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Ativar as memórias graças às fotografias (vivas)

2. Enquadramento histórico

2.1 Fenômenos naturais que se tornaram eventos mediáticos

2.2.2 Ativar as memórias graças às fotografias (vivas)

2.2.2 Ativar as memórias graças às fotografias (vivas)

A história antiga, ou seja, aquela que abordava o passado a partir de uma visão totalizante e que, ao fazê-lo, o estabelecia como algo monódico e definitivo, é substituída pelo florescimento de “micro-histórias”, histórias pessoais e portanto sempre subjetivas que, longe de perseguir o objetivo abrangente, universal e unívoco que regeria a historiografia tradicional, submetem suas pesquisas a uma escala muito menor em que elementos individuais não são sacrificados a uma generalização mais ampla.87

86 Friedrich Nietzsche (1988) Unzeigemässe Betrachtungen II: Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben, en Kritische Studienausgabe, org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV/ Berlin-New York: Walter de Gruyter.

87 A "Nouvelle Histoire" ou "Nova História" começou a ganhar forma em 1929 com a fundação da revista Annales: économies, sociétés, civilizations, de Marc Bloch e Lucien Febvre, e consolidou-se

definitivamente com os contributos teóricos das gerações subsequentes, liderado por Fernand Braudel e Jacques Le Goff. Nas palavras de Peter Burke, a Nova História poderia ser definida precisamente como

“uma história escrita como uma reação deliberada contra o tradicional paradigma” que se estende por todo o mundo - do Japão à Índia, passando pela América Latina - durante os anos 1970 e 1980. Ver Peter Burke, “Ways of making History” (Madrid: Alianza Editorial, 1993: 18).

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Entramos plenamente na era da comemoração, na era da nostalgia, ou seja, num presente cuja relação com o passado assumiu as mais diversas formas e reconsiderou inúmeros debates e reflexões em torno delas.88

Da mesma forma, proliferam monumentos, memoriais, homenagens, comemorações e museus que tentam relembrar traumas históricos de diversos tipos. Ao mesmo tempo, novelas históricas, biografias, memórias, diários e confissões são publicadas no mercado editorial na mesma proporção em que, na televisão, reportagens históricas e documentários ocupam seções importantes e, no campo das artes visuais, são inauguradas exposições que também divulgam diversas práticas de memória. Tudo isso sublinha e, ao mesmo tempo, provoca na sociedade um profundo respeito pelo passado, ao mesmo tempo em que incentiva nele o sentimento de coletividade e de identidade nacional.

Essa preocupação constante, tanto na esfera cultural quanto na política, pela memória histórica e pela memória individual, familiar e coletiva, tem incentivado novas categorizações e subclassificações das formas como sobreviventes e seus descendentes lembram o passado traumático. Entre esses rótulos recentes, destaca-se o da “pós-memória”, um neologismo que se configura nos debates e reflexões em torno da representação (e seus problemas) do Holocausto, metáfora por excelência de outros capítulos traumáticos da história universal.

Quando Holocaust,89 a série americana de 1978 da NBC, estreou na Alemanha, o sucesso do público era inédito. Mais de 20 milhões de espectadores viram este documentário dramático criado por Marvin J. Chomsky, uma ficção histórica que pela primeira vez enfocou o genocídio nazi dos judeus a partir da perspetiva das vítimas. A série provocou críticas fervorosas e incentivou a criação de arquivos de memórias de sobreviventes por instituições como a Universidade de Yale, que temiam que fenómenos da "média de massa" como o Holocausto acabassem banalizando e falsificando a história, ao mesmo

88 Jeffrey K. Olick e Joyce Robbins, "Social Memory Studies: From ‘Collective’ Memory to the Historical Sociology of Mnemonic Practices", Annual Review of Sociology, Vol. 24 (1998: 117 e 120).

