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NASCIMENTO DOS CADERNOS ESCOLARES: UM DISPOSITIVO DE MUITAS FACES

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NASCIMENTO DOS CADERNOS ESCOLARES: UM DISPOSITIVO DE MUITAS FACES

VERA MENDES DOS SANTOS

Florianópolis, dezembro de 2002.

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CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO - FAED MESTRADO EM EDUCAÇÃO E CULTURA

NASCIMENTO DOS CADERNOS ESCOLARES: UM DISPOSITIVO DE MUITAS FACES

Dissertação submetida ao Colegiado do Curso de Mestrado em Educação e Cultura da Universidade do Estado de Santa Catarina em cumprimento parcial para obtenção do título de Mestre em Educação.

VERA MENDES DOS SANTOS

Profº. Dr. Norberto Dallabrida (orientador)

Florianópolis, dezembro de 2002.

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FACES

VERA MENDES DOS SANTOS

COMISSÃO EXAMINADORA:

--- Profº. Dr. Norberto Dallabrida (orientador)

--- Profª. Drª. Maria Teresa Santos Cunha (examinadora)

--- Profº. Dr. Kleber Prado Filho ( examinador)

--- Profª. Dr. Luiz Felipe Falcão (suplente)

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[...] não se deve ir atrás do ´fazedor’, mas apenas do fazer e do feito. Nenhum ponto fixo, nenhuma substância, nenhuma origem, nenhum centro. Apenas linhas, fluxos, intensidades,

energias, conexões, combinações. Silva, 2000.

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Este é também um tempo em que nos cabe agradecer...

Aos meus pais que, com o máximo de fé na escola, fizeram o possível e o impossível para que eu pudesse permanecer nela, mesmo que eles tenham sido tão rapidamente excluídos da mesma.

Ao Ruben, contentor e pára-raio de meus medos, resistências e insuficiências.

À Nadyne, pelos quase freqüentes adiamentos e evitações de seus sedutores e insistentes pedidos de “mãe, brinca comigo!”.

À Kharine, pronto-socorro e porto seguro, nas emergências produzidas por minha ignorância e resistência à informática.

Ao professor Norberto Dallabrida, que me apresentou e me emprestou a intrigante história da escola, para que dentro dela eu pudesse buscar indícios, fragmentos e argumentos na configuração de traços que pudessem ir delineando aos poucos algo diferente sobre os cadernos escolares. Pela palavra “coragem” ao concluir cada orientação, que era mais que um acolhimento, conseguindo interpretar meus medos e ler as minhas perturbadoras dificuldades.

À professora Maria Tereza Santos Cunha, companhia feminina, a me alcançar sem necessitar de tempo ou hora marcada, pois o inesperado sempre dava um jeito de nos reunir para indicações, textos decisivos e certeiros, para que eu pudesse, mediante seu entusiasmo e saber, suportar as crises e prosseguir no estudo do tema escolhido.

Ao professor Kleber Prado Filho, pela identificação das agruras de quem escolhe Michel Foucault como referência de leitura da realidade. Por suas palavras de encorajamento diante de meus primeiros e precários ensaios escritos: “você está fazendo uma leitura foucaultiana da sala de aula”.

Ao professor Luiz Filipe Falcão, a quem devo a aventura e a desventura de ter me apresentado ao intrigante pensamento de Michel Foucault, nó e ponto destruidor de minhas certezas, laço e esboço tênue, para construções e desconstruções, sempre provisórias e inesperadas.

Aos meus queridos e queridas colegas de percurso, pois diante do nosso inevitável e permanente estado de insocorridade abrigávamos uns aos outros em nossas próprias faltas. Em especial, pela proximidade da troca e interlocução, agradeço à

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À direção e à equipe da Escola de Educação Básica Lauro Müller, pelo acolhimento proporcionado e mantido durante todo o tempo em que lá permaneci. Em especial à professora da primeira série, pela forma receptiva e cordial com que me abriu sua sala de aula, para que eu pudesse acompanhar de perto as práticas escolares, protagonizadas pelos cadernos de classe. Aos alunos e alunas da referida série, que com muito gosto e espontaneidade me emprestaram seus cadernos.

À Gladys Mary Teive Auras, pela companhia, disponibilidade e preciosos alcances.

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RESUMO

A presente pesquisa objetiva colocar em questão a naturalidade e permanência dos cadernos escolares. Como ferramentas teóricas para a desnaturalização desse

objeto escolar, são utilizados, entre outros, os trabalhos de Michel Foucault, mais propriamente os conceitos de genealogia e dispositivo. O método genealógico, ao ser aplicado sobre os cadernos escolares, coloca em relevo a montagem híbrida de uma história própria, feita de pequenos fragmentos e distribuída em desordem dentro de outras histórias. Os colégios dos jesuítas, criados na Europa a partir do século XVI, e as escolas cristãs, fundadas também na Europa um século depois por João Batista de La Salle, são peças consideradas como primordiais para a composição de tal genealogia. O ensino da escrita, ao ocupar a centralidade dessas pedagogias, torna-se útil como estratégia para criar uma nova disciplina feita de silêncio, estudo, atividade, prêmios e punições. A escola, escrita e cadernos, inventados sob os mesmos discursos e práticas, entrelaçam-se complexamente como ferramentas especializadas na constituição da subjetividade moderna. O acompanhamento da prática com os cadernos numa primeira série, tendo a análise documental como estratégia de pesquisa, revela o tempo, atividade e disciplina, como eixos principais, ancorados em saberes subjacentes como: a homogeneização, compartimentalização, classificação e hierarquização. A intensidade das cópias, como principal atividade realizada em sala de aula, confirma os cadernos como ferramenta na produção de sujeitos produtivos, disciplinados, obedientes e submissos.

Palavras-chave: caderno, genealogia, dispositivo, escola, subjetividade, disciplina.

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The objective of the present research is to discuss the naturalness and permanence of the schools copybooks. As theoretical tools for the denaturalization of this school object, are used, among others, the Michel Foucault works, more properly the concepts of genealogy and apparatus. The genealogical method, to being applied on school copybooks, places in relief the hybrid assembly of a proper, made of small fragments and distributed history, located in disorder inside of other histories. The Jesuits colleges created in Europe since the XVI century, and the Christian schools, also established in Europe a century later by João Batista de La Salle, are considered as primordial pieces to compose such genealogy. The handwriting education, occupying the centrality of these pedagogies, becomes useful as strategy to create a new discipline made of silence, study, activity, prizes and punishment. School, handwriting and copybooks, invented under the same speeches and practices, are blended complexly as specialized tools in the constitution of the modern subjectivity. Accompanying the practices with notebooks, in a first series, having the documental analysis as research strategy, discloses time, activity and discipline, as its main axis, anchored on underlined knowledge, as homogenization, compartmentalization, ranking and hierarchies. The handwriting intensity, as main activity carried out through the classroom, confirms notebooks as a tool to engender productive, disciplined, obedient and submissive citizens.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 79

