• Nenhum resultado encontrado

OS DIREITOS HUMANOS NA FORMAÇÃO INTELECTUAL DO JOVEM MARX

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "OS DIREITOS HUMANOS NA FORMAÇÃO INTELECTUAL DO JOVEM MARX"

Copied!
27
0
0

Texto

(1)

ISSN 1982-0496

Licenciado sob uma Licença Creative Commons

OS DIREITOS HUMANOS NA FORMAÇÃO INTELECTUAL DO JOVEM MARX HUMAN RIGHTS IN THE INTELLECTUAL FORMATION OF THE YOUNG MARX

Matheus Felipe de Castro

Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Professor Adjunto do Curso de Graduação em Direito da UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina; Coordenador Acadêmico Adjunto e Professor Titular do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais da UNOESC - Universidade do Oeste de Santa Catarina; Professor Visitante da ESA/SC - Escola Superior da Advocacia de Santa Catarina.

“Fica certo que eu não trocaria nunca Minha sorte miserável por tua servidão. Porque prefiro mil vezes a prisão neste rochedo Que ser, de Zeus pai, fiel lacaio e mensageiro”

(Prometeu Acorrentado, Ésquilo)

Resumo

O presente artigo aborda o humanismo na formação do pensamento intelectual do jovem Marx. Busca entender como esse humanismo influenciou a sua obra de maturidade. Como se sabe, Marx foi um crítico dos Direitos Fundamentais, que para ele eram direitos da sociedade burguesa. Isso leva ao seguinte problema: apesar dessa crítica, Marx seria ou não seria essencialmente um pensador humanista? Para realizar a tarefa proposta, adotamos como método a análise dos textos escritos entre 1843-1844, destacando nesses textos elementos que possam subsidiar o entendimento do problema aqui proposto. O referencial teórico, naturalmente, se circunscreve ao próprio marxismo.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Direitos Humanos. Humanismo. Marxismo.

Abstract

This article discusses the humanism in the formation of intellectual thought of the young Marx. Seeks to understand how this humanism influenced his mature work. As we know, Marx was critical of

(2)

Fundamental Rights, which for him were the rights of bourgeois society. This leads to the following problem: despite this criticism, Marx would or would not be essentially a humanist thinker? To complete the proposed task, we adopted the method the analysis of texts written between 1843-1844, highlighting those text elements that can support the understanding of the problem here proposed. The theoretical framework, of course, is limited to Marxism itself.

KEYWORDS: Fundamental rights. Human rights. Humanism. Marxism.

1. UMA INTRODUÇÃO HISTÓRICA

No poema de Ésquilo, o “Prometeu Acorrentado”, há algo de simbólico que deve ser descortinado: quando o herói subtraiu o fogo aos deuses entregando-o aos homens, de alguma forma humanizou os deuses ao mesmo tempo em que divinizou os homens. De posse da chama sagrada os homens poderiam erguer os olhos para os céus e dominar, através de seu trabalho, de sua ação, os outros animais, as forças ocultas da natureza, o aço, a espada, a guerra, o comércio e transformar a vida em uma nova natureza, uma natureza paralela fundada pela sua autoatividade. A natureza humana como produto da construção consciente da própria humanidade.

Nessa construção, o fogo se constituía em importante ferramenta de trabalho, através da qual os homens poderiam promover a transformação da natureza, amoldando-a às suas finalidades e necessidades. Tal audácia ou petulância ferira profundamente o orgulho dos deuses, ao ponto de levar Zeus a ordenar que Prometeu fosse acorrentado em uma rocha onde, pela eternidade, deveria torrar sob o sol e a ter seu fígado devorado por uma ave de rapina.

Triste sorte a de Prometeu que cometera um crime hediondo: legara aos homens o destino de construir a sua própria história, apesar de todas as determinações do passado, fazendo do humanismo, do reencontro do homem consigo mesmo, o pressuposto de uma nova existência! Séculos mais tarde, uma charge alegórica publicada após o fechamento da Rheinische Zeitung mostrava Marx, com aspecto prometéico, acorrentado a uma prensa tipográfica, enquanto uma águia prussiana lhe devorava o fígado (WHEN, 2001, p. 54).

A força do pensamento desse Prometeu contemporâneo, Karl Marx, não só influenciou como reconfigurou todas as relações sociais desde o século XIX. Não há área do saber humano, da economia à política, da sociologia às humanidades, da

(3)

religião à filosofia, que por este pensamento não tenha sido influenciada. Não há pensador social que hoje, na contemporaneidade, não se obrigue a debater, concordando ou não, com o pensamento marxista.

Essa importância impõe a necessidade de reconstruir os passos que levaram aquele poderoso pensador à formulação de um sistema complexo de interpretações e transformação radical da sociedade. Um pensamento que se autoproclamou antifilosófico, contrário a todo tipo de especulação ou contemplação do homem e da sociedade que estivesse divorciada de uma ação prática transformadora efetiva.

O pensamento de Marx, como ressaltou Lênin, não foi o produto de uma mente iluminada, mas a convergência histórica de três vertentes do pensamento e da prática ocidentais: a filosofia clássica alemã, sobretudo a dialética de Hegel e o materialismo de Feuerbach; a economia política inglesa, sobretudo as obras de Adam Smith (a quem Engels chamou de Lutero político-econômico), David Ricardo e Jean-Baptiste Say; e o socialismo francês, representado pelos socialistas utópicos, principalmente Saint-Simon, Fourier e Robert Owen (LÊNIN, 1977, p. 35).

Uma das polêmicas mais freqüentes entre os pensadores marxistas, principalmente depois da publicação tardia dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, em 1932, é a que versa sobre o papel do humanismo na estrutura do edifício marxista. Não faltaram pensadores que sustentassem a presença de um profundo humanismo no pensamento de Marx, a exemplo de Erich Fromm (1998) e, outros, que sustentassem ser o humanismo apenas um obstáculo idealista na formação de um pensador ainda jovem, que em sua maturidade construiria um pensamento anti-humanista, como é o caso de Louis Althusser (1999).

O fato é que nem mesmo os anti-humanistas negaram que o humanismo tenha estado presente na formação do pensamento do jovem alemão. Compreender o significado do humanismo na formação deste edifício teórico pode contribuir para uma nova relação com o marxismo, um novo viés interpretativo que faça despontar a importância do homem, tantas vezes negligenciada pelo chamado “economicismo” que se originou de uma interpretação reducionista, ligada à produção intelectual da 2ª Internacional de Kautsky e Plekhanov.

Para tanto, a recapitulação histórica dos escritos de juventude de Marx, aqueles formulados entre 1843-1844, será o caminho para que nos aproximemos do

(4)

significado da evolução do seu pensamento, das bases estruturantes dos seus escritos da maturidade, principalmente de “O Capital”, sua magnum opus.

O jovem Marx que nos primeiros anos da década de 40 não escondera seu pensamento ligado ao idealismo hegeliano, já no biênio 43-44, acertou contas com Hegel, negando o seu idealismo sob influência das ideias de L. Feuerbach. Por outro lado esta influência fez com que Marx se afastasse da dialética hegeliana. Mais tarde, Marx acertaria contas com Feuerbach, negando o seu empirismo sensualista, sua visão atomizada do indivíduo e sua visão antidialética. A síntese desta luta entre o idealismo dialético de Hegel e o materialismo vulgar de Feuerbach no pensamento marxista, seria a formulação do materialismo dialético.

