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S A anarquia internacional

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Academic year: 2021

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Se existem conceitos em relações internacionais (ri) que tiveram e têm grande audiência, inclusive nou‑

tros meios académicos, o de anarquia internacional é um deles. o conceito de anarquia internacional é central para muitas das variantes realistas, caso o não seja para todas elas. Mas também outras correntes críticas do rea‑

lismo, desfazendo essa centralidade, ainda assim lhe atribuem um valor que não tem1.

ao longo do presente excurso iremos procurar descons‑

truir, com o propósito de decapitar, o conceito de anarquia internacional, e, subsidiariamente, intentaremos mostrar algumas das fragilidades estruturais do(s) realismo(s).

É evidente que se não fará justiça a todos os matizes das inúmeras variantes realistas, nem a todas as posturas individuais dos internacionalistas que perfilham uma des‑

sas mesmas variantes. Mas estamos em crer, reiteremo ‑lo, que não deixamos de atingir pela via escolhida o miolo da argumentação realista. e se quiçá exageramos ao pre‑

sumir que se trata do núcleo do núcleo para todos os realismos, não nos parece que falhemos o alvo se disser‑

mos que, pelo menos, damos conta de uma parte nevrál‑

gica da «atómica» realista2.

1.

a grande escora tradicional do conceito de anarquia internacional é hobbes. Mas como se mostrará, em seguida, o pensamento hobbesiano não permite susten‑

tar tal ideia.

t e o r i a d a s r e l a ç õ e s i n t e r n a c i o n a i s

A anarquia internacional

crítica de um mito realista*

António Horta Fernandes

r e s u M o

o presente artigo pretende mostrar que não só o conceito de anar‑

quia não pode ser escorado no autor que tradicionalmente lhe tem servido de moleta, hobbes, como não dispõe de qualquer sustentação, a não ser mítica. a anarquia internacional pres‑

supõe um estado ontológico, que não fenomenológico, de guerra perma‑

nente, de desordem incompatível com a presença de poderes soberanos na cena internacional. o conceito de anarquia, apesar das aporias estrutu‑

rais que tornam inviável a sua susten‑

tabilidade, serve um determinado status quo, visa a preservação da lógica de poder no âmbito internacional e apenas por isso continua a ser acari‑

nhado por quem dita as regras, como um aparelho ideológico mais que não mantém cativos.

Palavras-chave: Guerra, realismo, soberania, anarquia

a B s t r a c t

The international anarchy – critical of a realist myth

the present paper aims to show that, not only the concept of anarchy cannot be anchored in the

>

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Mesmo assim, o conceito de anarquia internacional pode‑

ria passar, em grande parte, incólume, limitando ‑se os seus proponentes a afastar a escora errada. Contudo, o conceito só tem importância em ri porque supostamente serve de alicerce à ideia de que as relações internacionais são, no essencial, relações de poder; de poder impositivo e coercivo.

relações que têm por suporte último a guerra, o clímax da conflitualidade hostil.

Na verdade, o significado de anarquia remete para desordem, ausência de comando, ausência de regras, se com isto se quer dizer que o normativo não detém um papel estruturante ou, pelo menos, assinalável, para já não mencionar as referências ao seu étimo arche, que incluem ordem, ordenação, regras, poder, mas principalmente princípio ordenador, fundamen‑

tador, fundador/originante. todavia, face a essa riqueza e complexidade de evocações, os internacionalistas decidiram (é o termo), por razões que se observarão, que a cena internacional é constitutivamente anárquica, quer dizer desordenada, ausente de regras que desempenhem um papel central e decisivo, por causa do estado de guerra que a define e lhe dá vida. o estado de guerra é ontologicamente patente/activo e por vezes também fenomenologicamente efectivo. escusado será dizer que o conceito de anarquia (no senso de desordem) pressupõe uma unidade inextrincável com o conceito de guerra3, mas nada obriga a considerar a ausência de uma autoridade política central na cena internacional como sinónimo de ausência de regras e de violência bélica como pano de fundo. apenas partindo da ideia explícita/implícita de que, em última instância, tudo o que há são indivíduos/

/mónadas isolados e mutuamente excludentes (analogando depois a eles todos os actores possíveis) se chega à conclusão (tida como natural) de que não havendo um poder que os enquadre e aperre (aos indivíduos) forçosamente entram em conflito, inibindo o aparecimento de regras pregnantes; inibição essa que exacerba ainda mais esse mesmo conflito4.

