MEDITATIVOS DO MÉXICO
Renato Suttanai Universidade Federal da Grande Dourados A Horacio González e Irene Marquina Sánchez
I
SOBRE TEIAS DE ÁGUAS
(Sobre uma pintura de William González Chávez) Aerostato
de coisa alguma, a sustentar-se sobre asas nenhumas,
numa nesga do crepúsculo verde (de parte alguma,
de horizonte nenhum) – a sustentar-se sobre águas estranhas
(sobre o antílope marinho e os padres de pedra – e os ventos de gesso, que sabemos nós?), numa espécie de frincha que se abre
dentro do crepúsculo verde:
quem souber a direção desses ventos que a aponte com o dedo,
e quem tiver um mapa ou uma bússola
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e todas as bússolas de pedra,
em meio ao pouco que se avista
através de uma nesga do crepúsculo verde.)
II
PERTURBAÇÕES Um homem se divide inteiramente
entre o seu próprio silêncio e a fadiga na tarde verde. Outro, acorrentado à distância – como um náufrago acorrentado ao afundamento –, se contorce vaziamente, tentando se libertar
de correntes que não estão lá. Uma espécie de aprendizado se torna possível
entre os altos portais que servem de moldura a grandes perturbações de madeira
na tarde qualquer. Tal é o rosto de abril. E tais as suas feições
que vão do sublime à caveira, como as de uma boneca da morte bêbada
que um homem tenta me vender (a morte com o seu esposo violinista)
por cento e vinte pesos mexicanos na tarde cinza.
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III Os cubos de gelo dissolvem-se no copo de limonada na tarde verde. Há um razoável equilíbrio (uma sensação de equilíbrio)entre os volumes de pedra dos muros e as roupas do homem
que estende o chapéu a pedir moedas,
como indiferente ao calor. Disto não tiro
conclusão nenhuma:
isto não move o meu pensamento (nem o teu),
que apenas anda ao redor, como se calculasse
a soma dos minutos
e a soma de todos os números que se estampam sobre as fachadas num abril de pedra,
em direção ao sono. A rua dança
(é uma serpente de luz) ao som dos realejos na tarde cinza. IV
Pássaro de pedra, que não sabes bem aonde vai a nuvem, de onde o vento vem (e quem é que o sabe, caso o saiba alguém?) tem paciência. Pássaro estrangeiro,
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num cálculo errado teu caminho real na tarde de vidro, em que tudo é igual – tem paciência. Pássaro de prata, que não és qualquer, mas que, sob a luz de abril a pender, vais a qualquer parte, conforme convier – tem paciência. Pássaro emigrado de um velho verão que findou em poeira e desatenção,
sendo só deriva tua direção – tem paciência. V
Perdi a direção. Errei o mundo. E agora sou, senhora, só uma sombra com que a tua ansiedade não se assombra, que não comove o teu despeito fundo. Fui do engano ao fracasso, desistindo antecipadamente da missão
que jamais incendiou meu coração, nele entanto pulsando e persistindo.
Tornei-me assim, no circo em que, vencido, fui do acaso o fantasma preferido,
qualquer coisa de neutro, que demora, percebida entre a nuvem e a neblina: por incapaz do voo que a melhora
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VI
Pássaro-serpente que lá está, pousado
sobre o quadrado de pedra de um abril deserto,
a vigiar as pedras do deserto:
pássaro-serpente que veio da distância e entende calmamente o horizonte branco de abril todo seco, entre as pedras, nada há que lhe pedir nem que oferecer, a não ser
em abril todo cinza minha respiração exausta e minha fadiga
que eu trouxe de lugar nenhum e que deposito
(como um tributo), de parte alguma, entre poeira e cacto,
sobre o quadrado de pedra. VII
Como é que se morre? – pergunto ao pássaro (àquele pássaro-granito) que lá está parado, no silêncio poeirento de abril.