Nos primeiros tempos Marx travou uma intensa luta contra o idealismo de Hegel, principalmente em sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, passando pela Questão Judaica, pela Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e chegando à econômica política, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos. É neste percurso que surgirá uma concepção que terá na autoatividade humana, no trabalho, na produção seu ponto de partida para uma análise vigorosa do capitalismo, da sociedade burguesa e das perspectivas políticas socialistas que animariam o movimento proletário dali em diante.

2. OS JOVENS HEGELIANOS E A CRÍTICA À FILOSOFIA DE HEGEL

Georg Wilhelm Friedrich Hegel, o autor da Fenomenologia do Espírito (2001), da Ciência da Lógica (1995) e da Filosofia do Direito (1997) foi o último grande representante do racionalismo alemão e da tradição iluminista que em 1789 havia apaixonado os corações dos revolucionários franceses que tomaram a Bastilha de assalto. Em sua juventude, ainda universitário, quando soube da ocorrência daquele grande feito, plantou em companhia do amigo Shelling, uma “árvore da liberdade” na praça do Mercado de Tübingen, em homenagem aos revolucionários franceses.

Já velho, deploraria os valores da Revolução Francesa e cantaria as glórias de um Estado totalizante. Seu pensamento, de dificílima compreensão é, no entanto, de uma harmonia flagrante. Seu sistema dialético, de uma coerência absoluta.

(5)

A ideia da totalidade, da interconexão de todos os fenômenos, da unidade e luta dos contrários, da superação dialética (aufheben) como negação de uma determinada realidade, conservação de algo essencial à realidade negada e elevação da síntese a um nível superior, levavam a filosofia hegeliana a interpretações muitas vezes antagônicas, a afirmações absolutamente contrárias entre si.

Um grande exemplo encontra-se em uma passagem clássica de sua Filosofia do Direito, quando afirma que “O que é racional é real e o que é real é racional” (HEGEL, 1997, p. XXXVI). Esta frase passível de interpretações contraditórias, como veremos, foi o estopim de uma contenda que se formaria após a morte de Hegel em 1831, entre aqueles que se diziam seus seguidores. Surgiram, assim, os movimentos que ficariam conhecidos como a direita e a esquerda hegelianas.

Hegel foi um dos poucos, senão o único filósofo que mereceu uma interpretação de direita e outra de esquerda. As duas vertentes monopolizaram o debate a partir da famosa assertiva do filósofo: os primeiros, representantes da ala conservadora, a vertente que interpretava a obra do mestre no sentido da manutenção do establishment prussiano, se apoderavam da última parte da frase – “o que é real é racional” – para justificar o Estado prussiano como produto da realidade, devendo ser mantido. Por sua vez, os jovens hegelianos de esquerda, como bem asseverou Celso Frederico, preferiram enfatizar “o racional para contrapô-lo às mazelas da realidade, para mostrar que o momento da racionalidade ainda não tinha chegado e que ele só se efetivaria mediante a negação do existente e toda a sua gritante irracionalidade” (1995, p. 23).

É no seio desta plêiade de jovens pensadores, dos quais se destacaram Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer, Herman Hess, August Von Cieskówski, Arnold Ruge, Max Stirner, que desabrocharria o mais jovem e mais talentoso de todos: Karl Marx. Nascido em Trier (no Brasil, geralmente reproduz-se o francês Tréves), em 05 de maio de 1818 e falecido em 16 de março de 1884, na cidade de Londres, é o autor de uma obra extensa e complexa, fruto de uma constante evolução que se inicia desde seus tempos de estudante.

A compreensão da evolução do pensamento de Marx através da sucessão cronológica de seus escritos é chave para a compreensão da totalidade de seu pensamento. Em geral, considera-se que Marx inaugura o seu materialismo dialético, em conjunto com Engels, a partir da obra conjunta A Ideologia Alemã (1998). Mas o

(6)

caminho percorrido foi cheio de percalços e podemos identificar a evolução de um Marx ligado ao idealismo hegeliano, ainda que o contestando, para um materialista, o que não implica contradições em sua obra, senão uma transformação histórica do seu pensamento.

Em 1835, aos 17 anos, Marx iniciara seus estudos de Direito na Universidade de Bonn, na Prússia – atual Alemanha. No ano seguinte resolvera partir para a Universidade de Berlim para dar continuidade aos seus estudos onde foi aluno de Friedrich Karl Von Savigny, na cadeira de jurisprudência, um jurista reacionário e anti-hegeliano, bem como de Eduard Gans, um professor de Direito Criminal que fôra aluno de Hegel no passado e hoje se alinhava ao jovens hegelianos de esquerda.

Em 1840, Frederico Guilherme IV erigiu-se Kaiser da Prússia, desencadeando uma profunda perseguição aos jovens contestadores de Berlim. Marx se transfere para a Universidade de Iena, onde se doutora em filosofia no ano de 1841, com a tese A Diferença entre a Filosofia da Natureza em Demócrito e Epicuro. Já no ano seguinte, Marx assume a edição do Rheinische Zeitung (A Gazeta Renana) e casa-se com Jenny Von Westphalen.

Em 1841, Feuerbach publicara a obra A Essência do Cristianismo (1997). Nela, lançara um desafio a Hegel: superá-lo rumo a uma filosofia do sensível, uma filosofia que negasse as formas religiosas que a de seu antigo mestre assumira. Ele se rebelara contra a concepção de que a ideia determinava a matéria: antes, a matéria é que determinaria a ideia. Já aqui conseguimos identificar o germe do materialismo que contaminaria Marx e o faria colocar Hegel “com os pés sobre o chão”. Nesta obra de fôlego, Feuerbach propõe um embate com o cristianismo e por conseguinte, com a religião de uma forma em geral. Sua tese é de que Deus nada mais é que a objetivação da essência humana alienada.

Ao antropomorfizar a religião, por via transversa, pensava Feuerbach atacar em cheio a filosofia idealista hegeliana e o Estado prussiano que se declarava um Estado não laico1. Ele começa por estabelecer qual seria a essência do homem em geral, vale dizer, o elemento que o diferenciaria dos outros animais: “A religião se baseia na diferença essencial entre o homem e o animal – os animais não tem religião” (FEUERBACH, 1997, p. 43). Mas qual seria esta diferença fundamental entre homens e animais? Residiria esta diferença na consciência. Feuerbach explica que a consciência de um ser é o que lhe permite compreender-se enquanto gênero,

1

(7)

enquanto existência particular que exprime toda a universalidade da espécie. Assim, os animais teriam consciência de si, de seu corpo, mas não da sua espécie.

Isto é, enquanto o animal possui uma consciência limitada ao seu estreito mundo, o homem, ao contrário, possui a consciência do infinito, do universal. E é somente porque ele tem a consciência do infinito que ele pode compreender as suas finitudes: “A consciência do infinito não é nada mais que a consciência da infinitude da consciência” (FEUERBACH 1997, p. 44). Assim, todos os seus valores mais caros sempre encontram no mundo real o limite que eles não encontram na consciência: a força física, a compreensão dos fenômenos, a vida, são todos bens humanos ilimitados na consciência, mas que no mundo fático encontram seus limites na natureza. Assim, se na vida real, o homem descobre-se fraco perante a natureza, descobre que não pode explicar todos os fenômenos e que a morte é um fenômeno irreversível, em sua consciência ele sente-se onipotente, onisciente e imortal.

É exatamente este trecho da consciência humana – que ultrapassa no pensamento os limites que são opostos pela realidade – que o homem aliena de si (transfere, separa, opõe, objetiva em outro ser), e lhe confere o nome de Deus. Assim Feuerbach, identifica em Deus um fundamento absolutamente antropológico: o homem aliena de si suas qualidades, seus valores, seus ideais, transferindo-os a um ente sobrenatural. Por outro lado, a onipotência humana que fez de Deus um homem (antropomorfismo de Deus), fez do homem um Deus. Realmente, não foi Deus quem criou o homem a sua imagem e semelhança, mas ao contrário, o homem é que criou Deus a sua imagem e semelhança.

