• Nenhum resultado encontrado

A imagem construída

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A imagem construída"

Copied!
144
0
0

Texto

(1)UNIVERSIDADE DE LISBOA. Faculdade de Arquitectura. A Imagem Construída PROBLEMAS DA REPRESENTAÇÃO ESPACIAL NO ALVOR DA MODERNIDADE. MARTIM SOUSA FERRO ENES DIAS. D ISSERTAÇÃO PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE M ESTRE EM A RQUITECTURA O RIENTADOR C IENTÍFICO : P ROFESSOR D OUTOR J ORGE S PENCER J ÚRI : P ROFESSOR D OUTOR J OÃO F RANCISCO F IGUEIRA , PRESIDENTE P ROFESSOR D OUTOR P AULO P EREIRA , VOGAL. LISBOA, OUTUBRO DE 2013.

(2) A IMAGEM CONSTRUÍDA : PROBLEMAS DA REPRESENTAÇÃO ESPACIAL NO ALVOR DA MODERNIDADE. RESUMO : Uma das principais consequências da transição entre o mundo medieval e a idade moderna foi o abandono progressivo da tradição oral, em favor de uma cultura de produção e difusão sistemática de imagens. Este estudo analisa os efeitos dessa transformação na representação do espaço e foca a capacidade de significação da representação medieval e da representação moderna. Para identificar quer os seus pontos de contacto quer a diferença de estatuto que as opõe procedeu-se ao confronto de alguns exemplos paradigmáticos, através de um percurso histórico selectivo que culmina na instituição da perspectiva linear, encarada como ponto de chegada hipotético do projecto histórico da modernidade. Considerou-se, ainda, a ambiguidade própria de que se reveste, para os arquitectos, a representação do espaço, tanto ao nível metodológico (uma vez que constitui, simultaneamente, um instrumento de trabalho e o seu resultado) como ao nível histórico (pois está na origem do seu ofício enquanto arte liberal). Uma representação pode assumir várias formas e significados e não é apenas a ilustração neutra de uma realidade que lhe é anterior ou de um discurso já fixado. O modo como é lida e se dá a ler influi no significado daquilo que representa. Diferentes paradigmas imagéticos propõem diferentes formas de ver o mundo, que são também a chave para a leitura das representações a que dão origem. Assim, a representação naturalista (e, concretamente, a representação do espaço de modo científico) veio responder ao desejo moderno de rigor visual. Ao fazê-lo, alterou simultaneamente os próprios parâmetros de avaliação da representação, o que é particularmente evidente na comparação com as representações prémodernas, definidas por outros critérios e tendo em vista outros fins. É justamente na tensão entre estas duas formas de comunicar, uma mais abstracta e a outra mais visual, que se joga a história da cultura projectual moderna.. PALAVRAS -CHAVE : Representação, espaço, modernidade, perspectiva, abstracção.. i.

(3) BUILDING IMAGES: PROBLEMS OF SPATIAL REPRESENTATION IN THE WAKE OF MODERNITY. ABSTRACT : A major consequence of the complex transition from medieval world to modern age was the phasing out of oral tradition. Accordingly, a culture based on the systematic production and dissemination of images was on the rise. The present study examines the effects of this transformation on the representation of space. By investigating both medieval and modern representations’ ability to convey meaning we sought to identify their shared aspects as well as their difference in status. To do so, we compared a series of paradigmatic cases leading up to the establishment of linear perspective. Its adoption as a paramount tool for spatial representation is thus seen as a hypothetical arrival point in a wider historical route towards modernization. For Architects, the representation of space is of itself ambiguous, being both the means and the end of their work. Furthermore, historically, it can be seen as pivotal in the rise of their profession as a liberal art. A picture may take on several forms and meanings. As we shall conclude, it is not simply the neutral illustration of a reality or a discourse that precedes it or is already set. What it represents is greatly influenced by the way in which it offers itself to perception. Different visual paradigms suggest different ways of seeing and precondition what the picture itself conveys. Realistic representation (and specifically that of space according to scientific laws) can be seen as an historical response to a modern desire for visual accuracy. In prevailing over pre-modern forms of representation it changed the mode whereby images are seen, introducing its own interpretation key. It is the tension between these two ways of communicating (the former more abstract, the latter inherently visual) that defines what is at stake in the transition to a modern culture of image making.. KEYWORDS : Representation, space, modernity, perspective, abstraction.. ii.

(4) Para a Joana.

(5) Quid ergo Athenis et Hierosolymis? T ERTULIANO.

(6) ÍNDICE. 1.. 2.. 3.. 4.. I NTRODUÇÃO. 1. C ONSIDERAÇÕES HERMENÊUTICAS. 7. E STADO DOS CONHECIMENTOS. 11. Comunicação sem imagens. 16. C AOS E COSMOS. 17. U M DISCURSO INVISÍVEL. 22. O CASO R ORICZER. 27. Representação do mundo visível. 33. A D VERUM PER MATERIALIA. 34. N ATURALISMO NA REPRESENTAÇÃO HUMANA. 40. M OLTO PIÙ CHE EGLI NON VEDE. 46. Da perspectiva naturalis à perspectiva artificialis. 49. U MA NOVA CENOGRAFIA. 50. A B ASÍLICA DE A SSIS. 53. L A COSTRUZIONE LEGITTIMA. 58. A imagem construída. 62. A P ERSPECTIVA COMO FORMA SIMBÓLICA. 63. R ACIONALIZAÇÃO DA VISTA. 68. R ACIONALIZAÇÃO DO TRABALHO. 75. C ONSIDERAÇÕES FINAIS. 87. S ELECÇÃO BIBLIOGRÁFICA. 92. A NEXO DOCUMENTAL. 101. v.

(7) INTRODUÇÃO O tema geral deste estudo é a representação espacial. A análise tomará como ponto de partida o período histórico correspondente ao alvor da modernidade na Europa, que abarca a longa e complexa transição entre o mundo medieval e a sociedade do Renascimento. De todas as transformações ocorridas neste período, interessar-nos-á, sobretudo, o ponto de viragem correspondente ao abandono progressivo da tradição oral, em favor de uma cultura assente na produção e difusão sistemática de “imagens”. Estas podem assumir várias formas e significados e estão longe de esgotar-se em meras ilustrações, ou nos veículos neutros de um discurso que lhes é anterior. O modo como são lidas e se dão a ler influi de modo directo no significado daquilo que representam. E, no caso específico da Arquitectura, a forma como são manipuladas — voluntária ou involuntariamente — determina, em grande medida, os resultados da prática projectual. Como se verá, na época em estudo, a sua produção foi concomitante com a construção de uma nova identidade cultural, de que foram simultaneamente a causa e o efeito. Historicamente, o advento de uma cultura eminentemente visual pode ser explicado pela confluência de uma miríade de factores distintos, entre os quais se destacam importantes inovações técnicas e conceptuais como a imprensa e a perspectiva linear; uma reforma global do pensamento científico, transversal a todos os campos do conhecimento, e assente num paradigma antropocêntrico (que conduziria, mais tarde, ao racionalismo “iluminado” de pensadores como Newton ou Descartes); a ascensão das universidades como centros de pesquisa e discussão de ideias, por oposição ao ensimesmamento do conhecimento monacal; a afirmação progressiva de uma existência de carácter urbano, promovida por factores económicos, sociais e demográficos. O objectivo não será, porém, analisar em detalhe todos estes fenómenos, nem fornecer um quadro histórico abrangente do seu desenvolvimento, mas avaliar o alcance e os efeitos específicos do seu contributo para a transformação dos métodos de representação espacial e para o advento de uma cultura visual genuinamente moderna. E essa transformação, como veremos, não se cingiria às imagens em si mesmas, ou ao seu aspecto visual: na prática específica da Arquitectura, ela introduziu uma mudança assinalável na forma de entender o método de projecto, bem como o seu significado teórico e operativo e os seus reflexos na forma de con-. 1.