É claro que infirmando a validade do conceito de anarquia internacional, as teses rea‑

listas não ficam em muito bom estado, porquanto têm insistido em fazer dele um conceito ‑chave. Mas o que se observará, depois de uma sintética avaliação crítica da noção de poder no(s) realismo(s), é que o conceito de anarquia internacional não dis‑

põe de qualquer poder discriminante no que concerne às relações de poder, e dessa forma não serve sequer o propósito para o qual foi criado.

em suma, e em jeito de prolepse, pode dizer ‑se que não existem relações internacionais enquanto relações de poder que sejam anárquicas, nem, ademais, qualquer configura‑

ção política da cena internacional o pode ser. Se nem a modernidade, com o ensimes‑

mamento da guerra como instrumento político de jure e com o advento da lógica soberana, «conseguiu erigir» uma anarquia internacional, então nenhum espaço resta para a operacionalização do conceito5.

author that traditionally has worked as its validator – hobbes –, it has no foundation whatsoever, except pos‑

sibly a mythical one. international anarchy entails an ontological state, not a phenomenological one, of permanent war, of chaos incompat‑

ible with the presence of sovereign powers in the international scene.

the concept of anarchy, despite the structural aporiae that thwart its sus‑

tainability, serves a particular status quo, pursues the preservation of the logic of power internationally and, for that reason alone, it remains an object of afection to those who dictate the rules, as an ideological apparatus that does not bind them.

Keywords:War, realism, sovereignity, anarchy

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2.

o realismo crê encontrar no pensamento de hobbes um sustentáculo histórico e teórico para o conceito de anarquia internacional. Contudo, hobbes não pode caucionar um tal conceito. o estado de natureza em hobbes, como mostrámos noutro lugar6, diz respeito ao poder discricionário concentrado do soberano relativamente aos súbditos, muito mais que a qualquer outra coisa. Na verdade, quando o filósofo inglês fala no estado de natureza, está em causa uma sociedade dominada pelo individualismo possessivo de mercado, em que os homens são antes de mais proprietários das suas faculdades, que procuram asse‑

gurar, imunizar face aos outros. uma sociedade assim, tende em permanência para a desa‑

gregação se não se pressupuser o ferrete soberano, pelo que é ao soberano que está acometida toda a energia lupina para combater os desmandos e perseguir como senhor absoluto os que queiram provocar a anarquia. Mais ainda, apenas a soberania pode instituir uma sociedade desse género, subtraindo os homens aos vínculos comuns, transformando‑

‑os em in -divíduos, aqueles que não podem ser divididos, interiormente soberanos, livres de todos os outros, assegurados na sua «liberdade», realmente sujeitos de acção, isto é, ao soberano sujeitados7. Como escreveu com inteiro a propósito esposito, «a soberania é o não ser em comum dos indivíduos. a forma política da sua dessocialização»8 – do romper o ser e estar em comum, que é a única fórmula a poder barrar o poder do soberano, ini‑

ciando a sua dissolução e teria sido a única a impossibilitar que o soberano chegasse a sê ‑lo, melhor dizendo, chegasse a ser, porque se teria impedido que a soberania fosse materializável e logo se tivesse estabelecido como produto acabado e operativo.

ora, o que acabámos de descrever é o mais próximo que se está da anarquia, e não tanto por‑

que o soberano seja lobo do homem sem mais, ou porque o estado de excepção se faça regra e orgia de sangue sem ser por nada, ou porque não possa ser doutra maneira (o que de qual‑

quer forma, quereria já sempre dizer que o poder seria anarquizante no seu ponto de ebulição, no seu momento paroxístico, mas como capacidade, maximamente ordenadora, de criar sub‑

missão)9, mas porque o poder soberano no seu todo parece ter uma origem ou, pelo menos, um fundo teológico ‑económico gestionário, essencialmente vicário, em que auctoritas e potes- tas se remetem mutuamente, cada uma das figuras de poder fazendo as vezes da outra (numa remissão à economia intratrinitária), daí derivando a sua insubstancialidade, configurando ‑se tão ‑só como economia (oikonomia)10, e o seu paradoxal carácter de arche an -árquica, pois nenhuma dessas figuras está, em exclusivo, em posição de fundamento. Não obedecendo o soberano a nenhum substrato claro que ultimamente o constranja e informe, ordenando ‑o, pondo ‑o numa determinada ordem e sequência, que seria aquela pela qual depois ele agiria11. Conclui ‑se então que o estado de natureza descreve o mecanismo do poder soberano e que, se abstrairmos (em segundo grau) do soberano, aquilo com que ficamos não é com a ausência de soberania, com um estado natural prévio, mas com uma sociedade que nem sequer poderia logicamente existir. Não só porque implodiria, tendo em atenção os protagonistas que a comporiam, mas muito antes disso, porque começaria por não exis‑

tir, passe a expressão, já que apenas o soberano e só o soberano faz dela o que é.

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No âmbito internacional, as ilações que se podem retirar são claras. embora não haja nenhum governo ou árbitro internacional, hobbes não considera ser a vida internacional pautada pela anarquia e inviável por si, pelo contrário. Se olharmos o parágrafo final do capítulo xxx do Leviatã verificamos até que a observância do direito das gentes entre os soberanos é uma prática perfeitamente plausível, no que parece ser uma alusão suareziana12.

o que está em causa é que a passagem do âmbito interno ao âmbito externo implica diferenças de teor qualitativo a salvaguardar, desde logo na passagem do micro ao macro, bem visí vel na dificuldade de tornar análogos estado e indivíduo, uma vez que os estados ainda não possuem personalidade jurídica e a própria pessoalidade moral estadual está apenas a emergir13.