89 HOLOCAUST. Direção de Marvin J. Chomsky. EUA: Titus Productions, 1978. (7h 55min.).

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tempo que a transformavam em espetáculo melodramático e reducionista, um escravo das leis da narrativa clássica de Hollywood.90

Apesar das reações que a série provocou nos círculos intelectuais, o Holocausto despertou a memória coletiva e o luto de uma sociedade até então letárgica pela culpa, pela responsabilidade de dar nome e forma a um horror de dimensões incomensuráveis, e também por um silêncio opaco vindo daqueles que sobreviveram e não conseguiam lembrar (e assim reviver) o trauma dos campos (HOLOCAUST, Marvin J. Chomsky, 1978).

Segundo o Clément Chéroux (2001), a primeira causa que move, por um lado, as gerações mais novas a trabalhar artisticamente a memória traumática dos seus antecessores, e, por outro, sociólogos, filósofos e teóricos do cinema e da arte a reivindicar o valor ético e estético dessas criações, é o desaparecimento gradual e inevitável dos sobreviventes diretos do horror. Com efeito, a morte de quem o sofreu ou o perpetrou acarreta irrefutavelmente «a perda da memória coletiva de que são tutores»91 e a transferência, consequentemente, da prova para o documento, do testemunho para a representação. É precisamente como resultado deste progressivo silenciamento das vítimas — causado tanto pelo seu afastamento temporário dos acontecimentos (que altera a sua memória), como pelo seu próprio desaparecimento físico (que as destrói completamente) — que ocorre uma lenta, mas imparável substituição da memória comunicativa pela memória cultural. Em outras palavras, a memória transmitida pelas testemunhas diretas do acontecimento histórico em questão — uma memória, portanto, de duração limitada, embora sua transmissão cubra no máximo três ou quatro gerações — aos poucos cederia a uma memória baseada em produções culturais que, com base nos relatos preservados dessas testemunhas, garantem a continuidade da transmissão dessa memória no futuro (Chéroux, 2001).

90 Uma das críticas mais ferozes veio de Elie Wiesel, escritor e sobrevivente de Auschwitz e Buchenwald.

Após a estreia da série, Wiesel registou sua indignação no New York Times quando o chamou de produto

"falso, barato e ofensivo". Segundo ele, a série procurou mostrar o que não era nem imaginável, transformando um acontecimento ontológico em novela. Veja Elie Wiesel, "Trivializing the Holocaust:

Semifact and Semifiction", New York Times (New York, 16 de abril de 1978).

91 Clément Chéroux (2001) Mémoire des Camps, photographies des camps de concentration et d’extermination nazis (1933-1999) (Paris, Marval: 221).

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Em todas as práticas ligadas ao conceito de pós-memória, as imagens — arquivísticas ou familiares — adquirem lucro. Embora em alguns casos, sobretudo nas produções audiovisuais, estas funcionem como complementos ou peças de uma engrenagem mais complexa, noutros as imagens assumem uma total importância, tornando-se o instrumento de memória por excelência para uma geração que também quer se distanciar do texto escrito e das histórias testemunhais de caráter mais tradicional. Extraídas algumas da média e outras — a maioria — de álbuns de família, as imagens são erigidas neste tipo de produções como talismãs de memória e como prova irrefutável dos laços de sangue que unem o sobrevivente ou ausente à sua prole. Além do seu caráter probatório, esses legados visuais são, nas palavras de Marianne Hirsch, «os únicos vestígios materiais de um passado irrecuperável»92 e, portanto, a arma por excelência para o combate à amnésia pessoal e coletiva. O visual, portanto, adquire um destaque incomum nessas novas narrativas, pois é o meio ideal para que, como em uma banda de Moëbius,93 passado e presente, memória e esquecimento, vida e morte, pais e filhos possam dialogar e reconciliar em uma única superfície. Porém, a apropriação que esses autores costumam fazer desse tipo de material é, sem dúvida, altamente produtiva. Pois é, a re-significação a que são submetidas as imagens herdadas — seja da média, dos álbuns de família ou dos vídeos caseiros — para que não acabem sendo vítimas de um consumo automatizado e acrítico, corre em paralelo e isso se explica pelo fato de todos terem nascido e sido criados em uma cultura que privilegia justamente a expressão audiovisual. Consumidores naturais e frequentadores da televisão, da banda desenhada e do cinema, não é de estranhar que a maioria recorra às imagens como instrumentos para transmitir não só o desejo de conhecer o passado e de estarem ligados a ele como raiz e origem, mas também para projetar seus afetos, medos, necessidades e desejos do seu presente.