FIGURA 2 103

FIGURA 3 104

FIGURA 4 104

FIGURA 5 104

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RESUMO 7

ABSTRACT 8

LISTA DE FIGURAS 9

INTRODUÇÃO 11

CAPÍTULO PRIMEIRO – A GENEALOGIA DOS CADERNOS DE CLASSE 18

1 DOS JESUÍTAS AOS LASSALISTAS, A EMERGÊNCIA DOS CADERNOS

ESCOLARES 21

2 ESCRITURAS MERCANTIS: UMA HERANÇA INESPERADA DOS

CADERNOS DE CLASSE 47

3 A ESCOLA OBRIGATÓRIA: DEVER DO ESTADO, DIREITO DO POVO 50 4 OS CADERNOS COMO INSTRUMENTOS DE PRECISÃO DA MODERNA

PEDAGOGIA DOS GRUPOS ESCOLARES 61

5 A EMERGÊNCIA DOS CADERNOS EM SANTA CATARINA 68

CAPÍTULO SEGUNDO – OS CADERNOS NA SALA DE AULA 75

1 OS CADERNOS DE DIÁRIO: ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO 77

2 PRÁTICAS E ROTINAS DA SALA DE AULA 85

3 CADERNOS, DATAÇÃO, ATIVIDADE E CÓPIA: FÔRMAS E FORMA DE

PRODUZIR ESCRITA E COMPORTAMENTOS 92

4 SABERES QUE COMPÕEM A PRÁTICA DOS CADERNOS 105

5 EFEITOS DOS CADERNOS NA CONSTRUÇÃO SUBJETIVA DE

ALUNOS E PROFESSORA 107

CONSIDERAÇÕES FINAIS 126

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INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende colocar luzes sobre os cadernos escolares. Saber um pouco de sua história, acompanhar suas rotas e passagens e, sobretudo, seus movimentos e efeitos como prática pedagógica. Uma história que literalmente precisamos aprender a ler e escrever nas entrelinhas, descobrindo, juntando e articulando pedaços, distribuídos em desordem, dentro de outras histórias. Buscá-los, dessa forma, significa talvez o que nos propõe Hérard,1 “ir convocando fragmentos nas informações disponíveis”.

Por outro lado, falar em cadernos quase sempre chega ser o mesmo que tentar descrever o óbvio, o invisível, o sempre existente. Sua evidência é tão patente que chega provocar uma certa invisibilidade, ou seja, uma espécie de cegueira por parte de quem se “mistura” com ele no dia-a-dia escolar. Ferramenta pedagógica intensamente presente nas salas de aula, encontra-se tão perfeitamente incorporado ao cotidiano escolar que afasta dele qualquer tipo de estranhamento, problematização ou inquietude. Assim sendo, não parece ser uma tarefa muito simples descolá-lo desse ritual diário para descobrir os pontos e linhas que o constituíram e que lhe deram esse incrível ar de naturalidade e permanência, absolutamente inquestionáveis.

Como ferramentas teóricas, para retirar os cadernos escolares de seu cristalizado lugar de simples material didático, buscarmos novas maneiras de interrogá-los2 e encontramos na teoria de Michel Foucault a possibilidade de “passar

1 HÉBRARD, Jean. Por uma bibliografia material das escrituras ordinárias. A escritura pessoal e seus suportes. In: MIGNOT, Ana Chrystina Venancio; BASTOS, Maria Helena Câmara; CUNHA, Maria Teresa Santos. (Orgs.). Refúgios do eu educação, história, escrita autobiográfica. Florianópolis: Mulheres, 2000a. p. 29-61.

2 VIDAL, Diana Gonçalves; GVIRTZ, Silvina. História da educação comparada na América Latina. In:

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a limpo” esse objeto escolar. Em sua difícil e igualmente instigante teoria, Foucault nos convida a desfamiliarizar e a estranhar a mais comum e habitual rotina. Solicita-nos especial cuidado e completa atenção aos detalhes e minúcias, pois, segundo ele, são nessas pequenas e inofensivas dobras ou sombras que a feitura do sujeito moderno se realiza.

A partir daí, novos e diferentes sentidos passam a ser inventados ou reinventados. O cotidiano é transformado brutalmente de enfadonha rotina, em sua natural mesmice, no conturbado e produtivo espaço de oficina e laboratório. As pequenas práticas são reinterpretadas e ganham, nessa redefinição, o importante lugar de matéria-prima na fabricação dos sujeitos. Conforme o que nos indica o mesmo autor, o sujeito não se forja nas profundezas das grandes estruturas, mas no fogo cruzado das relações de poder, ou seja, no anonimato e na superfície das pequenas práticas. Os cadernos como prática pedagógica, em conjunto e sincronia com outros instrumentos e práticas escolares, serão relidos como silenciosos e eficientes artífices da rotina escolar, “espaço-suporte”, onde também se produz a subjetividade humana

Para tentarmos desnaturalizar os cadernos como material e reconstituí-lo como prática, utilizaremos basicamente dois conceitos, o de genealogia e o de dispositivo.

O conceito de genealogia, aplicado ao estudo dos cadernos, é o instrumento que terá força suficiente para desnaturalizá-lo. O método genealógico de Foucault, é assim definido por Prado Filho3:

Trata-se centralmente de iluminar os relevos e as diferenças, de

3 PRADO FILHO, KLEBER. Trajetórias para a leitura de uma história crítica das subjetividades

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mostrar os confrontos, as lutas e os afrontamentos sociais, de voltar a atenção para o jogo das providências e das emergências: para a formação, a interrupção, as alterações de rumo dos fluxos históricos.

Fazer uma genealogia dos cadernos não significa ir às origens, como objeto idealizado, ou buscá-los na longa duração histórica. Sabemos pelo que nos alcança a sociologia histórica4 que não existem mágicas na história. Os cadernos não saltam assim do dia para noite para dentro da escola, ou num outro extremo, a ilusão de que sempre estiveram presentes. Conforme nos adverte Gvirtz,5 a escola moderna não veio com o caderno incluído, ele é um híbrido, que surge a partir de certas circunstâncias e momentos históricos específicos. Assim, referindo-se às pesquisas de dispositivos escolares, Chartier sublinha a aparência natural e despretenciosa que geralmente os envolve:

[...] as pesquisas na escola fazem perceber dispositivos lá onde eles nunca seriam esperados, instalados no tempo lento, o dos ajustes dos usos e das banalizações. Pode-se mesmo pensar que, para os alunos, os dispositivos mais fortes são aqueles que lhes parecem inscritos no tempo imóvel das coisa sempre aí, das primeiras evidências [...]. 6

Enquanto a genealogia revela os cadernos como produto de quebras, continuidades e cruzamentos, entre diferentes saberes e épocas, o conceito de dispositivo tenta perceber os cadernos nos micros e sutis mecanismos que os configuram e que os colocam em movimento como prática. Segundo Prado Filho,7 a flexibilidade de um dispositivo dispensa qualquer estrutura para o seu

4 Nesse sentido, contamos com os estudos de André Petitat, Anne Querrien, Fernando Alvarez Uria e Julia Varela.

5 GVIRTZ, Silvina. Del curriculum prescripto al curriculum enseñado: una mirada a los cuadernos de clase. Argentina: Aique, 1995. p.16.

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funcionamento. Sua autonomia é obtida quando se transforma em prática social e, a partir daí, naturaliza-se e ganha independência, tornando-se inquestionável pelo seu perfeito enraizamento no tecido social.

Um dispositivo é uma complexa máquina de poder, com autonomia, mobilidade e configuração histórica própria, que se apoia em relações de saber-poder e produz efeitos de subjetivação [...] o dispositivo normaliza, individualizando os sujeitos.8

Neste trabalho, tentaremos, portanto, fazer uma genealogia, e como um dispositivo escolar integrar as complexas malhas dos jogos de poder. Nosso interesse pelos cadernos é resultante de um longo e difícil caminho, feito de pequenas, mas não menos perturbadoras, desconstruções.

As crenças, ilusões, romantismos e ingenuidades que cristalizadas sustentaram nossa prática de educadora, por um certo tempo, foram ruindo lentamente e quase sem fazer barulho. As certezas minadas foram sendo substituídas por realismos bastante difíceis de serem assimilados e suportados, pela crueza ácida de suas declarações, mas, sobretudo, pela irreversibilidade das desconstruções que iam se configurando, fazendo lembrar o sentido dado por Foucault ao saber: “O saber não foi feito para compreender mas para cortar”.9

O primeiro grande mal-estar consistiu em vermos desmanchar-se nosso tão bem estruturado conceito de sujeito da educação, defendido como sujeito universal, transcendental racional, crítico, responsável, livre e autônomo. Esse sujeito da

7Ibidem, p. 101.

