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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

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Academic year: 2022

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

(RE)CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA Relatos de resiliência

Tania Mayté Alva Becerra Dissertação

Mestrado em Design de Comunicação

Dissertação orientada pela Profa. Doutora Sónia Isabel Ferreira dos Santos Rafael 2021

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3 Resumo

(Re)Construção da Memória: Relatos de Resiliência manifesta a importância da memória na preservação e construção da identidade de uma sociedade; a forma como promove consciência reflexiva do passado, da experiência vivida, do que vivemos e que nos faz ser quem somos. Neste processo, a imagem, enquanto registo de um evento, por si mesma, nunca corresponde totalmente ao passado, seja em termos documentais, seja pela subjetividade que nela projetamos. Da mesma forma, lembrar não é reviver experiências, já que a memória que construímos não é uma cópia exata do que vivemos, mas antes o resultado de um processo seletivo.

Partindo destes pressupostos, o projeto procura reavivar a memória ao reunir e contextualizar registos de dois importantes terramotos que tiveram lugar na Cidade do México, respetivamente a 19 de setembro de 1985 e de 2017; no mesmo dia, 32 anos depois.

Partindo desta história, e coincidência temporal, como ilustrativa da importância da memória, foram compiladas fotografias dos Arquivos da Nação, entre outras fontes, que permitiram estabelecer uma ligação entre as histórias dos envolvidos em ambos os eventos, resgatando assim memórias a partir das suas semelhanças. Desta forma (Re)Construção da Memória pretende estudar sobre modo como a perda material e a morte podem ser motores para a esperança, o recomeço, e assim, um modo de criar resiliência para o futuro.

Palavras-Chave:

Identidade; Memória; Narrativa; Resiliência; Arquivo.

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4 Abstract

(Re)Construction of Memory: Reports of Resilience focuses on the importance of memory in preserving and building the identity of a society; the way it promotes reflective awareness of the past, of lived experience, of what we live and what makes us who we are. In this process, an image, as a record of an event, by itself, never completely corresponds to the past, either in documentary terms or by the subjectivity that we project on it. Likewise, remembering is not reliving experiences, since the memory that we construct is not an exact copy of what we lived, but rather the result of a selective process.

Based on these assumptions, the project seeks to revive memory by gathering and contextualizing records of two major earthquakes in Mexico City, September 19, 1985, and 2017, respectively the same day, 32 years later.

Taking this history, and temporal coincidence, as illustrative of the importance of memory, photographs of the Archives of the Nation were compiled, among other sources, which serve as a link between stories of those involved in both events, thus rescuing memories from their similarities. In this way (Re)Construction of Memory seeks to raise awareness of how material loss and death can be an agent for hope, for a new beginning, and thus a way of creating resilience for the future.

Keywords:

Identity; Memory; Narrative; Resilience; Archive.

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5 Agradecimentos

Poder viver essa experiência de estudos fora do meu país natal, não teria sido possível sem o apoio da minha mãe, que sempre confiou em mim e sempre deu-me forças para cumprir o que me propus. Obrigada por tudo mãe.

Tem sido também uma experiência de vida maravilhosa em Portugal, e sem a companhia dos meus amigos e colegas que já se tornaram família nada disto tivesse sido igual, sou grata por me acompanharem em cada nova aventura e em cada passo que eu dou.

À minha professora Sónia Rafael, por ter me dado total confiança desde o começo da orientação, e por encorajar-me a continuar com os meus planos e, o mais importante, para ir na procura duma vida melhor.

Depois de decidir-me por deixar atrás a minha vida no México, muitas coisas aconteceram; mas nada como a oportunidade de construir e criar um lar ao lado de quem eu nunca imaginei, mas que sempre protege-me e enche-me de amor, maite zaitut Gotzon.

Estar longe do México fiz-me valorizar tudo o que o representa, como país, como sociedade e como cultura. Agora, sob outra perspetiva, meu maior reconhecimento às pessoas que já perderam tudo e que ainda lutam todos os dias para reinventar-se. Graças por tudo o que o México é para mim, que tanto ensinou-me sobre como viver a vida, como continuar a aprender e como continuar em pé apesar das adversidades; é que esse trabalho de investigação e re-conhecimento deixa-me para continuar onde quer que eu vou.

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6 Índice

Tabela de Figuras

Introdução

1. Contextualização teórica

1.1 Memória e discurso narrativo 1.2 Fotojornalismo

1.3 Storytelling (narrativa visual)

1.4 Design de comunicação como produção de valores e de conhecimento 1.5 As imagens de arquivo como objetos da memória

1.6 Reprodução (técnica) de memórias 2. Enquadramento histórico

2.1 Fenômenos naturais que se tornaram eventos mediáticos

2.1.1 O terramoto como acontecimento imprevisível no mundo 2.2 Imagens da memória coletiva

2.2.1 A fotografia como arquivo (morto)

2.2.2 Ativar as memórias graças às fotografias (vivas) 2.3 Relatos de Resiliência

2.3.1 Organização da sociedade e surgimento das “humanidades”

3. Estudo Prático

3.1 Descrição do projeto

Conclusão

Bibliografia

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7 Tabela de Figuras

Fig. 01 Bruno Munari. A mensagem visual (2016) ___________________________ 25 Fig. 02 Ted Nelson. The Framing Problem (1965) ___________________________ 37 Fig. 03 Gravura em cobre, 1755 __________________________________________ 46 Fig. 04 Locais do terramoto de magnitude 7,1 de 19 de setembro de 2017 _________ 52 Fig. 05 Espessura da bacia sedimentar _____________________________________ 53 Fig. 06 Local de danos e colapsos durante o terramoto, 2017 ___________________ 54 Fig. 07 Esto, México, de 19 setembro de 2017 ______________________________ 57 Fig. 08 Reforma, México, de 19 de setembro de 2017 _________________________ 58 Fig. 09 El Heraldo de México, México, de 19 de setembro de 2017 ______________ 59 Fig. 10 El Universal, México, de 19 de setembro de 2017 _____________________ 60 Fig. 11 Milenio, México, de 19 de setembro de 2017 _________________________ 61 Fig. 12 El Economista, México, de 19 de setembro de 2017 ____________________ 62 Fig. 13 Crónica, México, de 19 de setembro de 2017 _________________________ 62 Fig. 14 El Financiero, México, de 19 de setembro de 2017 ____________________ 63 Fig. 15 Excélsior, México, de 19 de setembro de 2017 ________________________ 64 Fig. 16 El Sol de México, México, de 19 de setembro de 2017 __________________ 65 Fig. 17 La Jornada, México, de 19 de setembro de 2017 ______________________ 66 Fig. 18 ¡Hola!, México, de 19 de setembro de 2017 __________________________ 67 Fig. 19 Lucila Quieto, Arqueologia da Ausência, 1999-2001 ___________________ 82 Fig. 20 Lucila Quieto, Arqueologia da Ausência, 1999-2001 ___________________ 83 Fig. 21 Lucila Quieto, Arqueologia da Ausência, 1999-2001 ___________________ 83 Fig. 22 Esquema de alinhamento dos vídeos, 2020 ___________________________ 92 Fig. 23 S. Einsenstein, em Battleship Potemkin, 1926 _________________________ 93

