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O CARÁTER FRAGMENTÁRIO NOS ROMANCES “VIDAS SECAS” E “CAPITÃES DA AREIA”

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Academic year: 2020

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Edição 23, volume 1, artigo nº 2, Outubro/Dezembro 2012

D.O.I: http://dx.doi.org/10.6020/1679-9844/2302

www.interscienceplace.org - Páginas 25 de 190

O CARÁTER FRAGMENTÁRIO NOS ROMANCES “VIDAS

SECAS” E “CAPITÃES DA AREIA”

THE ISSUE OF FRAGMENTATION X UNIT IN THE NOVELS

“VIDAS SECAS” AND “CAPITÃES DA AREIA”

Karina Pereira Detogne¹, Giselda Dutra Bandoli², Ana Lúcia Lima da Costa³, Ariane Érika de Souza Rafael4

¹ Universidade do Norte Fluminense Darcy Ribeiro-UENF/ Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, Brasil. karinadetogne@ig.com.br

² Universidade do Norte Fluminense Darcy Ribeiro-UENF/ Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, Brasil. giseldadutrabandoli@uol.com.br

3

Universidade Federal Fluminense - UFF/ Santo Antônio de Pádua, Rio de Janeiro, Brasil. analucialetras@ig.com.br

4Centro Universitário São José de Itaperuna – UNIFSJ/ Itaperuna, Rio de Janeiro, Brasil.

ariane_erika@hotmail.com

Resumo – Pretende-se, neste trabalho, fazer um estudo investigativo sobre

a questão estrutural dos romances Vidas Secas de Graciliano Ramos e Capitães da Areia de Jorge Amado, visto que são narrativas caracterizadas como desmontáveis pela crítica. Entretanto, apresentaremos contradições em tais estudos, apontando caminhos de unidade nas narrativas. Expusemos a opinião de críticos que confirmam o caráter fragmentário dos romances. Consecutivamente, utilizamos a opinião dos próprios estudiosos que afirmam serem os romances em questão desmontáveis e, contradizendo-se, acabam por afirmar também a unidade nas obras. Verificamos, neste estudo, como se dá o processo de unidade nas narrativas por meio de elementos retirados de fragmentos dos próprios romances em questão, os quais chamaremos de motivos.

Palavras-chave: Vidas Secas; Capitães da Areia; fragmentação; unidade.

Abstract – The present work is to draw a parallel between fragmentation

and unity in the novel Vidas Secas by Graciliano Ramos and Capitães de Areia by Jorge Amado. Since they are novels, we started tracing the paths of the romantic style in Brazil, going from the very beginning - serials, narratives that are closed - until the modern novels, which are open

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www.interscienceplace.org - Páginas 26 de 190 narratives that due to this fact, can be dismantled. We also made considerations on the structure of the Capitães de Areia, on Alvaro Cardoso Gomes’s opinion (1996), showing the proximity between the works. We expounded the view of critics who confirm the fragmentary character of the novels. We exposed the view by critics who confirm the fragmentary character of the novels. Consecutively, we used the views of experts who claim that the novels in question are removable and contradicting himself, ultimately affirming the unity in the works. Finally, we revealed how the two narratives in the process of unity by elements are taken from fragments of his own novels in question.

Keywords: Vidas Secas; Capitães da Areia; fragmentation; unit.

1. Romance Brasileiro: breve histórico estrutural

O romance é o modo de se contar uma história, direcionando-se para a individualidade humana. Esta nomenclatura foi utilizada inicialmente na Europa, na época medieval com o Romance de Cavalaria. Tal gênero não apresentava compromisso com a realidade, sendo apenas ficcional.

A narrativa romanesca eclodiu entre meados do século XVI e início do século XVII, a princípio na Espanha com o romance “Dom Quixote de la Mancha”, de Miguel de Cervantes que marcou o surgimento de um modelo de narrativa moderna no ocidente, difundindo-se, posteriormente, pela Alemanha, França e Inglaterra.