8Ibidem, p. 101.

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educação que levamos tanto tempo para compreender, morre em meio a essa profunda crise.10

Nesse sentido, podemos dizer que a pedra de toque para essa metamorfose foi sem dúvida nosso contato com os textos contidos no livro, organizado por Tomaz Tadeu da Silva, sob o título, “O Sujeito da Educação”. Mais propriamente o texto de Jorge Larrosa: Tecnologias do eu e a educação. Nele, o autor, tendo por base a teoria de Foucault, pede e chama nossa atenção, como educadores, para que ao abrirmos os olhos, de repente, possamos ver nossas práticas pedagógicas, não

como espaço de desenvolvimento, mediação, facilitação ou aprendizagem, mas fundamentalmente como um lugar de produção ativa de sujeitos. Ou seja, desafiando-nos a chegar até o cotidiano escolar e ali poder ver de olhos arregalados, as pequenas práticas na sua multiplicidade, riqueza de detalhes, articulações e nuances, como não éramos capazes de visualizar anteriormente.

Assim, em meio a esse movediço e irreversível processo, os cadernos escolares foram emergindo aos poucos como possibilidade de pesquisa. Ao serem interpretados como prática pedagógica, ofereciam-nos uma tentadora oportunidade de se constituírem em um interessante fio ou fresta, por onde uma educadora

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poderia espreitar em silêncio a sutil e complexa constituição dos sujeitos.

Nessa perspectiva, a escrita do primeiro capítulo foi uma tentativa de buscar as peças que constituíram os cadernos escolares, as redes que os configuraram, os saberes que calculadamente provocaram a sua emergência e os finos jogos de poder, que lhes garantiram o prêmio de uma quase absoluta permanência. Através dessas rupturas e descontinuidades, tentamos descobrir os segredos de suas capas e páginas, o porquê de sua minuciosa ordem, a força de seus “religiosos” exercícios, o poder de suas escrituras, o relógio que traz escondido dentro de si, que dispara sem descanso do início ao término de cada atividade e o caos que poderia gerar a sua ausência dentro da sala de aula. Estamos falando da busca de uma genealogia dos cadernos, tema que ocupou centralmente o primeiro capítulo.

No segundo capítulo, em “Os cadernos em sala de aula” apresentamos os cadernos em seu habitat natural, ou seja, no cotidiano da sala de aula, mais propriamente de uma primeira série, para observar, registrar e estudar as operações, estratégias e táticas dos cadernos como dispositivo.

A entrada de Michel Foucault à sala de aula, realmente, a transforma. Ao contrário de relacionar a sala de aula a um lugar enfadonho e entediante, pela sua rotina sem cor e gosto, Foucault, através de meticulosa pesquisa devolve uma sala de aula picante, viva, provocativa, ágil, onde nada está desarticulado, ou sem sentido. Tudo faz parte de uma rede sofisticada, tecida minuto a minuto, em finos e invisíveis fios. Uma rede onde todos, presentes ou ausentes, estão implicados e são, ao mesmo tempo, redes, e também fios, tecem e são tecidos.

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“didáticas”, aquelas obviamente não ensinadas em nossos cursos de formação para educadores. Quem sabe a partir da desnaturalização dos cadernos e sua conseqüente problematização, poderemos sair de concepções tão mecânicas e estereotipadas do ensino das letras. E talvez comecemos a imaginar outros modos, formas menos totalizadoras de aprender e ensinar a escrita onde, conforme poderemos acompanhar neste trabalho, os cadernos ocuparão um lugar fundamental na estruturação das pedagogias que estarão destinadas a educar as crianças do povo.

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CAPÍTULO PRIMEIRO

A GENEALOGIA DOS CADERNOS DE CLASSE

É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar.

Foucault, 1988, p. 28.11

Esta história teve seu início quando fomos desafiados a tentar ver a escola não unicamente como transmissora ou mediadora de conhecimentos, mas, sobretudo, como lugar privilegiado na elaboração de saberes e práticas produtoras de subjetividade. Nossa aproximação do pensamento de Michel Foucault nos impeliu a esse tipo de procura, essa mudança de olhar, ou seja, visualizar a escola como uma oficina que, em suas intensivas e intermitentes atividades cotidianas, também, forja subjetividades. A partir daí, muitas perguntas passaram a inquietar e dirigir nossa ação, com uma certa pressa, em busca de um lugar onde fosse possível constatar de maneira concreta, indícios ou traços dessa produção.

A Escola de Educação Básica Lauro Müller, um entre os seis primeiros grupos escolares, criados em Santa Catarina, em 1912, logo foi identificada como cenário mais amplo, um terreno fértil a abrigar nossas desconfortáveis inquietações e a nos possibilitar investigar os efeitos das pequenas práticas na constituição dos sujeitos.

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Uma vez delimitada a sala de aula como ponto de referência para a observação das práticas escolares, num momento inicial, passamos pelo impulso de estudá-la em seu conjunto buscando descobrir os efeitos de todos os elementos que a compreendem. Essa idéia logo foi afastada, ao constatarmos a abrangência e complexidade desse espaço pedagógico, levando-nos a investir na escolha de um único objeto a ser pesquisado como prática dentro desse universo. A partir desse corte e sem que houvesse muito esforço, os cadernos escolares logo emergiram como objeto-alvo entre os demais recursos ou materiais da sala de aula e, junto com eles, a escolha da primeira série do Ensino Fundamental como palco definitivo para acompanhar de perto as práticas, normas e comportamentos criados a partir desse tão familiar suporte da escrita. Assim, encontrada a escola, o objeto e a série, colocamos em ação o plano que daria início ao trabalho propriamente dito.

Os cadernos, em sua estrutura e movimentos, serão analisados como um dispositivo, o que significa tentar retirá-lo de seu lugar comum, em sua quase irredutível opacidade, e encará-lo como objeto estranho, configurado aos poucos numa multiplicidade de lugares e tempos.

Nosso primeiro encontro com os cadernos em estudo merece um registro em destaque, pela força da primeira imagem, como quadro, a partir do qual se puderam constatar os efeitos na organização das práticas pedagógicas. Ao entrarmos pela primeira vez na sala de aula, não encontramos, no local, as 27 crianças que ali eram alfabetizadas. Elas haviam saído para assistir uma competição esportiva e sobre as carteiras, alinhadas em cinco simétricas filas, estava o caderno de cada uma delas, aberto na página onde estivera trabalhando antes de sair, ou seja, demarcando onde tinha sido parada a cópia da agenda do dia, interrompida pela chegada da

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professora de Educação Física.

Na mesa da professora da turma, a mesma se ocupava exatamente com a correção dos cadernos de deveres, distribuídos em duas pilhas que separavam os revisados dos não corrigidos, portanto, novamente os cadernos comandavam a cena. No quadro negro, a escrita da professora com a data e as atividades colocadas em ordem numérica indicava aquilo que devia ser retomado pelos alunos assim que eles regressassem do jogo. Com os cadernos ocupando a centralidade das atividades em sala de aula, o retorno deles acontece sem problemas, necessitando apenas de um único comando da professora: “continuem copiando o que estava escrito no quadro”. Cada criança volta a ocupar o seu lugar, seu caderno já aberto a indicar o que, onde e como fazer. À medida que todas reiniciam a atividade, o silêncio toma conta da sala, podendo-se ouvir apenas o barulho dos lápis e esporadicamente a voz da professora que passa, fila por fila, carteira a carteira, conferindo a escrita de cada uma.