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Fig. 24 Aby Warburg, Atlas Mnemosyne, 1923 – 1929 ________________________ 94 Fig. 25 Aby Warburg, Atlas Mnemosyne, 1923 – 1929 ________________________ 94 Fig. 26 Primeira lâmina de trabalho, Relatos de Resiliência, 2020 _______________ 95 Fig. 27 Safe area ou área de segurança, 2020 _______________________________ 99 Fig. 28 Distribuição proporcionada do ecrã, 2020 ____________________________ 99 Fig. 29 Storyboard (1), 2020 ___________________________________________ 101 Fig. 30 Storyboard (2), 2020 ___________________________________________ 101 Fig. 31 Storyboard (3), 2020 ___________________________________________ 102 Fig. 32 Still frame (1), 2020 ____________________________________________ 105 Fig. 33 Still frame (2), 2020 ____________________________________________ 105 Fig. 34 Still frame (3), 2020 ____________________________________________ 106 Fig. 35 Still frame (4), 2020 ____________________________________________ 106 Fig. 36 Still frame (5), 2020 ____________________________________________ 107 Fig. 37 Still frame (6), 2020 ____________________________________________ 107 Fig. 38 Still frame (7), 2020 ____________________________________________ 108 Fig. 39 Still frame (8), 2020 ____________________________________________ 108 Fig. 40 Still frame (9), 2020 ____________________________________________ 109 Fig. 41 Still frame (10), 2020 ___________________________________________ 109 Fig. 42 Still frame (11), 2020 ___________________________________________ 110 Fig. 43 Still frame (12), 2020 ___________________________________________ 110

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9 Introdução

Lembrar não é reviver experiências, já que a memória que construímos não é a cópia exata do que vivemos. A captação das imagens que formam a nossa memória por si só não corresponde totalmente ao que se passou, quer seja em termos de abrangência total dos pormenores, quer seja pela subjetividade que nelas projetamos por serem resultado de uma seleção baseada na memória que temos do passado.

A memória é a possibilidade para que uma pessoa, grupo ou nação tenha identidade; identidade, como uma realidade aberta para o futuro e sempre em construção no presente, é a consciência reflexiva do passado, da experiência vivida, do que vivemos e do que nos faz ser o que somos. A memória, quando bem cultivada suscita e provoca o desenvolvimento da sabedoria para o bem viver, e a sabedoria resulta do conhecimento acumulado que vai sendo refletido, debatido, discernido, aperfeiçoado e aplicado nas mais diversas situações do passado, do presente e do futuro.

Como tal, este projeto1 aborda a urgência por manter a memória viva. A 19 de Setembro de 1985 e, 32 anos mais tarde, em 2017, fizeram-se sentir dois dos terramotos mais fortes alguma vez registados na Cidade do México. Tomando esta história como exemplo, foram compiladas uma série de fotografias e vídeo crónicas de fontes oficiais dos Arquivos da Nação e de outras não oficiais, onde as histórias dos envolvidos são ligadas com a intenção de criar a partir delas relações visíveis entre os dois eventos. É resgatada a importância das histórias contadas a partir das imagens e as semelhanças entre elas, apesar de se encontrarem distantes no tempo. Os espectadores de qualquer parte do mundo podem, desta forma, identificar-se e sensibilizar-se com a ideia do efémero, da perda material e da morte, com a esperança de sempre poder recomeçar e, assim, criar resiliência para o futuro.

Este projeto de investigação surge então desde a questão de como é possível manter a memória viva por meio dos relatos, das experiências dos envolvidos e sobre a possibilidade da criação de artefactos digital storytelling para além do contexto

1 Ver projeto Relatos de Resiliência. Disponível Online em: https://vimeo.com/507171901

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arquivístico, pelo qual tenta colocar-se em prática um perfil profissional do designer de comunicação como jornalista visual.

A partir da premissa de Deleuze de que a percepção que temos da unidade da imagem num filme se deve à forma como o movimento das imagens comunicam entre si, problematizamos o seu diálogo segundo a sua especificidade técnica e de acordo com os códigos visuais específicos de cada uma (fotografia e vídeo), com vista a uma unidade percetiva dentro do contexto audiovisual decorrente da presente investigação.

A pesquisa teórica para esta dissertação inicia-se com a procura de relações possíveis entre a memória e o discurso narrativo. Analisamos os processos da memória em Henri Bergson: as capacidades de armazenar informações, as correspondências com o passado e os acontecimentos memorizados que escapam do pensamento crítico para o futuro.

A partir de Todorov, analisamos a correlação dos elementos no âmbito da narrativa literária, relacionando-a com o aspecto cinematográfico e com a construção da diegese. Nessa relação foi proeminente a presença de Huberman ao nomear a linguagem e a imagem como formas solidárias que surgem no discurso da memória como uma compensação: quando uma falha surge a outra.

A fim de clarificar a perceção do todo no resultado do projeto, analisámos o filme La Jetée de Chris Marker que, enquadrado na teoria da Gestalt, contribui para uma perceção do tempo da imagem associada ao discurso narrativo. Os cruzamentos de imagens estáticas com imagens em movimento permitiram, através da teoria da Gestalt, um maior equilíbrio da obra no seu todo e na resolução dos problemas emergentes durante o processo de construção do vídeo de Relatos de Resiliência.

Contextualizaremos o termo digital storytelling através de uma breve aproximação conceptual e histórica. O storytelling aproxima-se do design de comunicação quando a este adicionamos termos como visual ou digital storytelling, onde a imagem não é um recurso secundário, mas um elemento estruturante da narrativa, que

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se associa a elementos multimédia como o vídeo, o som, ou o texto. A investigação centrar-se-á no termo visual storytelling, um termo recente que se tem expandido graças ao desenvolvimento da web, das publicações online e das plataformas digitais de vídeo streaming.

Para a construção deste projeto, vamos partir da problemática de contar uma história desde as muitas imagens de arquivo (digital e analógico) dos terramotos, nomeadamente do 19 de setembro de 1985 e 19 e setembro de 2017, e propõe-se explorar através da conjugação de fotografias e vídeos, a possibilidade de uma crónica formal no processo audiovisual e complementá-la com às naturezas teórico-práticas incluídas desta dissertação.

Para este projeto aplicara-se uma metodologia de trabalho técnico2 e digital que vai dividir-se entre a manipulação fotográfica dos arquivos no software Adobe Photoshop, a edição de imagens em vídeo no software de edição Adobe Premier Pro e a animação do título do projeto inserida no segundo 00:50 do timeline no software Adobe After Effects.

Finalmente a apresentação de Relatos de Resiliência como projeto prático de investigação, tenta desenvolve-se ao longo deste processo de trabalho, como um projeto carregado de expectativas de comunicação sem códigos que procuramos responder conforme revelar-se-o como um objeto audiovisual. Os dois vídeos (narrativas) que o compõem serão aquilo que eles se propõem a ser: crónicas que convidam a ser memórias de acontecimentos que, em si, manifestam-se a partir da montagem de imagens estáticas.

Nessa acção, as edições das crónicas existentes dos vídeos e as fotografías funcionam à recordação de um acontecimento, e com ele, a criação de uma memória viva que merece a pena existir para não voltar a re-viver os erros do passado.

2 Para obter coerência ao longo da dissertação foram feitas várias escolhas metodológicas. Aplicou-se o itálico tanto para o título das obras, quanto para expressões que se mantiveram na língua materna, como é o caso da palavra visual storytelling. No corpo do texto são colocadas citações traduzidas especialmente para o efeito, a remeter para nota de rodapé a citação na língua original. As referências bibliográficas obedecem à norma de Harvard ou sistema autor-data: (Nome, data: página). Em notas de rodapé estarão também explicações adicionais que complementam o discurso. As imagens incluídas na investigação serão mencionadas ao longo do texto e anexadas no corpo do trabalho.

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12 1. Contextualização teórica

1.1 Memória e discurso narrativo

As ligações entre a memória e a história têm sido alvo de um debate que se estende desde pelo menos a segunda metade do século XX e para o qual muito contribuiu a desconstrução das narrativas históricas ocidentais, hegemónicas. Se as conexões entre estes dois domínios (entendidos nas suas clivagens individuais e coletivas) conhecem uma larga teorização, já́ o seu encadeamento com a criação artística assume outra complexidade face a uma simbolização, produzida a partir das suas linguagens particulares.