O grave inconveniente é que, uma vez alienada a essência humana, os homens deixam de reconhecer os seus valores como objetos humanos, ou seja, os homens tornam-se alheios a si mesmos, a ponto de não mais se reconhecerem. Todas as qualidades humanas somente podem ser compreendidas se mediadas pela divindade! O outro (alter) somente possui validade para mim enquanto figura mediada pela divindade. As relações humanas, sociais passam a ser mediadas pela religião, o que ocasiona o deslocamento do centro de atenções do homem (criador) para a religião (criatura).

Feuerbach nos convida a abandonar a filosofia hegeliana, o racionalismo e o idealismo, e a encontrarmo-nos com o sensível, com o sensual, com o imediatamente perceptível, com o homem de carne e osso, que compreendeu que Deus não passa de sua própria essência alienada. Incumbe ao homem retomar esta essência, tornando-se

(8)

o seu próprio Deus. É neste sentido que Feuerbach constrói um sistema humanista. Um sistema que recolocaria o homem como o centro dos fenômenos e não um simples apêndice de um Deus distante.

3. OS MANUSCRITOS DE KREUZNACH

Em 1842, Marx assumira a redação da Rheinische Zeitung (Gazeta Renana), jornal da burguesia de Colônia que acabou sendo fechado no ano seguinte por ordens do regime prussiano, exatamente pela linha contestatória que o seu redator havia imprimido ao periódico. Desempregado, Marx resolve casar-se com sua já antiga noiva, Jenny von Westphalen. Foi em sua lua-de-mel, no mês de outubro de 1843, na cidade de Kreuznach que Marx travou seu primeiro embate com Hegel, a contestação encarniçada da Filosofia do Direito do grande idealista alemão.

As intuições de Feuerbach teriam um efeito revolucionário no pensamento de Marx: a partir da leitura de A Essência do Cristianismo, ele adotaria e aplicaria o materialismo humanista feuerbachiano, nos Manuscritos, por ele intitulados Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (2010, p. 50), com o fim de demonstrar a irracionalidade do sistema estatal hegeliano. O sistema feuerbachiano expresso em A Essência do Cristianismo, e adotado por Marx neste manuscrito, é absolutamente antidialético porque coloca o problema em uma oposição idealista bipolarizada pelo homem, enquanto ser individual que em si expressaria o gênero de toda a humanidade e Deus, como a essência humana alienada.

Ou seja, o homem de Feuerbach, seria o indivíduo, prescindido o conjunto de todos os homens, exatamente porque um homem seria a expressão de todo gênero. Se por um lado ele matou Deus ao afirmar que sua essência é absolutamente antropomórfica, ele acabou por erigir cada ser isolado à condição de um Deus da individualidade. Por outro lado, a cisão ocorrida entre o homem e suas qualidades que se objetivam na divindade é uma oposição colocada em termos do homem consigo mesmo, deixando de lado as oposições concretas ocorridas no mundo real onde está inserido o indivíduo, isto é, uma concepção materialista, mas antidialética.

Marx, nos Manuscritos de Kreuznach, ao transpor, sem limites o pensamento de Feuerbach para a crítica do Estado de Hegel, pecou por falta de

(9)

dialética, o que o levou a uma solução ideológica para o problema do absolutismo do Estado: a democracia nos marcos do Liberalismo: A democracia é o enigma decifrado de todas as constituições (MARX, 2010, p. 46). Nas famosas Teses sobre Feuerbach, Marx se penitenciaria, demonstrando que faltou ao seu inspirador, e mesmo a ele, naquele momento, um pouco da “dialética hegeliana”.

Assim como o homem alienara sua essência em Deus, a sociedade civil haveria alienado sua essência política no Estado, dela se separando, fazendo com que a família e a sociedade civil aparecessem como “obscuro fundo natural em que se projecta a luz do Estado” (MARX, 2010, p. 10). Isto ocasionara uma separação entre o público e o privado, entre o cidadão e o indivíduo, separação esta que deveria ser superada através do reencontro do homem consigo mesmo e da sociedade civil consigo mesma. Tratava-se de reabsorver do Estado a essência que havia sido perdida nos tempos modernos: “Como se o povo não fosse o Estado real! O Estado é abstracto; só o povo é concreto” (MARX, 2010, p. 44).

A crítica de Marx a Hegel nestes manuscritos está centrada nesta separação. Para Marx, Hegel havia separado a sociedade civil do Estado, criando uma mediação artificial, através da burocracia e das corporações, que nada mais faria que mascarar a concretude e legitimar a arbitrariedade do Estado prussiano. Marx propõe, como forma de superação desta alienação, o reencontro da sociedade consigo mesma, através do estabelecimento de uma democracia radical, que significaria o fim da cisão entre o público e o privado: “Na democracia o princípio formal é simultaneamente o princípio material. Constitui antes do mais a verdadeira unidade do universal com o particular” (MARX, 2010, p. 47).

O efeito imediato do fim da cisão entre público e privado, do reencontro da essência perdida da sociedade civil em uma democracia radical, seria inevitavelmente a abolição do Estado: “[...] o Estado político desaparece na verdadeira democracia, o que está correcto no sentido de que,enquanto Estado político, enquanto constituição, já não vale para a totalidade” (MARX, 2010, p. 48).

O pensamento humanista feuerbachiano se manifesta aqui com toda a sua intensidade: assim como o homem se redescobre no ateísmo, retomando da divindade a sua essência perdida, alienada, a sociedade civil se redescobre na democracia, retomando do Estado sua essência política perdida: “A constituição política tem sido a esfera religiosa, a religião da vida popular, e os céus da sua universalidade tem-se oposto à existência terrestre da sua realidade” (MARX, 2010, p. 49).

(10)

Em virtude daquela alienação, o Estado, o direito e a constituição assumiram uma forma religiosa que deve ser superada, porque suas formas ilusórias mascaram as verdadeiras finalidades do Estado, longe da realização do bem comum: “O interesse geral é elaborado mesmo sem ter em conta o interesse real do povo. O interesse real forma-se sem a intervenção do povo. O elemento constituinte é a existência ilusória dos assuntos do Estado como assuntos do povo, é a ilusão de que o interesse geral é de facto interesse geral, assunto público, a ilusão de que o interesse do povo é assunto geral” (MARX, 2010, p. 96).

Marx considera que o elemento constituinte não é mais do que a mentira sancionada, legal, dos Estados constitucionais, que afirmam ser o Estado, interesse do povo, ou o povo, interesse do Estado. Esta mentira se torna patente quando se analisa o conteúdo das decisões de Estado (MARX, 2010, p. 100). O homem não existe devido à lei; esta é que existe devido a ele, sendo, portanto uma existência humana, enquanto que nas outras formas políticas que não a democrática, o homem é a existência legal. Eis a diferença fundamental da democracia (MARX, 2010, p. 47).

Por fim, Marx percebeu a relação promíscua existente entre o Estado hegeliano e a propriedade agrária de origem feudal denominada morgadio2, na medida em que, a propriedade agrária é quem herdava o primogênito da casa como um atributo ligado a esta propriedade. Todos os primogênitos da série dos possuidores da terra constituíam a parte da herança, a propriedade da propriedade inalienável da terra, a substância predestinada da sua vontade e da sua atividade. O sujeito (homem) se tornava coisa e a coisa, sujeito. O homem tornara-se propriedade da propriedade (MARX, 2010, p. 163).