Por volta de 1808, no Brasil, após a chegada da Família Imperial, com o abundante progresso de algumas cidades brasileiras, inclusive do Rio de Janeiro, formou-se um modelo de leitores constituído em sua maior parte por damas de classe alta, cujo ócio admitia a degustação de romances e folhetins, que eram narrativas fragmentadas publicadas na imprensa, na forma de capítulos diários ou semanais, voltadas para o lazer.

Para que a narrativa fosse aceita com sucesso era suficiente possuir enredo repleto de mistérios e situações inesperadas, bastante sentimentalismo, uma dose de suspense e final feliz.

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www.interscienceplace.org - Páginas 27 de 190 1.1. O gênero folhetinesco

Como foi citado anteriormente, o folhetim era uma história publicada nos jornais, em forma de fragmentos, destinada ao entretenimento.

Esta narrativa teve origem, na França, por volta de 1830, com Émile de Giradin. Seu intuito era aumentar o número de consumidores de jornais. Iniciou a introdução de romances em pedaços, criando ganchos, fazendo sempre uma referência à última edição, aparecendo, assim, o “continua na próxima edição”.

Desse modo, a história retalhada ao ser unida em um mosaico, dá origem ao gênero folhetinesco e sua forma estrutural. Esta era constituída pelas seguintes etapas: iniciava-se a narrativa com normalidade, num ambiente feliz e tranquilo, em seguida surgiam o conflito e as intrigas, causando desordem à trama, isto trazia ênfase para a história. Por fim, todos os problemas eram solucionados, a felicidade e a harmonia eram restabelecidas, a paz voltava a reinar, logo, a narrativa obtinha seu desfecho com o “final feliz”.

Com essa estrutura, podemos perceber que o folhetim constitui-se numa narrativa fechada, isto é, formada por uma ordem canônica com princípio, meio e fim, como confirma a crítica Angélica Soares (2001):

Até o século XIX era comum que o romance apresentasse uma diegese com princípio, meio e fim claramente delimitados: começava por uma

apresentação na qual são definidas as personagens, as circunstâncias do

enredo, a ambiência; prosseguia com a complicação, quando se encadeiam os fatos, que chegam ao clímax, isto é, ao ápice da ação e ao encontro da solução; e terminava com o epílogo, quando geralmente é o leitor informado sobre o destino das personagens (p. 45).

No Brasil, esse modo de entreter através da leitura folhetinesca chegou na primeira metade do século XIX, alcançando dimensões elevadas, contagiando o dia-a-dia e a imaginação do público leitor. Tal público era constituído de moças e senhoras da sociedade e também estudantes. Estes se entusiasmavam pelo desenrolar da narrativa, envolvidos pela sucessão de fatos estimulantes, que fez com que esta nova modalidade se propagasse até entre as classes mais populares. Com tantos leitores, então, a imprensa passou a lucrar extremamente, visto que, a curiosidade das pessoas fazia com que elas adquirissem diariamente as publicações.

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Para agradar o público leitor a imprensa e seus diretores dominavam os folhetinistas interferindo no decorrer e fim de suas narrativas. Por esta razão e por motivos financeiros quase todos os escritores da época apresentavam suas obras, primeiramente, à imprensa que priorizava o gosto do público, a qual aspirava a publicações ultrarromânticas e deslocadas do mundo real.

Devido à mudança no modo da publicação, os autores necessitavam adotar um novo método de publicar seus textos. Era necessário ter um cuidado especial para se fragmentar a obra, visto que cada trecho publicado deveria ser finalizado com um toque de suspense, para que o leitor ficasse instigado e adquirisse a edição seguinte, certificando e elevando a venda.

As narrativas folhetinescas beneficiavam tanto a imprensa, como pudemos comprovar, quantos os autores, que teriam grande dificuldade em publicar seus livros em razão do elevado valor da impressão em forma de livro que era feita apenas no exterior.