Aqui não poderemos ignorar dois autores que de forma direta ou indireta nos poderão clarificar melhor o papel da criação artística e das artes visuais em particular enquanto dispositivos capazes de incluir a vertente memorialista na sua identidade.

Por um lado, a noção de memória proposta por Bergson que, tal como o discurso artístico, se apresenta como um espaço congruente para materializar formas de reconhecimento e reconfigurações capazes de serem comunicadas e partilhadas.

Por outro, o conceito de lugares de memória proposto por Pierre Nora (1993) abarca a criação artística quando esta assume um papel evocativo, simultaneamente capaz de problematizar e abalizar os paradoxos entre a relatividade do discurso histórico e o sentido absoluto da memória.

Bergson em 1896 através da sua obra Matiére et Mémoire trouxe um novo olhar sobre o estudo da memória, desconstruindo a ideia instituída de que existe dissociação entre imagem e matéria, abordando a memória enquanto uma relação entre o externo e o interno, e assim clarificando que o estudo da memória está interligado ao estudo da percepção, que por sua vez tem tanta importância e complexidade quanto o próprio estudo da memória.

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Segundo o filósofo francês, a palavra que sintetiza tudo o que existe é “matéria”, na qual nós próprios estamos incluídos. Ao caracterizar os constituintes da matéria, Bergson emprega uma palavra inesperada: “imagem”. Seguindo a sua teoria, a matéria é um agregado de imagens, e por imagem considera algo que é menos do que um objeto, mas é mais do que uma representação.3 Então, o nosso corpo faz parte da matéria enquanto imagem, destacando-se das outras imagens ao ocupar uma posição privilegiada. Para além de ser a única imagem relativamente à qual temos a capacidade de perceber o seu exterior e sentir o seu interior, no ato perceptivo é aquela que ocupa o centro de acção, já que dependendo da posição do nosso corpo, a aparência de todos os outros objetos é alterada.

“Concreta” é a palavra escolhida por Bergson para designar tanto a percepção quanto a memória que possuímos. Devido à ligação e complexidade de ambas, apresenta a teoria que irá torná-las mais compreensíveis para o leitor: a “Memória Pura” e a “Percepção Pura”, que se baseiam na possibilidade radical e hipotética4 de se libertar a percepção da influência da memória do sujeito. A pureza a que se refere seria então a consequência dessa libertação, uma conexão mais direta e instantânea ao que é percepcionado, à matéria. Supondo que seria possível ter a experiência da percepção pura, sendo esta baseada na ligação direta entre sujeito e objeto, sem qualquer auxílio de imagens passadas, consegue-se entender que não é possível existir percepção sem a presença de algo externo ao sujeito. «Rejeite o abastecimento da memória, considere a percepção no seu estado puro, e será́ forçado a reconhecer que não existe nenhuma imagem sem um objeto» (Bergson, 1939: 25)5. Após esclarecer que não pode existir percepção sem algo para ser percepcionado, Bergson sublinha que a percepção não deve ser considerada como mera contemplação. Isso seria aproximar de forma excessiva as características da

3 «La matière, pour nous, est un ensemble d' «images». Et par «image» nous entendons une certaine existence qui est plus que ce que l'idéaliste appelle une représentation, mais moins que ce que le réaliste appelle une chose, une existence située à michemin entre la «chose» et la «représentation».

(Bergson,1939: 5-6)

4 Hipotética pois, além de não ser verificável, Bergson afirma que não existe percepção que não seja impregnada de memórias. «En fait, il n'ya pas de perception qui ne soit imprégnée de souvenirs».

(Bergson,1939: 19)

5 «Rejetez donc l'apport de la mémoire, envisagez la perception à l'état brut, vous êtes bien obligé de reconnaître qu'il n'y a jamais d'image sans objet».

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memória e da percepção, como se a diferença entre elas fosse apenas em termos de intensidade, quando o que se verifica é uma diferença radical. Se a memória está baseada na ausência, a percepção está baseada na presença, e entre ausência e presença não existe diferença em grau, mas diferença de tipo. A percepção pura não é verificável empiricamente e difere em muito da percepção concreta na qual o processo não é direto já que, segundo Bergson, existe uma seleção prévia ao ato perceptivo, isto é, existe escolha sobre o que vai ser percepcionado. Existindo esta seleção perceptiva, a possibilidade de a memória corresponder com exatidão ao que foi percepcionado, é questionável logo ao nível da captação da experiência.

Como psicólogo especializado na percepção Rudolf Arnheim, escreveu o livro Visual Thinking (1969), onde considera que a percepção não é um ato passivo de recepção imaculada de informação e que mantém uma relação intrínseca com a memória. Arnheim caracteriza a percepção como um processo ativo, seletivo e inteligente. Sobre o seu carácter selectivo, e no domínio da visão, a seleção dá-se por motivos fisiológicos, isto é, o observador não consegue ter uma imagem focada e simultânea de tudo o que existe no ambiente que o rodeia. Tem de olhar uma coisa de cada vez, para poder discernir as formas, e perceber aquilo que vê. Existindo esta seleção, não é possível existir uma

“gravação” impessoal e abrangente da totalidade do ambiente em que se encontra. Aquilo que o observador vê, não corresponde com exatidão às circunstâncias em que se encontram no momento da percepção. Esta impossibilidade protege o observador de uma possível sobrecarga de informação, obrigando-o a limitar a sua atenção ao que lhe importa, e assim a fazer escolhas. Essas escolhas são um dos motivos que levam Arnheim a considerar a percepção como ativa e inteligente. Existe inteligência na escolha do que vemos, já que é criada uma hierarquia na ordem definida para aquilo que olhamos. A complexidade da percepção aumenta se considerarmos a relação que mantém com a memória.

Não existe um olhar imparcial sobre as coisas, porque o ato perceptivo não é algo isolado no tempo, é influenciado pelo que já se viu antes. «Um acto perceptual nunca está isolado;

é apenas a mais recente fase de uma série de inúmeros actos parecidos, realizados no

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passado, que sobrevivem na memória» (Arnheim, 1969: 80).6 As experiências que temos do presente, juntamente com o que aconteceu no passado, pré-condicionam as percepções que serão feitas no futuro. «(...) nós vemos as coisas de acordo com aquilo que esperamos que elas pareçam» (Arnheim, 1969: 80).7

A memória que guardamos das coisas, torna-se assim uma condição para nos ajudar no presente a uma correspondência com o passado, auxiliar nas recordações e a ligar os acontecimentos ao instante a que eles pertencem.

Sem esta capacidade não haveria o «antes» nem a possibilidade de nenhuma recordação ou reconhecimento de rostos, nenhuma referência aos dias, horas ou até aos segundos passado. Neste sentido é possível acedermos a esse imenso armazém de recordações para relembrar um qualquer acontecimento passado. No entanto, assim como cada acontecimento é retido pela memória, ainda que por breve período, ele é «escorregadio, sempre a ponto de nos escapar» (Bergson, 1939: 90). Esta forma “escorregadia” com que Bergson se refere ao passado é como uma matéria líquida, evasiva, que tende a deslizar sem controle através das nossas mãos.

Para ser memorizado, o passado teve que ser vivido, pois não existe memória sem experiência do passado: a memória é um recipiente de imagens que provém de experiências, durante um determinado tempo — um instante ou uma vida. A experiência que tiramos de um acontecimento traduz-se em imagens e impressões transmitidas pelo espaço exterior, percepcionadas através dos sentidos, na relação com o nosso corpo e com os objetos que nos rodeiam. Essa percepção influencia a forma como as imagens são retidas na memória, como se o nosso «corpo, com aquilo que o cerca, não fosse mais que uma dessas imagens» (Bergson, 1939: 83).