(8) ceber a própria figura do arquitecto e a natureza do seu trabalho. Mas antes ainda de abordar o tema específico da representação espacial, ou o problema da Arquitectura e dos seus rostos, é necessário compreender o estatuto das imagens enquanto instrumentos de representação. E, para tal, é preciso reflectir, de modo mais abrangente, sobre o significado geral de um instrumento técnico ou simbólico e da sua relação com a sociedade que lhe dá origem. É já antiga a tendência historiográfica para explicar a vida de uma dada sociedade, ou de uma dada época, à luz do seu grau de desenvolvimento tecnológico. Ao identificar o Homem como um ser essencialmente técnico — isto é, como um ser cuja essência reside na capacidade de reconhecer e transformar o mundo em redor, com o auxílio de ferramentas cada vez mais especializadas —, muitos historiadores e filósofos olharam o curso global da História como a crónica de uma ascensão tecnológica e leram nos seus estádios sucessivos o cumprimento de uma vocação científica inelutável. Esta tendência é patente, por exemplo, numa corrente importante da historiografia germânica do início do séc. XX, de que Oswald Spengler é um dos principais representantes. Segundo ele, a Antropologia assenta, primariamente, num longo percurso de aperfeiçoamento técnico: aquilo que cada homem é coincide, a cada momento, com o que pode fazer através dos instrumentos técnicos de que dispõe — da mão nua às primeiras ferramentas manufacturadas; do carro de bois à locomotiva. O alcance da visão dos homens coincide com o alcance crescente desses objectos e dessas ferramentas, e o seu próprio corpo se altera através do seu uso e da sua disseminação1. No entanto, o raciocínio pode inverter-se: se são capazes, em determinadas épocas, de produzir determinados instrumentos, os homens fazem-no porque sentem um conjunto de aspirações e de privações que não conheciam antes, ou que não estavam ainda em estado de conhecer2. Isto não significa, porém, que tais sentimentos se reduzam aos efeitos de uma conjuntura técnica deficitária, que cumpriria modernizar. Se assim fosse, o Homem seria, de facto, um ser puramente técnico, condenado a um determinismo eterno e invariável. Mas, tal como é possível reconhecer nas ideias novas o resultados de novos instrumentos, também é possível ver nesses instrumentos a 1. Veja-se, concretamente, a análise histórica gizada ao longo do ensaio Der Mensch und die Technik, Beitrag zu einer Philosophie des Lebens, publicado em 1931. Cf. SPENGLER, O Homem e a Técnica, ed. cit., passim. 2 Neste contexto, são dignas de menção as investigações da Antropologia francesa de meados do séc. XX — e, em particular, alguns dos trabalhos do etnólogo André Leroi-Gourhan, a que nos reportaremos adiante.. 2.

(9) tradução de ideias novas, assentes numa base não apenas técnica, mas também cultural e espiritual. Os dois pólos da oposição não podem, pois, ser pensados separadamente. A vocação técnica do Homem só parece revelar o seu verdadeiro alcance quando contraposta à sua vocação espiritual e à contingência que perpassa, necessariamente, a totalidade do tempo histórico. Ou, dito de outro modo, a relação recíproca entre o que uma sociedade é, ou o que deseja ser, e a tecnologia de que dispõe — seja ela agrícola, industrial ou artística — são dois aspectos indestrinçáveis, que devem ser compreendidos e investigados em conjunto. Só a partir do seu cruzamento se pode entender, plenamente, momentos históricos tão importantes quanto a descoberta do fogo ou a observação dos astros, a invenção da imprensa ou da máquina a vapor. A análise proposta procurará realçar, por isso, em todas as suas etapas, esta relação de dependência mútua — o laço dialéctico que liga as ideias aos instrumentos e os instrumentos às ideias. No entanto, os instrumentos que ocupam o centro deste estudo pertencem a um tipo especial. Não se trata, apenas, de ferramentas de trabalho comuns, destinadas à transformação material ou mecânica do mundo. Trata-se de instrumentos de representação — e, mais concretamente, de instrumentos de representação espacial. O que está em causa é a própria representação do mundo, o cenário onde se desenrola a existência humana na multiplicidade das suas acções. E, por isso, o laço dialéctico acima referido é, aqui, ainda mais forte: em cada época, o Homem representa o mundo de determinado modo, consoante o vocabulário técnico e simbólico de que dispõe. A representação espacial pode ser feita de diversos modos: através da linguagem falada e escrita, da representação gráfica ou da modelação tridimensional — ou ainda da combinação de alguns ou de todos estes métodos. Não obstante, embora todos correspondam a modalidades de representação espacial, as informações que veiculam diferem substancialmente quanto ao seu estatuto. Com efeito, descrever a aparência de uma igreja numa carta não é o mesmo que enviar um postal ilustrado figurando-a. De igual modo, pintar uma igreja numa tela ou filmá-la com uma câmara de vídeo são gestos muito diferentes, que conduzem a resultados igualmente díspares. A divergência não reside, porém, numa simples falta de rigor. Se assim fosse, a igreja visada seria uma só, e os modos de representação não fariam senão revelar a sua identidade de modo mais ou menos completo, consoante a sua extensão e a sua resolução. O que. 3.

(10) está em causa, porém, não é simplesmente a quantidade da informação veiculada, mas a sua qualidade. A igreja “falada” e a igreja “fotografada” são diferentes uma da outra — e, no limite, irreconciliáveis. E isto porque cada meio de representação mostra algo de determinado modo e deixa de fora um mundo infinito de outras possibilidades. Os meios de representação determinam, em grande medida, portanto, a natureza dos conteúdos representados3. Mas, no caso específico da prática arquitectónica, esta interdependência reveste-se de uma ambivalência adicional: mais do que uma forma de retratar a realidade, a representação é o próprio instrumento da sua transformação. Ao projectarem edifícios, os arquitectos operam sobre a realidade de modo virtual, através de representações mais ou menos abstractas dos elementos construtivos que, articuladamente, compõem o espaço. Robin Evans observa, a propósito do trabalho de projecto: «I was (...) struck by (...) the peculiar disadvantage under which architects labour, never working directly with the object of their thought, always working at it through some intervening medium, almost always the drawing, while painters and sculptors, who might spend some time on preliminary sketches and maquettes, all ended up working on the thing itself which, naturally, absorbed most of their attention and effort. (...) The resulting displacement of effort and indirectness of access still seem to me to be distinguishing features of conventional architecture considered as a visual art (...).» 4. Na prática arquitectónica, é difícil traçar uma fronteira entre a representação e a criação, porque os meios de representação, nas mãos dos arquitectos, são ao mesmo tempo meios criadores. Ao longo de (quase) todo o processo do projecto, até ao momento de fixação de uma forma definitiva, o desenho desempenha um papel heurístico — isto é, ele não serve para traduzir uma realidade já definida em todos os seus detalhes, mas para encontrá-la no decorrer da própria busca5. Numa palavra, a Arquitectura faz-se representando-se. E, por isso, estudá-la — estudar as suas for-. 3. Para lá desta simbiose dialéctica, mensagem e veículo fundem-se mesmo, na formulação radical de Marshall McLuhan, expressa no célebre aforismo: «the medium is the message». MCLUHAN, Understanding Media, ed. cit., p. 7 e passim. 4 EVANS, Translations from drawing to building, ed. cit., p. 156. 5 Para uma análise dessa capacidade transformadora cf. SPENCER, op. cit., passim.. 4.