Sem dúvida, nesse nosso primeiro encontro com os cadernos, fomos brindados com uma cena compacta, a revelar com todas as letras a sua força, como um dispositivo sob o qual a escola arma e estrutura suas principais práticas. Assim, a busca de desnaturalizar os cadernos nos convida nesse momento a sair da sala de aula12 e até mesmo da Escola de Educação Básica Lauro Müller para, através do

método genealógico, buscar as peças de sua composição. Sabemos que o caderno escolar não apareceu do dia para a noite na sala de aula e nem se constituiu de forma isolada, mas sim foi fruto de composição e recomposição, saber e prática, em campos e tempos diferentes.

1 DOS JESUÍTAS AOS LASSALISTAS, A EMERGÊNCIA DOS CADERNOS ESCOLARES

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Quando a escrita deixou de ser feita em rolos de papiro ou pergaminho e ganhou a tridimensionalidade do códice, aconteceu uma verdadeira revolução nos scriptoriuns dos copistas. Surge a partir daí, pela primeira vez, o termo quaternio (caderno), assim denominado, porque, ao dobrar uma folha ao meio, resultaram quatro faces justapostas que, coladas ou amarradas, deram progressivamente oito, dezesseis páginas, compondo desse modo um livro. Daim, citado por Hébrard, descreve o trabalho de um copista utilizando a estrutura do códice, ou seja, nas folhas de um quaternio: ”Só após ter escrito no reto e no verso sobre a primeira parte das quatro folhas de um quaternio serão retomadas essas mesmas folhas e, seguindo a ordem inversa, cobrir-se-á com a escrita a segunda parte, até então deixada em branco”.13

A escrita, em folhas dobradas, depois encadernadas e não em rolo, alterou de forma substancial as práticas de escrituras, desde as facilidades para o transporte até as atividades mais específicas, como a leitura e a escrita do conteúdo, a ser escrito ou lido. A praticidade e a economia que essa nova modalidade emprestará aos processos de leitura e escrita, serão integralmente absorvidas e inteligentemente aproveitadas nas complexas articulações que bem mais tarde irão compor as práticas que constituirão os cadernos de classe.

Embora o termo quaternio tenha tido sua emergência na Antigüidade, os cadernos de classe, apesar de receberem tal herança, emergiram com a repentina e rápida proliferação dos colégios na Europa moderna. Foi no seu interior que os

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cadernos de classe ensaiaram as primeiras permanências, prestando primeiros serviços a uma pedagogia e disciplina que estavam nascendo com eles e que juntas estariam dando conta da fabricação de um novo sujeito, o sujeito moderno. Ajustados cuidadosamente às ações dessa pedagogia de vanguarda, os cadernos seriam aperfeiçoados continuamente como um dispositivo precioso, que serviria de suporte primeiro aos colégios jesuítas no século XVI e mais tarde às escolas elementares cristãs no século XVII. João Batista de La Salle aprimorou-os e introduziu-os definitivamente na escola elementar,14 como uma ferramenta moderna, sem a qual seria muito difícil ensinar às crianças do povo a sofisticada técnica da leitura, escrita e cálculo.

Por termos descoberto que os elementos e as práticas que constituíram os cadernos escolares foram forjados, peça por peça, no interior dessas duas pedagogias, que muito bem poderíamos denominar de irmãs, iremos dedicar neste capítulo grande parte de nosso trabalho para acompanhar a emergência e a expansão das mesmas.

Os colégios emergiram em meados do século XVI como uma das principais estratégias da Igreja Católica que, fortemente ameaçada em sua unidade, necessitava reagir aos contundentes ataques dos protestantes. Tal embate fez com que toda a Europa fosse mergulhada num clima de guerra religiosa que trouxe importantes transformações. Seus idealizadores e fundadores foram os padres

14 As escolas elementares eram pequenas instituições de ensino gratuito criadas pelas igrejas, no século XVI, com expansão progressiva nos séculos seguintes, inicialmente, dirigidas às crianças pobres, para as quais se faziam obrigatórias. No princípio, com objetivos ligados à catequese, vão gradativamente sofrendo modificações até chegar ao ensino dos saberes elementares da leitura, escrita e cálculo, servindo como protótipos para a escola primária moderna. Em oposição aos colégios destinados ao ensino secundário e as elites, tendo o latim como língua oficial, as escolas elementares adotavam o francês. Ver: PETITAT, André. Produção da escola/produção da sociedade: análise sócio-histórica de alguns momentos decisivos da evolução escolar no Ocidente. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. p.119-120 e QUERRIEN, A. Trabajos elementares sobre la escuela primaria. Madrid: La Piqueta, 1994. p. 21-28.

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jesuítas que, de forma sutil e inteligente, vão cuidadosamente criando, através de uma sistematização minuciosa e calculada das práticas desenvolvidas dentro de seus próprios colégios, um plano pedagógico que pudesse garantir a unificação das práticas educativas que seriam desenvolvidas em todos os colégios, tarefa que receberia dessa ordem religiosa o máximo de empenho e dedicação.

O que nos interessa de forma especial, dessa curiosa e bem sucedida pedagogia, não é obviamente seu êxito como estratégia no contexto das guerras de religião, e sim seu caráter revolucionário na forma de governar e gestar sujeitos, que para adentrar à modernidade precisaram emergir como indivíduos letrados, obedientes e católicos.15 E é dentro desses colégios e sob os princípios do método pedagógico inventado pelos jesuítas que começa a ser meticulosamente esboçado um modo complemente novo de administrar e produzir sujeitos, caracterizando uma verdadeira ruptura entre a Idade Medieval e Moderna.

A Ratio Studiorum, manual pedagógico, com 467 regras,16 é o documento no qual pode ser encontrado vários detalhes constituintes de um tipo de poder, que tomará o corpo, como principal objeto e alvo, lugar para onde deverá ser dirigida as mais minuciosas atenções e os mais intermitentes investimentos, a fim de se alcançar uma produtividade máxima de forma quase inesgotável.17

Foucault mostra a emergência, a partir da segunda metade do século XVIII

15 DALLABRIDA, N. Moldar a alma plástica da juventude: A Ratio Studiorum e a manufatura de sujeitos letrados e católicos. Educação: Unisinos. Porto Alegre, v. 5, n. 8, p.133-150, 2001.

16 A Ratio Studiorum correspondia a um código de prescrição aos professores, padres jesuítas e

previa nos mínimos detalhes medidas pedagógicas e disciplinares que os mestres deveriam aplicar dentro e fora da sala de aula a fim de conduzirem da forma mais perfeita possível os estudos de seus alunos. O controle e padronização da ocupação do espaço e tempo escolar, a hierarquização dos conteúdos, a graduação das classes, a emulação e competição entre os alunos, como substitutos dos castigos corporais, ocupavam a centralidade desse verdadeiro arsenal de medidas disciplinares inéditas do ponto de vista pedagógico.

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de um novo poder, que denominou de poder disciplinar. Um poder que se articula através da aplicação de táticas e estratégias que levam a análise e o detalhamento do corpo (gestos, movimentos, comportamento e atitudes) às últimas conseqüências, para desse modo torná-lo dócil e útil. “O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma ‘anatomia política’, que é também igualmente uma ‘mecânica do poder’, está nascendo [...]”.18 O mapeamento rigoroso tanto do espaço como do tempo dá a esse poder moderno as condições máximas de vigilância, rapidez, economia e eficiência.

As profundas transformações que a pedagogia ativa19 irá trazer ao universo escolar estão muito bem explicitadas por Petitat,20 na citação a seguir, ao descrever “as peças” (pequenas práticas),21 que calculadamente encaixadas irão compor esse quadro institucional quase perfeito:

[...] este tempo é repartido em períodos anuais; horários estritos e bem carregados dividem as matérias pelos dias e horas. Relógios e sinetas, já presentes no século XV e muito difundidas no século XVI, marcam agora as atividades escolares. Os alunos dispõem de um tempo limitado para assimilar determinadas matérias, para entregar os temas e para apresentar-se aos exames. É o principio dos prêmios pelo desempenho escolar, das censuras e das recompensas, dos alunos brilhantes e dos preguiçosos. A cada ano, os ‘bons’ são promovidos e os ‘ maus’, rebaixados ou eliminados.