4. A QUESTÃO JUDAICA

Pouco após o fechamento da Gazeta Renana, Marx combinara com seu amigo Arnold Ruge a fundação de uma nova revista a ser editada em Paris, onde a maior liberdade de expressão poderia permitir a continuidade de seus ataques ao governo prussiano. Assim, finda sua lua-de-mel, Marx e sua esposa mudaram-se para Paris onde ele se tornaria o redator dos Anais Franco-Alemães (KONDER, 1981, p.

2

(11)

35). É neste período que Marx conclui o ensaio que havia iniciado na cidade de Kreuznach, intitulado A Questão Judaica (1991) e que seria publicado no primeiro e único exemplar dos Anais, em fevereiro de 1844.

O ensaio versava sobre um tema caro a Marx naqueles tempos: o Estado Prussiano, que se declarava oficialmente um “Estado cristão”, negando, assim, aos judeus, igualdade de direitos perante a lei. Bruno Bauer manifestara sua opinião, em artigo, a respeito do tema, vendo no ateísmo a pré-condição para a emancipação política (igualdade jurídica) dos judeus. Se os judeus querem se emancipar, devem começar por emancipar-se de sua própria religião, não fazendo sentido cobrarem do Estado uma postura laica, enquanto eles mesmos não abandonarem os seus preconceitos religiosos (FREDERICO, 1995, p. 95).

Para Bauer, na Alemanha, ninguém estava politicamente emancipado, nem os judeus nem os cristãos. Então, como os últimos poderiam emancipar os primeiros? Como poderiam os judeus exigir que o Estado cristão abandonasse os seus preconceitos religiosos se eles mesmos não abandonavam os seus? Como alemães, os judeus deveriam trabalhar pela emancipação política do povo da Alemanha, tornando todos os seus súditos cidadãos acima de qualquer religião. Bauer exigia, assim, que os judeus abandonassem o judaísmo e que os homens em geral abandonassem a religião, para que todos, então considerados cidadãos, pudessem gozar da tão desejada igualdade jurídica, perante um Estado burguês laico.

Marx achou interessante o ponto de vista de Bauer, mas acentuou uma deficiência flagrante em seu pensamento: quando os judeus reivindicavam a igualdade jurídica com os cristãos, perante o Estado prussiano, automaticamente reconheciam a legitimidade do Estado Cristão3. Não importava que o Estado fosse assentado em bases religiosas, o que importava para os judeus é que eles gozassem dos mesmos direitos dos cristãos.

E Bauer? Bauer era contra o Estado ser assentado sobre qualquer base religiosa. Deveria o Estado ser um Estado laico. Quando ele pregava a emancipação política dos homens, tornando-os todos ateus perante um Estado laico, legitimava a própria existência do Estado! Para Marx, a emancipação política era apenas um

3

Paradoxo enfrentado pelos denominados movimentos de defesa das minorias, que lutam por reconhecimento legal para suas reivindicações pontuais, reconhecendo, assim, no Estado, um órgão legítimo para a concessão de direitos. Estes movimentos não conseguem transcender a mera reivindicação, ficando presos ao reformismo.

(12)

pequeno estágio da emancipação humana, que pressupunha inclusive a abolição do Estado.

Como assentuou Fedosseiev, na famosa biografia editada pelo instituto de Marxismo-Leninismo anexo ao CC do PCUS, “por emancipação política entendia Marx a libertação do homem das peias feudais e a proclamação das liberdades democrático-burguesas, realizadas no decurso da revolução burguesa” (FEDOSSEIEV, 1983, p. 55). A emancipação humana estava muito além desta mera emancipação pretendida por Bauer. E aqui, no estudo do significado da emancipação humana, ver-se-á a profunda diferença que este escrito guardará do anterior, formulado somente um mês antes e que pregava uma democracia radical como forma de libertação social.

Marx acentua o primeiro erro de Bauer: “o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre” (1991, p. 23), ou seja, o Estado pode se emancipar da religião, ainda que a grande maioria dos cidadãos continue religiosa, como efetivamente ocorre nos dias atuais. Por outro lado, mesmo no Estado laico, os homens continuam sujeitos às cadeias religiosas, visto que substituem um deus por outro. Assim como a religião se torna uma mediação entre o homem e ele mesmo (sua essência alienada), o Estado se torna um mediador entre os homens e sua própria liberdade!

A imprescindibilidade do Estado para a sociedade não passa da confissão imediata da impossibilidade de os homens viverem sem um Deus: “O Estado político conduz-se em relação à sociedade civil de modo tão espiritualista como o céu em relação à terra” (MARX, 1991, p. 26). Marx retoma a tese, que já havia lançado na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, da separação entre matéria e essência, entre público e privado, o divórcio entre Estado político e a sociedade burguesa.

Para Marx, a emancipação política representava um grande progresso, pois embora não fosse a última etapa da emancipação humana em geral, ela se caracterizava como a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto da sociedade burguesa. Mas declarava ser absolutamente possível a emancipação política, mesmo que os homens mantivessem seus preconceitos religiosos: “O homem se emancipa politicamente da religião ao bani-la do direito público para o direito privado” (MARX, 1991, p. 28), ou seja, a religião deixa de ser assunto de Estado para se tornar questão de foro íntimo.

Então, qual seria o óbice para que os judeus obtivessem a cidadania, sem se desvincular do judaísmo? Estariam emancipados politicamente mas longe da

(13)

emancipação humana: “não dizemos aos judeus, como Bauer: não podeis emancipar-vos politicamente se não emancipar-vos emancipar-emancipar-vos radicalmente do judaísmo”, e conclui “ao contrário, dizemos: podeis emancipar-vos politicamente sem vos desvincular radical e absolutamente do judaísmo porque a emancipação política não implica em emancipação humana” (MARX, 1991, p. 37).

Esta conclusão leva ao entendimento de que o judeu pode gozar livremente dos direitos humanos, porque “a religião, longe de se constituir incompatível com o conceito dos direitos humanos, inclui-se expressamente entre eles” (MARX, 1991, p. 41). Ao contrário, a própria existência de direitos humanos é a confissão de que a sociedade está dividida entre público e privado, porque os direitos humanos “nada mais são que direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade” (MARX, 1991, p. 41). Finda a separação do homem com sua própria essência, do cidadão com o burguês, a própria separação entre direitos políticos e direitos humanos perde o sentido, porque:

Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas “forces propres” como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana (MARX, 1991, p. 52).

Marx, diferentemente de Feuerbach, havia feito uma escolha clara pelos problemas políticos, concretos da sociedade, passando da critica da religião à critica da política. Ele conclui este texto fazendo considerações sobre o culto judaico ao dinheiro e à necessidade de a sociedade abandonar o judaísmo não como religião, mas como espírito prático do homem burguês:

Qual é o fundamento secular do judaísmo? A necessidade prática, o interesse egoísta. Qual é o culto secular praticado pelo judeu? A usura. Qual o seu Deus secular? O dinheiro. Pois bem, a emancipação da usura e do dinheiro, isto é, do judaísmo prático, real, seria a autoemancipação de nossa época.

[...]

O dinheiro é o Deus zeloso de Israel, diante do qual não pode legitimamente prevalecer outro Deus.

[...]

A letra de câmbio é o Deus real do judeu. Seu Deus é somente a letra de câmbio ilusória.

(14)

A emancipação social do judeu é a emancipação da sociedade do judaísmo (MARX, 1991, p. 52).

