovem talentoso, digno da elite cultural que só a universidade, já ao tempo famosa, lhe concedia. Outra era já a realidade intelectual que teria de enfrentar. Recebido festivamente pelos familiares, aloja-se em casa da tia Bartolomeia Tolomei (meia irmã do pai) casada com Gregório Lolli. Não tardou muito para se revelar junto dos gramáticos, poetas e oradores e logo, numa viragem intelectual ou a instâncias do pai, para o direito civil. Em contrapartida, os fracos recursos pecuniários travavam-lhe os passos da escalada.

A primeira e talvez única paixão da sua vida foi Ângela que desconhecemos se era casada ou não; sabemos que a indumentária pobre, tal como hoje, barrava-lhe o acesso a senhoras das altas camadas sociais. Aquele grande amor, regista-o no seu primeiro livro de versos que intitulou Cinthia. O certo é que a musa surge-nos como Ângela, mulher de Francisco Acherisi. Mas deixemos paixões. Vamos antes rever o seu fluxo político. Em pleno contacto com as leis rebenta a guerra, que Florença protagoniza com Siena. Primeiro revés para o

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trajecto universitário, entretanto interrompido sem retorno. Mesmo assim, Eneas viria a ser escolha de primeira plana no mundo diplomático do seu tempo.

Face ao quadro bélico, com todas as suas conse-quências funestas, o estudante, como último recurso, abandona a cidade dos seus encantos ante a oferta de Domenico Capranica que, feito cardeal por Martinho V, foi rejeitado por Eugénio IV, seu sucessor. Capranica propõe-se defender os seus direitos no concílio já em curso em Basileia. Leva Eneas como adjunto e Pietro di Noceto (Petrus de Noxeto nas cartas que posteriormente lhe dirige de Viena). Iniciada a travessia pela via marítima, foram inumeráveis os revezes até à meta final. Desde traições a violentas tempestades a céu aberto, perda de controle sem rumo nem norte, já quase próximo de Elba e Córsega atirados para a costa de África, andaram ao deus-dará directos para Génova, com paragem em Milão e contactos com Filipe Maria Visconti, em vias do ponto certo. No sínodo, a brilhante defesa de Eneas à causa do Cardeal garantiu-lhe a vitória pretendida. Seria êxito fugaz, face às represálias infligidas àquele por Eugénio IV, que não só lhe sequestrou os bens como proibiu os parentes de o ajudarem2. A penúria imposta era incompatível com o luxo de um secretário particular.

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Nestas circunstâncias, Eneas segue Nicodemo della Scala, Bispo de Freising, que o fez estar presente na dieta de Francfurt3 para regressar de seguida a Basileia, decidido a abandonar o concílio. Assim, entra ao serviço de Bartolomeo Visconti, Bispo de Novara, cujo irmão, Scaramuccia, privado na corte de Milão, coloca Eneas nas boas graças dos Visconti, ao tempo poderosos. Isto passa-se na década de 1430/40. Bartolomeu Visconti, em conluio com o Duque de Milão (Visconti), preparava a deposição do Papa Eugénio IV que, em perigo iminente viu-se obrigado a abandonar Roma e estabelecer-se em Florença, cidade em que exerce o seu pontificado até 1443. A partir desta data instala-se na cidade eterna.

O Bispo de Novara já em Florença, incumbe Eneas de levar uma carta a Niccolò Piccinino, “o mais célebre general da era”4, cujo traçado visava a prisão de Eugénio IV, fora dos muros citadinos. Gorado o plano, descobrem-se verdades que levam Bartolomeu à prisão; contudo, Piccolomini fica incólume ao abrigo de Nicolò Albergati, cardeal de Santa Cruz e senador que intercedeu junto de Tommaso Sarzana, (futuro Papa Nicolau V) para libertar o prelado. No equacionar dos factos, não se prova cabalmente que Eneas, segundo

3 Reunião de eleitores para tomada de posições face aos problemas da

Cristandade. A escolha de Eneas para orador deve-se ao facto de ser o “único homem do palácio capaz de defender a fé”.

4 Cf. The Commentaries of Pope of Pius II... Northamptom, Mass., 1912, Book I, p. 14.

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afirma, tenha sido agente passivo no cerne da questão. A sua inocência mantém-se obscura para os estudiosos5.

Já sob a tutela de Albergati, acompanhou-o a França para o congresso em Arras, com vista a tréguas, entre as coroas francesa e inglesa, esta aliada com Filipe de Borgonha, cuja a reconciliação com aquele monarca pôs fim ao conflito. Neste meio tempo, parte para a Escócia e Inglaterra em missão de paz junto de um prelado e o Rei. Não se descortinam as intenções nebulosas do Cardeal6, cujo fito, revelado pelo mediador, colide com o drama de suspeição vivido por Eneas em Londres, com o seu regresso a Milão e o pleito em suspenso.

Entretanto, a deposição de Eugénio IV7 pelo Concílio Cismático de Basileia traça uma nova linha no destino de Eneas, cujo nome, mesmo laico, constava de entre os oito que representariam Itália no conclave para a eleição do novo Papa. O factor impeditivo da sua presença no acto eleitoral foi superado por uma ordem que lhe permitia ascender a subdiácono e diácono, tudo consumável em um só dia. Recusada a proposta, reserva-se ao cargo de oficial de cerimónias.

5 Cf. The Commentaries…, Book I, nota 11, p. 14. 6 Cf. The Commentaries…, Book I, nota 15, p. 16

7 Decreto de suspensão de 4 de Janeiro de 1438, consumada em 25 de Junho

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Como chefe supremo da Igreja é eleito Amadeu VIII, Duque de Saboia que, sob o nome de Felix V viajou por Ripaille, Thonon, Suíça, Alemanha, Itália, etc., junto com Eneas, seu colaborador directo. Período de grande agitação religiosa, a cristandade foi pontificada por dois Papas: Eugénio IV e o Antipapa Felix V.8

Na Alemanha ocorre a morte de Alberto II, da Áustria, Rei da Hungria e Boémia, Imperador (1437--1440)9. Frederico III sucede no trono do Sacro Império Romano em 1440, sagrado em Aix em 1442. O Papa Felix V fez-se representar no Império por uma embaixada a cargo de Eneas que, neste interim, colou-se à elite germânica para alcançar os favores do César reinante. A sua influência na corte imperial crescia a ponto de integrar o conselho privado, sem embargo do vínculo com o anti-papa.

Ano de glória o de 1442: coroado “poeta” por Frederico III e nomeado secretário da chancelaria,

8 Cujo retrato físico, moral e político extrai-se das suas memórias nos

moldes seguintes: “. rapada a longa barba que trazia durante os anos de recolhimento em Ripaille “parecia um macaco”. Avaro até à sordidez. Politicamente, beneficiou das ligações matrimoniais (casado em estado laico com a irmã de Filipe de Borgonha), das filhas com grandes casas reinantes da Europa. Diz mais: que as lutas entre a França e Inglaterra, dissenções das comunas italianas reverteram a seu favor. Em três palavras: o anti-papa que secretariou era velho, caduco e louco.

9 Genro do Imperador Segismundo (1369-1437), ascende ao trono sob forte

oposição dos húngaros, diferendo sanado por Eneas. Cf. The

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enquanto tentava desligar-se de Felix V. Estranha-se, todavia, o contraste entre os altos cargos e as precárias condições de vida que lhe ofereciam. Denunciadas por Gaspar Schlick10, chanceler do Imperador, Eneas ganha fôlego, renova-se uma vez liberto daquela atmosfera imunda, facto sugestivamente consignado no “De curialium miseria tractatus”, do seguinte modo: “...Ego magnifico hero meo Gaspari cancellario gratias ago: qui me hac ex sentina inmundiciarum detraxit ed ad lautam cius mensam deduxit...”.