O folhetim não trouxe mudanças linguísticas e discursivas, entretanto representou um importante meio para a propagação de faces literárias, políticas e econômicas. Além disso, devemos sempre lembrar que os folhetins deram origem aos primeiros romances brasileiros.

1.2. A modernidade estrutural: Romance Aberto

Com a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil, em 1808, e a chegada da Imprensa, os romances passaram a ser fabricados em nosso território. Dessa forma, os autores ganharam mais liberdade para escrever seus textos, pois ao contrário do folhetim, não precisavam manter a linearidade com começo, meio e fim claramente delimitados, visto que o leitor não corria o risco de perder o entendimento da história que, agora se encontrava encadernada.

Vimos que o folhetim por se tratar de uma narrativa que era publicada periodicamente em trechos necessitava manter uma organicidade para que o leitor não se perdesse no decorrer da história. Logo, a narrativa folhetinesca constituía-se em um romance fechado.

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na íntegra não era preciso comprometer-se com a linearidade dos fatos, isso o caracteriza como um romance aberto; novamente lembramos a crítica Soares (2001):

Já no chamado romance aberto, desaparecem aqueles limites e temos a impressão de que o Autor poderia ter acrescentado, se quisesse, novos episódios aos já narrados. É até comum deixar-se para o leitor a criação de um fim. Não há no romance aberto um capítulo conclusivo e, muitas vezes, a presença da personagem principal é o único elo entre os capítulos (p. 45).

A mudança na maneira de redigir e publicar o romance abriu várias possibilidades para que o autor confeccionasse sua história. Dentre esses vários métodos poderia elaborar o fim e/ou o meio antes de se criar o início da narrativa; narrar fatos paralelos; histórias em ordem inversa como é o caso de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, ou ainda, criar capítulos independentes.

A liberdade que os autores conquistaram concedeu-lhes o direito de inovar suas narrativas, podendo escrever seus textos como quisessem.

2. “Vidas Secas” e “Capitães da Areia”: percursos investigativos das

estruturas

Com a intenção de analisarmos a estrutura dos romances em questão achamos por bem a confecção de subcapítulos onde faremos comentários sobre a forma de tais obras.

2.1. A ótica de Graciliano sobre sua obra

A fim de aprofundarmos a discussão em torno do caráter fragmentário ou não do romance “Vidas Secas” achamos necessária a transcrição neste capítulo de um fragmento de uma correspondência de Graciliano Ramos (1980), escrita para sua esposa, Heloísa de Medeiros Ramos, em que o autor demonstra ter escrito o romance a partir de um conto. Assim diz:

Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra, um troço difícil com você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma duma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás. [...] Enfim, parece que o conto está

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bom. Você há de vê-lo qualquer dia no jornal (p. 194).

A partir dessa citação podemos confirmar a tese de que o conto citado por ele é o ponto de partida para a composição da obra “Vidas Secas”.

Há além da carta anterior, uma outra, endereçada ao amigo João Condé, em que o próprio escritor comenta sobre a organização e estruturação do romance.

Graciliano confirma que o ponto de partida para a criação da história como um todo foi um fato ocorrido no interior do estado de Pernambuco que deu origem ao primeiro conto. Seguindo este surgiram outros pequenos contos, que mais tarde foram rearranjados em forma de romance.

Abaixo transcrevemos a carta na íntegra para melhor comprovação do que acima foi exposto:

Terrível Condé:

Atendo à sua indiscrição. No começo de 1937 utilizei num conto a lembrança de um cachorro sacrificado na Maniçoba, interior de Pernambuco, há muitos anos. Transformei o velho Pedro Ferro, meu avô, no vaqueiro Fabiano; minha avó tornou a figura de sinhá Vitória, meus tios pequenos, machos e fêmeas, reduziram-se a dois meninos.