(11) mas, bem como a sua origem e o seu significado — implicará sempre estudar os instrumentos de desenho de que faz uso6. Contudo, o desenho não foi sempre o meio de representação privilegiado no projecto de Arquitectura e na construção de edifícios. Pode mesmo afirmar-se que a transição para a cultura arquitectónica moderna se define, em grande medida, pelo protagonismo que o desenho veio assumir como instrumento de trabalho e forma de pensamento. Assim, no contexto deste estudo, ao falar-se de um “alvor da modernidade”, fala-se da mudança de paradigma operada na transição da Idade Média para o Renascimento no que respeita, especificamente, à transformação dos meios de representação espacial. Enquanto que a tradição medieval privilegiava a oralidade, a cultura renascentista veio introduzir um sistema de representação eminentemente visual, que revolucionaria todos os aspectos da prática artística e arquitectónica. *. *. *. A presente dissertação divide-se em quatro capítulos principais, um capítulo de considerações finais, uma selecção bibliográfica e um anexo documental. O primeiro capítulo começa por tratar as formas de comunicar procedentes da tradição oral, isentas do recurso a imagens. Depois de um enquadramento geral, que envolve uma reflexão sobre o “conteúdo” ideal deste tipo de discurso e os constrangimentos a que estava sujeito, focar-se-á o domínio concreto da representação espacial. Por fim, analisar-se-á um exemplo paradigmático: os desenhos publicados em Ratisbona, no séc. XV, pelo mestre-construtor Matthäus Roriczer. Ao ocupar-se da pré-modernidade, este capítulo servirá ainda de contraponto aos desenvolvimentos históricos em análise nos dois capítulos seguintes. O segundo capítulo refere o debate medieval sobre a validade da arte religiosa, e da representação em concreto, tomando por pretexto algumas ideias do Abade Suger de Saint-Denis e de Bernardo de Claraval, extraídas do contexto mais amplo das reformas monásticas que lhes deram origem. Através da sua contraposição, caracterizar-se-á a mudança de paradigma que conduzirá a uma arte mais vocacionada para. 6. São estes instrumentos que determinam, também, a qualidade dos seus resultados: «There is an intimate relationship between architectural meaning and the modus operandi of the architect, between the richness of our cities as places of imagery and reverie, as structures of embodied knowledge for collective orientation, and the nature of architectural techne, the differing modes of architectural conception and implementation.» PÉREZ-GÓMEZ, “The Revelation of Order”, ed. cit., p. 5.. 5.

(12) o estímulo dos sentidos e assente em representações cada vez mais naturalistas. Tal acontecerá a propósito da escultura, da pintura e da literatura, enquadradas pelo pensamento teórico da época. O terceiro capítulo foca concretamente a representação espacial, à luz da evolução descrita no capítulo anterior. Identificar-se-ão os avanços no sentido de representar o espaço de forma cada vez mais naturalista e, progressivamente, científica. O exemplo da Basílica de Assis servirá para analisar os ensaios pictóricos que precederam a fixação de uma técnica perspéctica, bem como a sua vocação ilusionística. Por fim, caracterizar-se-á a perspectiva como método científico, ponto de chegada simbólico para o desejo de rigor na representação espacial, um dos traços definidores do dealbar da Idade Moderna. O quarto capítulo, menos vinculado a uma progressão cronológica, acompanha a “construção” de uma “imagem”, tendo por base os elementos reunidos nos três capítulos anteriores e introduzindo outros. Em jeito de conclusão, tecer-se-á considerações sobre as implicações históricas, científicas, artísticas e filosóficas da introdução da perspectiva. E procurará dar-se conta da magnitude do fenómeno e das profundas mudanças que operou, na vista, em geral, e no trabalho do cientista e do arquitecto, em particular. Nas considerações finais proceder-se-á a uma breve reavaliação das etapas da análise proposta ao longo do estudo. Completam o texto a selecção bibliográfica e um anexo documental, que reúne as ilustrações a que o texto faz referência.. 6.

(13) CONSIDERAÇÕES HERMENÊUTICAS O fenómeno da representação espacial pode ser reconduzido ao problema mais vasto da representação gráfica. Em ambos os casos, o que está em jogo é o estatuto referencial das imagens, o valor da informação que veiculam e, sobretudo, a sua relação com a realidade representada. É a natureza desta relação que determina o valor operativo de cada imagem — e é ela que ocupará o centro da nossa análise. Partir-se-á da convicção fundamental de que toda a imagem representa uma realidade possível: aquilo que mostra não é o mundo mas apenas um mundo, de entre uma infinidade de mundos possíveis. O seu olhar é sempre o resultado de uma construção e, por isso, o reflexo de uma síntese irredutível a esta ou àquela realidade concreta. Isto significa que nenhuma representação é neutra em relação àquilo que representa — mesmo quando procura “apagar-se” e confiar o protagonismo da relação ao objecto representado. Todas as representações se mostram a si mesmas no objecto representado e condicionam, necessariamente, o modo como este aparece ao observador e o tipo de informações que é capaz de veicular. À luz desta verificação, a oposição entre representações ditas abstractas e representações ditas realistas pode ser entendida como a tomada de consciência, mais ou menos explícita, da não-neutralidade dos meios de representação7. A análise que se segue, guiada por esta tomada de consciência, procurará revelar os meios de representação na sua opacidade e determinar o modo como condicionam a experiência do objecto representado. Procurar-se-á olhar cada imagem não apenas por aquilo que mostra efectivamente, mas por aquilo que pretende mostrar, pelo modo como o faz e pelos motivos por que o faz. Será sobretudo na capacidade de significação das próprias representações, e não no seu conteúdo imediato, que focaremos a nossa atenção.. 7. Historicamente, esta tomada de consciência parece ter-se revelado, com um vigor até então desconhecido, no final séc. XIX. Por uma série de razões — entre as quais, muito brevemente: os desenvolvimentos da filosofia idealista e da filosofia da linguagem, a introdução da fotografia (e, mais tarde, do filme animado) ou as inovações tecnológicas do mundo industrial —, a viragem do século ficou marcada, nas arte visuais, por uma tomada de consciência da representação enquanto entidade mediadora, mas autónoma. Isso explica o fascínio crescente com o próprio gesto de representar, arrancado ao anonimato a que o condenara, involuntariamente, a arte “pré-conceptual”. Com efeito, um dos temas favoritos da arte modernista será a exploração dos modos (e dos limites) da representação — seja na pintura, na escultura ou na literatura,. 7.

(14) Em termos gerais, o estudo proposto consistirá numa breve análise histórica, balizada no tempo e no espaço, e servir-se-á de fontes documentais e exemplos concretos para fundamentar as suas conclusões. No entanto, antes de apresentar esses exemplos, impõe-se ainda um breve esclarecimento sobre os métodos e os objectivos implicados na sua recolha. O que se pretendeu fazer não foi um roteiro cronológico exaustivo, ou sequer um estudo detalhado sobre este ou aquele momento histórico, sobre esta ou aquela obra de arte. Procedeu-se, antes, a um acompanhamento crítico da história dos meios de representação espacial, segundo critérios específicos. A análise deter-se-á nas circunstâncias concretas da introdução desses meios (ou da sua vigência) na medida em que estas ajudem a compreender as suas implicações conceptuais e o modo como influenciaram a cultura visual e arquitectónica do seu tempo — tanto ao nível da sua prática como do seu entendimento e da sua recepção. De igual modo, ao situar cada representação na época e no lugar onde teve origem, e ao identificar o seu autor ou a sua filiação, não se procurou traçar o seu perfil histórico exacto, mas compreender de que modo o contexto em que se inseriu terá condicionado o seu poder de significação. E não se tratará, tão-pouco, de procurar vestir a pele de um homem medieval ou renascentista e reencenar a sua cultura e o seu modo de pensar. Mais uma vez, não serão as circunstâncias concretas relativas à proveniência de cada imagem ou de cada registo gráfico que ocuparão o centro da análise, mas a sua fundamentação conceptual. Procurou-se, assim, ter em conta cada lugar e cada época na medida em que propiciaram a introdução de determinada ideia ou prática — ou, recorrendo ao conceito cunhado por André Leroi-Gourhan, na medida em que constituíram um milieu favorable ao seu aparecimento8. Em suma, o percurso histórico desenhado será um percurso “interessado”. E é evidente que um empreendimento deste género implica, sempre, algum grau de distorção9. Falar-se-á de Roriczer, mas não de Villard de Honnecourt; discutir-se-á o. através dos impressionismos, dos expressionismos ou dos cubismos. Todos, pese embora a sua enorme variedade, deram azo a reflexões sobre os actos de ver e dar a ver. Ao entronizarem o tema da representação, subtraíram a arte ao jugo da “realidade” e enunciaram a possibilidade de uma nova objectividade criativa, regida por regras inteiramente diferentes. 8 Cf. LEROI-GOURHAN, Milieu et Techniques, ed. cit., passim. 9 Relembre-se a consideração metodológica de Panofsky, a propósito da disciplina da História de Arte: «However we may look at it, the beginning of our investigation always seems to presuppose the end.» PANOFSKY, Meaning in The Visual Arts, ed. cit., p. 32.. 8.