Embora defensor da autoridade do Concílio sobre o papado, apoiava em paralelo a política da neutralidade, assumida pelo Imperador através dos seus representantes enviados a Basileia para o efeito. Ou seja, Eneas fazia jogo duplo.

Em 1445 vai como embaixador de Frederico III a Roma no intuito de convidar o Papa para um novo concílio e obter do Sumo Pontífice a absolvição da

10 Natural de Eger (Boémia), filho de pai alemão e mãe italiana, ao serviço

de Segismundo desde 1416. Culto, sem diploma universitário, frequentou a Universidade de Leipzig e Bolonha. Viajou pela Europa toda até a raia portuguesa. Como caso único, foi chanceler de três imperadores. Acusado de falsificar documentos com a conivência de Eneas segundo Thea Buyken. Destituído em 1449, ano em que faleceu de desgosto. Cf. ZECHEL, Arthur - Studien uber Gaspar Schlick. Prag, 1933, p. 30 e 252. A consulta dos arquivos de Eger (Praga) esclareceria alguns pontos obscuros sobre D. Pedro, o das Sete Partidas. Tal como este príncipe, Schlick participou nas lutas contra os Hussitas.

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censura em que incorreu pela defesa da sujeição do papado aos concílios. Na presença de Eugénio IV, confessa-lhe que “disse, escreveu e fez muitas coisas contra o Papa”, convicto de que lutava pela Igreja. Mais ainda: que repudiava o passado e arrependia-se.

Um olhar sobre o que para trás ficou, sobre o corpo em declínio11 sobre o efémero feminil, prenúncio de uma vida uníssona com a Igreja.

No ano de 1446 recebe ordens menores, antecâmara sacerdotal. Por morte de Eugénio IV e renúncia de Felix V a favor de Nicolau V, Piccolomini é promovido a Bispo de Trieste. Nesta qualidade competiu-lhe tratar do casamento de D. Leonor, irmã de Afonso V, com Frederico III, na corte de Afonso de Aragão, Rei de Nápoles e tio da nubente12. Cardeal em 1456. Papa de 1458/64.

Merece especial referência o Congresso de Mântua, convocado por Pio II com vista à cruzada contra os turcos, já na posse da Hungria. A derrota do poder islâmico era o grande alvo. Utópico, para os príncipes europeus que recebiam humoristicamente os

11 Ep. CXLVI do Inc. 289 da B.N. “significat amico infirmitate suas“ 12 Largamente divulgada a carta de Lopo de Almeida a D. Afonso V sobre

os pormenores do casamento. Cf. CRABBÉ, A. Rocha - A epistolografia em

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embaixadores do Papa. Mesmo sem o apoio pretendido, Pio II inicia a sua bizarra expedição. Morre em Ancona no embarque contra os inimigos da fé.

Homem de personalidade difícil, de vida desregrada, dado a Vénus e Baco, severamente julgado pela investigação alemã que a italiana tempera.

Orador eloquente, hábil na hora certa. Dúctil quanto-baste, atributos que lhe conferem lugar de eleição entre os grandes da época. No entanto, muito contestada a sua ascensão ao trono de Pedro, sempre com o assassinio à espreita13. Uma vez mais, sob compromissos vários, venceu tudo e todos, tempo exacto para clamar que esqueçam Eneas, aceitem Pio renascido das cinzas. Em traços largos alguns marcos biográficos de Eneas S. Piccolomini.

Se as notas esquemáticas, em retrospectiva, não identificam totalmente o homem visado, já a obra, mesmo com reticências ou sem elas, descobre uma leitura acurada do seu modo próprio de ser e estar. Pena leve e brilhante, poeta nato, escritor de aceitação plena, o autor-viajante revê-se na escrita pela intervenção constante, mesmo em textos de reduzida dimensão. Tais são, a título de exemplo, o já citado tratado sobre a vida

13 Ep. CLII, do Inc. 289 da B.N., dirigida a Francisco Ptolomeo “spondet

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cortesã14, que inicia pela sua pessoa (conselhos dados pelo pai mas não seguidos) pela sua imagem como elo de ligação, como denominador comum entre os enunciados. E termina desejando que “Deus te guarde varon a mi juizo prudente entre los cortesanos”.

Em Pentalogus, (1443), o autor dialoga com Frederico III, Gaspar Schlick. Nicodemus de la Scala e Silvestre Pfliger, bispo de Chiemsee, sobre a união da igreja e princípios educativos do humanismo que valida para o esteio político. Muito ao seu geito, finaliza exortando o imperador e o chanceler para a premência dos juízos formulados15 por quem na posse do saber sem limites.

Perito no estilo epistolar, é na vasta correspon-dência16 mantida com a plêiade laica e religiosa transalpina, com familiares e amigos que Eneas põe a claro o que pretende inculcar de si próprio. Como

14 Ep. CLXYI do Inc. 289 da BN. Carta escrita em 1445 de Pruch a Joanni

Eich, jurista, conselheiro do Duque Alberto da Áustria, amigo de Eneas, intitulada De curialium miseriis. Com este tratado epistolar inicia-se uma espécie literária que dá voz ao letrado para criticar os desmandos da vida cortesã. Cf. PAPARELLI, G. - ob. cit. p. 100.

15 Tu, meu sapientíssimo Rei,... Faz opções próprias de um homem forte... E vós conselheiros, persuadi-o e aconselhai-o a proceder assim...

16 A BN dispõe de dois exemplares, Inc. 288/89. O segundo em perfeito

estado de conservação, enquanto o primeiro, mutilado, rasurado, com folhas arrancadas (entre as quais a De duobus amantibus e as cartas) pelas investidas inquisitoriais. Trata-se de incunábulos impressos em Nurenberg, em 1496, sob o título Epistolae... sem qualquer critério alfabético, cronológico ou temático que se manteve na reedição de Basileia em 1528. Rudolf Wolkan, reorganizou o acervo, ordenou as cartas em três secções, a nomear: cartas de 1431/45 a) privadas; b) oficiais; cartas de 1446/50; cartas de 1451/54. Várias bibliotecas portuguesas integram este epistolário (Ajuda, Mafra, Évora, entre outras).

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amostra, as cartas e textos de apoio à “História dos dois amantes”. Quem as escreve, tem autoridade bastante para persuadir com eficácia. Conhece as pessoas e a vida para aconselhar, educar e dirigir. “Há muitos defeitos ocultos que, após os primeiros himeneus, vêm à luz do dia. Há muitos vícios (acredita em mim, meu Pedro) com as riquezas: umas (mulheres) são ébrias, outras soberbas, contumazes, adúlteras, maldizentes, nunca dão paz aos maridos”, verbera com autoridade na ep. XLV dirigida a Pedro de Noxeto, que pretendia casado com uma senhora de Florença, “de bons costumes”.

Historiador, geógrafo, analista político, mediador entre partes litigantes, o homem das sete partidas olha, vê e regista os dados colhidos durante uma longa partilha: as pessoas, as terras, casos anómalos vividos em contacto com realidades novas, imprevistas, de luta contra a adversidade. Tal como naqueles, um tronco comum sustenta do principio ao fim o desenrolar da acção: a lembrança do seu eu sempre em primeiro plano, a necessidade em se exibir e a apologia dos sucessos obtidos.

No cômputo global da actividade literária17 apontamos os Commentarii...18 como a obra-síntese de

17 Que abarca todos os géneros desde a comédia (Chrysis), poesia amorosa

(Cinthia), satirica, epigramática, encomiástica, dirigida a G. Schlick “vera

hec nobilitas....” e a Mariano Socini, entre muitos.