Essas frases nada tem a ver com antissemitismo. Marx considera “judaísmo” aqui, os valores que animam a sociedade burguesa. A emancipação do judaísmo é a emancipação da sociedade do capitalismo. A emancipação humana, o fim da alienação, da cisão entre Deus e homem, entre o público e o privado, entre o cidadão e o indivíduo.

5. A INTRODUÇÃO À CRÍTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL

O texto que pretendia ser a introdução aos Manuscritos de Kreuznach acabou dele sendo independente, na medida que trouxe a público novidades teóricas absolutamente explosivas4. Foi publicado conjuntamente com “A Questão Judaica”, no primeiro e único exemplar dos Anais Franco-Alemães e é considerado até hoje como o texto mais elegante de Marx, pela força das frases e a altivez do estilo.

A Introdução é um texto corrido, mas percebem-se sete partes que o estruturam bem delimitadas. Em primeiro lugar, Marx inicia o texto com uma exaltação da crítica da religião e de Feuerbach: “Na Alemanha, a crítica da religião chegou, no essencial, ao fim. A crítica da religião é a premissa de toda crítica” (MARX, 1991, p. 105). Com esta introdução, Marx se declara seguidor do humanismo feuerbachiano e ainda anuncia que seu texto estará fundado em sua teoria da alienação: “A religião não faz o homem, mas, ao contrário, o homem faz a religião” (1991, p. 105).

Como o texto pretende ser uma introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, percebe-se que Marx considera o Estado como um novo Deus da razão e considera, ainda, que a crítica da religião de Feuerbach é o instrumento adequado para o seu ataque: “A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo. A verdadeira

4

Aliás, impressiona a ebulição teórica que sofrem os textos escritos na transição de 1843 a 1844, que apesar dos poucos meses que o separam (do início de outubro a fevereiro), demonstram uma revolução no pensamento do jovem autor alemão.

(15)

felicidade do povo exige que a religião seja suprimida, enquanto felicidade ilusória do povo” (MARX, 1991, p. 106).

A supressão da religião significa a supressão de toda ilusão, de toda alienação. Há que tornar a opressão real ainda mais opressiva, acrescentando-se a ela a consciência da opressão (MARX, 1991, p. 110). O Estado e o direito também assumem esta forma religiosa que deve ser suprimida, não passam de “cristianismo”. Para Marx, a crítica arranca as flores imaginárias de enfeitam as cadeias dos homens, não para que os homens usem as cadeias sem qualquer fantasia, mas para que se libertem das cadeias e apanhem a flor viva! A crítica deve desenganar os homens, jogá-los na mais cruel realidade, sem qualquer oportunidade de escape, para que possam assim recobrar a razão e girar em torno de si mesmos, e, portanto, de seu verdadeiro sol:

Uma vez que se desmascarou a forma de santidade da autoalienação humana, a missão da filosofia, que está à serviço da história, consiste no desmascaramento da autoalienação em suas formas não santificadas. Com isto, a crítica do céu se converte na crítica da terra, a crítica da religião na crítica do direito, a critica da teologia na critica da política (MARX, 1991, p. 106).

Na segunda parte, Marx realiza uma análise da situação de atraso da Alemanha frente às outras nações desenvolvidas da Europa, principalmente a Inglaterra e a França e conclui que a Alemanha ainda não tivera sua revolução burguesa, como aqueloutras: “Com efeito, os alemães compartem das restaurações dos povos modernos, sem haver participado de suas revoluções” (MARX, 1991, p. 107).

Na terceira parte, Marx acentua um paradoxo: apesar de a Alemanha ser materialmente atrasada, por não ter feito a sua revolução burguesa, é a nação mais adiantada filosoficamente, por ter produzido a genialidade de um Hegel! “Somos contemporâneos filosóficos do presente, sem ser seus contemporâneos históricos” e, ainda: “A filosofia alemã do Direito e do Estado é a única história alemã que se acha a par com o presente oficial moderno” (MARX, 1991, pp. 113-114). Realmente, em política, os alemães pensavam o que os outros povos praticavam.

Na quarta parte do escrito, Marx exalta a importância revolucionária da filosofia alemã como um princípio ativo, a cabeça de uma revolução: “As armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica das armas; a força material tem de ser

(16)

deposta pela força material, mas a teoria também se converte em força material uma vez que se apossa dos homens” (1991, p. 117).

Marx nesse momento convida todos os alemães a serem radicais, a atacar os problemas em suas raízes e declara que, para o homem, porém, a raiz é o próprio homem. Não seria a primeira vez que a filosofia alemã lideraria uma revolução. A Reforma Protestante é a prova do passado revolucionário da Alemanha: “Como então no cérebro do monge, a revolução começa agora no cérebro do filósofo”5 (1991, p. 117).

Na quinta parte, Marx ressalta o caráter antirrevolucionário da burguesia alemã. Na Alemanha, a burguesia não conseguira se transformar em uma classe universal, como conseguira na França, em 1789, ou seja, uma classe que pudesse encarnar, em determinado momento histórico, os desejos e interesses de todo o povo. Mas se a burguesia alemã não assumira este papel revolucionário, os alemães estariam fadados a se abster eternamente de uma revolução? Ora, “as revoluções necessitam de um elemento passivo, de uma base material” (MARX, 1991, p. 119), ou seja de uma classe que encarne o ideal revolucionário. Uma revolução radical precisa ser uma revolução das necessidades radicais. Mas as necessidades sentidas pela burguesia alemã não eram as mesmas sentidas pela burguesia francesa em 1789, o que lhe retirava o caráter revolucionário.

Era necessário encontrar uma nova classe universal, uma nova classe que encarnasse, na atualidade, os sofrimentos que os antigos revolucionários burgueses sentiram no século XVIII. Na atualidade alemã, quem partilhava desses sofrimentos não eram os burgueses, mas o proletariado! O proletariado faz sua aparição histórica na obra de Marx, exatamente na sexta parte da Introdução. E surge com uma finalidade determinada: se a burguesia se nega a fazer uma revolução na Alemanha, o proletariado o fará. O proletariado é a possibilidade positiva da emancipação alemã, é a esfera que possui um caráter universal por seus sofrimentos universais.

Na última parte da Introdução, Marx reforça seu pensamento, e lembra que na Alemanha, apenas de forma parcial haviam sido superada a Idade Média. Logo, sobreviviam em conjunto e de forma covarde, um feudalismo agonizante e um capitalismo vacilante. Incumbiria a filosofia e ao proletariado sepultar estas formas arcaicas de convivência social:

5

(17)

Assim como a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais. A única emancipação praticamente possível na Alemanha é a emancipação do ponto de vista da teoria, que declara o homem essência suprema do homem. [...] Na Alemanha, não se pode derrubar nenhum tipo de servidão sem derrubar todo tipo de servidão em geral. A meticulosa Alemanha não pode revolucionar sem revolucionar seu próprio fundamento. A emancipação do alemão é a emancipação do homem. O cérebro desta emancipação é a filosofia; seu coração, o proletariado. [...] Quando se cumprirem todas as condições interiores, o canto do galo gaulês anunciará o dia da ressurreição da Alemanha (MARX, 1991, pp. 126-127).

O canto do galo gaulês: uma metáfora para designar a revolução. Uma revolução antes francesa, agora proletária, para além das nações.