Publicada a história, não comprei o jornal e fiquei dois dias em casa, esperando que os meus amigos esquecessem Baleia. O conto me parecia infame e surpreendeu-me falarem nele. A princípio julguei que as referências fossem esculhambação, mas acabei aceitando como razoáveis o bicho, o matuto, a mulher, os garotos. Habituei-me tanto a eles que resolvi aproveitá-los de novo. Escrevi Sinhá Vitória. Depois apareceu Cadeia. Aí me veio a ideia de juntar as cinco personagens numa novela miúda – um casal, duas crianças e uma cachorra, todos brutos.

Otávio de Faria me dissera, em artigo enorme, que o sertão, esgotado, já não dava romance. E eu havia pensado: - Santo Deus! Como se pode estabelecer limitação para essas coisas.

Fiz o livrinho, sem paisagens, sem diálogos. E sem amor. Nisso, pelo menos ele deve ter alguma originalidade. Ausência de tabaréus bem falantes, queimadas, cheias, poentes vermelhos, namoros de caboclos. A minha gente, quase muda, vive numa casa velha da fazenda; as personagens adultas, preocupadas com o estômago, não têm tempo de abraçar-se. Até a cachorra é uma criatura decente, porque na vizinhança não existem galãs caninos.

A narrativa foi composta sem ordem. Comecei pelo nono capítulo. Depois chegaram o quarto, o terceiro, etc. Aqui ficam as datas em que foram arrumados: Mudança – 16 de julho de 1937. Fabiano – 22 de agosto; Cadeia – 21 de junho; Sinhá Vitória – 18 de junho; O Menino Mais Novo – 26 de junho; O Menino Mais Velho – 8 de junho; Inverno – 14 de julho; Festa – 22 de julho; Baleia – 4 de maio; Contas – 29 de julho; O Soldado

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Amarelo – 6 de setembro; O Mundo Coberto de Penas – 27 de agosto; Fuga – 6 de outubro.

Dou estas minúcias porque me dirijo a um homem curioso, que guarda convites para enterros e cartas de cobrança (RAMOS, 1944 apud ALVES, 2009, p. 44).

Pudemos perceber, pelas palavras do próprio autor, que a “narrativa foi composta sem ordem”, contribuindo para a confirmação do caráter fragmentado do texto.

No entanto, ao selecionar a ordem dos capítulos, dar-lhes uma trajetória aparentemente linear, seguindo o ciclo da seca e a utilização de uma mesma família de retirantes, Sinhá Vitória, o vaqueiro Fabiano, dois meninos e dois animais, também podemos ler nesse gesto o contrário da hipótese de fragmentação do romance que explicitaremos e confirmaremos em capítulo posterior, uma vez que a principal motivação deste trabalho de pesquisa é a comprovação de que o romance de Graciliano Ramos, ao contrário do que afirma grande parte da crítica e mesmo do próprio autor, não é um amontoado de contos.

2.2. A estrutura de “Capitães da Areia”

Diferentemente do romance tradicional, a obra em questão apresenta uma estrutura descosida, ou seja, o enredo é constituído de blocos, histórias quase independentes que irão compor o quadro social de uma comunidade.

Capitães da Areia é diferente dos demais romances de Jorge Amado não apenas por causa da temática, mas também em virtude de sua estrutura sui

generis (GOMES, 1996, p. 32).

Procura também renovar o próprio gênero no plano da estrutura e da linguagem. No plano da estrutura, “desestrutura” o romance, torna a narrativa solta, quase fragmentária, exigindo que o leitor dê unidade aos quadros da ação. Evidentemente, isso exige a atenção maior do leitor, obrigado a participar de modo ativo na montagem dos episódios (GOMES, 1996, p. 90).

Como pudemos perceber, segundo Álvaro Gomes (1996), o romance de Jorge Amado não é distinto apenas pela sua temática, que defende as causas sociais, mas também pela sua estrutura peculiar, isso se dá devido ao fato de a obra se tratar de um romance moderno, que como vimos em capítulo anterior, não mantém uma ordem canônica.