18 Já por várias vezes citado em tradução inglesa por F. Alden Gragg, sob o

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várias etapas da sua vida, expressas subjectivamente, com reflexos da versatilidade que o caracteriza. Obra extensa, de temática vária sobre os países europeus, desta feita com elementos novos, que colmatam outras de carácter histórico-geográficas nomeadamente a Europa, Ásia, Historia Boémica, da sua lavra. Retratos físicos e morais de personalidades em foco aliados à dinâmica da sua actividade junto das cortes que representou, trazem até nós o quadro vivo da Europa renascentista.. O extenso labor em causa espraia-se por 12/1319 livros, com relevância para o primeiro, cuja unidade se mantém constante até ao fim, em dissonância com os livros seguintes que sugerem antes uma forma de apontamentos registados diariamente.

Naquele momento inicial Eneas retrata-se do nascimento à infância, as etapas percorridas até à adolescência, aos mestres que o formaram, Siena, Europa, ou seja, do começo ao ápice como entidade máxima no seio da cristandade. Em termos metodológicos sugere até uma espécie de prefácio para o que iria seguir-se.

19 Não constante das edições de 1484, 1489 e 1614 a autoria do livro 13

suscitou dúvidas, agravadas pela leitura do último parágrafo do livro 12, “o último finalizado a 31 de Dezembro de 1463”, lê-se. Investigações posteriores apoiadas pelo confronto entre vários manuscritos do livro 13 não deixam dúvidas quanto à sua autenticidade. O livro em referência, aborda a última etapa de uma vida plena de vivências, concentrada na cruzada contra os turcos. De salientar a menção do condestável D. Pedro “da real família de Portugal” na luta pelo reino da Catalunha, bem assim o insucesso da armada que D. Afonso V levou a Tânger. Cf. The

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Não será despropositado abrir um parêntesis para descortinar o silêncio que durante um século pesou sobre os comentários. Entregues em 1463 pelo Papa a Joanni Gobellinus, clérigo alemão, para serem copiados, passou deste para Gianantonio Campano que devia proceder à sua revisão. Por morte de Pio II um dos treslados manteve-se entre os familiares20.

Francesco B. Piccolomini, arcebispo de Siena, neto-sobrinho de Eneas, sem outro intuito que a defesa do ilustre ascendente que os ventos da contra reforma teimavam em denegrir, optou pela sua publicação em 1484, dando a autoria ao citado copista, mesmo com pleno conhecimento do real autor. O erro repetiu-se na edição de 1489 em Roma e na de Frankfurt em 1614.

Para a incorrecta fixação autoral não será alheio o facto de estarmos frente a um discurso redigido, curiosamente, na terceira pessoa que pressupõe ou um possível refúgio no anonimato e como tal uma expansão sem constrangimentos, ou a imitação de modelos clássicos em casos paralelos.

A abertura dos arquivos do Vaticano por Leão XIII permitiu ao historiador L. Pastor21 a localização do Codex

20 Por razões também não esclarecidas a obra não foi publicada em 1465,

embora pronta para o efeito.

21 Em 1883 J. Cunnoni, bibliotecário, publicou uma miscelânea dos

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Reginensis, n.º 199522, tido como original, sobre o qual assenta a edição que F. Cragg traduziu em inglês com menção em itálico de todas as anomalias e deturpações constantes das edições anteriores e notas encimadas pelas letras do alfabeto para sinalizar vocábulos divergentes do referido manuscrito 199523. Note-se que, Francesco B. Piccolomini não só omitiu como inseriu trechos com incidência sobre os passos do conclave reunido em Agosto de 1458 para eleger24 o Papa por morte de Nicolau V, entre muitos.

A análise do comportamento humano, no conjunto de uma vasta mole de personagens que escalpeliza na vivência dos factos. O amor como uma constante; a mulher vista de revés pelo fascínio exercido sobre certos homens,25 festas religiosas (Corpus Christi), o incesto, causa de graves dissenções familiares, a alienação humana face ao poder e lutas fratricidas motivam sociólogos, antropólogos, historiadores, psiquiatras e outros tais, para

22 Na sequência do acesso aos arquivos do Vaticano, abertos aos

investigadores, por Leão XIII.

23 Tomada a edição de Frankfurt (1614) como termo de comparação. 24 Cf. The Commentaries... Book I, p. 93 ss.

25 Por muito significativo, o caso de Afonso de Aragão acorrentado de paixão

por Lucrécia di Alano, de ascendência nobre, mas pobre (se é que pode haver nobreza na pobreza, diz). Relata, talvez com exagero, o estado de êxtase que se apossava do rei na sua presença. E lamenta que um grande rei, nobre entre os maiores de Espanha, que conquistou e dominou as Baleares, Corsega, Sardenha e Sicilia, subjugou muitas províncias de Itália derrotando poderosos generais, “tornou-se como qualquer cativo de guerra, escravo de uma mulher perversa, Cf. The Commentaries... Book I, p. 82/83.

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estruturas que, mesmo vistas à luz de critérios e mecanismos novos, põem a claro a lei do mais forte. Não raro, do verbo agressivo, cáustico e pessimista emerge o poeta na descrição maravilhosa do que a natureza à sua volta oferecia. Na verdade, o ritmo poético de certas passagens cheias de beleza ameniza o clima nefasto de crimes, pouco ou nada hediondos, face à dimensão de velhos ódios passados de geração em geração.

Homem do seu tempo, atento a magias, presságios e poções (não seguidas), Eneas é a imagem de duas épocas: a medieval e a do renascimento, entre as quais balançava.

A notável riqueza informativa veiculada pelos comentários oferecem, como corolário, quatro temas principais: a Sanção Pragmática de Bruges, o intrincado clima político italiano, relações com o Sacro Império Romano e a batalha contra os turcos.

A directiva assumida no âmago da Pragmática constitui uma das palmas de ouro do seu pontificado26 do que muito se ufana. Ultrapassada esta questão, outra adjacente, de maior impacto: o da sucessão ao trono de Nápoles por morte de Afonso de Aragão, para o qual Luís XI pretendia a casa de Anjou, sob promessa

26 Conforme se lê no livro VI, dos comentários p. 448/63: “os inúmeros

emissários enviados a França pela Sé Apostólica durante a vida de Eugénio, Nicolau e Calixto, para obter a anulação do decreto que o Rei de França promulgara e que deu lugar a esta questão não tiveram sucesso. Foi há 24 anos atrás, no entanto Pio II apagou-a de todo”.

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garantida por Pio II que, na hora da verdade27 apoiou Ferrante, com a protecção de Francisco Sforza, cujo poder era vital para a cruzada contra os infiéis. Mais ainda: o perigo que uma potência estrangeira, na posse de um grande estado, poderia representar para a Itália.

Acresce que António Piccolomini, sobrinho do papa era casado com a filha ilegítima de Sforza que o tornou duque de Sessa e Amalfi. Por sua vez a sobrinha Andrea beneficia de largas mercês.

Entretanto graves lutas intestinas minavam a Itália. Partidários do rei da França empunham armas contra os generais de Sforza e milícias pontifícias. Vive-se um clima de guerra implacável28 que acaba a favor de Ferrante através de acordos diplomáticos.

Logo no escopo inicial, Pio II manteve uma longa batalha com Segismondo Malatesta di Rimini29 na posse do património da igreja. O sucesso do exército papal garantiu a vitória e a consumação dos propósitos defendidos pelo pontífice.

27 Cf. The Commentaries.... Book III, p. 359. Curiosa a forma ambígua como

Pio II torneou a questão perante os embaixadores de Luis XI.

28 Cf. PAPARELLI, G. - ob. cit. p. 240/48.

29 O livro X dos comentarios, p. 647-63 oferece os primórdios desta família,

recheada de incestos lembrados por todos, focados por Dante (Inferno Canto V) com Francesca di Rimini no topo. “Uma nobre família que produziu tantos monstros”, lamenta.

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Não menos intensos os esforços para sanar focos de conflito entre as comunas italianas.