Depois, a racionalização soberana, embora estimule como ninguém a possibilidade da violência do poder, o poder total e mesmo as famigeradas tanatopolíticas que viriam a ocorrer no século xx, fá ‑lo mediante certos canais, certas vias, e até uma certa prudência (no sentido vulgar), se pensarmos nas razões de hospitalidade, inevitáveis ao im -poder do poder, cujo significado desenvolvemos à frente. a guerra é um fenómeno colectivo distinto da descontinuidade passional dos indivíduos e das suas motivações. «ao enfrentar o fenómeno guerra o cidadão não se limita a ponderar essa instância situada num patamar qualitativamente superior que é o estado, mas tem de se enredar numa teia muito mais oblíqua e ambígua que são as relações entre estados»14. logo, a ideia de anarquia baseada na transposição sem mais do estado de natureza entre indivíduos não colhe. Com tudo isso, dá ‑se uma contenção de base (o outro como hostis e não como inimicus) em tudo oposta à explosão figadal de ódio inerente à anarquia pura e ostensiva, que funciona como fundo latente de todas as leituras políticas da anarquia, incluindo a que é feita em ri outra coisa é que a dinâmica soberana crie condições para a ascensão aos extremos, logo para a concretização plena da guerra absoluta clausewitziana, que ao soberano e a todos fugirá do controlo por via da gramática própria, da lógica interna que preside ao universo bélico naquilo que tem de irredutível.

Por fim, e razão decisiva, não existe anarquia internacional porque não há nenhum sobe‑

rano internacional, não havendo, por conseguinte, nenhum estado de natureza real ou larvar. Como não existe a sociedade política internacional, montada nos mesmos moldes individualistas possessivos que caracterizam as diferentes sociedades políticas, e que tendem a par e passo a desagregá ‑las, não se torna necessário o ferrete soberano que impede a luta de todos contra todos, assumindo em si o monopólio da violência15.

3.

a impossibilidade de estribar em hobbes o conceito de anarquia internacional não o derrota de imediato, apenas diz da má escolha dos seus putativos suportes. fica de pé a hipótese teórica de a anarquia internacional continuar a sustentar a ideia de que as relações interna‑

cionais são basicamente relações de poder, tanto mais que a história do período moderno parece servir ‑lhe de caução – à ideia da política internacional como política de poder.

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Na verdade, a idade Moderna, aquela em que emergem as relações internacionais, traz a autonomização factorial da política, fazendo brilhar a primazia do estado como fim em si mesmo, encimado pela figura da soberania, que a razão de estado tão bem mate‑

rializa. Daqui decorrendo a internalização da guerra como fazendo parte de jure do aparato político e do seu exercício. Doravante, guerra e paz são, em muito, uma ques‑

tão de calculismo, de equilíbrio ou desequilíbrio de poder (mesmo de luta pelo poder, com o advento dos nacionalismos), em suma, uma relação de força.

Porém, os realistas são demasiado apressados a sinalizar o novo estado de coisas.

ele não está de modo nenhum assim definido no período primomoderno e, pelo menos na europa Meridional, o modelo centralizador estatal de desapropriação das comuni‑

dades políticas (do corpo político em face da cabeça) da sua politicidade enquanto condição estrutural e substantiva de ser – como que uma segunda pele enervada no corpo – e respectivas competências jurídicas e práticas irá sofrer inúmeras resistências, das quais o pensamento da segunda escolástica não é a menor. É certo que no plano estritamente internacional a reforma dilacera uma ordem preexistente. Mas embora o equilíbrio vá sendo cada vez mais reflectido como um equilíbrio de poder, por via da lógica soberana em franca implantação, durante muito tempo é ainda o equilíbrio em si, reforçado pela solidariedade, que dá a nota na procura da paz16. o processo histórico é lento e os realistas antecipam ‑no de forma extemporânea, provavelmente tomando como boa a leitura rankiana.

Como já o mostrou João Marques de almeida, ranke retroprojecta para os alvores da idade Moderna os racionais nacionalistas de luta pelo poder do seu tempo, nomeada‑

mente a defesa de um estado alemão forte dominado pela Prússia, tudo em nome de uma pretensa análise positiva e realista da história, que pretenderia contá ‑la tal como efectivamente se passou. ainda assim, em ranke o motor da história reside no nacio‑

nalismo e não na anarquia. Seja como for, parece ser ao ensimesmamento acrítico do paradigma rankiano que o realismo clássico vai tirar os seus principais argumentos17. Por outro lado, há já muitos anos que a ideia de relações internacionais como relações de poder sofre uma enorme contestação, não só nos meios académicos mas na própria compreensão da cena internacional por parte dos decisores. Na pré ‑compreensão básica destes para a acção voltam a insinuar ‑se com força outros racionais.

tudo contabilizado, aos realistas resta um quinhão da razão em relação à ideia de relações internacionais como relações de poder, e só a essa, porquanto a imperati‑

vidade da lógica soberana (de um poder absoluto, perpétuo e indivisível) lança na cena internacional um potencial de exclu‑

são e de violência inescapável enquanto ela durar.