6. OS MANUSCRITOS ECONÔMICO-FILOSÓFICOS

O encontro de Marx com a economia política deu-se ainda no início do ano de 1844, quando escreveu os Manuscritos Econômico-Filosóficos, também conhecidos por Manuscritos de Paris, que se perderiam até o seu reencontro em 1932, quando foram publicados na URSS, pelo Instituto de Marxismo-Leninismo, anexo ao CC do PCUS6. Tratam-se de três cadernos reunidos, onde Marx lança as âncoras do que viria a se configurar em sua futura concepção econômica da sociedade. Mais que isso, é nos manuscritos que começa a se desenhar a concepção marxista da construção histórica da humanidade. O primeiro caderno é composto de apontamentos pessoais de Marx acerca da obras dos economistas clássicos, principalmente de Adam Smith7, David Ricardo8, Jean-Baptiste Say9, alguns aportes críticos acerca da obra do anarquista francês Pierre-Joseph Proudhon10, e de um artigo recentemente publicado por um jovem prussiano, que em um futuro próximo viria a ser seu companheiro inseparável, Friedrich Engels11. No segundo e no terceiro cadernos, Marx tece considerações de ordem filosófica sobre a economia política e suas conseqüências humanas, desenvolvendo a teoria da alienação e do estranhamento, que o acompanhariam pelo resto de sua longa obra.

6

Comitê Central do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. 7

Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, de 1776. 8

Princípios de economia política e tributação, de 1817. 9

Tratado de economia-política, ou simples exposição da maneira de se fomentar, se distribuir e se consumir as riquezas, de 1803.

10

Que é a Propriedade?, de 1840. 11

Esboço para uma crítica da economia política, publicado nos Anais Franco-Alemães, em 1844, conjuntamente com a Questão Judaica e a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.

(18)

Marx, ainda influenciado por Feuerbach, percebera que, se na religião os homens objetivavam (alienam, transferem, retiram de si) sua essência em Deus, no mundo concreto da economia política, os homens, mais precisamente os homens trabalhadores, objetivavam no produto a essência de sua natureza humana, ou seja, o trabalho. A matéria prima, vinda da natureza, não é dotada de finalismo. É o trabalho humano que transforma a matéria morta em matéria viva, ou seja, matéria finalisticamente destinada a servir de meio de vida para o homem. O trabalhador aliena sua subjetividade em produtos naturais (regidos pelas leis da causalidade), convertendo-os em produtos sociais. Ao converter matéria natural em produtos sociais, os trabalhadores agregam valores a estas matérias. Ou seja, para Marx, a alienação é uma conseqüência natural do processo de trabalho.

O problema é que, no sistema capitalista, o trabalho foi dominado pelo capital e instrumentalizado para uma finalidade: a obtenção de mais-valia, ou seja, a valorização constante do capital. A forma encontrada para isso foi a separação entre a força de trabalho e os instrumentos necessários à realização do trabalho, isto é, os meios de produção. Privados dos meios de produção, aos trabalhadores não resta outra saída a não ser vender sua força de trabalho para os detentores de tais meios. Como dizia Marx, aqui os homens possuem uma dupla liberdade: vender sua força de trabalho para os capitalistas ou morrer de fome.

Quando o capital realizou a separação entre força de trabalho e meios de produção, operou uma cisão que atingiu a própria humanidade de forma destrutiva, desumanizando o homem de uma forma em geral. Opera-se, aqui, o processo do estranhamento, pelo qual o trabalho, de fator de humanização dos homens se converteu em instrumento de desumanização. Mas para a compreensão do processo que leva ao estranhamento, é necessário fazer um parêntese para explicar o papel do trabalho na constituição da sociedade humana.

Em escrito posterior, denominado Teses sobre Feuerbach, onde Marx acertaria contas com o autor de “A Essência do Cristianismo”, ele chegou a afirmar, na Tese VI, que “A essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado. Na sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais” (1998, p. 101). Com isso, Marx deixa claro que, ao contrário de Feuerbach, entende a natureza humana como um processo de autoconstrução dentro da história e na relação com o outro, na alteridade das relações sociais. Qualquer discussão sobre o humanismo em Marx que não

(19)

entenda o caráter social da natureza humana cai rapidamente no descrédito. Nos Manuscritos, Marx começa a desenhar esta concepção desta forma:

A essência humana da natureza está, em primeiro lugar, para o homem social; pois é primeiro aqui que ela existe para ele na condição de elo com o homem, na condição de existência sua para o outro e do outro para ele; é primeiro aqui que ela existe como fundamento da sua própria existência humana, assim como também na condição de elemento vital da efetividade humana. É primeiro aqui que a sua existência natural se lhe tornou a sua existência humana e a natureza [se tornou] para ele o homem. Portanto, a sociedade é a unidade essencial completada (vollendete) do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo da natureza levado a efeito (MARX, 2004, pp. 106-107).

Marx deixa claro que a sociedade é o elo, o elemento de transição, a mediação concreta da humanidade para com a natureza. Já se encontra aqui, com linguagem rebuscada, inerente às influencias ainda marcantes do idealismo hegeliano, o assento da sociedade como a matéria donde se extrai a essência humana, ideia que ele exporia nas Teses já com a segurança de um pensamento formado, dialético e materialista. Continua:

Minha consciência universal é apenas a figura teórica daquilo de que a coletividade real, o ser social, é a figura viva. [...] O indivíduo é o ser social. Sua manifestação de vida [...] é, por isso, uma externação e confirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica do homem não são diversas (MARX, 2004, p. 107).

Ele esclarece, assim, que o homem se efetiva na natureza e a natureza se efetiva no homem pela mediação da sociedade. Mas como os homens chegaram a isso? Como a natureza pariu de si mesma a sociedade como elemento mediador entre ela e o homem?

Marx, nesta época, acabara de ler a Fenomenologia do Espírito de Hegel. Para o velho filósofo, a história era um processo em construção, mas um processo fruto da ideia abstrata. De qualquer forma Hegel centra a autoatividade do processo histórico como o núcleo de sua filosofia. Marx vai tomar para si a ideia hegeliana de atividade, concebendo nela o próprio processo de produção do humano.

Celso Frederico enfatiza que Hegel, segundo Marx, “vê no trabalho o ato pelo qual o homem se produz a si mesmo” (FREDERICO, 1995, p. 173). Explica-se:

(20)

Em determinado momento da existência natural, uma espécie de hominídeos teria começado a se relacionar com a natureza e por dentro dela de uma forma diferenciada, através de uma atividade qualitativamente diferenciada dos outros animais. Estes hominídeos, em princípio, deixaram de coletar pura e simplesmente, na natureza, seus meios de subsistência, e passaram a exercer atividades de adaptação da natureza às suas necessidades.

O fato de serem bípedes, podendo deixar as mãos livres para o exercício de atividades mais complexas, apesar de não ser o elemento determinante, contribuiu neste processo. Surge o trabalho como elemento de humanização da natureza ao surgir por dentro dela a natureza humana. Não se trata de uma outra natureza paralela ou tangencial à natureza, mas um processo de ruptura, uma transformação qualitativa da própria natureza, uma constitutividade histórica.

A história é a natureza humana que se inicia no momento em que os homens, através do trabalho, da ação finalística, da atividade, da produção, enfim, da práxis, passaram a se relacionar com a natureza de uma forma diferenciada. Realmente, nenhuma outra espécie conhecida jamais teve um relacionamento sequer de longe parecido com o que os homens desenvolveram na história. Não há que se falar em história antes do surgimento deste processo e poder-se-ia dizer que a história é a natureza qualitativamente transformada.