Veneza, o mais poderoso estado por terra ou mar, cuja história, muito detalhada,30 incide sobre o poder económico que relega qualquer valor moral ou ético. Forte bastante para se arrogar senhora de Itália e até de um império. Contudo, remata, é decisiva para a luta contra a poderosa força dos turcos.

Inimiga tradicional de Siena, Florença normalmente governada por Cozimo de Medicis, rei sem coroa nem ceptro, mais rico do que Croesus, odiado pelo povo, merece a sua especial atenção. Referências nada abonatórias alertam para o perigo que representa.

Siena defende-se do pendor aristocrático de Pio versus governo popular que lhe concede, unicamente, direitos políticos aos seus familiares, sem quaisquer hipóteses para a nobreza; esta, já desencantada, dava-se conta dos perigos à vista31.

Poderá seguramente afirmar-se que a política de Pio II visava o alcance da paz no seu país, garante seguro para combater o inimigo.

30 Cf. The Commentaries.... Book III, p. 232/40/49 31 Cf. The Commentaries.... Book VIII, p. 563

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Abalado por grandes conflitos, o Sacro Império Romano Germânico, com Frederico III por imperador, foi teatro de dissídios vários.

Em primeiríssimo plano Dieter, arcebispo de Mainz, opositor à autoridade imperial e partidário de uma igreja autónoma, independente de Roma – causa já remota – acusada de explorar a Alemanha, segundo se exprime. A recusa em pagar à Cúria as fabulosas verbas de que era devedor, mereceu-lhe a excomunhão32. Dieter propunha mesmo uma pragmática para o seu país, ao reclamar tanto a destituição do imperador “que nos governa cobardemente” como a expulsão da Sé Apostólica. “Assim livres do poder temporal não mais seremos escravizados espiritualmente”, proclamava. Uma reivindicação que mais se assemelha a um apelo nacionalista. Boémia e Hungria insurgiam-se na mesma linha com Georg Podiebrad tido como herético e Matthias Corvinus cujos clamores incidiam sobre os avanços dos turcos já na posse da Bósnia. Os diferendos daquela radicam décadas atrás. Já em anos anteriores, Eneas lidara com esta questão,33 muito versada na história da Boémia. O problema persistiu sem que Pios II o tivesse ultrapassado na totalidade.

32 Cf. The Commentaries.... Book V, p. 368 e VI, p. 415/16. 33 Cf. The Commentaries.... Book I, p. 56 e Book X, p. 621.

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Já outra foi a postura com o lider húngaro, isento de heresia, antes um aliado imprescindível.

O cenário dramático em que desfilam os membros da casa dos Habsburg – Frederico III, Luis da Baviera, Alberto, Margrave de Brandenburg, príncipes e duques, preenche confusamente capítulos vários desprovidos de qualquer estrutura sequencial. Assediado por todos os meios para pôr fim aos tumultos, Pio II logrou obter, através dos agentes apostólicos, a paz desejada34.

Assim chegamos ao topo da aspiração máxima do autor. Expostas resumidamente as linhas mestras do valioso testemunho legado por Pio II, atingimos o tema central dos comentários: a derrota dos inimigos da cristandade que só uma acção coesa poderia alcançar. Para tal, o Congresso de Mântua que, antecedido pela audição dos mais diversos sectores sociais, visava convocar possíveis aliados numa causa que a todos dizia respeito. A despeito da total carência de unidade na elaboração do texto (dos comentários) atrás referida, torna-se claro que o tópico da guerra santa aflora em várias abordagens, poucas delas, isentas de tal matéria. A parte fragmentária do XIII recai quase totalmente no lema da cruzada. Desde logo, o primeiro período atesta que “Pio mesmo agastado pela idade e doença, não

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descura qualquer actividade, antes planeia grandes e pesadas tarefas para declarar a guerra aos turcos”, palavras de ordem com uma tónica obsessiva: as pretensões de Mahomet para dominar a Europa. A interpelação dos cardeais, reunidos desde 13 de Outubro de 1458 é clara: “os príncipes calmamente nas suas casas protestam contra si e contra nós... todos sabem que pretende defender a fé. É o suficiente para a sua honra”. Mas Pio II mantém-se firme e imperturbável. Afirma que não põe opiniões humanas acima da salvação, pretendia o favor de Deus não da maioria.

O insucesso em Mântua, visível na posição do elenco cardinalício foi decisivo. Todavia o protesto não foi unânime, no exterior. Houve aplausos à voz de Eneas. E notícia de apoios em dinheiro e armamentos oferecidos pelas diversas cidades italianas e europeias em meios humanos e materiais. Segue-se um interregno atribuído ao problema da Sicília, região largamente tratada sob o ponto de vista histórico, político e geográfico35.

A incursão turca nos Balcans dava lugar a urgentes apelos da Grécia, Albânia, Hungria. Em 1462, Pio II anuncia a sua intenção de integrar pessoalmente a cruzada junto com Filipe de Borgonha. Mas também este, negou-se à última hora. O Papa não desiste. Avança sem

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hesitar mesmo com escassos meios ao seu dispôr. Cheio de febre, até ao último suspiro a 12 de Agosto de 1464, no momento da partida, em Ancona.

Como classificar os comentários? Uma autobiografia, um livro de memórias ou um diário, são perguntas com respostas indefinidas. Sem o tom confessional de exemplos oferecidos pela literatura, os comentários retratam, todavia, aspectos marcantes do homem que os escreve com sinceridade. Não sendo nítidas as fronteiras entre aquelas, torna-se difícil destrinçá-las. Tão-pouco os textos em causa inserem-se no conceito de história, enquanto género científico. De resto, o próprio autor é claro quando secunda que não se trata de história, uma vez que fixa acontecimentos recentes mas registo de factos memoráveis que tiveram lugar no seu tempo, como sujeito activo e passivo. Atento à lei da história pelo respeito à verdade36. Seguem-se considerações várias sobre história/historiadores, cuja análise ultrapassa o âmbito destas linhas.

A vaidade incontrolável, as alternâncias temperamentais, a instância em se exaltar, o timbre único posto na eloquência que trazia presos os auditores por longas horas descobrem vivências antagónicas de uma espiritualidade que se quer humilde, digamos ascética,

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para uma perfeita união com Deus. Aliás, as descrições de efemérides, a magnificência posta na trasladação da cabeça de Santo André37, são bem um exemplo muito significativo da sua ligação com o mundo dos homens que o transportavam em uma cadeira de ouro.

Humanista, olhos-postos na arqueologia, mesmo à vista em muitos capítulos dos seus treze livros; na convivência intima com os grandes clássicos gregos e latinos. No ideário político e educativo. Humanista que os humanistas italianos incensaram como o bem supremo para os seus ideais. Pio II, porém, negou-se a assumi-los, para total decepção dos intelectuais, amigos de outros tempos, ignorados no complexo sistema da Cúria, à excepção de Flávio Biondo38.

Nesta breve síntese tentamos apresentar os pontos cardeais de uma figura-chave de quatrocentos. Se atingimos o objectivo, a despeito das limitações, cabe ao leitor dizê-lo.

Para terminar, expresso os meus agradecimentos aos que de algum modo colaboraram nesta edição. Aos Senhores Professores Doutores J. V. de Pina Martins pelo apoio que de longa data me vem dando, J. Veríssimo

37 Cf. The Commentaries.... Book VIII, p. 523/42. 38 Cf. The Commentaries.... Book XI, p. 766

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Serrão pelo muito que lhe devo, a Arnaldo do Espirito Santo pela tradução da novela. Aos Senhores Drs. Fernando Campos, P.es Henrique Rema e Ascenso Pascoal pelas traduções das cartas e textos de apoio.

Uma palavra de apreço ao Serviço de Empréstimo Inter-bibliotecas da Biblioteca Nacional na pessoa da Dr.ª Elisa Soares. Não menos valiosa a prestação de serviços dos Reservados e da Referência.