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3. A visão da crítica sobre o caráter desmontável

A hipótese de que “Vidas Secas” é um romance desmontável é defendida por alguns críticos. Segundo eles, a obra contém característica desse tipo de romance, pois nela encontram-se contos interligados e que podem ser lidos separadamente. Massaud Moisés (1998, p. 23) assim declara: “Em nossa literatura encontramos alguns romances que, na verdade, não são romances e sim contos interligados e totalmente desmontáveis. É o caso de Vidas Secas, de Graciliano Ramos”.

Levando em conta que os 13 capítulos que compõem a obra podem ser lidos isoladamente, como se fossem contos, também Rubem Braga (1965 apud ALMEIDA FILHO, 2002) caracteriza “Vidas Secas” como um romance desmontável:

Quem pega no romance logo repara. Cada capítulo desse pequeno livro dispõe de uma certa autonomia e é capaz de viver por si mesmo. Pode ser lido em separado. É um conto. Esses contos se juntam e formam um romance. [...] o autor fez assim uma nova técnica de romance no Brasil. O romance desmontável (n.p).

De acordo com o crítico Álvaro Lins (1995 apud RAMOS, 1995), o romance apresenta defeitos quanto à forma, entre eles, a maneira descosida em que foi escrito, com cenas soltas, enfim sem linearidade. Podemos confirmar pelas palavras do próprio:

Tendo sido construída em quadros, os seus capítulos, assim independentes, não se articulam formalmente com bastante firmeza e segurança. Cada um deles é uma peça autônoma, vivendo por si mesma, com um valor literário tão indiscutível, aliás, que se poderia escolher qualquer um, conforme o gosto pessoal (p. 152).

Também há críticos que defendem a ideia de fragmentação do romance “Capitães da Areia”, visto que na trama encontramos um capítulo para cada criança, percebendo assim a independência entre eles.

É aí que reside sua modernidade, pois o autor rompe com a tradição do romance convencional, que supunha rigorosa organização dos fatos e relações de causa e efeito entre os eventos. Capitães da Areia é montado por meio de quadros mais ou menos independentes, que registram as andanças das personagens pela cidade de Salvador. [...] A força da narrativa advém do enredo solto, maleável, que parece flutuar ao sabor das aventuras dos pequeninos heróis (GOMES, 1996, p. 32).

Há opiniões distintas sobre a estrutura dos romances. Em “Vidas Secas”, alguns críticos acreditam que a estrutura da obra é um defeito, como sugere Lins (1995 apud RAMOS, 1995). Outros defendem a ideia de que “Vidas Secas”

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apresenta inovações formais, e existe ainda a hipótese de que a obra não é um romance, e sim um conjunto de contos interligados como afirma Massaud (1998). Já em “Capitães da Areia” essa inovação da estrutura é vista pelo crítico Gomes (1996) como uma característica de modernidade. Apesar de esses críticos, anteriormente citados, terem caracterizado os romances como obras desmontáveis, eles não chegam a uma conclusão entre si quanto às suas formas. Enfim, há divergência de opiniões.

3.1. O caráter cosido dos romances e as contradições da fragmentação

Demonstraremos neste momento que além de apresentarem características de romance desmontável e, de fato serem, as obras de Graciliano e de Amado também apresentam indícios de unidade. Iniciaremos tomando por base a opinião dos próprios críticos que confirmaram o caráter fragmentário dos romances em questão, entretanto os mesmos também perceberam a unidade nas obras. Logo em seguida, apresentaremos os fatores de união entre os capítulos, como é o caso de “Vidas Secas”, e na obra como um todo que virão para confirmar a unidade.

Após observarmos a hipótese fragmentária da obra “Vidas Secas” defendida por alguns críticos apresentaremos algumas contradições em relação a tal hipótese.