Por mais que se queira dizer que o diferencial dos humanos para com os animais em geral seja a razão, verifica-se que a própria razão humana é fruto de uma construção social, vale dizer, da construção através da atividade humana. A razão não é um milagre, uma entidade metafísica e eterna que tenha sido concedida aos homens pelos céus! Também ela é fruto de um processo histórico de construção. Antes do “homo sapiens” (homem racional), e como pressuposto de sua existência, surgiu o “homo faber”, o homem que trabalha, vale dizer, o homem que domina a natureza para suas finalidades e inicia com isso um processo de “humanização do humano”. A humanidade não é um dado posto, mas um processo em construção. Goethe, de forma magnífica, descreve o trabalho, a autoatividade, como o alfa de todas as coisas (1997, p. 68):

Escrito está: “Era no início o Verbo!” Começo apenas, e já me exacerbo! Como hei de ao verbo dar tão alto apreço?

(21)

De outra interpretação careço; Se o espírito me deixa esclarecido, Escrito está: No início era o Sentido! Pesa a linha inicial com calma plena, Não se apressure a tua pena!

É o sentido então, que tudo opera e cria? Deverá opor! No início era a Energia! Mas, já, enquanto assim o retifico, Diz-me algo que tampouco nisso fico. Do espírito me vale a direção,

E escrevo em paz: Era no início a Ação!

O verbo, ao representar a razão em Goethe, e a vontade divina, nos versos inscritos no evangelho de João, cede espaço para a ação, para a atividade humana, para o trabalho. Engels, mais tarde, em um escrito clássico (2000), dirá, com razão, que foi o trabalho que transformou o “macaco” em homem, não porque tenha o trabalho transformado o cérebro animal em um cérebro humano, mas porque foi o trabalho que possibilitou ao cérebro reter conteúdos humanos, vale dizer, sociais e culturais. Dizia Engels:

Há várias centenas de milhares de anos, durante um período ainda não determinado dessa época terrestre que os geólogos chamam de terciária, vivia em algum ponto da zona tropical uma raça de macacos antropóides, apresentando um desenvolvimento particularmente avançado [...] É provável que, de início, devido ao seu gênero de vida (uma vez que o fato de subir em árvores atribuía às mãos uma função diferente da dos pés), esses macacos foram, pouco a pouco, desacostumando-se de empregar as mãos ao caminhar em solo plano, adotando uma marcha mais ou menos erecta. Dessa maneira, foi dado o passo decisivo para a transição do macaco em homem (2000, p. 215).

É a partir desta liberação das mãos que os homens passaram a trabalhar. E conforme trabalhavam modificavam essas mãos, adaptando-as a trabalhos mais e mais complexos. Conteúdos mentais eram gerados fazendo com que o cérebro se aperfeiçoasse cada vez mais através da necessidade e do preparo. Foi assim que o trabalho, a autoatividade humana, transformou qualitativamente a natureza em história, a natureza humana. Resume Engels:

Resumindo: o animal apenas utiliza a Natureza, nela produzindo modificações somente por sua presença; o homem a submete, pondo-a a serviço de seus fins determinados, imprimindo-lhes as modificações que julga necessárias, isto

(22)

é, domina a Natureza. E esta é a diferença essencial e decisiva entre o homem e os demais animais; e, por outro lado, é o trabalho que determina essa diferença (2000, p. 223).

No início de todas as coisas não se encontrava o verbo, a razão, a ideia pura e simples, mas o trabalho, a atividade humana. Foi o trabalho que humanizou os homens. Ora, no sistema capitalista, como dito acima, operou-se a separação entre a força de trabalho (natural a todos os homens) e os meios de produção, que foram monopolizados por uma classe determinada, a classe dos capitalistas. Com esta separação, os homens em geral se vêem obrigados a vender sua força de trabalho para o capitalista ou morrer de fome.

Os trabalhadores produzem coisas sem sentido, porque são coisas separadas de seu habitus. Seu trabalho, sua essência, alienado, objetivado em produtos sociais, lhes é extirpado para servir a outros senhores. Ou seja, o trabalho deixa de pertencer ao homem, como processo de humanização e passa a pertencer a outra pessoa, que pode comprá-lo, vendê-lo negociá-lo.

Neste processo, aquilo que possibilitou a humanização, passa a exercer efeitos de escravização. Como um castigo que deve ser suportado dia-a-dia, uma pena perpétua. Quando o capitalismo retirou dos homens em geral a possibilidade de trabalhar livremente para a construção de sua própria humanidade, colocando nas mãos da burguesia a decisão de quem vai trabalhar e quem não vai, quando e como, onde e por que razão, extirpou dos homens em geral exatamente o elemento que os diferenciou dos animais: o trabalho!

Se eu retiro dos homens o elemento que lhes torna humanos, os condeno à perda daquela humanidade. Aí, advém o estranhamento no processo de alienação do trabalho. O trabalhador se sente como uma parturiente, cujo nascituro lhe é arrebatado no ato do próprio nascimento por um médico infernal! O produto de seu ventre não lhe pertence mais, mas sim a outrem que o pode deter. No início há sofrimento, sentimento de perda, mas depois de algumas vezes, o arrebatamento se torna normal e a desgraçada mãe a ele se acostuma, em troca de uns míseros tostões, chamados de “salário”.

O homem estranhado, o homem que perdeu seu elemento de humanização, tende a ser rebaixado a uma coisa, ou seja, reificado, coisificado. A humanidade perdida sede lugar à mercadoria, ao lucro, à ganância capitalista e os homens são

(23)

reduzidos a uma condição mercadológica. Todos nos tornamos coisas que podem estar dentro ou fora do comércio, ou seja, todos somos mercadorias que podem ser compradas ou vendidas. Opera-se o rebaixamento dos níveis de sociabilidade em conseqüência da fetichização da mercadoria, da reificação do indivíduo que reduzem a condição humana a uma simples condição mercadológica. O capital, expresso no símbolo “dinheiro”, se torna o vínculo de todos os vínculos como expressava Marx nos Manuscritos:

O dinheiro, na medida em que possui o atributo de tudo comprar, na medida em que possui o atributo de se apropriar de todos os objetos, é, portanto, o objeto enquanto possessão eminente. A universalidade de seu atributo é a onipotência de seu ser; ele vale, por isso, como ser onipotente. O dinheiro é o alcoviteiro entre a necessidade e o objeto, entre a vida e o meio de vida do homem. Mas o que medeia a minha vida para mim, medeia-me também a existência de outro homem para mim. [...] Se o dinheiro é o vínculo que me liga a vida humana, que liga a sociedade a mim, que me liga à natureza e ao homem, não é o dinheiro o vínculo de todos os vínculos? Não pode ele atar e desatar todos os laços? Não é ele, por isso, também o meio universal de separação? Ele é a verdadeira moeda divisionária (Scheidemünze), bem como verdadeiro meio de união, a força galvano-química (galvanochemische) da sociedade. [...] Enquanto tal poder inversor, o dinheiro se apresenta também contra o individuo e contra os vínculos sociais etc., que pretendem ser, para si, essência. Ele transforma a fidelidade em infidelidade, o amor em ódio, o ódio em amor, a virtude em vício, o vício em virtude, o servo em senhor, o senhor em servo, a estupidez em entendimento, o entendimento em estupidez. Como o dinheiro, enquanto conceito existente e atuante do valor, confunde e troca todas as coisas, ele é então a confusão e a troca universal de todas as coisas, portanto, o mundo invertido, a confusão e a troca de todas as qualidades naturais e humanas (2004, pp. 157-161).

Os vínculos sociais e humanos se diluem, os homens são reduzidos a coisas que possuem valor financeiro, tornando-os cretinos e unilaterais a ponto de conceber o outro como coisa que pode ser possuída e usada como propriedade privada. A inibição que a personalidade individual tem que gerar para obstar uma violência contra um objeto que não é um ser humano, mas uma mercadoria se dissolve na reificação dos sentimentos humanos. Finda Marx, dizendo que:

Assim como o ateísmo enquanto supressão (Aufhebung) de deus é o vir-a-ser (Werden) do humanismo teórico, o comunismo enquanto supra-sunção da propriedade privada é a vindicação da vida humana efetiva enquanto sua propriedade é o vir-a-ser do humanismo prático” (2004, p. 132).