AOS REALISTAS RESTA UM qUINHãO DA RAZãO EM RELAçãO à IDEIA DE RELAçõES INTERNACIONAIS COMO RELAçõES DE PODER, E Só A ESSA, PORqUANTO A IMPERATIVIDADE DA LógICA SOBERANA LANçA NA CENA INTERNACIONAL UM POTENCIAL DE ExCLUSãO E DE VIOLêNCIA INESCAPáVEL ENqUANTO ELA DURAR.

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3 . 1

Mas a história não é o único problema realista. as diferentes correntes realistas tendem a focar a sua atenção unicamente na ideia de poder como imposição e como coerção, seja hard ou soft18. esquecendo, desde logo, o poder como determinação de modos de vida, cada vez mais importante. Neste caso, não está em causa um poder imposto por alguém a alguém, embora possa ter surgido em primeira instância dessa imposição.

o que se trata aqui é da conformação dos sujeitos, dos actores, a determinadas mun‑

dividências que se vão infiltrando, pressionam plasmando ‑se sobre outras, acabando muitas vezes por se assenhorear em seguida de todo o espaço. Não se deve pensar, porém, em nenhum poder oculto, indomável e estritamente impessoal e incontrolável, antes na autonomia relativa que determinados modos de vida vão adquirindo e do arrasto que trazem por si, inclusive até sobre o centro emissor donde partiram.

tentando concretizar, e olhando para um mundo globalizado e não compartimentado onde este poder como determinação de modos de vida sobressai particularmente, aten‑

temos, por exemplo, no american way of life (ou na língua inglesa), e de como o mesmo e alguns dos seus produtos já se autonomizaram da própria matriz estratégica. É certo que esta determinação, uma conformação de modos de vida, é perfeitamente usável e está ao dispor das potências enquanto forma possível de poder impositivo, mas não é a mesma coisa como está bom de ver.

ademais, a questão do poder enquanto pura potência também não parece ser atendida.

referimo ‑nos à situação em que, dadas certas condições mínimas de presença humana politicamente organizada no espaço, para alguns actores face a outros, a condição de ser potência parece ser da ordem do dificilmente reversível, já que o simplesmente estar ali, o ser potente, no que tem de irredutível ao acto e coincide por isso ideal‑

mente com a inacção e o repouso, é expressão de poder independentemente do que se faça. Dir ‑se ‑ia, em termos teóricos, que potência e poder coincidem então perfei‑

tamente e que o poder atinge dessa forma o auge da sua glória. embora não haja, felizmente, uma materialização empírica plena de uma tal situação ela tem efectividade porque concerne à arquitectura do poder e porque pode ter (e tem tido ao longo da história) aproximações concretas.

3 . 2

as debilidades das teses realistas não se esgotam, no entanto, na ausência de tra‑

tamento cabal das diferentes modalidades de poder19. Num registo mais epistemoló‑

gico, o realismo pode mesmo ser autocon‑

traditório, porque se tudo se resume a relações de poder, também o realismo a elas não escapa, sendo uma particular

NUM REgISTO MAIS EPISTEMOLógICO, O REALISMO PODE MESMO SER

AUTOCONTRADITóRIO, PORqUE SE TUDO SE RESUME A RELAçõES DE PODER, TAMBéM O REALISMO A ELAS NãO ESCAPA, SENDO UMA PARTICULAR FORMA DE PODER ACADéMICO COM CLARA INFLUêNCIA NAS INSTâNCIAS DECISORAS.

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forma de poder académico com clara influência nas instâncias decisoras. logo a sua força é relativa à sua vigência como forma imperante (de poder) de análise e de apoio à decisão e quando esta vier a cessar, cessa igualmente a força de penetração da sua visée; afinal não universal, mas questão de poder simpliciter. Não querendo submeter ‑se à lógica de poder que preconiza, então o seu programa é inverificável e sem significado.

e dizemo ‑lo sem rebuço, porque se ainda há na ciência teoria em que o verificacionismo assenta que nem uma luva, o realismo é essa teoria.

