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A fotografia como arquivo (morto)

2. Enquadramento histórico

2.1 Fenômenos naturais que se tornaram eventos mediáticos

2.2.1 A fotografia como arquivo (morto)

«O fato verdadeiro e normalmente desprezado do colecionador é sempre anarquista, destrutivo. Pois esta é a sua dialética: ele liga a fidelidade às coisas, ao único, por ele assegurado, ao protesto obstinado e subversivo contra o típico e classificável.»

Walter Benjamin Como é que nos re-apropriamos da nossa história, se ela nos parece tão ‘distante’, caótica, fragmentada, chegando até nós em sequências que duram poucos minutos? Como falar em memória, em história, em uma sociedade que prega a instantaneidade do tempo real?

Como o design tem dialogado com as questões da memória e da sua história? Como é que trabalha com os materiais de arquivo?

Re-arquivar factos, imagens, sons, a estabelecer a possibilidade, num mundo onde a questão do arquivo se tornou algo tão banal, parece ser uma estratégia para lançar atenção para acontecimentos que não poderiam, em meio à cultura do excesso, ter sido

‘apagados’. Ao revisitar materiais de arquivo, o design audiovisual tem a possibilidade de devolver aos acontecimentos seu devido valor, ressaltando factos relevantes que nem sempre são percebidos em toda sua extensão.

A arquivonomia, ou seja, a área científica que trata da organização e administração dos arquivos, é um conhecimento que remonta às origens do que poderíamos chamar de nosso processo de humanização. Desde então, ficamos cada vez mais confusos em arquivos e códigos. Pelo menos é assim que, hoje, na era do "Mal de Arquivo" (Derrida, 2001), passamos a ver e ler nossa história. Desse ponto de vista, as primeiras inscrições em cavernas e desenhos no corpo, em flechas e tabuletas de argila, já eram proto-escritas que procuravam organizar o mundo em pastas, “files”, arquivos.

O entendimento dos documentos, desde diferentes pontos de vista, levou a uma disseminação do conhecimento. Trata-se do conhecido “Fim das grandes narrativas”, não só no sentido benjaminiano, da “Morte do Narrador” (Benjamin, 2015: 79), mas também da morte dos grandes discursos que procuraram dar sentido à humanidade e sua história

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e futuro. Ao longo da Modernidade, existe cada vez mais uma outra forma de pensar e agir que desconfia dos arquivos, em vez da razão e na sua capacidade de revelar a verdade.

Uma artista que explora de forma crítica a figura do arquivo é a Rosângela Rennó. Ela se autodenomina especialista em "esquecimento", não em memória. E, de facto, as suas imagens são imagens do esquecimento: ela recolhe o que estava no arquivo morto de uma sociedade que prefere, como a brasileira, esconder sua história de violência e opressão.

Em “Imemorial”79, por exemplo, Rennó fez em 1994, um trabalho de memória e uma tentativa de varrer a história contra corrente. Nessa obra, ela recolheu 50 fotografias de um arquivo abandonado que encontrou no Arquivo Público do Distrito Federal referente à construção de Brasília. É conhecido pelo domínio popular que inúmeros trabalhadores, os chamados “candangos”, morreram tragicamente durante a construção de Brasília, que marcou o governo do presidente Jucelino Kubitschek: uma cidade construída em menos de 4 anos, com a explotação abusiva dos trabalhadores (com jornadas de 14 a 18 horas) e repressão com balas das suas tentativas de organização e revolta. A apresentação da obra de Rennó é uma homenagem aos mortos, pois as fotos, ampliações de fotos 3x4 deterioradas encontradas no arquivo abandonado e esquecido, apresentam ambiguidade, oscilando entre as imagens das cerimónias oficiais de memória e esquecimento das vítimas anónimas do "progresso" e da "civilização". O título Imemorial permite-nos relembrar o conceito de contra-monumento, que passou a ser utilizado concomitantemente por teóricos da memória da Shoah80 como James Young.81 Essas expressões referem-se à aporia contida em todo ato de rememoração de eventos traumáticos, a qual se agrava conforme a dimensão e intensidade da catástrofe que originou o trauma. No caso de Imemorial de Rosângela Rennó, tenta iluminar o outro lado da ideologia que despertou uma utopia brasiliense, que significou a morte de