92 Marianne Hirsch. (2012), Family Frames. CreateSpace Independent Publishing Platform: 5.

93 A tira ou fita Möbius é uma superfície com uma única face e uma única aresta. Ele tem a propriedade matemática de ser um objeto não orientável. É também uma superfície regulada. Foi descoberto de forma independente pelos matemáticos alemães August Ferdinand Möbius e Johann Benedict Listing em 1858.

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Um dos exemplos mais significativos nesse sentido é a obra Arqueologia da Ausência, da Lucila Quieto (2011). À semelhança da artista Muriel Hasbun,94 a cuja trajetória Hirsch alude em “The Generation of Memory”,95 Quieto realiza em seu trabalho de estreia aquela alteração na imagem de arquivo a que Hirsch se refere:

Invariavelmente, as imagens fotográficas de arquivo aparecem em textos pós-memoriais de forma alterada: são recortadas, aumentadas, projetadas em outras imagens; eles são reenquadrados e descontextualizados ou recontextualizados;

elas estão embutidas em novas narrativas, novos textos; elas estão rodeadas por novos quadros.96

A Lucila Quieto nasceu em Buenos Aires em 1977, durante a ditadura argentina e cinco meses depois que seu pai, Carlos Quieto, desapareceu nas mãos dos militares. Vinte e dois anos depois, e diante da angústia de não ter uma fotografia com o pai, resolveu produzir a lembrança com que sempre sonhou, imagem que se tornaria o ponto de origem da Arqueologia da Ausência. Era uma espécie de autorretrato impossível, em que a fotógrafa se posiciona diante da projeção do slide de uma foto-passaporte do pai (ver figura 19). Com a sua interferência física nos raios de luz do projetor, parece que Quieto pretende contrariar o carácter burocrático, descontextualizado, frio e funcional que habitualmente recai sobre este tipo de imagens, com a emocionalidade que emerge da luta pela restauração, do pessoal e artístico, alguns laços familiares e biológicos que a ditadura tentou destruir.

94 Hasbun é filha de um judeu polonês que se refugiou na França após a Segunda Guerra Mundial e de um palestino que emigrou para El Salvador, onde nasceu e foi criado antes de se estabelecer em Washington, DC. Fortemente marcado pelo Holocausto, a diáspora e o exílio palestino, o projeto artístico de Hasbun, em especial a série intitulada “Protegida” - na qual incorpora imagens claramente manipuladas de sua tia-avó, acompanhadas de objetos e do murmúrio hipnótico da Ave Maria caracteriza-se por explorar o microcosmo da herança familiar e pela vontade, portanto, de conhecer e interpretar suas origens.

95 Marianne Hirsch (2012) The Generation of Postmemory. Columbia University Press: 68.

96 “Invariably, archival photographic images appear in postmemorial texts in altered form: they are cropped, enlarged, projected onto other images; they are reframed and de- or re-contextualized; they are embedded in new narratives, new texts; they are surrounded by new frames.” (trad.liv.)

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Fig. 19

Como afirma Fernando Reati (2007), a utilização deste tipo de fotografias em trabalhos de memória e pós-memória realizados na Argentina pode ser explicada pela vontade dos familiares de subverter, com eles, “o poder regulador do Estado que cometeu os

crimes”.97 A partir dessa primeira montagem, Quieto começou a realizar por encomenda de outros colegas que se encontravam na mesma situação, uma série de composições semelhantes. Sempre partindo da encenação do corpo da criança na projeção de uma ou mais fotografias dos pais ausentes, Quieto montou as fotografias seguindo diferentes estratégias: em alguns casos optou por manipular diretamente os negativos, ou seja, riscar levemente a cópia final e, assim, simular o estado precário em que foram encontradas muitas das fotografias originais fornecidas pelos filhos dos desaparecidos (ver figura 20); em outras ocasiões, e somente quando tinha mais de uma fotografia, recorreu à técnica da colagem, na tentativa de reunir em um único plano as poucas mas

97 Fernando Reati, “El monumento de papel: La construcción de una memoria colectiva en los

recordatorios de los desaparecidos”, en Políticas de la memoria. Tensiones en la palabra y la imagen, ed.