No fundo, as correntes realistas confundem linhas epistemológicas distintas que não têm porque se harmonizar, podendo até ser contraditórias entre si. uma primeira linha defendida pelo realismo é a de que não devemos ser nefelibatas e abandonar a realidade no sentido trivial do termo. a análise internacional exige bom senso. ora, esta linha é de imediato mesclada com uma outra, hoje indefensável em termos epistemológicos, que defende um realismo gnoseológico ingénuo. a realidade, no caso vertente, inter‑

nacional, ditaria sem mais ou quase a forma como a conhecemos. a estas duas linhas junta ‑se outra, de extracção romântica, que defende ser o homem uma potência auto‑

transcendente, no sentido que se afirma como vontade (de poder), não havendo outra legalidade superveniente. os homens são livres e aderem apenas à sua vontade de afirmação e reconhecimento uns face aos outros, que é o que é e que lhes está no san‑

gue, por assim dizer. Porém, este é o que é e o estar no sangue, que supostamente os livra das legalidades impostas pelos idealismos e pelas filosofias da história de coloração diversa não se coadunam em nada com a liberdade romântica da vontade, antes a estrangulam. isto para já não falar da tentação sistémica mecanicista dos neo ‑realismos, incompatível de raiz com a ideia de potência autotranscendente.

3 . 3

Deixámos para o fim, aquele que nos parece ser o argumento decisivo contra o realismo.

um argumento que explora uma faceta da soberania e do poder soberano de facto de enormes repercussões e sobre a qual se tem abatido, nas diversas correntes realistas, um espantoso silêncio.

Na realidade, o poder soberano, apesar do seu império, nunca se manifesta pleno e puro na realidade, querendo com isto dizer que o reconhecimento mútuo de poderes soberanos assenta não apenas na força, no puro poder, mas também numa impuissance, numa relativa incapacidade de base para transformar a potência em poder, ou de fazer coincidir quase sem fissuras (potência que quase se esgota em acto) potência e poder;

numa passividade de fundo que é a contraluz da cinética soberana – claro está, não no sentido genérico de não poder agir, ou de não poder ser agido, até porque o ser agido, o estar originariamente aberto ao outro ou intimado por ele é essencial à passividade, à potência que se não esgota no acto, antes no sentido da ontologia política, de uma pressão originária indeclinável sobre a lógica de poder (inerente à soberania), que se apresenta sempre como pôr em acto e assunção encarniçada desse

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pôr em acto até às últimas consequências, expulsando ou subjugando as outras pos‑

sibilidades. Sendo, portanto, uma lógica de domínio, do princípio da identidade, do irreversível, enquanto excludentes.

Por mais que as soberanias testem mutuamente o seu poder, em particular através da guerra, nunca o conseguem fazer indefinidamente, pondo à prova todas e cada uma das facetas do rival. De modo que não resta às soberanias senão a opção do reconhe‑

cimento de parte a parte no âmago das suas relações, de uma legitimidade essencial que tanto se exime quanto transborda das relações de força. No essencial, as soberanias vêem ‑se compelidas, a contragosto, ao reconhecimento da alteridade de princípio e com ela de um estado de paz20, independentemente dos distintos meios de escrutínio do poder adverso. e o que é mais, vêm, por essa via da alteridade e da hospitalidade visceral que acarreta, da qual não nos podemos ultimamente livrar, questionando de raiz o poder em si nas suas diversas formas: o poder impositivo; o poder enquanto determinação de modos de vida; ou o poder como pura potência.

todavia, esta contenção estrutural não se deve às soberanias o quererem (por isso é até, num primeiro momento, inesperada), nem infirma o matricial carácter ab -soluto das mesmas, tão ‑somente mostra que no domínio do finito o absoluto nunca pode ser tão absoluto assim, manifestando ‑se mais como o irrelativo, para dizê ‑lo de alguma forma – apesar de no seu zénite o exercício soberano atingir cristas inauditas de violência.

o que implica que na realidade as soberanias nunca se apresentem em estado puro, e que o raio de acção de cada uma em concreto varia em termos espacio ‑temporais21. esta mesma contenção também pode ser observada doutra maneira, atentando à arti‑

culação inovadora que a soberania vem trazer à relação entre a paz e a guerra. É ao soberano, que se caracteriza por ter a faculdade de proclamar o estado de excepção (e sendo o estado de excepção caracterizado não pelo vazio anárquico mas pela inde‑

finição legal, política e ôntica adscrita à discricionariedade violenta) que se fica a dever em grande parte a normalização política da guerra, à sua politização. o que o soberano faz é concatenar os mundos da paz e da guerra apartados até à modernidade, encaixar ordem e desordem uma na outra num novo estado, que exprime a possibilidade, a eventualidade ontológica e fenomenológica da guerra permanente, porque doravante a guerra é considerada como acção política ordinária.

Porém, para que o estado de indefinição prospere, nunca a excepção bélica poderia ser ostensiva e grosseira excepção fáctica feita regra, caso comum, muito menos fundo ontológico permanentemente activo, como querem os defensores da imagem de anar‑

quia internacional. Não apenas porque ninguém aguentaria um tal estado de coisas por muito tempo, mas sobretudo porque isso seria remitificar o estado de guerra, ressacralizando ‑o como potência demoníaca, e, desse modo, colocando ‑o fora do comér‑

cio normal dos homens22, por mais tempo que vigorasse, ou precisamente por vigorar tanto tempo – como a guerra quebra o discorrer comum dos processos sociais, o pere‑

nizar o estado de guerra é aqui inimigo da normalização.