(15) contributo de Alberti, mas calar-se-á o de Piero della Francesca; falaremos de pintura a propósito de uma discreta capela francesa de província, e de escultura a propósito daquela que é, porventura, a mais famosa catedral gótica de França; deter-nos-emos na Basílica de Assis, onde os pueris ensaios perspécticos darão azo a reflexões sobre realidade virtual; finalmente, seremos inevitavelmente breves na abordagem da invenção revolucionária que foi a da imprensa tipográfica. Os exemplos escolhidos e os pontos de viragem assinalados não coincidirão, necessariamente, com as balizas geográficas e temporais consagradas pela historiografia tradicional e serão mais numerosas as omissões que as menções. Mas terão todas um carácter exemplar. Isso justificase, não só, pela dimensão necessariamente reduzida de uma análise desta natureza, mas sobretudo pelo enfoque que se procurou dar aos problema identificados. Enquanto disciplina autónoma, a Arquitectura é definida, em grande medida, pelo recurso à representação espacial enquanto instrumento mediador. Daí decorre, naturalmente, a pertinência do estudo desses meios de representação, sejam eles o desenho, a fotografia ou a imagem digital. Como já se disse, estes não possuem o mesmo valor conceptual, nem são interpretados da mesma forma — assim como não o é qualquer representação espacial, em sentido lato, seja ela elaborada por um técnico não arquitecto, por um artista visual ou por um amador. E, contudo, devido ao seu estatuto referencial, a natureza destas representações nem sempre é posta em causa. Assim como, para os arquitectos, o desenho não é, simplesmente, a descrição rigorosa de uma realidade por vir, a representação em geral não é só, inversamente, a cristalização de uma realidade já existente 10. E embora seja comum falar-se, hoje, de uma sobremediatização da arquitectura e das suas consequências nocivas, esta crítica foca geralmente a quantidade em detrimento da qualidade e coíbe-se, a mais das vezes, de analisar os próprios veículos dessa mediatização. Assim, esperamos que o tratamento das questões propostas por esta análise contribua para uma genealogia. 10. Evans enuncia a distinção, numa comparação entre Arquitectura e Pintura: «In painting, until well into the twentieth century, the subject was always (...) taken from nature. (...) the subject, or something like it, is held to exist prior to its representation. This is not true of architecture, which is brought into existence through drawing. The subject-matter (the building or space) will exist after the drawing, not before it. (...) Drawing in architecture is not done after nature, but prior to construction; it is not so much produced by reflection on the reality outside the drawing, as productive of a reality that will end up outside the drawing.» EVANS, Translations from drawing to building, ed. cit., p. 165.. 9.

(16) possível dos conceitos que definem a prática arquitectónica na actualidade. E se é verdade que tal pode dizer-se de qualquer análise que se debruce sobre qualquer tema relacionado com a Arquitectura, parece-nos necessário que, ocupando a imagem um lugar tão destacado na cultura arquitectónica contemporânea, se revisitem, hoje mais do que nunca, as formas do passado que estiveram na sua origem. Não será exagero considerar que as inovações processuais introduzidas há quinhentos anos geraram hábitos que são, ainda hoje, não só os da prática profissional dos arquitectos, como os da investigação científica e da própria visão, no sentido mais lato do termo. No campo concreto da Arquitectura, o desenho enquanto actividade independente e anterior ao início da construção, a autonomia profissional do arquitecto enquanto profissional liberal e autor do projecto, a relação com o cliente, o interesse pluridisciplinar por matérias tão diversas como o desenho, a tectónica, a História da Arte ou a Filosofia (todas elas leccionadas em escolas de Arquitectura), tudo isto pode ser reconduzido ao alvor da modernidade e aos novos paradigmas então introduzidos. E se, como muitos prevêem, esses hábitos estão próximos de um fim (espelhando o fim análogo da “era da imprensa”, ditado pela hegemonia do digital), será importante, mais do que redigir um obituário (sob pena de se cair num exercício meramente nostálgico, reaccionário ou inoperante), compreender exactamente o que está em jogo na mudança de paradigma que agora se anuncia. Por fim, embora os problemas aqui analisados se reportem à representação espacial como foi praticada na transição para a modernidade, o ponto de vista deste estudo é, forçosamente, o do momento em que é escrito: a contemporaneidade. Isso será evidente ao longo do texto, na selecção dos aspectos tomados como mais relevantes, seleccionados de entre muitos outros possíveis. Reler a origem e a ascensão da preponderância hodierna do elemento visual, com o distanciamento que nos permite a História entretanto decorrida, pareceu-nos um exercício potencialmente revelador. E esperamos que tal possa contribuir para uma compreensão mais informada — e, por isso, criticamente mais rica — dos seus desenvolvimentos recentes.. 10.

(17) ESTADO DOS CONHECIMENTOS A análise proposta acompanha a evolução dos modos de representação espacial no período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna. O Renascimento, ponto de chegada genérico dessa transformação — e o Renascimento italiano, em particular —, é porventura o período mais estudado da História da Arquitectura. Andrea Palladio, por exemplo, é uma das figuras que mais fascínio exerceu sobre a classe arquitectónica, tanto como arquitecto quanto como autor e teórico. De igual forma, também Alberti é frequentemente apontado como o patriarca dos arquitectos modernos. Por isso, é vasta a bibliografia à disposição de quem se lance numa análise do período, no seu todo ou num aspecto circunscrito. O mesmo não pode afirmar-se, com igual segurança, do ponto de partida histórico do presente estudo. É certo que existem inúmeros estudos sobre a cultura construtiva medieval — o tema específico dos segredos maçónicos ligados aos grémios de construtores, por exemplo, suscitou desde sempre a curiosidade dos historiadores —, mas a escassez de documentação original levou, necessariamente, a uma historiografia de cariz mais especulativo (o mesmo se aplicando às épocas precedentes). O tema específico da representação espacial durante a Idade Média, quando não se atém a problemas técnicos, recai numa análise mais alargada do tema, que engloba o contexto filosófico, político e social da época. Estas breves observações genéricas permitem introduzir os critérios que presidiram, na preparação deste trabalho, à selecção da bibliografia primária — aqui entendida como a bibliografia que analisa directamente as fontes documentais, ou que está mais próxima delas. No caso do Renascimento, para evitar a dispersão (tanto nas fontes e como na própria argumentação desenvolvida), bem como um discurso de natureza demasiado generalista, recorreu-se a estudos mais focados sobre os temas em discussão — e, em concreto, a qualidade comunicativa das representações espaciais e as mudanças operadas nos métodos que lhes deram origem. Em relação à Idade Média, procuraram-se estudos igualmente focados, mas enquadrados pela visão global acima referida. Alguns autores merecem, neste contexto, uma menção especial, pela importância do seu contributo para a construção e o encadeamento da argumentação que a dissertação propõe.. 11.