É esse tipo de disciplina que passou a emergir a partir da criação dos

18Ibidem, na terceira parte desta obra, intitulada Disciplina.

19“Pedagogia Ativa” foi a denominação dada pelos próprios jesuítas para identificar ao seu método. A palavra “ativa” está ligada diretamente à ininterrupta demanda de atividades em forma de exercícios repetitivos e totalizantes, de forma a afastar qualquer ação ou movimento que fosse considerado improdutivo. Os exercícios e atividades são elementos “cernes” dessa pedagogia.

20 PETITAT, op. cit., p. 79.

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colégios e que fez com que autores como Varela22 apresentassem a pedagogia ativa como uma das mais fecundas “oficinas” onde foram forjados os principais mecanismos, “peças”, a compor a “maquinaria escolar”.23 A palavra “maquinaria” é uma metáfora utilizada por Foucault, para mostrar as características de um poder que se articula como se fosse uma máquina. As partes do corpo são habilidosamente estruturadas e preparadas como peças para funcionar numa engrenagem que está sempre sendo corrigida e reajustada, o homem-máquina.24

A expressão “maquinaria escolar” merece também de nossa parte um destaque. Ao tentarmos traçar a genealogia dos cadernos de classe que remete exatamente à idéia de que um objeto não surge, permanece ou desaparece no tempo por acaso, mas, sim, como nos assinala Foucault, pode ser o produto de movimentos e mecanismos aparentemente desconectados que aos poucos poderá configurar-se, ou seja, materializar-se.25

Nesse sentido, podemos dizer que os cadernos de classe foram “tecidos” no interior dessa “maquinaria” pedagógica, criada pelos jesuítas, ocupando, no complexo movimento dessa extraordinária fabricação, um decisivo papel para o êxito desse empreendimento educativo.

Toda essa maquinaria girou em torno de um eixo principal que podemos

22 VARELA, J. Educação e Cidadania. In: DALLABRIDA, N. A Fabricação escolar das elites. Florianópolis: Cidade Futura, 2001. p. 16. Essa autora, citando Durkheim, aponta os jesuítas como os inventores da pedagogia moderna, dadas às profundas implicações de seu método na história das instituições escolares.

23 A expressão “maquinaria escolar” se inspira no conceito foucautiano, mas foi cunhado por Varela, em VARELLA, J.; ÁLVAREZ-URIA, F. Arqueología de la escuela. Madrid: La Piqueta, 1991. p. 13-54. Nessa importante obra, os autores dão ao primeiro capítulo o título de “La maquinaria escolar” a fim de mostrarem, através de um minucioso rastreamento histórico, o caráter nada natural e repentino em que emerge a escola. Para eles, a escola é uma instituição bastante recente, produto de contingências que devidamente afinadas e colocadas em correspondência vão, a partir do século XVI, ao configurarem-se, compor o quadro que possibilitará o seu surgimento.

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denominar escrita-escola e escola-escrita. A escrita26 ocupou o centro da exaustiva rotina dos colégios. Daí em diante, até os nossos dias, estão sempre em estreita cumplicidade e em permanente tensão, sendo utilizadas como importantes estratégias dentro das mais diversas finalidades políticas.

A escola é uma invenção social que, com suas imensas conseqüências pode ser comparada à escrita, com a qual se encontra intimamente associada. Escola e escrita perturbam a lógica da produção-reprodução cultural e social. Sem elas, não há estabilidade para os grandes conjuntos políticos, e é impossível às classes sociais de grande envergadura produzir-se e reproduzir-se.27

Essa junção simbiótica, escrita-escola, depois de conhecermos as incursões da escrita na área comercial, talvez pudesse dizer que os cadernos estarão presentes como um precioso e fiel aliado a cimentar regras, produzir e controlar novos comportamentos, estando eles mesmos sujeitos a permanentes ajustes e transformações. Nas palavras de Faria Filho,28 um objeto escolar que educa, destinado ao controle dos tempos curtos e das dimensões micro das práticas escolares.

Por compreendermos que a emergência dos cadernos de classe está profundamente implicada nas regularidades que regem a pedagogia criada nos colégios, passaremos a seguir a buscar e articular fragmentos de história que

26 A escrita, nesse momento, além da imprensa que acaba de ser inventada trazendo efeitos transformadores e criadores de novas práticas, servirá de matéria-prima e, ao mesmo tempo, de ferramenta a dissolver a imagem do homem medieval, dando passagem a feitura de um sujeito capaz de constituir-se a si próprio, uma questão de grande complexidade. A emergência desse novo homem estará ligada, profundamente, a partir daí, ao ato de escrever. Sobre a escrita e seus efeitos subjetivantes ver: ORTEGA, F. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1999. p.97-99.

27 PETITAT, op. cit., p. 264.

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possam nos ajudar a redescobrir os cadernos como uma das peças que, como muitas outras, foram armadas para integrar e manter produtiva essa doce máquina educativa.

Uma das primeiras constatações da presença dos cadernos na escola, coincide exatamente com a descrição de um certo “livro branco”,29 assim denominado por apresentar, além do texto impresso, grandes espaços em branco, como se fossem margens ou entrelinhas, próprias para anotações, lembretes ou observações. Esse possível protótipo dos cadernos de classe consta dos escritos da

Ratio Studiorum do primeiro colégio dos jesuítas, localizado em Messina, em 1548, e também do colégio romano em 1564 e 1565.

O caderno é um instrumento comum do aluno de colégio desde o século XVI. No Ratio Studiorum é freqüentemente designado pela expressão ‘livro branco’ e seu uso é proposto em alternância com o do texto impresso com grandes espaços permitindo ao aluno anotar acima da linha a explicação, dada pelo regente da aula, sobre o texto clássico, grego ou latino, trabalhado.30

Ainda sobre o “livro branco”, Manguel31 nos oferece um dado concreto, ao descrever um outro tipo de caderno escolar, o “caderno de notas”, semelhante ou pelo menos com as mesmas funções do “livro branco”. O referido autor escreve sobre o caderno escolar de dois alunos adolescentes, que freqüentavam a escola de latim em Sélestat, por volta de 1440, e que se encontram hoje na biblioteca humanista da mesma cidade.

Ao descrevê-los, o autor comenta que começavam pela cópia do

29 HÉBRARD, J. Por uma bibliografia material das escritas ordinárias: o espaço gráfico do caderno escolar (França - séculos XIX e XX). Revista Brasileira de História da Educação (SBHE). Campinas, n. 1, p. 118, jan/jun. 2001.

30Ibidem.

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negro de orações dominicais e uma seleção de salmos,32 seguindo um registro caligráfico esmerado. As últimas páginas dos dois cadernos eram transformadas em um bem estruturado índice de coisas e verbos, servindo posteriormente como um instrumento de consulta a estudos subseqüentes, além de deixar ali registrado com clareza o rol de assuntos e temas estudados.33

Ao fazer referência à escrita de um dos alunos em seu caderno de notas, Manguel nos mostra o caráter organizador e sistematizador que tal registro impregnava aos textos em estudo, bem como a definição do ritmo de grande parte das atividades pedagógicas:

A caligrafia de Rhenanus [nome do aluno] dificilmente mostra mudanças ao longo dos anos. Distribuída no centro da página, deixando grandes margens e amplos espaços entre as linhas para glosas e comentários posteriores [...]. Forte e clara, em tinta púrpura brilhante, a caligrafia permitia a Rhenanus seguir o texto com facilidade cada vez maior. Iniciais decoradas aparecem em várias páginas [...] tudo com notas gramaticais ou etimológicas em tinta preta nas margens e entre as linhas e, às vezes, com comentários críticos provavelmente acrescentados mais tarde.34

Segundo esse autor, por questões econômicas, dado o elevado custo do papel, esse caderno foi utilizado durante muitos anos. Hébrard35 complementa qualificando esse suporte singular da escrita escolar de “pequena obra-prima” pela arte e custo que envolvia.