Ou seja, a realização de todo o humanismo que sempre animou o seu pensamento de homem moderno, de homem que sonhou com a realização dos ideais da Revolução Francesa, dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade em

(24)

contraposição às leis férreas das estruturas sociais que se impuseram sobre os homens com redobrada fúria e os reduziram a uma cifra monetária do sistema capitalista. É aqui que Marx dá sua resposta a todos aqueles que, maliciosamente ou sem conhecimento de causa, o acusaram de produzir um pensamento afastado do homem, um pensamento anti-humanista.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Contra aqueles que no passado defenderam um pensamento anti-humanista em Marx, opomos a historicização das principais obras de sua juventude, as quais demonstram a presença de um forte conteúdo humanista, uma constante preocupação com a existência humana e com os destinos do homem e da sociedade. Marx foi um produto da modernidade e como homem moderno, sonhou com a realização dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade prometidos pela Revolução Francesa, mas, segundo ele, traídos pelo sistema econômico que se estabeleceu.

Marx foi autor de um pensamento histórico, vale dizer, um pensamento que se preocupou com as origens humanas e sociais e com o processo de seu desenvolvimento rumo ao novo. Da juventude à maturidade, encontraremos na obra de Marx, a exaltação do homem, que se realiza em seu ser social. Não à toa temas como o da alienação, da reificação e da fetichização são constantes em suas obras, mesmo em O Capital, obra onde Marx analisou as forças do sistema que oprimem o humano (e que poderiam ser derrotadas mediante a ação política consciente que aparece no Manifesto Comunista).

A profundidade do humanismo marxista ancora em temas que vão questionar a própria humanidade como produto, ou seja, como construção social a partir da autoatividade humana, elemento de produção primeira da sociedade. Como ele mesmo expressara em sua VI Tese sobre Feuerbach, aqui já citada, “A essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado. Na sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais”.

A magnitude desta constatação é a verificação de que a natureza humana não é uma natureza abstrata, metafísica, imutável, mas na verdade uma natureza

(25)

concreta, dos homens em sociedade, no burburinho da vida, no clamor das ruas, no vozeio da multidão, na luta de classes, na transformação constante da vida. É neste momento que Marx se liberta do humanismo abstrato de Feuerbach, para quem o homem era um ser isolado dos demais, que trazia em si o germe de toda a humanidade, de todo o seu gênero, uma coisa pronta.

O humanismo marxista nos convida à vida social, ao reencontro com o outro, à alteridade e à compreensão que a humanidade é antes um processo de transição ao novo e não uma coisa pronta. Recuperar o pensamento marxista em suas origens, nestes tempos difíceis onde se proclama o “fim da história”, é a busca da recuperação de uma filosofia da práxis, ou de uma práxis da libertação, rumo à construção de um novo mundo. Realmente, a construção do novo se forja por intermédio da crítica do velho.

Muitos equívocos se formaram em torno do pensamento de Marx, principalmente pela tendência de reduzi-lo às interpretações que lhe deram os oportunistas da 2ª Internacional. Erich Fromm é enfático ao recordar que Marx, em O Capital, definira o homem como um “animal social”, criticando a definição aristotélica do homem como um “animal político”, um homem ligado ao sistema de dominação (FROMM, 1977, p. 63).

O reconhecimento da irracionalidade do sistema econômico que eleva o mecado a um Deus ao mesmo passo em que reduz o cidadão a uma mera mercadoria, e do Estado atual, que se minimiza economicamente, devolvendo ao Deus mercado o controle absoluto da distribuição das riquezas, em um retorno ao liberalismo ortodoxo, é o primeiro passo para a proposição daquela práxis de transformação social, que nega o espírito meramente especulativo do mundo, convidando à transformação radical de toda a ordem vigente: “Os filósofos de todos os tempos interpretaram o mundo de diferentes maneiras. A questão agora é transformá-lo”.

REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, Louis. A querela do humanismo. Revista Crítica Marxista. Vol. 01, tomo 09. São Paulo: Xamã, 1999.

ENGELS, Friedrich. A humanização do macaco pelo trabalho. In: A Dialética da Natureza. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

(26)

FEDOSSEIEV, P.N. Karl Marx: biografia. Moscou: Edições Progresso & Lisboa: Edições Avante, 1983.

FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. 2. ed. Campinas: Papirus, 1997. FREDERICO, Celso. O jovem Marx (1843-44: as origens da ontologia do ser social). São Paulo: Cortez, 1995.

FROMM, Erich. Contribuição de Marx para o conhecimento do homem. In: A crise da psicanálise: ensaios sobre Freud, Marx e a psicologia social. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.

————. Marx y su concepto Del hombre. México: Fondo de Cultura Económica, 1998.

GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997.

HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das ciências filosóficas: a ciência da lógica. São Paulo: Loyola, 1995.

————. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2001.

————. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997. KONDER, Leandro. Marx: vida e obra. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

LABICA, Georges. As “teses sobre Feuerbach” de Karl Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

LÊNIN, V.I. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. In: Obras escolhidas em três tomos. Moscou: Edições Progresso & Lisboa: Edições Avante, tomo 01, 1977.

LÖWY, Michael. A teoria da revolução no jovem Marx. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. LUKÁCS, György. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.

MARX, Karl. A questão judaica. 2. ed. São Paulo: Moraes, 1991.

————. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Lisboa: Editorial Presença, s/d. ————. Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel. In: A questão judaica. 2. ed. São Paulo: Moraes, 1991.

————. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. ————. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, Karl &ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

(27)

MONDOLFO, Rodolfo. Umanismo di Marx: studi filosofici 1908-1966. Torino: Giulio Einaudi Editore, 1975.

NOGUEIRA, Alcântara. Poder e Humanismo: o humanismo em B. Spinoza; o humanismo em L. Feuerbach; o humanismo em K. Marx. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989.

WHEEN, Francis. Karl Marx. Rio de Janeiro: Record, 2001.

Recebido em 29/02/2016 Aprovado em 03/08/2016 Received in 29/02/2016 Approved in 03/08/2016

Referências

Documentos relacionados

A aplicação de um Ensino de Eletroquímica sob a proposta CTSA conforme Aikenhead (1990) contribuiu para verificar as concepções dos participantes da pesquisa, todos

A su vez, las cifras de cota deben indicar siempre la medida real del elemento, no la medida que presenta en el dibujo, ya que pueden no ser coincidentes si el elemento no ha

insights into the effects of small obstacles on riverine habitat and fish community structure of two Iberian streams with different levels of impact from the

Estudos sobre privação de sono sugerem que neurônios da área pré-óptica lateral e do núcleo pré-óptico lateral se- jam também responsáveis pelos mecanismos que regulam o

Os objetivos do presente estudo foram avaliar, em casuística de pacientes adultos de nossa instituição, o desempenho da combinação dos índices FR/VC e PI/PImax na

2[2] ”A Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel é, freqüentemente, encarada como um marco no pensamento de Marx; a introdução, no texto, da figura histórica

 “Manufatura inteligente” / smart manufacturing (SMLC, 2011): “uso intensivo de tecnologias digitais para permitir a rápida fabricação de novos produtos, a rápida resposta

Influência do adensamento de plantio sobre o peso médio de frutos comerciais (kg) por densidade do mamoeiro “Sunrise Golden”, para as densidades respectivas de 1667, 2167, 2667,