(18) O trabalho de Erwin Panofsky foi não só útil como inspirador. A hipótese por ele suscitada acerca da correspondência entre filosofia escolástica e arquitectura gótica foi particularmente importante, tanto pela análise em si como pelo conjunto de possibilidades historiográficas que enuncia. Igualmente importante foi a sua tradução comentada dos escritos do Abade Suger e, ainda, a reflexão sobre a perspectiva como “forma simbólica”. Em qualquer destes casos, a análise desenvolvida permanece actual, seja pela abrangência do material tratado, seja pela natureza pluridisciplinar das suas reflexões. Foi também útil, no estudo da tradição oral medieval, o trabalho de outro historiador da mesma geração: Richard Krautheimer. A caracterização da Idade Média como um “tempo de oralidade” (por contraponto à comunicação através de imagens) deve muito ao artigo “Introduction to an ‘Iconography of Mediaeval Architecture’”, de 1942. No sentido de introduzir e definir essa iconografia, Krautheimer propôs-se analisar não só edifícios medievais, mas (e sobretudo) as suas descrições verbais ou desenhadas, para aí reconhecer os princípios estruturantes da prática arquitectónica medieval. Ao exumar o pensamento subjacente à concepção e representação da arquitectura da época, o autor interroga-se sobre natureza do “conteúdo” dessa arquitectura, bem como das suas representações, discutindo a sua capacidade de significação cultural e, acima de tudo, religiosa. Explora também o conceito de cópia vigente à época e a hierarquia de importância do material copiado, de modo a caracterizar os hábitos e as prioridades dos construtores medievais. Esta análise relaciona-se estreitamente com outra, mais recente, de Joseph Rykwert: “On the oral transmission of architectural theory”. Neste trabalho de 1984, o autor defende a eminência da oralidade e da memória na produção arquitectónica medieval, reforçando assim a ideia de que a teoria arquitectónica da época atribuía uma importância relativamente reduzida às representações arquitectónicas fiéis (no sentido hodierno que atribuímos aos conceitos de reprodução e cópia). Rykwert analisa, com esse fim, o exemplo sintomático do panfleto de Matthäus Roriczer. Na segunda metade do século XX, a historiografia da Arquitectura explorou caminhos alternativos à investigação puramente arqueológica e tornou-se mais permeável a outras áreas do conhecimento, como a Política, a Sociologia, a Economia e a Filosofia — o contributo crítico do estruturalismo francês, e das escolas pósmarxista e de Frankfurt, fizeram entrar nomes como Martin Heidegger, Walter. 12.

(19) Benjamin ou Michel Foucault no campo da reflexão sobre Arquitectura. Nasce assim uma nova geração de autores — radicados na Escola de Veneza e, depois, nos Estados Unidos, mas não só —, mais conscientes do potencial crítico do seu trabalho de investigação. São disso exemplo Manfredo Tafuri, Bruno Zevi ou Sigfried Giedion. Também nesta análise se procurou aplicar ao campo da produção arquitectónica dispositivos de reflexão que lhe são (ou foram) tradicionalmente externos, já que os fenómenos em estudo se encontram integrados em tendências mais gerais, com vastas ramificações — compreender uns implica, ainda que sucintamente, enquadrar os outros. Neste contexto, recorreu-se, implícita ou explicitamente, ao pensamento das escolas referidas, bem como às ideias de Marshall McLuhan, Nelson Goodman ou André Leroi-Gourhan. Paralelamente à abertura da reflexão arquitectónica a novos territórios, viu-se surgir, a partir da década de 60, análises (académicas ou literárias) cada vez mais focadas, tanto num objecto de estudo específico como na investigação de um aspecto concreto, transversal a mais do que uma obra, época ou fenómeno artístico. Esta tendência intensifica-se hoje, cada vez mais, devido ao alargamento do campo de estudo e ao aumento exponencial da quantidade de investigadores. Assim, no que respeita aos desenvolvimentos modernos da representação, a profusão de bibliografia disponível obrigou a restrições auto-impostas. Deu-se preferência, sobretudo, a estudos críticos — aqui entendidos como fazendo parte da historiografia que, de um modo geral, não recorre directamente a fontes 11 — e focados sobre temas relevantes para a análise. Falamos, concretamente, de autores como James Ackerman, Robin Evans, Mario Carpo e Alberto Pérez-Gómez. Para além de ancorar o estudo a um discurso académico mais recente, esta escolha permitiu, sobretudo, uma abordagem mais teórica das implicações da representação na transição para uma cultura moderna. Note-se, ainda assim, que parte destas investigações é assinada por arquitectos, ou produzida por um meio académico que acompanha, directamente, o seu trabalho. Se hoje, mais do que nunca, a relação umbilical entre a prática arquitectónica e formas de representação (ou nota11. É evidente que a bibliografia primária e a bibliografia crítica, nos termos aqui definidos, não são mutuamente exclusivas. Mas a distinção parece-nos pertinente, sobretudo, se se considerar que muitas das análises desenvolvidas pelos autores da segunda metade do séc. XX só seriam possíveis depois do “trabalho de campo” levado a cabo pelas gerações anteriores (por Panofsky e Krautheimer, nomeadamente). Mais: essa geração foi já, em alguns casos, a referência para análises mais abrangentes, indo muito além de uma análise arqueológica (no sentido mais estrito do termo).. 13.

(20) ção) espacial parece incontestável, a consciência dessa relação deu azo a uma produção teórica específica. Robin Evans é talvez o melhor exemplo desta tendência, relendo a história da representação arquitectónica com os olhos de um arquitecto, isto é, do ponto de vista da suas possibilidades operativas. Também James Ackerman se interessou concretamente pelas convenções gráficas utlizadas por arquitectos, bem como a sua origem e evolução histórica. Mas são porventura Carpo e Pérez-Gómez, pelo teor das reflexões que produziram, que mais interessam ao contexto deste estudo. Ambos transcendem o âmbito estrito da historiografia e procedem a análises transversais dos temas da imagem e da representação espacial ao serviço da prática e da cultura arquitectónica. A obra fundamental de Carpo (Architecture in the Age of Printing) ensaia uma análise global das implicações do advento da “era da reprodutibilidade técnica” (aproximando-se, assim, do famoso ensaio do mesmo nome, de Benjamin). Ao estudar como esta transformação afectou, em particular, as representações arquitectónicas, o autor também se debruça sobre a oposição entre a cultura oral da Idade Média e a cultura desenhada do Renascimento. Pérez-Gómez analisa, em diversas publicações, a relação entre arquitectura e ciência — ou entre arte e técnica — e avança a possibilidade de uma mutação da prática arquitectónica ocidental, que se intensificou a seguir ao Renascimento: o que havia sido especulação filosófica tornou-se progressivamente numa actividade dominada pela razão positivista e pela técnica. As análises de ambos os autores partem de um ponto de vista contemporâneo — não é por acaso, de resto, que a produção literária recente de ambos se interessa pela contemporaneidade da prática arquitectónica e, nomeadamente, pela hegemonia recente do recurso a ferramentas digitais.. 14.

(21)

(22) 1. Comunicação sem imagens. No ano mil, o Ocidente vivia ainda os efeitos da queda do Império Romano. Desde que os bárbaros haviam atravessado o Reno e o Danúbio, a Europa era um território rústico e pobre 12. Longe do fausto de Bizâncio, atravessava-se aquilo que os humanistas italianos baptizariam — a posteriori, e servindo causa própria — de Idade das Trevas. O epíteto é geralmente atribuído a Petrarca, cujo fascínio pelo Império Romano o levou a reconhecer, no período que à queda deste se seguiu, um retrocesso civilizacional13. A geração seguinte de humanistas, já plenamente empenhada em fazer renascer a cultura clássica, daria por terminado o interregno, conferindo pleno sentido à designação de “Idade Média”14.. 12. Cf. DUBY, O Tempo das Catedrais, ed. cit., p. 13 e DUBY, O Ano Mil, ed. cit., pp. 29-30. Cf. MOMMSEN, op. cit., passim. 14 Embora, em certa medida, esta segmentação da História europeia ainda hoje vigore, foi sendo sucessivamente matizada. Se, por um lado, era evidente o desinteresse de Petrarca pela Idade Média — para ele, Carlos Magno, por exemplo, era um simples rei que só os povos bárbaros se atreveriam a comparar com Pompeu ou Alexandre (cf. MOMMSEN, ibid., p. 235) —, por outro, a historiografia moderna (e a do séc. XX em especial) interessou-se pelos proto-renascimentos do período (nomeadamente o carolíngio, epónimo daquele rei) e reconheceu o lugar histórico daquilo a que Panofsky chamaria, no plural, as “renascenças” (cf. PANOFSKY, Renaissance and Renascences, ed. cit., pp. 42-113 e FERGUSON, op. cit., passim.). No âmbito deste trabalho, utilizar-se-á a designação genérica de “Idade Média” (bem como o adjectivo “medieval”) para referir o período convencionado entre os sécs. V e XV. 13. 16.