Uma palavra amiga para a Dr.ª Maria Leonor Pinto, zelosa bibliotecária da Academia das Ciências de Lisboa e para a Sr.ª D. Zélia Castro pelo processamento textual e revisão de provas.

A todos muito obrigada.

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Estrutura da novela

A metodologia que se perspectiva para a análise estrutural da novela é simples: dividimo-la em três momentos autónomos a despeito da presença do narrador que, sendo marcante na fase inicial, surge no entanto, amiúde intercalado nos outros. Nesse primeiro momento narrativo estamos face às circunstâncias do espaço e às personagens principais que o enquadram: Siena como palco de acção em que Lucrécia, Euríalo, Menelau e Sósias se movem.

Numa tentativa para analisar a par e passo a construção literária, diremos que, mercê de trabalho lento e minucioso, o autor valoriza, em pormenor, uma embaixada feminina1 de boas vindas, com o requinte digno do cortejo imperial que entrava na cidade. O imperador Segismundo2 incandeado pela presença luminosa de quatro belas damas, mais celestiais que humanas, refreou o séquito para as sentir mais perto e

1 De referir que nenhuma das crónicas coevas, algumas exaustivas sobre a

visita imperial, regista esta embaixada, que parece antes tratar-se de um encaixe literário. Cf. ZANNONI, Giovani - Per la Storia di due amanti, di E. Silvio Piccolomini. In Atti della R. Accad. dei Lincei. Roma, 1890, p. 121.

2 Segismundo entrou em Siena a 12 de Julho de 1432. Cf. ZECHEL A. – ob.

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gozar o fascínio inexcedível de uma delas3. Estampa rara, modelo de elite, Lucrécia aliava aos dotes físicos uma postura etérea numa simbiose perfeita da natureza. Posta em destaque sob o brilho de gemas e fios de ouro, a heroína da narrativa é retratada com toda a mestria de um pintor visualista de rostos humanos4: “cabelos compridos como fios de ouro […] a fronte alta e de largura bem proporcionada […] sobrancelhas arqueadas […] olhos brilhantes com tanto esplendor […] como se fosse o sol”. Nada havia de mais suave do que a sua conversação. Ouvia-se da sua boca ditos galantes e humorísticos.

Ao realçar a silhueta de Lucrécia, Eneas como que prepara a sua fixação pelos artistas epocais. Uma pintura de Matteo di Giovanni5, contemporâneo de Piccolomini, integrada na colecção do Barão Sulzbach, Paris, destaca uma jovem, possivelmente, a loura Lucrécia.

3 Atente-se que a caracterização de Segismundo reporta-se à sua capacidade para a conquista amorosa. O mesmo se lê quanto a Mariano Sozini “e por que tu muitas vezes foste amador e ainda agora não careces de incentivo”. Comentários idênticos dirige a G. Schlick “contam os que te conheceram como amavas profundamente… ninguém mais galante do que tu”. Não menos o faz, referindo-se a si próprio.

4 BURCK, Gerhart - Selbstdarstellung und Personenbildnis bei E. S. Piccolomini, Basel/Stuttgart, 1956, p. 69 e ss. A p. 111 lê-se um curioso retrato de Segismundo “…barba prolixa et copiosa, vasto animo, multivolus, inconstans tamen, sermone facetus, vini cupidus, in Venerem ardedens, mille adulteriis criminosus, pronus ad iram, facilis ad veniam, nullius thesauri custus, prodigus dispensator”.

5 FRUGONI, Arsenio - Enea Silvio Piccolomini e l’avventura senese di Gaspare Schlic, in Rinascita, n.º 18, 1941, p. 234.

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Atente-se, no entanto, as semelhanças entre a donzela que o príncipe da Áustria queria conquistar (Texto 1) e a personagem da novela, ironicamente nomeada por Lucrécia que, na Antiguidade Clássica, é paradigma da castidade6. Mulher casada, bela e rica, a linha de força do autor centra-se na caracterização desta personagem.

Figura única na literatura italiana de quatrocentos, identificada com valores em voga no Renascimento, expostos no silêncio de profunda auto-análise. Ao ver-se presa de amor por Euríalo, fala em solilóquio: que já nada a obriga a aceitar o marido, cuja presença lhe causa fastio. Entra num período de alternância entre o melhor e o pior, entre a razão e a paixão que a subjuga. Cidadã egrégia e nobre eram valores obsoletos: eu assim o quero, estava tudo dito, revela a sua convicção irreversível, que nada justifica o recuo, numa posição incontestável do individualismo renascentista. A família, a mãe ou a pátria esvaziam-se de significado face a um novo sol que lhe iluminava a alma. Vencida a fase de reflexão, diz que “mais vale não ter marido do que possuir um mau. A pátria é onde apetece viver”. Di-lo sem quaisquer inibições, chamando a si, com firmeza, a responsabilidade dos seu actos. Cônscia do seu valor para vencer obstáculos, recusa submeter-se aos cânones morais ou religiosos. Nunca alguma vez se ouviu da sua boca um

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apelo a Deus, mesmo em momentos de maior angústia. O que pretende é que “os deuses secundem os destinos e dêem bom fim ao nosso amor”. Apela para deuses e não Deus7. Mulher “de ânimo varonil”, trilha uma via sinuosa por opção própria, não pela força do destino. Curiosamente, as únicas vezes em que a presença divina é chamada, parte dos homens. Sósias, quando esgotados todos os argumentos, diz a Lucrécia: “…e embora o escondas de todas as coisas, não o podes ocultar a Deus que tudo vê”. Outrotanto, Euríalo, perante o regresso inesperado de Menelau, colocado em posição de extremo perigo, pede a Deus8 que o livre ileso: “Ó Deus, tira-me daqui”. Pede que lhe perdoe a juventude “para que faça penitência pelos meus delitos”.

Segue-se Euríalo9, o protagonista masculino que nos surge em toda a sua majestade e beleza ímpar10; portador de uma linhagem antiquíssima da “ex familia lazana provincia franconie” integrou o cortejo imperial com quarenta cavalos11. A 19 de Julho de 1432, a Senhoria de Siena oferecia uma recepção ao Imperador, com a

7 Eneas concede à mulher adúltera unicamente o apelo a “deuses”

8 A Euríalo, homem adúltero em pecado de cobiça da mulher do próximo,

Eneas não rejeita a protecção de Deus.

9 Coube a F. Hain - Collectio Monumentorum... Brunswig, 1724, p. 406 e

seguintes, reconhecer em Euríalo, com provas irrefutáveis, pela primeira vez, a pessoa de Gaspar Schlick, Chanceler do Imperador.

10 “Nature bonitas singularis” lê-se em Hartman Schedel - Liber Chronicarum..., Nuremberg, 1496. Chanceler de três imperadores, caso único na história do império romano.

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presença de 200 senhoras; nesse dia os dois personagens viram-se pela primeira vez12.

Menelau, como quê entre parênteses, figura apagada, riquíssimo mas indigno de usufruir uma bela mulher. Eneas fá-lo descendente dos Camilos13, talvez sarcasticamente. Se o artifício literário é um veículo da intriga novelesca de Eneas, não menos o é a ironia, à sombra da qual parece traçado o perfil de Menelau. De admitir que o marido de Lucrécia fosse membro de classes sociais escaladas a lugares-chave por vias travessas. Meras hipóteses, pese embora nas cartas e memórias, uma profunda aversão ou incompatibilidade visceral com a burguesia, a favor da qual a nobreza perdeu o controle político de Siena. Tem as repúblicas como anátemas. “Nas repúblicas não se respeita a honra…, mas o lucro”. Nem a nobreza pode viver ligada ao comércio. “Debaixo de um governo popular nada é sagrado ou santo”.