Mas há uma outra definição dos primeiros cadernos de classe que, na nossa opinião, mais o identifica como um dispositivo,36 ou que pelo menos não deixa

32Ibidem, p. 98.

33Ibidem, p. 101. 34Ibidem.

35 HÉBRARD, 2001, op. cit., p.117.

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dúvidas sobre o seu perfeito encaixe no interior da bem montada máquina pedagógica inventada nos colégios. Assim, tomando como base o Dictionnaire Universelle de Antoine Furetiére, Hébrard37 nos brinda com um conceito de significado revelador do termo caderno escolar, definido por Furetiére, no fim do século XVII.

Cayers são também os escritos que os estudantes escreveram sob a

orientação de seu mestre de filosofia, teologia ou qualquer outra ciência que se ensine nas escolas. Um estudante precisa reapresentar seus cadernos (cayers) a seu mestre para dele obter um atestado de seu tempo de estudo.

Por meio dessa definição, percebemos a estreita relação entre a escrita no caderno e o controle do tempo do aluno, a exemplo da função dos livros comerciais, que trataram de colocar no papel os elementos modernos: tempo e dinheiro. Nesse sentido, podemos dizer que cada caderno guarda escondido dentro de si um eficiente relógio, capaz de marcar em detalhes a ausência ou a realização de qualquer gesto do aluno que digam respeito ao trabalho da escrita escolar. Ele é o mais nítido comprovante ou documento, tanto da freqüência quanto da produtividade de cada aluno sobre determinado conteúdo escolar.38

Esses dois tipos particulares de cadernos, “livro branco” e “cadernos de notas”, que marcaram sua primeira presença como suporte da escrita escolar,

37 HÉBRARD, 2000a, op. cit., p. 50-51.

38Ibidem. Segundo esse mesmo autor, na mesma obra, p. 51, os cadernos utilizados nos colégios ou

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destinavam-se praticamente às anotações selecionadas, como por exemplo, os ditados, exercícios de rotina ou atividades-meio. Era também um material reservado somente aos últimos anos de colégio ou universidade.39

Como podemos observar, uma respeitável maquinaria está assim sendo composta e afiada: escola, escrita e cadernos, inventados pelos mesmos discursos e práticas, na mesma época, entrelaçando-se complexamente, para servirem também como ferramentas especializadas que contribuem para esculpir o sujeito moderno.

A sala de aula, fruto de meticulosas combinações entre tempo e espaço, emerge como um ambiente específico, um laboratório onde essas subjetivas operações serão executadas sob uma disciplina singular.40 A disciplina que vigora dentro da sala de aula pode muito bem ser definida pelo mesmo texto que Foucault utiliza para mostrar o funcionamento de uma “estrutura panóptica”,41 ou melhor, é impossível não reconhecer a sala de aula nessa descrição de Foucault:

Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído [...].42

Nasciam, assim, as primeiras configurações espaciais das futuras salas de aula e todas as relações de poder que são possíveis tão claramente nelas visualizar. Os saberes passam a ser classificados e selecionados, ganhando tempo, forma e lugar definido, ou seja, tornam-se definitivamente escolarizáveis. Estava assim em

39 HÉBRARD, 2000a, op. cit., p.51. 40 FOUCAULT, 2000, op. cit., p. 163. 41 Ver nota de rodapé nº 91.

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implantação um poderoso começo, base de todo o processo de institucionalização da educação, que não deixará de aperfeiçoar-se, alcançando nossos dias, quase que de forma intacta.

É da pedagogia dos colégios que partirá o modelo e a base pedagógica que colocará a escola definitivamente no lugar privilegiado para a transmissão dos saberes elementares. Leitura, escrita, cálculo e catequese transformam-se aos poucos em peças do mesmo jogo. Nas palavras de Hébrard,43 “[...] a escola se torna o lugar explícito de uma formação cristã ancorada nessa alfabetização progressiva [...]”. Catequese e escolarização se entrelaçam como armas infalíveis às conquistas dos interesses religiosos. A escola, a escrita e as crianças44, juntas pela primeira vez e alvo dos mesmos interesses, ocuparão a centralidade de saberes e práticas inovadores que em seu conjunto desembocará um pouco mais tarde na educação obrigatória, que os transformará definitivamente como saberes escolarizados. É exatamente na complexidade de todas essas confluências que inscrevemos a emergência dos cadernos de classe.

Ao buscarmos os fragmentos que possam compor a genealogia dos cadernos, identificamos esse momento histórico de criação e estruturação das escolas elementares para as crianças do povo, os elementos-chave, que irão configurar e estruturar os cadernos como um dispositivo a integrar toda a pedagogia nascente.

Dentre os diferentes tipos de escolas com essa finalidade, como as escolas

43 HÉBRARD, J. A escolarização dos saberes elementares na época moderna. Revista Teoria &

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paroquiais, as dominicais, de caridade e dos mestres de escrita, optaremos pelas escolas cristãs. Em primeiro lugar, por ser nelas que os cadernos serão colocados como um recurso-chave nessa difícil e nova tarefa de educar as crianças do povo e, em segundo lugar, pela sua importância na estruturação futura da pedagogia que irá embasar e praticamente ditar o caminho a ser seguido pelo ensino primário moderno45.

A expressão e o peso das escolas cristãs, para a implementação dessa nova forma de aprender e de ensinar, são assim definidos por Hébrard,46 que também nos apresenta a força da figura de seu fundador e executor, o sacerdote e pedagogo, João Batista de La Salle.47

É preciso esperar o século XVIII para que com Jean-Baptiste de La Salle seja pensado um processo de escolarização que articule a catequese com uma escolarização das culturas mercantis tradicionais e para que se estabeleça então verdadeiramente a seqüência do ler-escrever-contar.

Dessa forma, inspirado nos mesmos princípios das escolas de caridade fundadas em Lyon pelo abade Démia,48 La Salle como seu substituto manter-se-á fiel aos fundamentos da pedagogia de seu mestre, porém conferirá à estrutura das

45 PETITAT, op. cit., p. 110. Esse autor considera a prática pedagógica aplicada às escolas cristãs a base constituidora a dar início ao ensino primário moderno.

46 HÉBRARD, 1990, op. cit., p. 101.

47 J.B. de La Salle viveu no período compreendido entre 1651 e 1719 e sua nacionalidade era francesa. Criou a congregação que designou de Irmãos das Escolas Cristãs em 1647. Com uma esmerada formação pedagógica, os religiosos dessa congregação, os irmãos, tinham como função específica serem professores das crianças do povo nas escolas de ensino primário as quais La Salle denominou de Escolas Cristãs para diferenciar das demais escolas existentes. Paralelas às escolas cristãs no atendimento da mesma clientela, estavam as “escolas de caridade”, criadas por Démia, as “escolas paroquiais” e as “pequenas escolas”. Sobre La Salle e os efeitos da sua “pedagogia escolarizada nos mínimos detalhes”, podemos também ler: DOMINIQUE, Julia. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de história da educação – SBHE - Campinas, n.1, jan/jun. p. 28-29, 2001.

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escolas elementares gratuitas já existente, uma espetacular expansão e aperfeiçoamento pedagógico sem precedentes.