(23) CAOS E COSMOS Numa Europa essencialmente rural, os mosteiros foram, além de depositários da cultura erudita do passado, importantes pólos de desenvolvimento local. Em alguns casos — como, entre nós, o dos Cistercienses de Alcobaça —, o Abade era senhor de um verdadeiro feudo, com privilégios directamente outorgados por reis e papas. As comunidades de monges sob a sua tutela viviam mais ou menos recolhidas em oração, conforme a ordem que professavam, mas quase sempre dinamizando a paisagem em seu redor, nomeadamente através do trabalho agrícola. A sua vida esteve estritamente ligada às moradas que construíram para si: o mosteiro era um universo fechado, auto-suficiente, pensado para a vida em comum. Os espaços do quotidiano — o capítulo, o dormitório, o refeitório, a cozinha — estavam organizados em torno de um claustro, «uma ilha de natureza (...) rectificada, separada do mundo mau que a rodeia, um lugar onde o ar, o sol, as árvores, os pássaros, as águas correntes reencontram a frescura e a pureza dos primeiros dias do mundo». Por outras palavras, «o claustro arranca um lanço do cosmos ao desregramento que naturalmente o afecta. Restabelece-o em proporções harmoniosas. Aos que escolheram retirar-se para ele, fala a linguagem acabada, cumprida do outro mundo» 15. Adossada ao claustro encontrava-se a estrutura mais importante do complexo abacial: a igreja. Aí se celebrava a liturgia, actividade comunitária por excelência. Quando não estavam a trabalhar, os monges rezavam e o regresso frequente ao espaço da igreja, a horas certas, marcava o ritmo dos dias. Rezava-se também de noite, às vezes interrompendo o sono, o que explicava a proximidade do dormitório à igreja. Como essa, outras razões de natureza prática determinavam a disposição espacial da abadia. Quando, após o Édito de Milão, os cristãos romanos puderam finalmente erguer os seus espaços de culto, escolheram como modelo, não os templos dedicados aos deuses do panteão latino, mas a basílica romana, um espaço público de reunião capaz de abrigar grupos numerosos. A sua presença arquetípica perdurou até aos nossos dias, implícita ou explicitamente, como modelo e como vocábulo16, e. 15. DUBY, O Tempo das Catedrais, ed. cit., p. 276. Pese embora as transformações a que foi sendo sujeita e a antiga concorrência com a planta centralizada, que ganhou novo fôlego na Renascença Italiana. Cf. WITTKOWER, op. cit., pp. 1-33 e LOTZ, op. cit., pp. 66-73. 16. 17.

(24) as igrejas foram quase sempre sendo concebidas para escutar a palavra. Para além disso, deviam permitir uma circulação fácil no seu interior, particularmente as que acolhiam um número elevado de peregrinos, que ali iam adorar uma relíquia ou paravam em trânsito para qualquer outro destino sagrado. Seria, porém, míope reconhecer nessas igrejas somente uma resposta pragmática aos problemas enunciados, e outros do mesmo tipo. Factores como a proximidade ao dormitório ou a fácil circulação dos fieis explicam apenas em parte a forma do edifício, já que a função predominantemente religiosa destes espaços transcendia, em muito, essas condicionantes de ordem funcional. A igreja está, por exemplo, orientada de acordo com os quatro pontos cardeais e inscreve-se assim, pela sua implantação, numa ordem supraterrena. Os significados desta configuração espacial são múltiplos e variam de acordo com as interpretações — nomeadamente, a ideia de que o Sol nascente que iluminava o altar-mor revelava o ideal divino como objectivo a atingir no final da progressão pela nave; e, de modo simétrico, a ideia de que a entrada da igreja, ao receber os últimos raios do Sol poente, estava associada ao Mal e era a charneira entre o mundo terreno e o espaço sagrado17. No entanto, independentemente da exegese adoptada, bastará neste contexto observar, de modo genérico, que o espaço da igreja remete para um mundo cujo significado transcende o problema puramente material que coloca. E se nem todos os que nele entravam seriam sensíveis às implicações abstractas da sua implantação, o mesmo não poderá dizer-se dos efeitos que produzia. Ao fazer coincidir a incidência do Sol com o eixo da nave principal, o espaço da igreja recebe poeticamente a luz e confere-lhe um sentido metafórico: é o Sol que gira à sua volta — e não o contrário, cuja constatação levaria Galileu ao Santo Ofício. Contudo, mais do que receber a luz solar, cujas possibilidades expressivas seriam, como se verá, amplamente exploradas nas catedrais Góticas por vir, as igrejas monásticas (e as igrejas românicas, em geral) eram espaços interiores, quase uterinos. O seu carácter fortificado protegia os fiéis (simbólica e literalmente) de um mundo hostil e acolhia-os num espaço que evocava o mundo divino. A decoração do inte-. 17. Cf. DOW, op. cit., p. 291. O tímpano do pórtico era, por isso, um lugar privilegiado para as representações do Julgamento Final. Ainda segundo esta autora, os extremos do transepto, o Norte, mais escuro, e o Sul, mais luminoso, representariam a Antiga e a Nova Aliança, respectivamente.. 18.

(25) rior era, assim, determinante para dotar o edifício de significado religioso e isso era evidente logo à entrada: «Habituados finalmente os olhos à penumbra, logo o mudo discurso da pedra historiada, acessível como era imediatamente à vista e à fantasia de qualquer um (porque pictura est laicorum literatura), fulminou o meu olhar e mergulhou-me numa visão de que ainda hoje a custo a minha língua consegue falar.» 18. Quem assim fala é o narrador de O Nome da Rosa, admirando o portal da igreja no mosteiro beneditino que servirá de cenário à intriga19. Nas páginas seguintes, Adso de Melk verá ainda a sua alma arrebatada, ora «por aquele concerto de belezas terrenas e de majestosos sinais sobrenaturais», ora por «outras visões horríveis de ver, e justificadas naquele lugar só pela sua força parabólica e alegórica ou pelo ensinamento moral que transmitiam»20. O pórtico era a entrada simbólica da casa de Deus, dando acesso a um céu recriado na terra. A transposição do pórtico de entrada assumia, assim, um carácter iniciático, a um tempo místico e pedagógico, onde se justificavam até «visões horríveis», pela sua «força parabólica e alegórica» [fig.11]. Fosse através da estrutura, do controlo da luz ou da «pedra historiada», esta capacidade de evocar o divino foi central na concepção medieval da arte, e da arquitectura em particular. Assim como o claustro era um pedaço de paraíso resgatado ao desregramento do universo, também a igreja, ao inscrever-se numa narrativa metafísica, suspendia o terreno e convocava o divino, habilitando o espaço ao ritual litúrgico. Ao tempo dos mosteiros suceder-se-ia “o tempo das catedrais”. Se à igreja abacial, centro isolado num mundo rural, opusermos a catedral, sua congénere urbana, facilmente se compreende que a capacidade de dotar um lugar de significado religioso conheceu diferentes graus de sofisticação. A catedral era o centro da vida cosmopolita que novamente despontava na Europa e que brilharia, em especial, na França dos sécs. XII e XIII 21. A rodeá-la já não está um mosteiro mas uma escola (e, depois, uma universidade) e para lá dos seus muros já não se avista o mundo rural mas a cidade.. 18. ECO, op. cit., pp. 43-4. A inspiração para a escultura do tímpano ficcionado por Eco vem do pórtico sul da igreja da Abadia de Moissac, esculpido no séc. XII. Cf. RUDOLPH, A Companion to Medieval Art, ed.cit., pp.38-9. 20 ECO, op. cit., p. 46. 21 Cf. HEERS, op. cit., pp. 151-5. 19. 19.