O crítico Álvaro Lins (1995 apud RAMOS, 1995) foi um dos que caracterizou a estrutura do romance como defeituosa pelo seu caráter desmontável, como vimos em capítulo anterior. Entretanto, no mesmo texto ele afirma que “Vidas Secas” apresenta traços de unidade. Assim diz:

Por outro lado, a falta de unidade formal acima assinalada, não se verifica na parte do assunto. Na substância [...] apresenta uma perfeita unidade, uma completa harmonia interior. O drama do primeiro capítulo repete-se no último; e todo o mais que se encontra entre eles constitui uma matéria de ligação entre os dois episódios semelhantes (p. 152).

Pudemos perceber pelas palavras do crítico que até mesmo ele que considera a obra como fragmentada percebe elemento de ligação no romance. Em parte, é verídico o que Lins (1995 apud RAMOS, 1995) afirma porque realmente Graciliano escreveu os capítulos como se fossem contos. Mas quando ele organizou os capítulos para publicar o livro, ele deu nova ordem de forma a dar unidade à narrativa de maneira que o texto ganhou características de romance.

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Muitos outros críticos que concordam com a estrutura fragmentária de “Vidas Secas” acabam por contrariar suas ideias percebendo que há unidade e grande coesão no romance que são dadas pela recorrência de certos motivos que aparecem praticamente em todos os episódios da obra.

4. “Vidas Secas” e seu caráter de unidade

Ao analisarmos o romance “Vidas Secas” percebemos sua estrutura fragmentária, contudo este clássico brasileiro apresenta elementos de ligação que garantem unidade entre seus capítulos. Esta unidade é constituída por um fenômeno de duração contínua, a seca, que maltrata indiferentemente todas as vidas.

O romance, como vimos, pertence ao gênero narrativo, e como tal é estruturado em torno de elementos que podem ser facilmente identificados ou não: enredo, narrador, personagens, tempo e espaço. O que dá unidade ao enredo é o fato dele ser constituído em torno de um tema e este, por sua vez, se forma a partir de motivos. Assim afirma Soares (2001):

O que dá unidade aos elementos da trama é o tema, entendido como ideia comum, que constrói o sentido pela união de elementos mínimos da obra chamados motivos. O tema de Vidas Secas se confunde com o próprio título do romance, sendo ele constituído por aspectos (motivos) essenciais na configuração do estado de “secura” socioeconômica e psicológica em que vivem os retirantes das secas do Nordeste brasileiro (p. 43).

No caso de “Vidas Secas” temos um romance estruturado em torno de um tema que é a seca. Isto posto, já podemos desconstruir que a seca é a ideia central da narrativa. Podemos destacar como motivos: a secura do chão, a secura expressional, a secura na comunicação, a secura de afeto, a secura na narrativa e a ideia de ciclo do romance. Estes motivos reunidos dão ao texto de Graciliano a unidade que alguns críticos não percebem.

Iniciamos pela secura do chão que, além de ser um dos fatores de união entre os capítulos por estar presente em todos eles, é também o que desencadeia todas as outras formas de secura durante a obra. Observamos nos trechos citados a paisagem seca do sertão nordestino. Esta secura do semiárido faz brotar, como foi declarado anteriormente, outros tipos de secura, entre elas a expressional, como veremos adiante:

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Os dois meninos espiavam os lampiões e adivinhavam casos extraordinários. Não sentiam curiosidade, sentiam medo, e por isso pisavam devagar, receando chamar a atenção das pessoas. Supunham que existiam mundos diferentes da fazenda, mundos maravilhosos na serra azulada (RAMOS, 1995, p. 74).

A certeza do perigo surgira – e ele estava indeciso, de olho arregalado, respirando com dificuldade, um espanto verdadeiro no rosto barbudo coberto de suor, o cabo do facão mal seguro entre os dois dedos úmidos (RAMOS, 1995, p. 100).