6 «A perceptual act is never isolated; it is only the most recent phase of a stream of innumerable similar acts, performed in the past and surviving in memory».

7 «(...)we see things as we do because of what we expect them to look like».

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A este respeito, Pierre Nora (1993) diz-nos que as memórias acionam a sua presença através da lembrança de acontecimentos tornando-se parte de um lugar, quando a imaginação lhe atribui uma carga simbólica numa determinada unidade temporal.

Tem aqui lugar a imaginação, referida por Nora, como construtora de imagens. É na acção do que se imagina, ou melhor, é através do movimento mental do que é lembrado que decorrem as imagens na mente, relativas a um determinado momento tal como a diegese de um filme — o espectador é um elemento passivo, pois não interfere diretamente nos acontecimentos que decorrem no filme: apenas perceciona, interpreta e constrói, à medida do seu entendimento, aquilo que vê no ecrã. Também na memória, a dicotomia imagem / narrativa do passado está ligada à uma construção mental de um determinado momento.

Isto indica, colocar em movimento a narrativa dessa lembrança. Para que essa acção seja afirmada neste contexto é necessário que haja «vontade de memória» (Nora, 1993: 21).

Entre memória e imagem constrói-se a narrativa de um certo episódio. Portanto, não é mais do que «accionar uma espécie de cinematógrafo interior» (Bergson, 1939: 271), como um «mecanismo do nosso conhecimento» (idem).

Tal como numa imagem, também na escrita «o sentido (ou a função) de um elemento da obra é a sua possibilidade de entrar em correlação com outros elementos desta obra e com a obra inteira» (Todorov, 1973: 210). Nesta interdependência, cada elemento afirma a sua presença na construção da diegese, sugerindo ao leitor uma visão dos acontecimentos quando aplicada essa sequência narrativa. Como num filme, a forma como os elementos que compõem a história se relacionam é determinante para que decorra a acção da narrativa, com a premissa de que seja o leitor a interpretar a própria história.

«Memórias relevantes são aquelas que, neste momento, a consciência admite e incorpora com a sua experiência atual. Essa relevância pode talvez ser considerada como pertencente a duas categorias; adjetivadas adequadamente como lógica e afetiva.»

(Pear,1922: 138)8

8 «Relevant memories are those which consciousness at the moment admits and incorporates with its present experience. Such relevance may perhaps be regarded as falling into two classes; fitly described by the adjectives logical and affective».

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O autor Tom Pear, sobre a categoria lógica em Remembering and Forgetting (Pear, 1922), pode-se dizer que a memória estabelece ligações na consciência que são relevantes por serem de fácil entendimento, no sentido em que o motivo das ligações é facilmente descodificável, e assim torna-se simples memorizar. Já a categoria da afetividade explica o facto de as memórias estabelecerem ligações entre si e entre a experiência percepcionada devido à existência de compatibilidade com determinado humor ou emoção. O autor afirma que entre estas duas categorias existe predominância da categoria afetiva sobre a lógica. Determinada emoção provoca o aparecimento de ideias e memórias que o intelecto pode rejeitar e considerar como inaceitáveis, mas estas podem-se impor permanecendo no nosso pensamento mesmo quando não são bem-vindas.

Ainda sobre a ligação entre memória e emoção, Arnheim (1984) verifica que a memória não é imutável. Segundo Rudolf Arnheim, existem duas forças opostas na memória que modificam o que foi percepcionado de duas formas possíveis: através da redução da tensão e através da sua acentuação. A força que reduz tensões torna as imagens mais homogéneas, perdendo-se detalhes e adquirindo uma tendência para a simetria, enquanto a força que acentua as tensões, numa tentativa de preservar as características principais, intensifica-as. Arnheim (idem) explica que as duas tendências atuam em conjunto em cada memória que se estabelece, acontecendo uma simplificação e acentuação em simultâneo, existindo no entanto, a possibilidade de que uma tendência prevaleça sobre a outra em determinada memória. Aqui podemos encontrar a emoção como elemento potenciador de mudança, já que Arnheim (idem) afirma que aspetos da percepção que tenham provocado reações emotivas no observador são geralmente os escolhidos para a atuação da tendência que acentua os pormenores, enquanto, por exemplo, se um estímulo percetual estiver incompleto por ser afetado pelo ponto cego do observador, a tendência de simplificação é a aplicada como solução perceptual.

Para melhor compreensão da relação entre o conceito de memória associada à narrativa, consideramos importante, neste ponto, definir o significado de narrativa como o ato de relatar através do discurso falado e escrito, e também da imagem (cinema e fotografia).

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O sublime, que resulta da percepção da imagem a qual aponta para um imaginário que é formado a partir da reunião de várias imagens, também está presente no filme La Jetée (1962) de Chris Marker. O filme é composto inteiramente por fotografias montadas numa narrativa, só possível de ser construída ligando uma imagem fotográfica a outra imagem.

La Jetée narra a história de um homem, prisioneiro da Primeira Guerra Mundial, escolhido para fazer parte de experiências através do tempo, com o objetivo de trazer memórias do passado para resgatar os acontecimentos do presente.

O Marker constrói neste jogo formal uma cumplicidade entre o espaço fílmico e o espectador. De acordo com Deleuze (1983), o todo serve para interiorizar uma sequência de imagens sendo que, no caso de La Jetée, a perceção que se tem do todo fílmico resulta da união dos elementos (imagem) no processo dinâmico da montagem. Embora as imagens sejam estáticas, isoladas no seu contexto fotográfico, a montagem sugere a acção de um discurso inserido no tempo da narrativa. Na dicotomia, imagem/tempo, as imagens não vivem isoladas, mas em sintonia. Ao se relacionarem, elas formam um discurso que se desenvolve ao longo da diegese, garantindo ao filme uma unidade cinematográfica.

Neste sentido, os elementos que compõem La Jetée estão inseridos numa relação de efeitos contrastantes (claro/escuro) e de equilíbrios formais relacionados com o seu conteúdo. Cada imagem que compõe o todo do filme é uma peça da narrativa que interage com as outras imagens. Ela detém uma expressão e uma função própria como imagem.

Contudo, agregam-se, pois, passam a exercer entre si um padrão visual: Arnheim recorda que muitas das experiências dos teóricos da Gestalt, propõem «demonstrar que a aparência de qualquer elemento depende do seu lugar e da sua função num padrão total»

(Arnheim, 1984).

Refira-se, neste ponto, a intersecção dos meios usados (fotografia e vídeo) no projeto (Re)Construção da Memória), como um processo fundamental para a criação de efeitos cambiantes dos elementos tendo como princípio a unidade visual. Esta intersecção das imagens faz com que se estabeleça uma hierarquia de acontecimentos que dizem respeito ao momento em que a imagem estática se transforma em movimento. Segundo esta ordenação, a transformação da imagem decorre num discurso lógico e perceptivo.

Embora dissonantes, por registarem o instante a partir de diferentes formas, as imagens

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(fotografias e vídeo) interligam-se numa unidade diegética e confrontam-se em harmonia como parte da mesma linguagem: «Trata-se então da percepção da forma enquanto unidade, enquanto configuração que implica a existência de um todo que estrutura as suas partes de forma racional. (Aumont, 2009: 50).

A imagem fotográfica adquire aqui um papel fundamental: ela faz a transição do estático para o movimento, como uma acção que faz parte da transição do tempo. Sendo, neste caso, o resultado da passagem de uma fotografia para uma quantidade de unidades fotográficas: «no cinema há sempre referência fotográfica, mas esse referente desliza e não reivindica a favor da sua realidade» (Barthes, 2012: 100) mas a favor da constituição de um todo em movimento.