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a normalização da guerra pede a sua dessacralização e a secularização, de resto uma marca de água de desabrochar da razão de estado e da lógica soberana, só é possível com o tornar profano, por mais que pro -fanum o seja por relação ao sagrado – a soberania desenvolve ‑se por transposição de caracteres de natureza sacral. Mas o ente profano somente consegue ser, na melhor das hipóteses, um deus mortal, e ser um deus mortal é o máximo que o soberano pode almejar. a extensão da desordem ou a sua estabilização nuclear podem muito bem ser a morte do artista, isto é, do soberano, porque, por defi‑

nição, o que se subtrai à ordem escapa à suserania do poder absoluto de dar e quebrar a lei23 – por mais que esta paradoxal ordem assente, quiçá por força do seu fundo teológico an -árquico, mas sem a bondade do verdadeiro fundamento infundado, na dissolução permanente dos laços comuns entre os homens, que em última instância sempre evita por meio de uma união artificial de indivíduos; ou seja, por intermédio de uma união de divididos até à exaustão uns face aos outros e face ao comum.

em síntese, o soberano vê ‑se confrontado com uma obrigada liberalidade e sentido de contenção, que tem por detrás uma hospitalidade ultimamente maior do que a simples munificência, não o esqueçamos, porque lhe é impossível não ser um deus mortal.

Mas isso, pese embora seja demolidor para o argumento da existência de anarquia inter‑

nacional, apenas numa pequena parcela aponta para um quadro menos mau. Porque, como já Benjamin percebera relativamente às tenta ções do soberano barroco face ao mundo e ao seu próprio corpo finito, a soberania tende a culminar em tragédia, uma vez que na criatura, enquanto tal finita, a potência de realização se materializa sempre em acto limitado, em mero poder de facto (contingente)24, que no caso se quer puro poder (que de qualquer forma nunca consegue alcançar absolutamente) e por isso denega todas as outras potencialidades e manifestações. ao absorver todo o campo disponível, a sobe‑

rania acaba por não deixar espaço sobrante para mais nada nem ninguém.

enquanto divindade mortal, a soberania configura assim uma divinização impossível, por isso ela é mortal no duplo sentido de que não escapa às limitações dos entes, à sua contingência, mas também no sentido em que mata, esmaga, violenta, por natureza.

ou melhor, na medida em que pretende ser como o absoluto de Deus não passando de um absoluto terrestre (criatural), a figura da soberania incorre na tentação de transfor‑

mar o limitado em ilimitado, culminando naturalmente na desmesura, na violenta arrogância do puro poder, na fuga para a frente em que incorre sempre qualquer cria‑

ção que o homem queira pôr no lugar de Deus, julgando com isso poder afastar a vã glória do seu im -poder e escapar à caducidade. Se a estas limitações, desde logo nocio‑

nais, da soberania juntarmos as fragilidades em sentido estrito das pessoas em concreto (isto é, do seu corpo natural, para usar uma metáfora de grande calado histórico) que encarnam o poder, ou das constelações históricas que assumem a forma soberana25, pode aquilatar ‑se da dimensão da tragédia26.

Seja como for, por mais limitado que seja o ser da soberania comparativamente ao molde metafísico em que se quer rever, ou em relação ao fundamento antropológico donde

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nasce, enquanto ente histórico, uma dia vindo ao mundo e condenado a desaparecer, o ser soberano não deixa de, infelizmente, justificar os atributos de que se diz portador.

o mesmo é dizer que, se o absoluto da soberania permite pontos de fuga e a própria soberania assenta num ponto de fuga em relação à sua pura determinação, ainda assim o absoluto «que resta», no nível em que nos confrontamos com ele, é o que matricialmente anuncia: ser ab -soluto; e como tal, inescapavelmente violento quando se exerce sobre nós, que a ele estamos abandonados. Na soberania conflui todo o absoluto humano que pudemos imaginar e pôr em prática e por isso o seu exercício cobre ‑nos absolutamente.

Porém, como o absoluto humano diz respeito a um ser contingente, partícipe da liberdade integral da transcendência, e que não tem uma determinação acabada de uma vez por todas, o deslizar contínuo dessa mesma contingência consegue transbordar a frente soberana (por mais extensa que seja, porquanto é só uma medida de extensão humana)27, e escapar a qualquer cerco dito irrevogável com que esta nos procure acuar. Daí que o absoluto da soberania seja real e corresponda, sem contradição, àquilo que o conceito obriga e, ao mesmo tempo, não possa ser nunca definitivo, por consequência, absoluta‑

mente absoluto, por mais que se não resuma ao irrelativo.