Entra Sósias, velho criado alemão, uma imitação à maneira de Séneca e extraído da sua obra “Hippolytus”, segundo Josef Devay14, a quem se deve, um cotejo entre

12 Cf. ZANNONI, G. - ob. cit., p. 122.

13 Família que em tempos antigos teria existido em Siena. Cf. ZANNONI,

G. - ob. cit., p. 118. Poderá também admitir-se uma referência irónica a M. Furio Camilo que em 387 serviu de medianeiro para a inclusão de um consul plebeu no Senado Romano. Cf. MONTENEGRO, Artur. — A conquista do direito na sociedade romana. Coimbra, 1934, p. 57.

14 Cf. DEVAY, Josef - Aeneas Sylvius... in der novelle “Euryalus und Lucretia“…, Budapest, 1903, p. 492.

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a composição de Eneas e os autores clássicos seus modelos e guias de quem se serve até em frases inteiras.

Aquele estudioso, gaba-se de ser o primeiro a apresentar uma investigação do género, chegando mesmo a acusar Eneas de plágio: “Ich will alle plagiate zusammenstellen und...”. No entanto, o recurso às fontes antigas nem sempre indicia plágio. Mantidas como pano de fundo, vão-se distanciando à medida que a intriga evolui. Aliás, a noção de propriedade literária e direitos de autor não existia entre os romanos,15 prática que, embora de tempos imemoriais, persistia ainda na época em apreço. Eneas serve-se e cita em grande escala os velhos nomes, desde Ovídio, Séneca, Virgílio, Estácio, Juvenal, Propércio, Horácio, Plauto, Terêncio, Cícero, cuja transcrição literária integral nunca resvalou para uma imitação servil. À seiva derramada pela fonte, o autor recorrente dá-lhe uma feição em espaço adequado, esvazia de conteúdo o modelo original, desta feita já com identidade e cariz próprio. Muitos exemplos poderia citar-se. Haja em vista o príncipe dos poetas lusos que, ao dar nova côr à tela virgiliana, imortalizou a gesta marítima portuguesa.

15 Cf. JORDÃO, Levy Maria – A propriedade literária não existia entre os romanos. In Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, p. II, N. S., 2.ª ed., p. 1-83.

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Segue-se a fase epistolar como único meio de comunicação entre os dois apaixonados, na senda ardente pela chama do amor. Em claro apelo à extroversão, o esquema utilizado foge aos solilóquios bocacianos, contemplações líricas, diálogos e poemas amorosos tradicionais e oferece uma leitura, quase arte-nova. Arte pela ligeireza no vaivém das missivas redigidas sob contenção estilística medida e pesada com rigor: declaração de amor, rejeição imediata e magoada de Lucrécia, réplica do amante com incidência nos valores que mais aprecia na mulher, tais são o pudor e a honra. Resposta breve em sintonia com alguém já minado interiormente. Quando Lucrécia confessa que o ama, tinha chegado o momento crucial para Eurialo investir em força e derrubar uma torre que parecia de aço por fora. Dissemos arte-nova. Nova por surgir pela primeira vez no contexto literário do séc. XV. Uma viagem pela novelística epocal não deixa dúvidas quanto à afirmação produzida. O trabalho de Piccolomini influenciou largamente a literatura peninsular, mais premente a castelhana16 e, em certa medida, a portuguesa.

A fase em estudo inicia-se por uma mensageira tão ágil como arguta para quebrar grilhões às asas do amor.

16 Cf MENENDEZ Y PELAYO, M. – Origenes de la novella, Madrid, 1962, 2.ª

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Entra em cena por uma só vez de forma tão expressiva que mais não foi precisa.

Porém, neste momento o autor revela-se em toda a sua dimensão como fino observador e conhecedor do binómio homem/mulher. Como poderoso meio de análise afectiva estamos face a um testemunho que, mesmo a uma distância de quinhentos anos, mantém viva uma impressionante actualidade. Lê-se, aliás, em D. Duarte no seu Leal Conselheiro que a “natureza humana é eterna”17. “A mulher, quando começa a apaixonar-se, só com a morte pode chegar ao fim: as mulheres não amam, enlouquecem de amor”, escreve Lucrécia que dá o corpo ao sonho de ser eternamente amada. Tal como uma jovem de todos os tempos e espaços impõe a Euríalo uma aliança que nem a morte ou mesmo o além iria destruir: “não começo a ser tua, senão para ser perpetuamente tua”, afirma com amor.

17 Cf. MARTINS, Mário – A amizade e o amor conjugal no “Leal Conselheiro“, Lisboa, 1979.

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Não menos intemporal é a carta de Euríalo para rebater os obstáculos postos pela amante para o rejeitar. Que ela era pura e honesta. Que nunca a abandonaria. Que ficava a cargo dos negócios na Toscana (a que Siena pertencia). Conduta que seria a mesma de qualquer homem do século vinte e um na conquista da mulher prementemente desejada. Mas, Euríalo foi longe demais: “para mim não haverá pátria alguma senão onde tu estejas”. Que não era estrangeiro, não senhor, “sou mais cidadão do que alguém que aqui nasce”, e assim por diante.

O terceiro momento funde-se com o diálogo activo dos corpos que, mesmo em processo descritivo, conduz o leitor a uma sucessão de factos em estilo vivo, dinâmico e próprio de um estado febril da paixão. A descrição que seguimos, longe de ser um ornamento do discurso, entra na economia geral da narrativa. O pormenor das roupas, móveis, as minúcias dos aposentos, a desnuda artística de Lucrécia, as reacções de Euríalo, trazem até nós o mundo interior dos actores18.

Desde logo, mesmo no primeiro instante do encontro, Lucrécia já em entrega total de mulher apaixonada e ávida de amor, afiança ao amante que doravante jamais alguém a possuirá, nem mesmo o marido “que me foi

18 O leitor interessado encontra um estudo comparativo entre a narração e a descrição em BARTHES, Roland et alii – A análise estrutural da narrativa. Petrópolis, 1971, p. 262.

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dado contra a minha vontade e a quem a minha alma nunca deu assentimento”.

Face ao aviso de que o marido estava a chegar, Piccolomini coloca-nos em presença de casos similares com que Boccacio19 nos delicia, desta feita em processo criativo distinto. Entra em cena a inexcedível capacidade feminina para a dissimulação. Sob o disfarce de uma aparente calma, fingindo que procurava o documento que Menelau precisava, Lucrécia deita à rua uma caixa de jóias valiosas. Suplica ao marido uma intervenção rápida para salvar o seu precioso tesouro e diz: “Oh! Marido, vai lá para não sofrermos alguma perda. A caixa caiu da janela. Vai depressa, na vá desaparecerem as jóias e os papeis...” Entretanto transfere o amante para lugar mais seguro.

Ainda nesta mesma sequência, há que assinalar episódios de circunstância. Tal é a corte do húngaro Pâcoro a Lucrécia. Pâcoro foi cauteloso, tomou todos os cuidados mas os ardis para a conquistar foram descobertos. E Eneas julga: “quem dirá que todas as coisas não são governadas pela fortuna? A vida comum dos mortais depende dos favores da fortuna. Isto na sequência dos livros que Mariano Sozini lhe enviou sobre os Decretales20 com reserva para uma parte dedicada ao

19 BOCCACIO, G. – De qualquer maneira. In Históricas eróticas de Boccacio. Lisboa, 1960, p. 41-44.

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factor sorte “de Sortibus” que, analisado sob o ponto de vista histórico e político, foca a total incapacidade do homem face às viragens incontroláveis da roda do destino, sinónimo da “precaridade da vida, insegurança existencial”.

Outrossim diremos das queixas do pessoal doméstico contra Menelau, que os mantinha quase à fome. Homem avaro e mesquinho, a passagem traduzida será uma diatribe contra a corte de Frederico III, onde viveu como um escravo21.