Os princípios norteadores da pedagogia que se dedicará ao ensino fundamental e popular estão muito bem explicitados, em uma argumentação por escrito49 em que Démia, para defender e buscar apoio às suas idéias, explica a quem se destina esse tipo de escola e principalmente quais os ganhos sociais e econômicos que esse tipo de educação poderia render ao Estado e a sociedade em geral.50

Aos jovens que não são adequadamente educados ordinariamente caem na vagabundagem, e não fazem mais nada além de arrastar os pés pelas ruas. [...] entregam-se à bebida, à imoralidade, ao roubo e ao crime [...] a instrução torna as crianças mais ajuizadas, afasta-as dos vícios [...] a obrigação de trabalhar fiel e duramente [...] um grande horror ao ócio. 51

Seguindo à risca tais convicções, La Salle implantará, como eixo principal em suas respeitáveis escolas, a moralização e a preparação das crianças pobres para o trabalho. Os saberes da escrita até então estavam reservados aos ”filhos de notáveis”.52

49Ibidem, p.108.

50 Ibidem, p. 109. Démia e mais tarde La Salle foram duramente criticados por se dedicarem e

defenderem o ensino da leitura e da escrita às camadas sociais desfavorecidas. La Salle foi levado por isso até aos tribunais. Seus opositores temiam que o ensino das letras, até então ensinado às elites nos colégios, uma vez repassado aos pobres, poderia gerar subversão.

51 DÉMIA apud PETITAT, 1994. Exortação aos Senhores Representantes dos Comerciantes, Vereadores e Principais Habitantes da Cidade de Lyon, a Respeito da Necessidade e da Utilidade das Escolas Cristãs para a instrução das Crianças Pobres, Lyon, 1666. Dominique Juliá apresenta também da seguinte forma as contingências criadoras das escolas cristãs: “[...] na França, nasce de uma conjugação da experiência pastoral dos padres das grandes capitais urbanas da Contra-Reforma católica – que descobriram a ignorância prodigiosa das crianças e se preocuparam em afastá-las das influências perigosas das ruas e dos maus exemplos de sua própria família [...], DOMINIQUE, Juliá. Disciplinas escolares: objetivos, ensino e apropriação. In: LOPES, Alice Casimiro, MACEDO, Elizabeth.(Orgs.). Disciplinas e integração curricular: histórias e políticas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 54

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O ensino da leitura e da escrita às crianças do povo apenas servirá como fachada para na verdade, ao retirá-las das ruas, submetê-las a uma férrea disciplina escolar, com competência e capacidade suficientes, para transformá-las em sujeitos capazes de dominar a escrita, uma exigência primordial para a época, tendo em vista as expansões comerciais. Inclusive Hébrard estabelece uma relação direta entre a permanência das crianças pobres nas escolas cristãs e o valor utilitário de seu currículo:

O ensino da escrita e o cálculo, junto com o da leitura em francês, proporcionou os acontecimentos utilitários, apresentando uma ‘vantagem considerável’ a todo artesão ‘porque, mesmo com pouca inteligência, sabendo ler e escrever, ele é capaz de tudo’. É isso que podia convencer os pobres a mandar suas crianças à escola [...].53

Essa defesa do ensino gratuito das primeiras letras para o povo custou caro a La Salle e toda a sua congregação. Tal descabimento o levou aos tribunais.54 Vitorioso em mais essa batalha consegue obter a partir daí uma expansão surpreendente das escolas cristãs por toda França.55

Além dessa aliança entre objetivos comerciais e a escolarização da escrita, apontamos também como segredo de tão expressivo êxito pedagógico dois aspectos que pautaram e conduziram, passo a passo, a pedagogia lassalista. Nessa perspectiva, destacamos o “Guia das Escolas Cristãs” e o método simultâneo, ambos criados por La Salle.

O Guia das Escolas se caracteriza por um longo e minucioso texto, um

53Ibidem, p. 45.

54 PETITAT, op. cit., p. 109. Os lassalista enfrentaram o coro de Notre-Dame de Paris e a associação dos mestres-escrivães que eram atingidos pela competição provocada pelas escolas cristãs.

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verdadeiro manual pedagógico, onde os professores encontram nos mínimos detalhes as orientações objetivas para a grande maioria dos procedimentos ou ações a serem seguidas dentro e fora da escola e, sobretudo, curiosas instruções milimétricas sobre as técnicas da escrita, assunto ao qual nos dedicaremos mais adiante.56

Petitat57 considera essa obra escrita por La Salle “o verdadeiro início do ensino primário moderno”. Na citação abaixo, o mesmo autor explicita a força dessa obra na história da educação das primeiras séries:

Este documento, de importância equivalente à do Ratio Studiorum para os jesuítas, fixa horários, designa os conteúdos a serem ensinados, subdivide-os em diferentes níveis, define os princípios de repartição dos alunos de acordo com os conhecimentos adquiridos, as condições para a passagem de um nível para o seguinte, indica os exercícios escolares a serem cumpridos, a disciplina e as sanções, e desce aos menores detalhes relativamente às atitudes e à personalidade dos mestres, aos quais prodigaliza conselhos e regras de conduta .58

O segundo aspecto que irá dar singularidade e sucesso às escolas cristãs diz respeito à outra importante iniciativa de La Salle que se refere à criação e aplicação de um método único e específico para alfabetizar sua peculiar clientela. O “método simultâneo” recebe essa denominação por se contrapor ao velho e consagrado método individual, que ensinava aluno por aluno, não alcançando atender mais que 30 alunos, por professor.59

A revolução produzida pelo método simultâneo é, numa primeira instância, de ordem econômica, pois consegue atingir um grande número de alunos com um

56 LA SALLE, J.B. Conduite des Écoles Chrétiennes. Avignon: Charles Chastanier, 1720. 57 PETITAT, op. cit., p. 110.

58Ibidem, p. 110.

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mínimo de professores. Tal maestria é obtida no jogo de classificação e separação dos alunos em níveis. O grande grupo é dividido em nove níveis, sendo que cada um deles ainda era reclassificado em quatro categorias: principiantes, medíocres, avançados e perfeitos.60

É essa medida de divisão dos alunos, um procedimento aparentemente simples, que é capaz, no entanto, de na sua simplicidade produzir grandes e complexos efeitos.61 Toda a flexibilidade do método será assim garantida com essa inteligente forma de agrupar os alunos que, somada a bem planejadas disposições espaciais e temporais,62 conseguirá manter as crianças escrevendo permanentemente em silêncio.63 Uma pequena amostra da prática em sala de aula, por ocasião da aplicação do método simultâneo, pode ser observada numa recomendação constante no “Guia das Escolas” sobre “a maneira de visitar os escrevedores e de corrigir-lhes a escrita”:

1. É necessário que o Mestre visite os escreventes todos os dias, e até diversas vezes os iniciantes. Ao visitá-los cuidará se as penas dos que as talham estão bem aparadas; se o corpo se encontra na devida postura; se o papel está na posição correta e limpo; se seguram bem a pena, se têm modelos, se escrevem tanto quanto devem, se são aplicados em fazê-lo bem; se não escrevem demasiado depressa; se escrevem em linha reta; se todas as letras têm a mesma inclinação e adequada distância; se o corpo de todas as letras é do mesmo tamanho e do mesmo tipo; se as letras são nítidas e bem traçadas; se as palavras e as linhas não estão juntas e nem muito distanciadas.64

Outra manobra não menos genial e econômica do método criado por La Salle diz respeito à possibilidade de articular e reunir sob o mesmo teto o ensino da leitura

60Ibidem, p. 49.

61 FOUCAULT, 1993, op. cit., p. 142, em seu estudo sobre disciplina, comenta sobre o alcance de pequenas e despretensiosas manobras: “Molas pouco complicadas produzem grandes efeitos”. 62 Ibidem, p. 126. Sobre a organização e o rigoroso controle do espaço e do tempo, Foucault faz uma brilhante explicitação, utilizando justamente a pedagogia de La Salle para ilustrar e exemplificar a precisão e a complexidade da disciplina que começava, a partir daí, a constituir e perpassar todo o espaço escolar, dando detalhes sobre o espaço da sala de aula.