“candangos”, além da expulsão dos pobres para cidades satélites. Renno faz-nos ver o lado distópico dessa capital, passando, ao mesmo tempo, de forma crítica, os rituais e

79 Série Imemorial, 1994. Instalação para a exposição "Revendo Brasília”. [Online] Disponível em:

http://www.rosangelarenno.com.br/obras/view/19/1

80 Termo hebraico que se refere ao holocausto.

81 James Young, At Memory's Edge: After-Images of the Holocaust in Contemporary Art and Architecture (New Haven y Londres: Yale University Press, 2000).

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memoriais oficiais (arquivos, estes sim, mortos). Seu contra-arquivo serve como um antídoto para o esquecimento e revela até que ponto não podemos separar mais os termos, arte, política e ética da memória.

A memória só existe no presente, mas o artista (ou designer) tem que trabalhar com a multiplicidade de tempos e gerações envolvidos em seu trabalho de arqueólogo também.

Paradigmaticamente, uma fotografia fixa um momento no tempo. Ao longo da história, a exposição da imagem fotográfica passou de horas a frações de segundos, o que de certa forma enfatizou o conceito de ‘verdade’ inerente a este meio: o registo de um determinado acontecimento num momento exato do fluxo temporal.

Embora, como sugere Hubert Damisch (1978), a fotografia oferece «o verdadeiro rasto de um objeto ou de uma cena do mundo real»,82 só o faz na medida em que «isola, preserva e apresenta um momento retirado de um contínuo»,83 o que constitui um paradoxo; olhamos para uma fotografia como um registo temporal, um registo histórico, no entanto, se a fotografia congela um momento no tempo, acaba por o retirar da história.

Nesse sentido, tradicionalmente uma fotografia não tem antes nem depois, mas apenas o momento em que foi produzida.

Como sugere Roland Barthes (2009), quando olhamos para uma fotografia olhamos para algo que já não existe. O momento passou. Deste modo, uma fotografia replica sempre aquilo que já perdemos, e acaba por sugerir uma necessidade de registar, de tentar reter o mundo e aqueles que nos rodeiam.

Susan Sontag (1981) afirma que «as fotografias promovem ativamente a nostalgia. (...) Todas as fotografias são um memento mori. Tirar uma fotografia é participar na mortabilidade, vulnerabilidade, mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Precisamente por descontextualizar um momento e congelá-lo, todas as fotografias atestam a dissolução

82 Hubert Damisch (1978), “Five Notes for a Phenomenology of the Photographic Image”, Classic Essays on Photography, TRACHTENBERG, Alan, ed., p. 288.

83 John Berger, “Understanding a Photograph”, Classic Essays on Photography, TRACHTENBERG, Alan, ed., p. 293.

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implacável do tempo. (...) As fotografias exprimem a inocência, a vulnerabilidade das vidas em direção à sua própria destruição»(Sontag, 1981: 15).

Como Sontag (idem) esclarece, “as fotografias não são um instrumento para a memória, mas uma reinvenção da mesma, um substituto para as memórias.”

Cumpre lembrar, que o nosso contato com a realidade seja do passado ou do presente se dá hoje invariavelmente por meio de imagens, dos média e dos novos meios tecnológicos, pela via da representação. Nossa relação com a história sempre passou por algum tipo de mediação (oral, escrita), porém o que parece caracterizar a nossa época contemporânea é a saturação, o excesso, o simulacro, a velocidade na produção de imagens além de seu caráter onipresente e invasivo nos contextos público e privado; na ideia da curadoria da obra ATLAS, que foi a de justamente colocar em diálogo se as investigações de Aby Warburg tiveram influência sobre a história da arte moderna. De facto, a perceção que temos do mundo, de seus acontecimentos e de nós mesmos tem se transformado radicalmente no contexto da cultura da visualidade mediática.