1.2 Fotojornalismo

«[o fotojornalismo é] a prática fotográfica em que alguém conta uma história sobre algum aspecto do seu mundo, a qual é compilada em primeiro lugar usando tecnologias de imagem baseadas na óptica e que têm uma relação com esse mundo. Isto abrange o que outros chamam fotografia documental, fotografia editorial e similares, mas exclui obras de ficção visual produzidas por imagens geradas por computador.»

(Campbell, 2016)9 Aprofundando esta definição, podemos adicionar que fotojornalismo é a prática fotográfica que conta histórias visuais sobre o mundo e que visa auxiliar o público a perceber os eventos que acontecem. Na visão da jornalista Anastasia Taylor–Lind10 preciso ter em conta que o registo fotográfico em contexto jornalístico é mais do que uma

9 “I’ll call photojournalism the photographic practice in which someone tells a story about some aspect of their world, where this story is compiled first using lens-based imaging technologies that have a

relationship with that world. This encompasses what others call documentary photography, editorial photography, and the like, but excludes works of visual fiction produced with computer-generated images” (trad. livre).

10 Anastasia Taylor–Lind é uma jornalista inglesa-sueca que tem escrito sobre a sua experiência como fotojornalista no The New York Times, Vanity Fair, TIME e The Guardian, entre outros. Com formação em Fotografia Documental, além da publicação do seu primeiro livro sobre os protestos do Maidan na Ucrânia, colabora frequentemente com várias universidades, entre as quais, o MIT, Harvard e a Columbia University.

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testemunha visual (2016), este vai “interpretando e traduzindo de forma criativa o caos da vida num produto que possa ser distribuído aos leitores”11 (Panzer, 2005: 10).

Estando para além de um entendimento da fotografia como representação do mundo real, o fotojornalismo deve ser considerado como uma atividade relacionada com as ideias, para a qual, nas palavras de Taylor-Lind, (2016) “precisamos desesperadamente de mais diversidade na forma como o abordamos”.12

A fotografia é uma tecnologia vital para uma sociedade democrática, permitindo dar a conhecer ou destacar alguns eventos que de outra maneira nunca teriam chegado até nós, embora possa ser em muitas ocasiões “convencional”, “sentimental” ou que “estetiza a realidade”. A fotografia como trabalho de periodismo “está morto” se o entendemos só como reprodução nos meios massivos de comunicação.

Qual é o conteúdo da mensagem fotográfica? O que é que a fotografia transmite? Por definição, a própria essência, o real literal. Para ir da coisa real à fotografia, não é necessário segmentar realidade em unidades e erigir essas unidades em signos substancialmente diferentes do objeto cuja leitura propõem. Entre este objeto e a imagem, não é necessário ter um relé, isto é um código. Assim é que aparece a particularidade da imagem fotográfica: “Uma mensagem sem código, uma proposição da qual um importante corolário deve ser imediatamente deduzido, a mensagem fotográfica é uma mensagem contínua” (Barthes, 2009: 13).

O papel do designer em comunicação como jornalista visual, é uma premissa proposta por Jan van Toorn (2010: 49), que procura evidenciar as devidas diferenças em relação ao trabalho do jornalista e do fotojornalista.

O designer holandês Jan van Toorn definiu-se como alguém interessado na “história das ideias” (Poynor, 2004), envolvido na “análise crítica, diálogo entre disciplinas e a exploração das ideias” cujo “realismo sem remorso” (idem) está apoiado num “profundo idealismo social” (idem). O tipo de prática que aplicamos trata os espectadores como

11 “creatively interpret and translate the chaos of life into a product that can be distributed to readers”

(trad. livre).

12 “we desperately need more diversity in the way we approach it” (trad. livre).

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“indivíduos pensantes” que desenvolvam uma visão crítica e formada do mundo que os envolve (idem). Jan van Toorn dá mais um passo na sua visão crítica quando afirma que:

“Tudo é possível, podes citar tudo, usar todos os estilos, mas onde estão os argumentos que realmente contribuem para uma mudança fundamental nas nossas condições sociais?”13 (Toorn, 1990).

Definir um termo ligado a uma atividade prática eminentemente contemporânea traz inevitavelmente dificuldades, e o caso do jornalismo visual (que engloba a produção de conteúdos jornalísticos com base na imagem, como mapas, gráficos, vídeo, elementos multimédia) não é uma exceção.

1.3 Storytelling (como narrativa visual)

«É possível pensar em fotografias – ou ainda partes de fotografias – como nós que unem uma variedade de meios, o que eu chamo hiperfotografia, em vez de como imagens suficientes em si e para si. Desta maneira, o leitor envolve-se mais no desenrolar da história quando tem de escolher caminhos a percorrer como meio de explorar várias ideias, em vez de ser apresentada uma só sequência possível.»

(Ritchin, 2010:7-8)14

«(···) todos os termos são imperfeitos e a linguagem tem múltiplas interpretações, mas uma das coisas que nos propusemos fazer era não definir nada. (···) É muito limitador.

(···) visual storytelling (···) é provavelmente o conceito mais aberto (···) [e] este não se define pelas ferramentas, mas pelo seu propósito.»

(Campbell, 2013)15

13 “Everything is possible, you can quote everything, you can use every style, but where are the arguments that are really contributing to a fundamental change in our social conditions” (trad. livre).

14 “It is possible to think of photographs or even pieces of photographs as nodes that link to a variety of other media, what I call hyperphotography, rather than as images that are sufficient in and of themselves.

In this way, the reader becomes much more implicated in the unfolding of a story when she has to choose pathways to follow as a means of exploring various ideas, rather than being presented with only one possible sequence.” (trad. livre).

15 “All terms are flawed, and language has multiple interpretations, but one of the things

that we set out to do was not to define anything. (...) It’s too limiting. (...) visual storytelling (...) is probably the most open concept (...) it’s not defined by tools; it’s defined by purpose” (trad. livre).

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Campbell (2013), que tem conduzido vários projetos de investigação para o World Press Photo, adota o termo Visual Storytelling, entendendo-o como uma forma mais persuasiva de storytelling (Campbell, 2009). Contudo, muitos destes projetos não se restringem a conteúdos visuais e são caracterizados pela utilização de múltiplos meios de expressão (nomeadamente os sonoros). Os storytellers podem produzir histórias que utilizem ou combinem texto, fotografia, vídeo, áudio, ilustrações gráficas e/ou redes sociais (...) (National Geographic, 2017). A escolha do termo digital storytelling baseia-se na percepção do que o ambiente digital permite transformar “objetos de meios antigos em novas estruturas – tornando os media em meta-media” 16(Manovich, 2005).

Contar histórias relaciona-se frequentemente com mundos desconhecidos, baseados na imaginação. Ainda assim, o storytelling pode estar presente na narração de factos, como em certas práticas jornalísticas, onde estes são apresentados numa determinada ordem, gerando uma sequência de eventos que facilite a transmissão e compreensão da informação.

Campbell (2009) sublinha as vantagens dos artefactos de digital storytelling:

- Permitem aos fotógrafos focar-se numa história e produzir mais conteúdo com grande controlo sobre as imagens que são apresentadas;

- Enquanto o significado de histórias visuais não pode ser controlado, podem ser dirigidos através da construção duma narrativa que se baseie em som e texto, assim como fotografias e vídeo;

- Potencialmente, podem superar as restrições de histórias mais longas e

complexas publicadas para uma audiência global, especialmente gerações jovens que não consumem meios tradicionais;

- São uma resposta efetiva ao desafio conceptual de como fornecer o contexto para uma fotografia;

- Podem superar a coisificação do fotojornalismo, ao apresentar a própria voz dos sujeitos.

16 “Software allows us to remap old media objects into new structures – turning media into ‘meta-media’”

(trad. livre).