Se apenas Deus não tem esquinas e, eventualmente, as coisas e os restantes seres vivos estão presos às suas esquinas, o homem consiste em estar sempre a dobrar aquelas que lhe são próprias. o absoluto e incindível da soberania é a representação de uma esquina decisiva inultrapassável, que afinal se tem de conformar ao esquema conhecido:

se há esquinas são para dobrar. o absoluto sem mais, simpliciter, precisamente por isso não tem esquinas, mas por essa mesma razão não pode ser humano. a soberania, sim, é humana e não sobre ‑humana, mas como a face satânica que emerge por dentro do homem, qual filha do obsceno, para bloqueá ‑lo na sua dimensão mais própria, na sua potência conectiva e transitiva de ser ‑para ‑o ‑outro. Derivando daí a expressão do abso‑

luto como barreira ao primevo estado de paz, que, de qualquer forma, não consegue impedir, porque fruto de um «absoluto maior».

Chegados a este ponto, o não reconhecimento deste im -poder nuclear de facto no exer‑

cício do próprio poder põe em sérios apuros o realismo, ilustrando à maravilha as suas tremendas insuficiências, que já se vinham revelando, como o leitor não terá deixado de notar. É certo que não infirma a quota ‑parte de verdade que o realismo encerra, mas revela que este não passa de um conjunto de intuições certeiras que deveriam fazer parte do património das ri. o realismo é a tradição que compagina essas intuições, em particular, a intuição de que as relações de poder não podem ser obviadas na compre‑

ensão da cena internacional, desempenhando, enquanto os racionais soberanos forem prevalecentes, um papel de extrema relevância. No entanto, isso não deveria ter sido suficiente para forjar uma escola. fundar toda uma escola à volta da importância de determinados termos de uma equação não é ainda fazer matemática.

e a equação do poder é muito mais complexa que afirmar ser a política internacional, em última instância, uma política de poder.

(11)

4.

Mas se o realismo guarda uma parcela de verdade, o conceito de anarquia interna‑

cional, que pressupõe que as relações internacionais são relações de poder, choque de poderes, logo em primeira e constitutiva instância, sem mais, não resiste ao embate com a impuissance relativa de fundo do

poder soberano de facto. a anarquia inter‑

nacional é uma ideia definitivamente fora‑

‑de ‑jogo, uma ideia que, afinal nem a soberania cauciona.

Pormenorizando essa primeira contenção

estrutural inerente ao exercício soberano, se a mesma não sai da lavra da soberania como árquica tout court, mas é meramente gestionária, expedita, porque resposta prá‑

tica a uma força ordenadora que não é capaz de controlar, não deixa, à partida, de impossibilitar o anárquico. Porém, essa contenção primeira não se resume a isso.

Como se pode depreender do argumentário exposto na secção antecedente, a con‑

tenção primeira revela ter arqui ‑inscita uma espécie de marca de água, que nem a soberania consegue apagar. uma arche de origem, indelével, que é a arche da sororidade e da diaconia28. Quer dizer que a soberania, fazendo agora caso omisso do elevado preço prático do seu momento cinético total, não cauciona, pelo contrário, impossi‑

bilita a materialização da anarquia internacional. De resto, e muito a seu pesar, por dentro da contenção soberana, em si mesma tão ‑só económica, aninha ‑se uma outra imemorial e muito mais potente que dá o tom e sem a qual nem haveria contenção soberana. onde era suposto ver anarquia o que se observa é ordem – princípio orde‑

nador, seria mais preciso.

ou sintetizando o assunto pela via concomitante da novel articulação histórica que o soberano faz entre a paz e a guerra, deve dizer ‑se que um estado de guerra estru‑

tural relativo tanto à pré ‑compreensão como à compreensão ontológicas dos actores políticos no seu próprio ser não é de todo compatível com um estado de soberania.

o estado de guerra tornado regra liquidaria as pretensões soberanas. Se o fundo operativo das relações internacionais fosse a guerra a soberania nunca teria existido, e como a soberania existe e os racionais soberanos ainda são dominantes, o estado de guerra não pode ser determinante. onde grassam os soberanos a anarquia pura e simples não faz sentido, a guerra não é a palavra primeira, apenas a sua possibilidade (normalizada e naturalizada pelo soberano) o é. Contudo, como estamos a falar do domínio ontológico, a diferença entre a eventualidade de ser o e o registo de ser é tremenda, tanto mais, não o esqueçamos, que não se trata somente da consistência lógica do ser da soberania ficar afectada radicalmente pelos abismos entrópicos da guerra em si feitos motor da política internacional, mas da realidade primeiríssima da sororidade, incontornável até para os soberanos, porque verdadeira imago Dei e, por consequência, força expansiva ilimitada na abertura ao interminável – que quando

A ANARqUIA INTERNACIONAL é UMA IDEIA DEFINITIVAMENTE FORA -DE -JOgO, UMA IDEIA qUE, AFINAL, NEM A SOBERANIA CAUCIONA.