No campo da arte e do design contemporâneo, é perceptível um movimento de artistas que trabalham com questões que dizem respeito ao arquivo, quer seja através da utilização de materiais de arquivo ou a partir da criação de arquivos fictícios colocando muitas vezes em debate a maneira como construímos nossas histórias.

Em 88 de 14.00084 a artista de Rio de Janeiro Alice Micelli, apresenta um vídeo formado por 88 retratos de identificação, selecionados pela artista no arquivo fotográfico da antiga prisão S-21, em Phnom Penh, capital do Camboja, onde 14 mil pessoas, entre homens, crianças e mulheres, foram executadas pelo regime do Khmer Vermelho. No trabalho, as imagens dos 88 prisioneiros mortos são projetadas em uma cortina de areia, de acordo com o tempo vivido por cada um, dentro da prisão: um dia de vida na S-21 equivale a um quilo de areia, o que significa quatro segundos de visibilidade no vídeo. Neste projeto, a artista trabalhou com negativos originais que hoje estão no Museu do Genocídio no local

84 88 de 14.000. País de produção: Brasil. Edição: 2005. Formato: instalação. [Online] Disponível em:

https://transmediale.de/content/88-from-14000

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da antiga prisão no Camboja. A partir destes negativos, fez ampliações e registou, em vídeo, as fotografias projetadas sobre uma cortina de areia. As fotografias originais foram tiradas, como relata a artista, instantes antes da morte dos retratados: “estas pessoas sabiam, no momento em que sua fotografia era tirada, que iriam morrer, senão instantes depois da fotografia, certamente poucos meses depois.”

Nesta operação, na passagem da fotografia para o vídeo, Alice Micelli cria um novo tipo de imagem que revela o indizível. O vídeo, formado pelas imagens dos retratos, memórias de rostos minutos antes do seu sacrifício, incorpora a ideia de uma imagem que, de alguma forma, captura o silêncio dramático, pleno de memória, de vidas executadas, durante quase 1 hora de duração. Trata-se de um tempo morto porque é incapaz de reter as imagens que se projetam no intervalo entre a última foto da vida/primeiro instante da morte de cada um desses 88 rostos de uma multidão de 14 mil.

O trabalho é um duplo testemunho: o testemunho que a artista esteve lá e que pode ter acesso aos arquivos e o testemunho, exposto para o público, das barbáries cometidas na história. Neste sentido funciona como uma espécie de válvula contra o esquecimento de situações e arquivos que muitas vezes são soterrados na nossa história. Ao depararmo-nos com estas imagens somos convertidos de espectadores em cúmplices de um silêncio lancinante que parece ficar entranhado na nossa memória. Em 88 de 14.000, Alice Micelli busca a re-significação dos fatos e realiza a releitura de imagens representativas de situações-limites que foram banalizadas e apagadas da memória social recente (Arantes, 2010: 84).

O discurso sobre o arquivo desdobra-se a partir de três estruturas principais: o estado, a nossa psique e o nosso corpo. Esse olhar arquivístico sobre a cultura, portanto, tem origens diversas. Em termos mais remotos, esse olhar remonta à história da arte da memória (em termos de Mnemónica, como Frances Yates85 nos reativou em meados do século XX, no caminho aberto por Aby Warburg.

85 Historiadora inglesa, foi professora do prestigioso Instituto Warburg da Universidade de Londres.

Seu notável trabalho em mnemônicos da Renascença, The Art of Memory, e seus vários ensaios sobre Giordano Bruno ou John Dee e Shakespeare são particularmente notáveis.

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Mais perto de nós, os arquivos eram instituições centrais nos Estados modernos e contemporâneos ao triunfo do historicismo com seu criticado "excesso de história" do Nietzsche.86 No século XX, a falta de interesse geral no arquivo central serviu para desencadear um trabalho de rememoração e coleta dos arquivos e suas histórias. A mudança biológica, por sua vez, entronizou a noção de herança genética e o processo de recadastramento dos arquivos herdados. Já a cibernética transforma discursos generalizados sobre memórias, arquivos, registos e rascunhos de informações e tudo relacionado à ideia de armazenar conhecimentos e fatos (On the Anarchivation. A Concatenation from Walter Benjamin. Márcio Seligmann-Silva, 2015).