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Como assegura Lise Saffran (Saffran, 2017), “os factos são teimosos, de facto, porém o significado de qualquer conjunto de factos é sujeito à interpretação”. A autora acredita também que “à medida que a confiança nos especialistas se reduz, a autenticidade e as ligações pessoais tornam-se mais relevantes”. Entende, por último, que o storytelling

“seja a reportar as notícias ou a escrever uma memória, implica uma seleção ativa e a ordenação de alguma informação e omissão de outra”17 (Saffran, 2017).

O storytelling é um fenómeno transversal a todas as nações, sociedades e culturas, tratando-se de uma prática adquirida através do processo natural de socialização. No fundo, a narrativa encontra-se no núcleo da socialização humana e relaciona-se com ela de forma intrínseca: por um lado, não existe sociabilidade sem narrativa, uma vez que é a troca de histórias e experiências que sustenta as relações sociais; por outro, não existe narrativa sem sociabilidade, dado que é o contacto entre as pessoas que possibilita a criação de histórias.

Face a estes pressupostos, e mediante a visão de Arthur Asa Berger, começou a descrever- se o ser humano não como Homo Sapiens, o conhecedor, mas como Homo Narrans, o contador de histórias (Berger, 1997: 174). Corroborando esta visão, James Watson salienta que a evolução para o termo Homo Narrans evidencia o lugar primordial do storytelling no discurso humano – a racionalidade, enquanto capacidade de compreensão do mundo, é determinada pela nossa condição de seres narrativos (Watson, 1998: 98-99).

Ao longo das últimas décadas a prática evoluiu, dado que as histórias deixaram de ser apenas ouvidas ou lidas, para serem também vistas, ato contíguo à mudança de preferências dos sujeitos. Como forma de rentabilizar-se todos os recursos, a articulação dos vários elementos tem-se tornado frequente, o que gera a maximização da experiência a partir dos múltiplos ângulos de acesso à narrativa. Neste contexto, surge o transmedia storytelling, uma técnica de narrativa que, tal como o nome indica, recorre a uma variedade de meios para contar uma história. Henry Jenkins, professor de comunicação

17 “Storytelling, whether it’s reporting the news or writing a memoir, involves the active selection and ordering of some information and the omission of other information.” (trad. livre).

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responsável pela criação do conceito, explicou as suas características e particularidades através de uma publicação na sua página digital18:

“Transmedia storytelling represents a process where integral elements of a fiction get dispersed systematically across multiple delivery channels for the purpose of creating a unified and coordinated entertainment experience. Ideally, each medium makes its own unique contribution to the unfolding of the story”.

(Jenkins, 2007)

O transmedia storytelling é um processo que visa a promoção da discussão entre o público, e não só́ a simples recolha de informação. Tal como atesta:

“Transmedia storytelling refers to a new aesthetic that has emerged in response to media convergence – one that places new demands on consumers and depends on the active participations of knowledge communities. Transmedia storytelling is the art of world making. To fully experience any fictional world, consumers must assume the role of hunters and gatherers, chasing down bits of the story across media channels, comparing notes with each other via online discussions groups, and collaborations to ensure that everyone who invests time and effort will come away with a richer entertainment experience”. (Jenkins, 2006: 20-21)

1.4 Design de comunicação como produção de valores e de conhecimento

«Vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das causas neste momento»

(Clarice Lispector, 1977: 21) Ao longo do tempo, muita polêmica foi gerada em relação à formalização de um conceito que define o design gráfico de forma simples e concreta. Hoje as discussões em torno do

18 http://henryjenkins.org/blog/2007/03/transmedia_storytelling_101.html

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que é ou não design tornaram-se mais complexas desde a imersão nos meios digitais. A média de reprodução impressa evoluiu para uma “terceira dimensão” (Munari, 2016:16).

As imagens ganham vida e a funcionalidade de uma imagem em movimento, resolvendo questões que não eram totalmente abordadas antes para a compreensão de uma mensagem.

A comunicação visual dá-se por meio de mensagens visuais que fazem parte da grande família de todas as mensagens (sonoras, térmicas, dinâmicas etc.) que atingem os nossos sentidos.

Assume-se que um emissor emite mensagens e um recetor as recebe. Mas, o receptor está imerso em um ambiente repleto de interferências que pode alterar a mensagem, e até mesmo cancelá-la (ver figura 1).

Fig. 1 Bruno Munari. A mensagem visual (2016)

Se a mensagem for bem projetada para não perder o sentido (ou propósito original) durante a transmissão, ela chegará ao receptor. Cada receptor, e cada um à sua maneira, possui algo chamados “filtros” pelos quais a mensagem deve passar para ser recebida.

Esses três filtros não são diferenciados de forma rigorosa e, embora ocorram na ordem

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indicada na figura, podem ocorrer reversões, alterações ou contaminações recíprocas (Munari, 2016:16).

No caso deste estúdio, o que nos preocupa, é o facto de a mensagem não chegar ao destinatário devido ao filtro chamado “cultural”. Com o qual os relatos que estamos a apresentar no projeto, ao não serem do interesse das pessoas dos outros países nos quais nem sequer saibam o que é um terramoto, (porque no seu país não exista um fenômeno desse tipo, mas sim de qualquer uma outra natureza), não supõe que não exista; e então os factos acontecidos distantes a essas pessoas, torna-os culturalmente distantes e faltos de recursos comunicativos com o mundo.

Os artistas gráficos são capazes de manipular sentimentos e ideais por meio dos elementos audiovisuais que compõem os seus produtos. Áudio e música, assim como animações precisas em torno de um tema, dão lugar ao aprofundamento de uma ideia ou conceito explorando novos territórios.

Hoje, a irrupção dos meios de comunicação de massa está presente e condiciona o nosso modo de vida, costumes quotidianos e padrões de comportamento social, sem esquecer as profundas transformações culturais que apresenta.

O design de comunicação não tem que ser considerado só para resolver problemas, mas para produzir coisas; como resultado da pesquisa é um trabalho de metodologia de investigação, orientado à criação de soluções. Portanto, o design é visto como construção e produção de conhecimento. O designer de comunicação deve ter como função primordial permitir ao público iniciar-se ou alfabetizar-se numa linguagem que tenha regras próprias. Isso requer conhecimento, não apenas da imagem como tal, mas das relações entre imagem, áudio, textos, arquivos históricos, etc.

O design é um processo de criação visual com um propósito, a mínima parte de um total de qualquer projeto deve estar aos olhos do público e transmitir uma mensagem pré- determinada. Todo design, mesmo o mais inovador, segue modelos, códigos, formas e

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gêneros existentes, esses modelos constituem toda a rede da nossa linguagem visual, que está em contínua evolução e expansão.

Desde os tempos mais remotos, o homem teve necessidade de compreender o que o rodeia, de dar-lhe um sentido e de relacionar-se para obter o conhecimento. Desde a nossa infância, registamos, interpretamos e coordenamos as diferentes percepções que nos são apresentadas em nosso entorno, com o objetivo de interpretar o nosso habitat e explicar os fenómenos que de uma forma ou de outra, nos confundem quando não temos conhecimento deles.

Um dos média de comunicação mais importantes é o visual. A importância da visão reside, além do facto de ser imediata e prática, ela remete-nos a imagens e associações emocionais, que por sua vez são ancoradas em novas percepções e, dessa forma, novos conceitos são formulados. O mecanismo pelo qual recebemos e gravamos imagens são os olhos, que registam imagens complexas e simples, que nos ajudam a ter uma maior sensação de espaço e, assim, criar nossas próprias experiências.

Mas, porque é que estamos acostumados a pensar que o que vemos é mais importante do que o que ouvimos ou sentimos? O poder do som e da música em produções audiovisuais tem sido frequentemente subestimado. Isso porque existe uma espécie de equívoco entre educadores, cientistas, técnicos, artistas e o público em geral; que confere pouca superioridade justificada à imagem e à percepção visual. Essa ideia encontra sua origem em certas crenças perceptivas e, sobretudo, como já mencionamos, em “fatores históricos e culturais” (Chion, 1993).