Não menos de exaltar o discurso directo utilizado como meio de ligação entre os intervenientes, Euríalo versus Pândalo ou novos actores que animaram a cena, tais foram Niso, Acates e Polimo, Baccaro.

Entramos já na fase final: a retirada de Euríalo; a doença22 já a caminho de Roma para a coroação do Imperador que o armou cavaleiro; o regresso a Siena23 com demora de três dias, limitado a troca de cartas; a doença e morte de Lucrécia; o abatimento psicológico de Euríalo; o seu casamento com uma donzela castíssima24.

21 Sem ordenado fixo, comia pão negro e carne estragada, vinho ácido e

cerveja amarga, comia e dormia junto com outros serventuários em uma sala, atulhados como animais em estábulo. Cf. PAPARELLI, G. - ob. cit., p. 90.

22 Cf. ZECHEL, A. - ob. cit., p. 128/129. 23 Idem, p. 131.

24 Euríalo casava em Abril de 1437 com a princesa Agnès, parente do

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Não será demais frisar que a enorme sobreposição de factos, o tempo e o modo, o tipo de discurso oral neste terceiro momento da novela, diferem da rigorosa unidade estrutural das primeiras duas fases, sem quebra visível do fio condutor.

Mas a nota mais saliente vai para a entrada inesperada do autor em direcção a Mariano Sozini, a quem expõe os seus conceitos sobre a alienação humana, generalizada sem excepções, em luta pelo prestígio social. Tal como no início “…Siena de onde tu e eu somos naturais”, Eneas termina a narrativa em contacto com o familiar e amigo: “Aqui tens, meu caríssimo Mariano o desfecho de um amor não fictício nem feliz”.

3 - Palácio Picolomini 8 - Palácio Picolomini

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Considerações gerais

A análise desta obra-casulo, tecida em subtil ironia, carece de alguma reflexão. Uma leitura superficial ou pouco atenta pode levar a uma falsa interpretação da história de amor que, a despeito de algumas passagens lascivas, encerra uma mensagem “seguida quase por ninguém”, lamenta o autor (Texto III). Mas que doutrina moral é esta que Eneas pretendia transmitir com a sua frase “tomem dos outros a experiência que se lhes tornará útil”, seguida de juízos sobre o amor?

Uma incursão cuidada, talvez delucide a questão: logo no primeiro momento, Lucrécia, como pólo central da narrativa, socorre-se de Sósias, cuja dilação em agir, foi bastante para pedir ajuda ao irmão bastardo. Quando esta tentativa falha, engendra-se o estratagema de troca de cartas e presentes, pelas traseiras da casa. Sósias dá conta do ardil. Assustado com o que observava, dispõe-se a entrar no jogo e colaborar.

Obstruída a janela permissiva de troca de mensagens, impunha-se agir. E Eneas disfere: “como os nossos concidadãos são sagazes em conjecturas e atreitos às suspeitas”. Menelau seguia o caminho dos maridos cautelosos para quem “a desgraça evita-se com uma boa vigilância”. Cortadas todas as hipóteses, os amantes não

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desarmam. O tempo corria veloz. Alienar alguém que fosse íntimo da casa foi o passo seguinte. Pândalo1, sobrinho de Menelau por afinidade e, como tal, parente de Lucrécia, cuja família Euríalo define como “nobres entre os primeiros da cidade, ricos, poderosos, amados”, seria o elo indicado. Pândalo deixa-se inebriar pela imagem de conde palatino que, em mercê, lhe prometiam a troco de pouco: conservar a esposa a Menalau a quem não fará tanto mal “uma noite concedida a mim”, esclarece Euríalo. Para tanto bastava só desviar as atenções de Agaménnon, irmão de Menelau que não devia perder a cunhada de vista. Este defeito de pôr a mulher à guarda era bem conhecido entre os italianos, a quem Eneas adverte que “guardar uma mulher contra a sua vontade é como vigiar um rebanho de pulgas ao sol escaldante”; e pergunta: “quem guarda os guardas, se é por esses que elas começam”. Descrita uma noite de amor, ficamos a saber que durante muitos dias não houve 1 A 5 de Outubro de 1433, Segismundo agraciou Pietro de Pecci, Jacomo di

Guidini e Pietro di Michieli, o primeiro com o título de cavaleiro e conde, os segundos condes, bem como os seus descendentes, segundo a versão alemã (Cf. ZECHEL, A. - ob. cit., p. 212). Porém, G. ZANNONI. - ob. cit., p. 117, cita mais dois nomes, Salvatore di G. Lesi e Cristofano di P. Piccinini e afirma que Pândalo “in premio del suo lenocinio é nominato conde palatino”, mas nem o prova documentalmente nem informa qual dos três ou cinco é Pândalo. É certo que o próprio Eneas diz que Pândalo “adquiriu o título de conde palatino por paga de um lenocínio. E os seus descendentes hão-de exibir a insígnia dourada da nobreza”. E agora pergunta-se: Pândalo é personagem real, histórica, tal como o são Euríalo e Lucrécia? Ou uma criação de Eneas a partir do facto histórico-real das mercês imperiais, com o fim de expor ou atingir os que alcançam títulos de nobreza a troco de suborno? É pergunta com resposta em aberto.

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possibilidade de se verem. A vigilância crescia dia a dia “mas o amor tudo venceu e por fim achou um meio de se encontrarem”.

“Animale indomabile” não é pela repressão que se domina a mulher que, “se ela de si mesmo não for casta, é inútil o marido tentar pôr junto dela quem a guarde”, insiste. Problema complexo, mas julgo patente na obra. Pedagogo e didacta, Eneas imprime uma função catártica ao seu discurso, pelo choque de algumas passagens lascivas entre uma mulher casada e um homem solteiro, alheios aos perigos que nada logrou refrear. Uma leitura possível entre algumas possíveis. Discurso subtil sobre a alquimia da redoma-fechada/adultério, trazido à ribalta pela primeira vez na literatura renascentista.

Nada ensombra a veracidade do caso de amor acontecido em Siena em 1432/33.”Um maravilhoso amor quase inacreditável”. Tão inacreditável quanto a fina tessitura da composição para a qual “não usarei de ficção poética” afirma o poeta. No entanto...onde começa o real? Onde se fica o imaginário?

Sabe-se, sem quaisquer dúvidas, que Euríalo era Gaspar Schlick. Mas afinal quem era Lucrécia, pergunta--se. Sobre a mesma visualizamos a casa (situada entre o palácio dos Tolomei, em que morava Euríalo, e a

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residência oficial do imperador), a habitação da mãe, a existência de um irmão bastardo, a presença de um sobrinho.

Com base em argumentos frágeis, Zannoni pretende tratar-se de Nicole Venturi, mulher de Mariano Sozini, o mesmo que solicitou a composição da narrativa (Carta 1). Aquele estudioso apoia-se na estranha carta dirigida a G. Schlick (Carta 2), que lamenta não ter merecido a devida atenção da crítica. Com efeito, apresentar aquele ilustre jurisconsulto ao possível amante da mulher, como um ser sobredotado comparável aos grandes vultos da Antiguidade e colocado a par com os Deuses do Olimpo, toca a raia da ironia ou sarcasmo e nega os laços de afecto e amizade que uniam Eneas ao seu mestre e protector. Pensamos que os exageros da caracterização, ditados em momentos de euforia, seriam consequência de distúrbios emocionais: “…Bacho magisque veneri parebo vinum me aliter iuvat me oblectat me beat hoc loquor suavis mihi erit usque ad mortem”, escreve a Joani Freund2.