Como é que se realiza essa acrobacia,
sendo tão claro o dia, sendo tão leve a brisa e tão de vidro o céu
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tudo se realiza? De onde vem tal arte,
como aprender esse truque – como dominar essa ave que, entre pássaro e pedra, com um único salto – desdenhando o meu olho – voa para outro lugar? VIII
Que abril me baste. Que o vento, vindo, soprando seco sobre a planície verde e cinzenta, me leve, arraste. (Para onde arraste? – Pouco me importa: que, vindo apenas, com o seu seco sopro de cinza abra uma porta, mova uma folha, arraste um cisco sobre o silêncio do pavimento – tão recrestado de ar e momento.) E assim me baste: entre os desertos, entre as estradas que sempre vão, que sempre estão levando ou indo. O vento, vindo.
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IX
A máscara de pedra sussurra qualquer coisa (tão de pedra o seu olho, tão de vidro o seu dente) ao meu ouvido cego que, da pirueta ao erro, tudo entendendo mal, ainda assim quer chegar; pois faz parte do jogo de abril forçoso e agudo deixar para mais tarde a ideia de parar:
a ambição de entender com uma inteireza cega (e entretanto fictícia) os silêncios da pedra. A máscara de pedra sussurra ao meu ouvido exatamente aquilo
que, ouvido, faz da tarde um jogo mais difícil: nela escavando um sulco (uma espécie de vala) em que cai, de repente, meu (quase) pensamento. X
Quisera
dizer mais claramente qualquer coisa que desse à tarde verde
um ar de casa, um aspecto de lar
(que ela entanto não tem, sendo assim verde e cinzenta sob o voo esquisito
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e daquele enorme balão de mármore que arrasta para cima
a multidão dos loucos). – ... Ah, a tarde!
Baste a tarde – o silêncio. Bastem à tarde os seus ecos, as suas palavras difíceis, as suas redes de água, os seus elefantes de névoa, os seus abutres de gaze. XI
Ouvir o vento esfolar-se contra os espinhos do cacto quase não me dá prazer. Supor que a chuva podia
transformar vidro em surpresa, transformar ouro em palavra, transformar vento em doçura e mistério em pensamento quase não me dá prazer. Ser o andarilho do outono, ter o outono em minha mão e em minha mão ter um pomo – quase não me dá prazer.
XII
FRIDA KAHLO, MINHA AMIGA Frida Kahlo, minha amiga,
que tanta gente visita,
sem compreender tuas cinzas, o mundo é vasto, e as distâncias medem-se por infinitos;
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tua casa é grande e tem amplas janelas, que dão para algum mistério (um ovo de mistério ali gorado) – mas teu silêncio é maior. Trotsky, a teu lado, sorrindo, quase sorrindo – um gigante tornado agora em modelo de banal fotografia
(ou suvenir de turista) – também é imenso; e Rivera alto e amoroso, e paterno, sublime assim como um grito ouvido em meio ao deserto, é vasto, como os murais que desenhou nas paredes de algum imenso palácio (mal consigo imaginá-lo) nos arredores do sonho. A Virgem de Guadalupe
é enorme, e a cidade em que ela se divide e se dissipa
é como um mar tempestuoso ou um grande labirinto que não cabe no meu sonho. As portas do erro e da morte, os artifícios da dor,
as adagas, as palavras, os cansaços, os despeitos, as lembranças e os remorsos, as armas dos inimigos, o peso e o tédio das horas; os dias, Frida, são longos, mas teu silêncio é maior.
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XIII
Falcão de areia.
O que não se pode explicar, e não se pode entender, e anda por aí, a espreitar-nos, e não cabe numa palavra, e não cabe num pensamento, o que não se ajusta ao meu olho e ocupa todos os espaços de abril, e se alastra pelo deserto,
e se dispersa no vento, e sobe até o topo do mundo, e vai aos limites do erro – é só um falcão de areia, el halcón de arena.
Ciudad de México/Dourados, 14/23-4-2013