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e da escrita.65 A simultaneidade dessas duas atividades, até então desconectadas uma da outra, articuladas apenas pela seqüência, somente ler, ou primeiro saber ler e depois escrever, chega a ser considerada por Hébrard como o ”grande esforço escolar do século XIX”, por interligar definitivamente essas duas aprendizagens na esfera escolar.66

Um dos segredos dessa difícil passagem do individual ao coletivo como prática escolar, em nossa opinião está conectado de forma direta aos cadernos, deve-se à invenção do quadro-negro, cujos efeitos serão decisivos para efetivar as práticas simultâneas em sala de aula, e cujo inventor não é nada menos que o próprio La Salle. Barra,67 em seu detalhado estudo sobre esse dispositivo escolar, apresenta-o como peça principal, permitindo a La Salle fazer a transição do individual ao simultâneo:

O emprego único e polivalente do quadro-negro implica a definição da sala-classe. Por sua vez, a sala-classe é a unidade-base da escola graduada. A definição da sala-classe estava intimamente relacionada com a idéia de homogeneizar os alunos para ensinar simultaneamente.

Ainda segundo a mesma autora, o quadro-negro irá praticamente desenhar e fixar o cenário da sala de aula, desde sua invenção no século XVIII, até os dias de

64 Esse texto se encontra na página 61, item 1, do “Guia das Escolas”.

65 Segundo Querrien, o ensino da escrita e da leitura era desmembrado, ficando a escrita sob o encargo do professor-escritor e a leitura sob a responsabilidade das escolas paroquiais Ver: QUERRIEN, op. cit., p. 51.

66 HÉBRARD, 2000b, op. cit., p.49.

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hoje, trazendo junto com ele um modo de organizar a escola, não apenas no aspecto da espacialização dos outros mobiliários da sala de aula a partir dele, mas também como um lugar não determinado especificamente por sua materialidade, de um caráter mais sutil, como por exemplo, ser o ponto de referência para a direção dos olhares no espaço da sala de aula.68

Mais duas medidas69 foram decisivas para a efetivação e a imbatível competência pedagógica das escolas cristãs. As palavras padronização e homogeneização podem definir o núcleo dessas duas providências. A seleção e preparação dos professores70 consistiram numa das primeiras preocupações de La Salle e para isso destinou grande parte de seu tempo e atenção. Seu objetivo, que se concretizou espetacularmente, era o de conseguir uma formação cuidadosa e específica de um corpo docente que trabalhasse dentro da maior uniformidade possível.71 Ao obedecer à mesma lógica, outra medida que vem em decorrência da anterior refere-se à rigorosa padronização de todo o material didático como livros, lições, etc: “La escuela debería estar organizada de tal forma que un livro, un mismo maestro, una misma lección, y uma misma corrección sirvan para todos”.72

Conforme podemos perceber, a pedagogia criada por La Salle tem muito pouco de novo ou diferente se compararmos ao método inventado pelos jesuítas, ensino, uma afinada continuidade e um crescente aperfeiçoamento. La Salle implementa, adapta e reajusta com exímia habilidade, e talvez com mais rigor e flexibilidade, toda a maquinaria escolar inventada pelos padres da Companhia de

68Ibidem, p.21-22 e 122 e 225.

69 Talvez seja importante ressaltar que, além dessas, outras medidas da educação lassalista revolucionaram o espaço escolar da época como: a gratuidade, a obrigatoriedade para as crianças pobres, a inclusão das meninas e o ensino do francês. Ver: QUERRIEN, op. cit., p. 26-28.

70 QUERRIEN, op. cit. p.28. Para o autor, os lassalistas são os únicos que possuem um sistema de formação de professores estruturado e permanente.

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Jesus. Petitat escreve de forma a deixar evidente a cumplicidade e permanência entre jesuítas e lassalistas:

[...] esquecemos aquilo que as une: jornadas ritmadas por orações, uma literatura escolar recheada de máximas morais e uma organização pedagógica [horário escolar, supervisão ininterrupta, estrito controle dos conteúdos, estimulação, outorga de cargos Honoríficos e alunos, minuciosa divisão e progressiva acumulação dos programas] que visa tanto a criação de bons hábitos’ quanto à eficácia didática na aprendizagem da escrita.73

Foucault cita La Salle diversas vezes em seu estudo sobre disciplina,74 fazendo referência direta de várias passagens de sua vasta obra, apontando-o como um dos protagonistas da “História do Detalhe no século XVIII”.75 Entre as citações que Foucault faz dos textos de La Salle, uma nos interessa de maneira especial por mostrar exatamente as minúcias em gestos, solicitadas ao corpo para obter uma boa caligrafia. Tal escrito lassaliano também nos auxiliará, a partir de agora, a relacionar e buscar diretamente o lugar dos cadernos no interior dessa afiada maquinaria da educação elementar, criada e permanentemente incrementada por La Salle, seus dedicados e especializados professores.

[Deve-se] [...] manter o corpo direito, um pouco voltado e solto do lado esquerdo, e algo inclinado para frente, de maneira que, estando o cotovelo pousado na mesa, o queixo possa ser apoiado, na mão, a menos que o alcance da vista não o permita; a perna esquerda deve ficar um pouco mais avançada que à direita, sob a mesa. Deve-se deixar uma distância de dois dedos entre o corpo e a mesa; pois não só se escreve com mais rapidez, mas nada e mais nocivo à saúde que contrair o hábito de apoiar o estômago contra a mesa; a parte do braço esquerdo, do cotovelo ate a mão, deve ser colocada sobre a mesa. O braço direito deve estar afastado do corpo cerca de três dedos, e sair aproximadamente cinco dedos da mesa, sobre a qual deve apoiar ligeiramente mestre ensinara aos escolares a postura que estes devem manter ao escrever, e a corrigira seja por sinal seja

73 PETITAT, op. cit., p. 121.

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de outra maneira, quando dela se afastarem.76

Esse modelo de postura para a escrita, controlado em seus mínimos gestos,, indicado por La Salle, mostra o nível de imobilidade e profundo silêncio77 que essa severa “didática” era capaz de imprimir aos escreventes, deixando claro o valor e a utilidade dos cadernos para um método que tem a escrita como meio e fim .

A centralidade da escrita nas escolas cristãs é algo que se confirma em todos os seus objetivos e práticas.78 Trata-se de uma escola de escreventes por excelência. Ao transformá-la em técnica, La Salle dá provas de sua fantástica e incansável capacidade de analisar um objeto em seus mais ínfimos detalhes. É em torno dela que é criada e recriada grande parte das normas e comandos escolares.

Toda disciplina será garantida utilizando a própria escrita como instrumento, é o que nos confirma Querrien79 através da citação abaixo:

En los Hermanos el modelo de escritura es un instrumento de disciplinarización: copiando lo más exactamente posible tal o cual modelo de escritura se aprende a hacer un trabajo minucioso de trazado, de obediência.

É dentro desse contexto de centralidade e rigoroso controle através da escrita, que vemos inscrita a significação e a própria produção dos cadernos de

76 Ibidem, p.130 . A ilustração desse tipo específico de postura para a escrita, está nessa mesma obra, na página 32.

77 QUERRIEN, op. cit., p. 71, também afirma que “[...] la escuela de los Hermanos, la escuela del

silencio, de la inmovilidad, de los cuadernos, de la domesticación de los niños”.

78 No “Guia das Escolas”, a centralidade da escrita é colocada de forma contundente e radical. Quase todas as normas e advertências estão em circularidade com o compromisso que esse primeiro pedagogo moderno estabeleceu com a escrita.

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