Segundo Daniel Chandler (2016), a análise da semiótica estrutural abrange a identificação das unidades que são criadas no sistema da semiótica e as relações que estão entre elas (Chandler, 2016). Saussure lidou exclusivamente com três tipos de relações sistemáticas:

isto é, entre o significante e o significado; estes, por sua vez, entre um sinal e os componentes, conceitos que o cercam com um significado e concreto (Saussure, 1983).

O signo como unidade mínima de significado combina cada elemento de relação com o sujeito receptor, para criar um contexto de compreensão entre o significado e o que é

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compreendido. O signo representará um fragmento da realidade; conforme o nível de significância progride, ele pode ser interpretado em conjunto com outros elementos de representação para criar um significado como um todo. E dos quais, mesmo sendo levantado, pode ser sujeito a manipulação de acordo com o que o receptor interpreta. Para garantir o sucesso da mensagem, o designer como comunicador visual utiliza teorias aplicadas ao raciocínio das mensagens; do quê e como é que vai transmitir a mensagem.

No processo criativo e comunicativo do projeto (Re)Construção da Memória, vamos focar-nos na teoria da Persistência da Visão, um suposto fenómeno visual descoberto por Peter Mark Roget.19 O olho humano apresenta um fenómeno muito interessante, o da persistência retiniana. Se num instante um objeto é colocado à frente dos olhos e após um certo intervalo é retirado repentinamente, o olho tem a sensação de continuar a ver o objeto por um tempo muito curto, mesmo quando ele não está mais na frente do olho; ou seja, a visão do objeto persiste.

Esse fenómeno parece ser devido ao facto de que, conforme a luz atinge a retina e o sinal nervoso correspondente é enviado ao cérebro, leva algum tempo para que o sinal seja processado, por assim dizer. O cérebro retém a impressão de iluminação por um intervalo de cerca de 0,1 seg., depois que a fonte de luz foi removida. Esse facto foi aplicado para criar ilusões de movimentos semelhantes como o cinematógrafo e a televisão. A base dessas ilusões reside no facto de que, se duas imagens estáticas forem apresentadas separadas uma da outra por pelo menos 0,1 segundo, o olho terá a sensação de que ocorre um movimento.

Quando o sistema visual é rapidamente apresentado a uma série de imagens estáticas, elas não são vistas descontinuamente; acontece que o cérebro “preenche”, por assim dizer, as lacunas entre as imagens e imagina que se encontra perante um objeto em movimento contínuo.

19 Peter Mark Roget (1779-1869) foi um médico, físico, matemático, filólogo, teólogo natural e lexicógrafo inglês. Em 1824 deu o primeiro passo para a explicação científica e a realização técnica do cartoon, cujo herdeiro imediato é o cinema.

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Ao perceber movimentos, o sistema visual extrai muito rapidamente características salientes e aplica leis de movimento para processar a informação. Tudo o que passamos a perceber do nosso ambiente está estruturado e ordenado de tal forma que está ligado aos nossos pensamentos e sentimentos de forma íntima e é impossível separá-los. Por exemplo, quando por meio de uma imagem evocamos um sentimento.

A perceção é, na verdade, uma interpretação dos estímulos de um dado dos quais apenas capturamos fragmentos. Portanto, a comunicação visual é praticamente tudo que nossos olhos vêem, desde uma planta até nuvens em movimento no céu. Cada uma dessas imagens tem um valor diferente, dependendo do contexto em que estão inseridas.

A relação entre design e outras disciplinas, como antropologia, sociologia, psicologia e filosofia, não é tão simples quanto Donahue (Donahue, 2013) gostaria que fosse.

“Gostaria que os designers pudessem apenas seguir suas intuições e paixões ... [e]

conectar-se com essas disciplinas de uma forma que [eles percebessem] ... o design não como um cidadão de segunda classe, mas como ... capital de conhecimento que é executado de um modo diferente, através do conhecimento construído de uma forma diferente e explorar o potencial disso e trazer de volta ao design para falar sobre essas relações”.20

Os defensores de um design crítico, de uma prática de design de comunicação visual, advogam que devemos construir a nossa atividade sobre uma maior e mais aprofundada orientação sociopolítica, assim como construir uma prática que estenda e explore “um mapa mais integrado de estratégias de comunicação e práticas simbólicas” (Toorn, 2010:

50). Entendemos o design de comunicação como uma produção simbólica “a produção de valores” (idem) que nos liberta das “formas de dominação que o design e os seus conceitos ainda exercem hoje” (ib. p.47). Esta atividade apresenta desafios e oportunidades para alcançarmos um renovado compromisso social, cultural e

20 “I wish designers could just follow their intuitions and their passions … [and] connect with these disciplines in a way that [they would perceive] … design as not a second-class citizen but as … knowledge capital that is just executed through a different mode, through knowledge constructed in a different way and explore the potential of that and bring that back to design to talk about those relationships”

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democrático, já que exercer design durante o atual contexto de crise socioeconómica global acarreta também uma “confrontação com uma crise do simbolismo” (ib. p.48).

Devemos ter em conta que os projetos com maior relevância sempre foram projetos ligados ao seu tempo, já́ que o design “captura e condensa de uma forma gráfica atraente”

(Poynor, 2001: 185) as caraterísticas dum determinado momento histórico e funciona como um relatório que é atualizado constantemente e que descreve o nosso modo de vida num determinado momento. Entenderemos o design como modelo de discussão ou debate com meios visuais (Poynor, 2004), reconhecendo que as formas simbólicas são essencialmente ambíguas e cheias de convenções (Toorn, 2010: 52). A forma torna-se então o núcleo da contradição dialética entre “o dado e o novo”, entre “convenção e inovação” e, ainda, entre “conteúdo e forma” sendo a sua estrutura final um elemento de síntese superadora de uma certa inquietação. Esta inquietação exige a seleção de um sujeito, de investigação, de recolha de material, e de nos tornarmos especialistas num tema (Poynor, 2001: 187) para depois dar-lhe forma a partir de estratégias que vão desde

“um negativismo crítico” a “representações utópicas” (Toorn, 2010: 50). Esta variedade de aproximações justifica-se na base de que não tanto o objeto, mas a sua interpretação crítica deve ser avant-garde (id.) e que “nos sacuda da complacência moral e da resignação política” (id.).

O design e a comunicação visual cumprem uma função muito importante na sociedade:

comunicar, o que implica uma certa aprendizagem. O design deve ir de acordo com as mudanças que surgem na nossa sociedade, pois o público, suas necessidades e preocupações devem ser reconhecidas; isso para cobrir cada vez mais e com maior eficiência e eficácia tudo o que é exigido no tempo atual (Munari, 2016).

No que se refere à aprendizagem de conteúdos, pode-se dizer que se está a trabalhar muito e de forma mais constante com o objetivo de obter melhores resultados de comunicação.

Por isto, é que projetos como o que estamos a desenvolver, são cruciais para o entendimento das problemáticas (não só como conhecimento) mas como reconhecimento dos factos sociais e históricos, e assim criar canais de comunicação e ferramentas

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comunicativas com as quais enfrentar-se aos eventos catastróficos eminentemente futuros.

«O que podemos fazer hoje neste ambiente que se multiplica e sobrepõe-se a cada vez?

Devemos lamentar os tempos que não voltamos, assim como os idosos que choram por sua juventude perdida, devemos nos esforçar para intervir e ajudar a tentar colocar alguma ordem no caos? Eu acredito na última solução.»