(26) A discussão sobre o perfil dos homens que construíram as catedrais do Gótico esteve na origem de acesas polémicas — as hipóteses avançadas pelos historiadores imputam o trabalho tanto a membros do clero como a construtores profissionais22. Não obstante, certo é que a actividade construtiva se vinha especializando [fig. 1]. A complexidade estrutural e a exuberância decorativa das catedrais da Île-de-France, em particular, revelam notórios avanços da técnica construtiva e uma carga simbólica que faz o estilo Românico de muitos mosteiros parecer modesto ou atarracado. Nascia assim aquilo que ficou conhecido, à época, como opus francigenum. Os pórticos de entrada, por exemplo, transformar-se-iam em monumentos quase autónomos, valendo por si mesmos. Para Duby, eles são nada menos que a razão de ser dos transeptos das catedrais francesas, que já não têm «outra função que a de dispor ao norte e ao sul do edifício um pórtico tão vasto, tão convincente como aquele que se vira para poente»23. Apresentam ilustrações teatrais, cada vez mais complexas, dos dogmas da Igreja e das histórias da Bíblia. O seu programa decorativo integra uma estratégia mais vasta de catequização direccionada a quem não fala latim, já que «pictura est laicorum literatura». A nova igreja é mais alta e mais clara, volta-se para o céu e é mais transparente, o que é evidente no exterior mas também no interior, que agora se encheria de luz. Na Abadia de Saint-Denis, o ilustre Abade Suger (a que regressaremos) fez erguer um «novo coro transparente, que substituiu a abside carolíngia opaca, e que seria acompanhado de uma nave igualmente luminosa», sendo todo o edifício «inundado de uma luz mais brilhante que até então.»24 A luz como metáfora divina foi um dos temas centrais da arquitectura gótica, associada à ideia de transparência25. Esta ditaria o gosto por panos parietais mais ligeiros (por oposição às paredes maciças românicas, menos perfuradas para evitar o enfraquecimento estrutural) e cumprir-se-ia. 22. Sobre o perfil dos “arquitectos” na idade média: «(...) much fruitless discussion about how many medieval masons were also clergy — and whether clergy were or were not architects — broke on the assumption of a rigid professionality among medieval designers and masons, parallel to that of modern practitioners, while the few documents, such as the records of discussions at Florence and Milan cathedrals, show that clergy and masons and laymen all frequently took design decisions collegially or, as we would now say, in committee.» RYKWERT, “On the Oral Transmission”, ed. cit., p. 15. 23 DUBY, O Tempo das Catedrais, ed. cit., p. 288. 24 SUGER, On the Abbey, ed. cit., p. 22 (tradução nossa). A citação é de Panofsky, interpretando as palavras que Sujer deixou escritas. Vide infra p. 33. 25 PANOFSKY, Gothic Architecture, ed. cit., p. 23. O «princípio da transparência» tem, para o autor, um significado mais amplo: transparência reflecte também o gosto conceptual por uma arquitectura estruturalmente mais clara, reconhecível e evidente.. 20.

(27) plenamente na exuberante arte do vitral, que ensinava enquanto surpreendia. A iridescência intangível dos seus efeitos caleidoscópicos era comparável à polifonia musical de Pérotin26 [fig. 9]. Assim como a luz do sol animava estas janelas coloridas, também Deus, enquanto luz espiritual, infundia vida na Igreja27. Os espaços e elementos estruturais e decorativos até aqui nomeados serão suficientes para mostrar que, através da manipulação destes e de outros dispositivos arquitectónicos, a arquitectura medieval (e a catedral em particular) é a concretização do edifício teórico da doutrina da Igreja, uma poderosa máquina de significação que emana de um meio académico sofisticado. As suas formas procedem da teologia e para ela remetem, como demonstrou Panofsky num célebre estudo sobre a relação recíproca entre Escolástica e arquitectura gótica 28. Para o historiador, esta reciprocidade verificou-se de forma «concentrada» (e porventura inédita) nos séculos XII e XIII, na região parisiense29. Segundo a sua análise, a arquitectura do período seria a expressão de um «hábito mental»30, uma forma de pensar transposta para a construção, como se a arquitectura gótica (e as catedrais da alta Idade Média, concretamente) fosse a manifestação, em pedra, da cosmovisão vigente, ou desejada. Isto verifica-se não só aos níveis decorativo (iconografia bíblica) e espacial (aproveitamento metafórico da disposição do espaço ou dos efeitos de luz), mas também de forma subliminar, a um nível tectónico e construtivo — isto é, na própria organização hierárquica dos elementos da construção 31.. 26. DUBY, O Tempo das Catedrais, ed. cit., p. 294. Cf. DOW, op. cit., p. 290. 28 Cf. PANOFSKY, Gothic Architecture, ed. cit., passim. A publicação corresponde a uma conferência proferida em 1948. Krautheimer aproxima-se desta visão, ao iniciar assim um artigo de 1942: «(...) no mediaeval source ever stresses the design of an edifice or its construction, apart from the material which has been used. On the other hand the practical or liturgical functions are always taken into consideration; they lead on to questions of the religious significance of an edifice and these two groups together seem to stand in the centre of mediaeval architectural thought. (...) The ‘content’ of architecture seems to have been among the more important problems of mediaeval architectural theory; perhaps indeed it was its most important problem.» KRAUTHEIMER, “Introduction to an Iconography”, ed. cit., p. 1. 29 Cf. PANOFSKY, Gothic Architecture, ed. cit.: «(...) we can observe (...) a connection between Gothic art and Scholasticism which is more concrete that a mere “paralellism” (...); a genuine causeand-effect relation (...).» (p. 20); «the High Gothic cathedral sought to embody the whole of Christian knowledge» (p. 44). O historiador chama «concentrated phase» ao período entre 1130-40 e meados de 1270 e refere, no plano geográfico, a «100-mile zone around Paris» (pp.20-1). 30 Ibid., p. 20. 31 De forma muito geral: o esquematismo escolástico, de que os escritos de Tomás de Aquino são um exemplo maior, formaliza princípios rígidos como a organização do todo segundo uma configuração de partes homólogas, logicamente relacionadas mas destrinçáveis entre si. Assim também, no campo da Arquitectura, os elementos construtivos eram tratados como os elementos de um dis27. 21.

(28) Na base da concepção arquitectónica medieval esteve, assim, o desejo de transpor para a construção conceitos cuja origem não é, em si mesma, material ou visual, mas religiosa, literária e filosófica. Se, por um lado, é verdade que a decoração figurativa estava presente, por outro, não o será menos que a prioridade não era reproduzir com exactidão gráfica formas específicas. Antes, evocavam-se conceitos através do uso conceptual da geometria, aplicada ao espaço. Esse, juntamente com a decoração, assumia um valor simbólico, que podia remeter para um sacramento ou um profeta, por exemplo, ou para o “céu” ou a “salvação”. De modo mais geral e sintético, o edifício procurava também encarnar, globalmente, conceitos como a unidade e a clareza 32.. UM DISCURSO INVISÍVEL Muitos são os testemunhos que dão conta de uma propensão generalizada, na Idade Média, para a palavra dita. Henri-Jean Martin, por exemplo, referindo-se às condições de difusão da literatura francesa do séc. XII, observa: «[Elle] était avant tout faite pour être récitée, ou lue à haute voix devant des auditeurs. Le public sachant lire n'était pas encore assez nombreux pour qu'il pût en être autrement. Il peut paraître à première vue surprenant qu'une tradition littéraire considérable ait pu se développer dans de telles conditions, mais c’est parce que, pénétrés comme nous le sommes de culture écrite, nous n'arrivons plus à faire l'effort d'imagination suffisant pour nous représenter le mécanisme des transmissions littéraires orales, pourtant attesté dans de nombreuses civilisations.» 33. O mesmo autor cita, em seguida, o exemplo dos jograis itinerantes na França dos sécs. XI e XII, que viajavam de corte em corte recitando de cor poemas, romances e. curso filosófico, determinando, nomeadamente, a hierarquia de elementos estruturais (ou estruturantes) e a sua relação entre si e com o todo. Ibid. p. 31 e passim. 32 Dow dá seguimento às ideias de Panofsky e escreve: «(...) the Gothic cathedral is said to be the Neoplatonic visualization of that cosmic harmony whereby all creation mirrors the divine reality. Or, alternatively, it has been seen as the material result of an architectural synthesis with its spiritual parallel in the synthesis of faith and reason at which the Thomist aimed.» DOW, op. cit., p. 290. 33 MARTIN, op. cit., p. 28. O autor acrescenta ainda: «Il semble cependant qu'à notre époque ces nouveaux moyens de diffusion non écrite de la pensée que sont le cinéma, et surtout la radio, devraient nous aider à mieux concevoir ce que peut être, pour des millions d'individus, une transmission d'œuvres et d'idées n'empruntant plus le circuit normal du texte écrit.». 22.