Sandra Lorenzano y Ralph Buchenhorst (Buenos Aires: Gorla; México: Universidad del Claustro de Sor Juana, 2007), 168.

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essenciais imagens do álbum fotográfico das famílias (ver figura 21). Como

complemento a essas composições, Quieto inclui breves textos nos quais, à maneira de uma epígrafe, cada filho fotografado tornava público algum detalhe significativo de sua vida ou de seus pais: sua profissão, seus hobbies, o nível de militância e as

circunstâncias de seu desaparecimento, etc.

Fig. 20

Fig. 21

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É desse jogo entre ausências e presenças, entre passado e presente, que as narrativas criadas a partir do exercício da pós-memória tendem a fugir das estratégias da representação mais canónica (a do realismo), para recorrer a um conjunto de mecanismos que se enquadram plenamente no pensamento pós-moderno – que considera, por um lado, que tanto a noção de identidade quanto às tentativas de representá-la (seja por meio da escrita ou da linguagem cinematográfica) foram despojados de toda transcendência e essencialidade e, por outro lado, ele argumenta que a imagem do passado não pode ser um traço separado do presente e que o presente é continuamente re-significado de uma evocação sempre problemática do passado (Reati, 2007). São histórias que, como aponta Andrea Liss (1998),98 apresentam-se como aproximações que, longe de serem conclusivas e absolutas, procuram investigar certas passagens do passado de forma provisória e parcial e, portanto, totalmente reinterpretáveis e intersubjetivas.

Defender a pós-memória como categoria de análise que pode ajudar-nos a compreender, explorar e refletir, em sentido amplo, sobre os álbuns de fotografias que, de geração em geração, acontecem nas narrativas sobre a família e o passado coletivo, implica abrir o raio da ação do conceito para outros capítulos históricos.

Investigar como, nesses contextos, a memória traumática foi transformada nas mãos da segunda e terceira gerações pode significar descobrir novas narrativas do passado que, por meio da experimentação e da pergunta inquisitiva, são capazes de abalar as meta-histórias que dominaram a história sobre esses episódios e que têm dominado a opinião pública de cada contexto político e cultural. A capacidade de uma primeira pessoa fraturada pelas dificuldades de conseguir responder a todas as perguntas, faz com que em geral as histórias costuradas da pós-memória lancem luz sobre questões do passado que muitas vezes são expressamente esquecidas e contornadas pela memória oficial.

Falar de pós-memória requer, portanto, ter em conta alguns modos de representação que, embora não possamos mais classificar como novos, supõem uma regeneração e reformulação dos parâmetros expressivos do cinema e da fotografia anterior. E é aí que reside o leiv motiv dessas obras: voltar a enfrentar o indizível, repensar a linguagem para

98 Andrea Liss, Trespassing through Shadows. Memory, Photography, and the Holocaust (Minneapolis, Londres: University of Minnesota Press, 1998: 14).

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poder, senão dizê-la, sim, pelo menos, gaguejá-la por meio de palavras, depoimentos e imagens que deveriam ser postos sob suspeita, sob um olhar crítico que os contextualizam, analisam e reconstroem. Só assim este material poderá funcionar como uma “imagem fragmentada”, isto é, e utilizando o termo cunhado por Didi-Huberman, como traço de uma experiência limite que faz emergir de dentro de si uma “explosão de realidade”99 (Didi-Huberman, 2004: 124), uma lágrima de “horror absoluto”, um punctum que, por fim, surge em cena “como uma flecha”100 (Barthes, 1968: 64) e oprime – e assim desperta, encoraja e conscientiza – o sonolento espectador / leitor / cidadão.