A secura expressional mostrada nos fragmentos anteriores é representada pela forma com que os personagens se expressam. Percebemos a falta de expressão e a economia de gestos. Esta modalidade da seca acarreta um outro tipo de secura, a aridez na comunicação. Vejamos:

Sinhá Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. [...] Sinhá vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis (RAMOS, 1995, p. 10).

Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animais. [...] Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia (RAMOS, 1995, p. 19).

Como pudemos observar nos trechos acima, a escassez comunicativa está presente em diversos momentos da obra. Esta economia de comunicação leva os personagens à secura de afeto, que pode ser vista a seguir:

O menino mais velho pôs-se a chorar sentou-se no chão. ─ Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.

Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. [...] Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse (RAMOS, 1995, p. 9).

O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela desgraça. [...] a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha (RAMOS, 1995, p. 10).

A falta de afeto é visivelmente notada no romance. As personagens se relacionam com frieza, aspereza no trato e falta de afabilidade.

Por conta de todas as expressões de secura expostas anteriormente, o autor acaba por trazer para a obra uma linguagem concisa, objetiva, enxuta, seca de fato. Podemos conferir através de fragmentos do próprio livro:

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Chegou. Pôs a cuia no chão, escorou-a com pedras, matou a sede da família. Em seguida acocorou-se, remexeu o aió, tirou o fuzil, acendeu as raízes de macambira, soprou-as, inchando as bochechas cavadas. Uma labareda tremeu, elevou-se, tingiu-lhe o rosto queimado, a barba ruiva, os olhos azuis. Minutos depois o preá torcia-se e chiava no espeto de alecrim (RAMOS, 1995, p. 15).

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes (RAMOS, 1995, p. 91).

Tratando-se ainda da unidade constituída pela seca, temos ainda a ideia de ciclo presente na obra. Vale ressaltar que o movimento cíclico é determinado por uma série de fatos que se sucedem pelas mesmas causas, motivos ou influências. Observemos o que diz a crítica Soares (2001, p. 45): “[...] possui um enredo cíclico, pois que o final da trama é uma retirada, como o princípio fora uma chegada, a sugerir o narrador a alternância inumerável de fuga da miséria e encontro da terra desejada, em função do ciclo das secas”.

Esta ideia cíclica confirmada por Angélica Soares pode ser observada através de fragmentos do próprio livro:

Estavam no pátio de uma fazenda sem vida. O curral deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e também deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido (RAMOS, 1995, p. 12).

Mas quando a fazenda se despovoou, viu que tudo estava perdido, combinou a viagem com a mulher, matou o bezerro morrinhento que possuíam, salgou a carne, largou-se com a família, sem se despedir do amo. [...] Só lhe restava jogar-se ao mundo, como negro fugido (RAMOS, 1995, p. 116).

Arrastara-se até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente mudança. Retardara-se e repreendera os meninos, que se adiantavam, aconselhara-os a poupar forças. A verdade é que não queria afastar-se da fazenda. A viagem parecia-lhe sem jeito, nem acreditava nela. Preparara-a lentamente, adiara-a, tornara a prepará-la, e só se resolvera a partir quando esta definitivamente perdido. Podia continuar a viver num cemitério? Nada o prendia àquela terra dura, acharia um lugar menos seco para enterrar-se (RAMOS, 1995, p. 117).

Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando. Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano, criado solto no mato. Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os meninos frequentariam escolas, seriam diferentes deles. Sinhá Vitória esquentava-se. Fabiano ria, tinha desejo de esfregar as mãos agarradas à boca do saco e à coronha da espingarda de pederneira (RAMOS, 1995, p. 125).

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E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos (RAMOS, 1995, p. 126).

A ideia de ciclo nos transmite um movimento feito pela família de retirantes na fuga da seca. Este movimento cíclico pôde ser notado respectivamente no primeiro e último capítulo do livro, “Mudança” e “Fuga”. A noção que, segundo este romance aberto, como vimos em capítulo anterior, nos transmite é que muitas outras mudanças e fugas poderão acontecer.