(29) vidas de santos — faziam-no em verso por assim lhes ser mais fácil memorizar esses textos34. Os estudiosos, por outro lado, tinham à sua disposição manuscritos que podiam (e sabiam) ler, mas, antes da imprensa de Gutenberg, o seu número era muito reduzido. Viam-se assim constrangidos a lê-los em voz alta: fazendo-o, memorizavam-lhes o conteúdo e podiam assim dispensar a presença física dos textos35. Uma cultura que dependia da oralidade estava, assim, necessariamente subordinada à memória dos homens, a qual que procurava auxiliar através de processos mnemotécnicos. Já Vitrúvio, mil anos antes — e Pitágoras, meio milénio antes dele —, se mostrara empenhado em abreviar o discurso para facilitar a sua memorização: no preâmbulo do quinto livro do seu célebre tratado, o autor promete explicações expeditas, «para que sejam entregues à memória» 36. Na ausência de métodos para reproduzir fielmente imagens, também a transmissão de conhecimento técnico foi confiada à oralidade. Todavia, no contexto da construção medieval, outra razão determinante pode apontar-se para a persistência da tradição oral (e, simetricamente, para a rareza do registo escrito ou desenhado): o sigilo imposto pelos grémios de construtores. Se, por um lado, os seus membros comunicavam entre si, formavam aprendizes e desejavam legar o seu conhecimento a futuras gerações, por outro, paradoxalmente, pretendiam também proteger do olhar de estranhos os segredos da sua profissão, numa lógica corporativa de protecção da classe. Esta propensão secretista alimentou mitos e lendas que ora estimularam ora dificultaram a tarefa dos historiadores. Ainda assim, é consensual que existiram, de facto, imposições formais com vista a proteger os segredos da profissão (independentemente de terem sido mais ou menos restritivas, nesta cidade ou na-. 34. Ibid., p. 29. Cf. CARPO, Architecture in the Age, ed. cit., pp. 24-5 e nota 10. Também Duby fala de monges medievais que deviam «ler e reler em voz alta» os livros iluminados que anualmente recebiam. DUBY, O Tempo das Catedrais, ed. cit., p. 277. 36 «Escrever sobre arquitectura não é a mesma coisa que escrever história ou poesia. As histórias (...) entretêm os leitores (...) trazem várias espectativas de coisas novas. (...) Porém, isto não se verifica nos tratados de arquitectura, porque os vocábulos, concebidos pela própria especificidade da arte, trazem obscuridade à linguagem (...). Se os escritos que longamente divagam sobre os preceitos não forem resumidos e explicados em pequenas e claras definições, tornam-se confusos para as mentes (...). Nestas circunstâncias, brevemente exporei os difíceis termos técnicos e as proporções das partes dos edifícios, para que sejam entregues à memória. E, desse modo, as mentes poderão recebê-los de modo mais expedito. Até porque, vendo a cidade ocupada com os negócios públicos e privados, julguei que deveria escrever em poucas palavras, para que os que recorrem a este tratado pudessem rapidamente consultá-lo no pouco tempo livre de que dispõem.» VITRÚVIO. Tratado de Arquitectura, ed. cit., p. 175. É o próprio Vitrúvio que, a seguir, cita Pitágoras como inspiração. 35. 23.

(30) quele período), mantendo-se, em alguns casos, em vigor até ao séc. XVIII. Reguladas pelos estatutos das próprias organizações corporativas, estas restrições incluíam, por exemplo, a proibição expressa de registar por escrito segredos técnicos da profissão37. Havia, pois, que assegurar a transmissão de conhecimentos e, no mesmo gesto, impedir a sua divulgação aos não-iniciados: era necessário um discurso invisível. Ora, é precisamente à luz deste binómio dialéctico que deve ser interpretada a justeza da tradição oral, sob pena de se incorrer na simplificação de considerar a “falta de desenho” da cultura arquitectónica medieval como um defeito, ou tão-só como um estádio tecnologicamente deficitário, por oposição à era da imprensa que se lhe seguiu. Em certa medida, pode até dizer-se que esse avanço tecnológico não era sequer bem-vindo, não apenas pelo zelo secretista, mas também, como se verá, pela própria natureza do discurso veiculado. Para compreender esse discurso, e especificamente como a sua forma influenciou o seu conteúdo, será útil analisar em que condições ele circulou para lá de um âmbito mais restrito. Um dos traços distintivos da arquitectura medieval foi, precisamente, a incapacidade de sobreviver incólume a viagens no espaço e no tempo. E, no entanto, tal não significa que o conceito de “cópia” fosse desconhecido, ou que os construtores da Idade Média não tenham querido (e conseguido) importar edifícios de outros lugares. Antes pelo contrário: um estudo de Richard Krautheimer põe em evidência a intenção deliberada de imitar certas construções arquetípicas, elegendo-a como um aspecto central das tradições arquitectónicas românica e bizantina38. No entanto, estas cópias não parecem assemelhar-se aos seus originais, nem, tão-pouco, entre si. A elucidação dessa aparente discrepância ajuda-nos a compreender não só o conceito medieval de cópia, como também alguns princípios da própria arquitectura da época e das suas representações. À medida que evoluíram os mecanismos de transmissão e disseminação de informação (com recurso a imagens rigorosamente desenhadas e reproduzidas), modernizou-se também o conceito de “cópia” até ao que é hoje o nosso. Na Idade Média, porém, copiava-se com base noutros critérios. Com. 37. CARPO, Architecture in the Age, ed. cit., p. 25 (para uma bibliografia actualizada sobre o tema ver nota 13). 38 Cf. KRAUTHEIMER, “Introduction to an Iconography”, ed. cit.. 24.

Referências

Documentos relacionados

O candidato e seu responsável legalmente investido (no caso de candidato menor de 18 (dezoito) anos não emancipado), são os ÚNICOS responsáveis pelo correto

A espectrofotometria é uma técnica quantitativa e qualitativa, a qual se A espectrofotometria é uma técnica quantitativa e qualitativa, a qual se baseia no fato de que uma

o transferência interna: poderá requerer transferência interna o aluno que esteja regularmente matriculado na Universidade no semestre em que solicitar a transferência e

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Apothéloz (2003) também aponta concepção semelhante ao afirmar que a anáfora associativa é constituída, em geral, por sintagmas nominais definidos dotados de certa

A abertura de inscrições para o Processo Seletivo de provas e títulos para contratação e/ou formação de cadastro de reserva para PROFESSORES DE ENSINO SUPERIOR

By interpreting equations of Table 1, it is possible to see that the EM radiation process involves a periodic chain reaction where originally a time variant conduction

O desenvolvimento desta pesquisa está alicerçado ao método Dialético Crítico fundamentado no Materialismo Histórico, que segundo Triviños (1987)permite que se aproxime de