(Munari, 2016: 43)

1.5 As imagens de arquivo como objetos da memória

O exercício da memória não é regular e apresenta espaços em branco e pequenas lacunas que tentamos preencher com o intuito de gerar novas significações que nos ajudem a encontrar uma ordem no decurso da nossa existência.

O uso do arquivo não é útil apenas para lembrar coisas do passado, mas para criar novas ligações com os eventos do presente e do futuro (e assim gerar novos conhecimentos).

O arquivo, com o intuito de compreender, tende a organizar e a guardar as efemeridades impossíveis de controlar para sempre, tentando prolongar a existência do que desapareceu ou do que ainda existe, mas que não se vê com clareza, reconstituindo ligações e recuperando o que se perdeu no abismo.

Desde o século XIX, que os espaços de arquivo e as bibliotecas, ao abarcarem grandes quantidades de documentos, fizeram emergir novos objetos e visões, sobretudo devido às relações criadas e às possibilidades que o sistema hipertextual de conexões estabelece.

Cada arquivo, pessoal ou coletivo, terá determinadas características e significações.

O arquivo “estabelece que somos diferença, que a nossa razão é a diferença dos discursos;

a nossa história, a diferença dos tempos e o nosso eu, a diferença das máscaras. Que a diferença, longe de ser esquecida e recoberta, é essa dispersão que somos e que fazemos”

(Foucault, 1969: 10).

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Se tivermos em conta uma visão tradicional, percebemos que o arquivo é visto como um depósito de documentos verbais e visuais e que em potencial remete para uma história a ser contada de um modo intimamente próximo dos factos ocorridos.

Contudo, o arquivo não é algo inerte que tem apenas como fim reconstituir o que um homem ou um grupo de indivíduos ou instituição fez ou disse, mas cria sim, novas relações entre os documentos e materiais disponíveis para que se façam novas análises e se gere novo conhecimento. Para além da carga massiva de documentos, o arquivo é também tudo aquilo que o rodeia e o que relaciona e organiza cada um dos discursos a si inerentes, de modo a que não acabe numa massa amorfa e perdida no tempo.

Jacques Derrida em Mal de Arquivo – Uma Impressão Freudiana (2001), não esquecendo os princípios da Arqueologia do Saber de Michel Foucault (1969), transmite as lacunas inerentes ao arquivo, ao seu caráter não linear e à perda da sua originalidade.

Sigmund Freud partilha da mesma opinião no mal de arquivo. Jacques Derrida analisa esse “mal” que é a pulsão de morte, consistindo em algo que elimina os arquivos escritos de modo a que o processo de arquivamento possa permanecer até ao infinito, já́ que de outra forma o arquivo implodiria pela impossibilidade de outras escrituras. Esta questão, permanentemente atual, é relevante na medida em que a tradição e a história se constituem sobre o arquivo. Para o filósofo Jacques Derrida (2001), para que o processo de arquivo possa continuar, existe esse mal de arquivo que apaga os arquivos escritos impossibilitando essa implosão.

A desconstrução e a articulação de novas interpretações têm, em potencial, uma leitura diversa da história que reescreve o que já foi dito e/ou escrito. Deste modo, podemos pensar no arquivo como uma matéria viva e com um enorme potencial, devido aos novos olhares que por ele passam, e que o reescrevem ou ajustam.

Podemos considerar que mesmo o arquivo e o mal de arquivo poderão encontrar-se e confrontar-se, efetuando trocas e novas visões e esclarecimentos acerca do mundo. Para Jacques Derrida, os traços inscritos no arquivo e a pulsão de morte, possibilitaria novas inscrições no arquivo e no nosso tempo que dependem da análise e condição de cada intérprete.

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Existe, sem dúvida, um paralelismo entre o arquivo e a memória. Por um lado, a memória é o resultado final de um processo complexo que envolve estímulos interiores e exteriores que desencadeiam sensações, sentimentos e pensamentos que são manipulados, ajustados, adequados e finalmente armazenados. Existe uma distância considerável entre o ambiente onde estamos inseridos e aquilo que armazenamos sob a designação de realidade. A memória é talvez mais semelhante a uma construção ou criação do que a uma representação de um mundo que nunca ninguém viu de forma direta, mas no qual todos vivemos, pressupondo que, de facto, existe algo material. Por outro lado, o arquivo é também uma criação sujeita a manipulações, motivadas pelos interesses ou necessidades dos indivíduos com responsabilidades na sua criação e manutenção.

«As imagens não são só visuais, são representações: criatividade, memória, imaginação.»

(Damásio, 2014) Na sua obra, A Arqueologia do Conhecimento, Foucault (1969) propõe uma revisão ontológica e metodológica das estruturas do conhecimento, segundo a qual o conhecimento está sempre intimamente ligado às características de cada época, que estabelece o que é falável e o não falável. Para o filósofo francês, a história do conhecimento não se caracterizaria tanto pela tarefa de descobrir verdades do passado, mas pelo trabalho sobre uma massa de informações, “massas discursivas”, que ele organiza estabelecendo séries e relações. “O percurso das massas discursivas permite-nos reconstruir aquelas verdades evidentes que constituem os sujeitos enquanto tais e que foram percorridas por camadas arqueológicas que povoam a memória”.21 Cada época viria definida, não tanto por um crescimento cumulativo de conhecimentos quanto por uma realocação do esquema geral que os relaciona.

21 DÍAZ, S. et al., “El Análisis del discurso. Michael Foucault y la Arqueología del saber”. En: Reflexión Académica en Diseño y Comunicación No.XIX [ISSN: 1668-1673].

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A formulação foucaultiana permite a Georges Didi-Huberman22 (2011) falar de uma

“Arqueologia do conhecimento visual”,23 a superposição em camadas arqueológicas das imagens herdadas de nossa herança cultural, entrelaçadas numa miríade de relações cruzadas, conscientes e inconscientes, em constante mutação e reposicionamento

Foucault propõe a ideia de heterotopia, ou “arranjo das coisas em lugares tão diferentes que não há lugar comum”.24 Diante da utopia, que representa uma promessa de futuro e estabilidade, a heterotopia é perturbada por seu conflito e instabilidade. Heterotopias propõem espaços em crise e diversão; arranjos específicos de lugares incompatíveis e tempos heterogêneos. Para Didi-Huberman, a heterotopia coloca máquinas de imaginação que criam espaços de ilusão, também denunciando o espaço real como ainda mais ilusório.25

Recuemos à mitologia grega para identificar a Mnemosina, a deusa da memória. Esta deusa oferecia a cada alma um bloco de cera onde eram registados pareceres e sensações, ou seja, já aqui a ideia de impressão (e arquivamento), mesmo que no sentido abstrato e individual, marcava uma dimensão significativa do processo de memorização, prolongando um determinado momento. Para Sócrates, quanto maior fosse a qualidade da cera maior seria a perfeição do registo, evitando enganos tardios ou dificuldades no reconhecimento da gravação de uma memória. A memória impressa na cera determinaria o saber.

22 Didi Huberman (St. Etienne, 1953) Historiador da arte e grande divulgador da figura de Aby Warburg, da qual é considerado herdeiro. Muitas das ideias deste autor sobre o Atlas Mnemosyne de Warburg inspiraram este trabalho.

23 DIDI-HUBERMAN, G. Atlas, ¿Cómo llevar el mundo a cuestas? Catálogo da exposição do mesmo nome. MNRS, Madrid, 26/XI/2010-28/III/2011.

24 FOUCAULT, M., “Des espaces outres”, em Dichos y Escritos, 1994 Disponível em:

http://foucault.info/ documents/heteroTopia/foucault.heteroTopia.fr.html

25 DIDI-HUBERMAN, G. Atlas, ¿Cómo llevar el mundo a cuestas? Catálogo da exposição do mesmo nome. MNRS, Madrid, 26/XI/2010-28/III/2011.

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