Após demonstrarmos a desmontabilidade bem como suas contradições e os indícios de unidade no romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, percebemos que a obra apresenta características de romance desmontável, todavia, revela também um texto cosido, amarrado, enfim, unido.

5. “Capitães da Areia”: indícios de unidade

Ao observarmos a obra “Capitães da Areia” notamos uma inovação na sua estrutura, que é composta por cenas quase soltas. Todavia, neste romance há traços de ligação, garantindo a unidade entre os episódios.

Podemos perceber o primeiro elemento de ligação no próprio título, “Capitães da Areia”. A palavra “capitães” faz referência ao bando de meninos de rua que comandavam toda a zona do areal do cais, daí a denominação do romance. Vale ressaltar que o conceito de capitão afirma que seria aquele que, geralmente, chefia mais de 100 militares, aproximadamente o número de elementos do grupo Capitães da Areia: “São chamados de “Capitães da Areia” porque o cais é o seu quartel-general. [...] Nunca ninguém soube o número exato dos meninos que assim viviam. Eram bem uns cem” (AMADO, 2005, p. 21).

Além da ideia de unidade presente no título do romance podemos destacar outros fatores de união, tais como: o fato de todo o bando dos Capitães da Areia serem meninos de rua, viverem no mesmo local, terem o mesmo chefe. Também notamos elemento de ligação no fato de todos terem histórias diferentes, mas iguais

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pelo sofrimento que os uniu, tornando-os uma família. A seguir, enumeramos trechos do livro que comprovam as afirmações anteriores: “Crianças que, naturalmente devido ao desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos, se entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa” (AMADO, 2005, p. 3).

[...] aqueles meninos, moleques de todas as cores e de idades as mais variadas, desde os 9 aos 16 anos, que à noite se estendiam pelo assoalho e por debaixo da ponte e dormiam, indiferentes ao vento que circundava o casarão uivando, indiferentes à chuva que muitas vezes os lavava (AMADO, 2005, p. 20).

Embora no final da trama cada menino tenha um desfecho diferente, sempre carregará consigo a marca de um dia ter sido um capitão da areia. Isto posto, logo concluímos que a obra foi realmente composta em blocos, como afirmou Álvaro A. Gomes, contudo percebemos que o romance também apresenta traços de unidade.

6. Considerações finais

O levantamento realizado através dos motivos das obras como fatores que unificam os romances demonstra a importância das tramas como um todo; ler os capítulos isolados não faz com que absorvamos de forma plena as narrativas em questão. A análise da estrutura fragmentária dos romances “Vidas Secas” e “Capitães da Areia” nos levou a identificar indícios de união nas narrativas, dessa forma, os romances possuem enredo cosido, como é possível ser observado em nosso estudo investigativo.

Nossa pretensão é propor uma reflexão aos estudiosos, professores e estudantes de Literatura; que seja observado neste clássico de Graciliano Ramos e também na obra de Amado, que a seca e o tema do menor abandonado são os elos de suas narrativas, respectivamente, por muitos, chamadas de desmontáveis.

Referências bibliográficas

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ALVES, Paulo. A farpa e a lira: uma análise socioliterária a partir de Cruz e Sousa e Lima Barreto. 214 f. 2009. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009. Disponível em: <http://www.pgletras.com.br/2009/dissertacoes/diss-paulo-alves.pdf>. Acesso em: 12 maio 2012.

AMADO, Jorge. Capitães de Areia. 117. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.

GOMES, Álvaro Cardoso. Roteiro de Leitura: Capitães da Areia de Jorge Amado. São Paulo: Ática S.A. 1996.

MOISÉS, Massaud. A criação literária. Prosa II. São Paulo: Cultrix, 1998. RAMOS, Graciliano. Cartas. Rio de Janeiro: Record.1980.

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RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1995. SOARES, Angélica. Gêneros Literários. São Paulo: Ática S.A, 2001.

Referências

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