Ocorre afirmar que o hermetismo, a força concêntrica que envolve Lucrécia, esbate-se em uma frase de Euríalo: “e a tua fama não se limita só à Itália, mas também conhecem o teu renome os alemães, e

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os panónios, e os da Boémia, e todos os povos do norte”3. As linhas transcritas parecem ir buscar toda a linhagem antiga de Lucrécia, pai, avô ou bisavós, grandes “condotieres” ou “guerreiros” cujos feitos teriam ecoado além fronteiras. Talvez, Santa Fiora (Aldobrandeschi), um feudo autónomo, potentíssimo, só dependente do imperador, de origem sálica para uns, longobarda para outros, estendia-se desde o Monte Amiata a Siena com possessões em várias partes da Itália. Fundada por Ildebrando, posteriormente Aldobrando4, era tal a sua importância que alguns membros até mereceram figurar no purgatório de Dante (Purg...VI, III e XI). O último conde, Guido Santa Fiora, não tendo filhos machos, entregou as três filhas à senhoria de Siena. Uma casou e entrou na família Pezzi. Assim o diz Eneas, friamente, sem comentários. Naquela missiva, Euríalo refere-se a Menelau como “uma família ilustre” sem qualquer título nobiliárquico.

As outras duas, Cecília e Giannina, recusaram alianças gizadas pelo povo e, pelos seus próprios meios casaram e ligaram-se a famílias nobres: a primeira com Bosio Sforza, irmão do célebre Francesco Sforza, a outra com Galeazzo, Conde d’Arco, “um amigo de longa data”. 3 Referem as estatisticas que entre os sécs. XIV a XV cerca de 50 familias

preenchiam o quadro nobiliárquico de Siena na sua maioria de origem germânica, desde os Malavolti aos Tolomei ou Sensedoni entre outros. Cf. BORTOLOTTI, Lando. - ob. cit. p. 25.

4 Na Toscana é normal a passagem do il para al. Cf. FELICIO, Emilio de -Dizionario dei cognomi italiani, Milano, 1977.

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O autor orgulha-se da pompa que rodeou a sua visita a Santa Fiora, preparada por Bosio, filho de Cecília. Porque o faz com tanto ênfase5? Porque não é alguma vez citado o pai de Lucrécia? Quem era afinal Lucrécia, isenta de leis sumptuárias, vestida com púrpuras e damascos, coberta de rubis e diamantes?

Assim, de duas uma: ou os dados da narrativa são reais ou fictícios. No primeiro caso, mesmo nos termos de liberdade de espírito preconizada pelo Renascimento, seria devassar o túmulo de Lucrécia que, escassos anos antes, em fins de 1432 ou inícios de 1433 exalava nos braços da mãe, apoiada por familiares. Mas morria só. Totalmente só, talvez sob o olhar longínquo de Euríalo, que um dia a deslumbrou e “que em fumo e névoa se tornou”. Porém, a aceitação da segunda hipótese põe outras tantas reservas, uma vez que o artifício literário dilui-se frente à tónica real impressa ao texto. Senti-lo, vivê-lo, é o que importa, assim como assim, o mistério à volta de Lucrécia- Menelau continua por desvendar.

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Manuscritos e edições da novela

Eneas Piccolomini terá sido o autor com o maior número de reproduções manuscritas da sua narrativa, que o próprio Mariano Sozini, calígrafo exímio1, terá incentivado. As notícias sobre originais e reproduções apócrifas de que temos conhecimento, aliás pela via indirecta, são escassas. De assinalar que a versão manuscrita da história de dois amantes nunca surge autónoma, mas inserta no vasto epistolário. Segundo o investigador Hans A. Genzsch2, dois acervos dos três existentes, serviram de base à monumental obra de Rudolf Wolkan3, a saber:

1) O códice 12 725 da Biblioteca de München4. 2) O códice 462, inicialmente na Biblioteca

Lobkowitsch, hoje na Biblioteca Universitária de Praga, que difere da colecção Bochow.

3) Colecção de Wenzels von Bochow.5

1 Cf. GYLMORE, Myron – Pius II and Mariano Sozini “De Sortibus“, in Atti del Convenio del 5.º Cent. della morte ed altri scritti, Siena, 1968, p. 187. 2 GENZSCH, H. A. – Die Anlage der ältesten Sammlung von Briefen E. S.

Piccolomini. Insbruck, 1932, p. 272-273.

3 WOLKAN, R. – Der Briefwechsel des Eneas S. Piccolomini. In Fontes rerum austriacarum, diplomataria et acta, n.º 61, 62, 67, 68. Wien, 1909-1912. 4 Inicialmente no Mosteiro Ranshofen, Cod. Ransh. 125. Rudolf Wolkan

apresenta em 1850 uma nota sobre este códice original que, posteriormente, em 1856, George Voigt utiliza para a sua recolha intitulada Die Briefe des

Eneas S. Piccolomini… in Archiv fur Kunde öterreichischer Geschichtsquellen,

Bd 16. Wien, 1856.

5 Contém cartas desde 1444 cuja cópia terá dado origem ao códice 462. Cf.

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Isto no que à Alemanha e Praga respeita, sendo certo que os arquivos do Vaticano, das bibliotecas húngaras (codex béldianus) e italianas com destaque para a comunal de Siena, detentora de vários códices nomeadamente Bisdomini, Chigiana6 e de casas senhoriais de Itália serão possuidoras de outras tantas cópias e reproduções posteriores. Falhadas todas as tentativas para suster a sua divulgação, Piccolomini emite uma bula que não terá surtido quaisquer efeitos. Por sua morte surgem edições incunabulares latinas seguidas de traduções em vernáculo. A pesquisa de catálogos e inventários antigos responde negativamente à hipótese da sua publicação em Portugal, em flagrante contraste com os prelos além fronteiras desde Espanha à Inglaterra até à Hungria que a editaram e reeditaram ao longo dos tempos.

A primeira edição incunabular, pelo menos tida como tal, impressa em Colónia cerca de 14707 é atribuída a Ulrich Zell. Tem como incipit De duobus amantibus Eurialo e Lucreti opusculum ad Mariano Sozini, que não difere do cólofon: Explicit opusculum Enneee Silvij de duobus amantibus. Curiosamente, o Inc. 1348 da B.N., descrito sob o número 218 por Hain, sem título, lugar ou ano

6 Publicado por Joseph Cugnoni - Opera Inedita Descripsit Ex Codicibus Chisianis

etc., in Atti e Memorie della R. Accademia dei Lincei, Roma. 1883

7 Os raros exemplares sobreviventes guardam-se na Biblioteca de Budapeste,

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[supõe-se de 1475], traz uma nota manuscrita em letra epocal Storia de duobus amantis. Já o Inc. 1184 da B.N., munido de duas cartas, uma para Mariano Sozini, a quem lembra “queres que de dois amantes seja o tratado”, a outra para Gaspar Schlick, esclarecendo que aquele lhe pedira a “descrição de dois amantes”, inicia o texto da novela com a inscrição “Incipit historia principalis”, ou seja, não titulado. A partir destes dados, parece-nos óbvio que o título original seria “De duobus amantibus” – acerca ou sobre dois amantes - cabendo aos editores a iniciativa de acrescentar “História de…”.

Não menos laboriosa foi a actividade de prelos xilográficos para produzir incunábulos que chegaram até nós a partir de 1470, até finais do século. Uma consulta, mesmo apressada, de bibliografias gerais ou especializadas depara com muitos exemplares, grande parte deles sem menção de lugar, ano, tipografia, reclames ou cifras, num total de vinte e sete, sob uma diversidade incontrolável de títulos ao gosto dos impressores, sendo o mais comum De duobus amantibus historia..., ou Opuscula…, ou Tratatus de duobus amantibus Eurialo et Lucrecia..., ou Libellus…, ou Tractatulus…, ou Epistole…, etc.

Uma vez mais, a Alemanha adianta-se e, ainda em quatrocentos, estreia-se com a primeira edição em

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