(12)

cumprida será salva e revitalizada para todo o sempre. ante isto, o poder de obstruir será não mais que um poder de morte e como tal igualmente mortal, preso que está às ilusões impropriamente julgadas absolutas de «divindades» afinal tão criaturais.

4 . 1

É certo que as escolas que se opõem ao realismo, nas quais, não obstante, o conceito de anarquia internacional perpassa como uma sombra, defendem que a tese da anarquia é unilateral na caracterização da cena internacional, que é tão normativa quanto as restantes, contrariamente à ideia de que seria uma descrição fidedigna da realidade, e que como tal o mundo seria melhor servido com outra normatividade. No fundo, o que há de descritivo na realidade até nos diz que os actores, sem excepção, procuram desempenhar determinado papel, correspondente a outras tantas expectativas dos demais actores, que caso sejam goradas comportam sanções. Não fosse assim, fossem as relações internacionais de puro poder, e que necessidade teriam as principais potên‑

cias de justificar o seu comportamento? Quando isso pode ser contraproducente, não apenas porque as justificações atrasam a acção, com consequências imprevistas, como podem revelar ‑se falsas, incrementando a desconfiança.

essas críticas são todas correctas, mas nada dizem sobre o mito que efectivamente é a anarquia internacional.

4 . 2

a anarquia internacional não significa, na argumentação realista, como se pode depreender do exposto anteriormente, um permanente e generalizado estado de guerra ou de desordem. a guerra não tem, na vida internacional corrente, um carácter de necessidade; não existe nem tem de existir nenhum estado fático de guerra constante, às vezes adormecido, outras em lume brando, outras ainda em fogo vivo – não sendo possível falar, nesse preciso sentido, na política como continuação da guerra por outros meios. o conceito de anarquia internacional significa antes que, em última análise, cada actor internacional não pode depender senão das suas capa‑

cidades impositivas, do seu poder sem mais. Querendo ‑se com isto dizer que mesmo não havendo guerra nem desordem efectiva (fenomenologia), esta pende permanen‑

temente sobre os actores, mais que como possibilidade, como a razão de ser última (ontológica) do seu comportamento29. Mas então surgem duas vias de identificação genética da anarquia, qualquer delas não sendo estritamente política nem tendo a ver com o poder em si, tal como são formuladas.

uma delas, lavrada em meios norte ‑americanos, e derivada de uma visão apocalíptica e messiânica, no pior sentido dos termos, de contornos dualistas gnósticos, faz depender o

A gUERRA NãO TEM, NA VIDA INTERNACIONAL CORRENTE, UM CARáCTER DE NECESSIDADE;

NãO ExISTE NEM TEM DE ExISTIR NENHUM ESTADO FáTICO DE gUERRA CONSTANTE.

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exercício dos actores de um contexto desordenado dado de antemão, que uma antropologia pessimista de raiz individualista possessiva reforça30. um contexto onde o poder está subor‑

dinado a potências maléficas, puramente terrenais, face às quais conviria aos estados uni‑

dos isolarem ‑se, ou, num sentido contrário, tentar domá ‑las. os estados unidos tomariam o lugar do velho império romano enquanto katechon, e o resto do mundo, esse, de algum modo, já viveria sobre o reinado do anti ‑Cristo31. em qualquer caso, as questões de poder estariam subordinadas a questões escatológicas, de pouca usança para definir a cena inter‑

nacional moderna e contemporânea, precisamente aquela que se secularizou e na qual os racionais do poder em si ganham verdadeira autonomia. logo, a ideia de anarquia interna‑

cional, por esta via, não toca o cerne do poder e as relações internacionais como relações essencialmente de poder não podem ser explicadas por ela. o poder na sua expressão máxima, de natureza soberana, é contido desde o primeiro momento e agora percebe ‑se porque não se percebeu isso mesmo, porque a visada em causa não era política, daí que tenha passado ao lado da lógica de poder, das suas forças e fraquezas.

Com a segunda via, afasta ‑se de vez a possibilidade de engendrar uma defesa para o conceito de anarquia internacional aparentando ‑o com a linha foucaultiana. Segundo esta linha, a guerra, e com ela o poder nu, funda de forma constitutiva a modernidade, pelo menos32. os foucaultianos centram ‑se no poder em si mesmo, qual poder ‑no ‑mundo, poder ‑aí, em vez de ser ‑no ‑mundo, ser ‑aí, assente historicamente em estruturas de tendência imperial, mas ao mesmo tempo e de maneira crescente, com enorme capila‑

ridade e disseminação reticular. Já os defensores da tese da anarquia internacional, nesta segunda via, fazem derivar a anarquia directamente de um modelo individualista pos‑

sessivo de inspiração liberal (a que não é alheio, como vimos, pelo contrário, a primeira via)33. a anarquia existe porque os indivíduos enquanto átomos possessivos, competiti‑

vos e rivais, que estão na base de qualquer organização social, na ausência de um poder que os constranja lutam até à morte pela sobrevivência. ora, aquilo que se mostra desde logo à evidência, seguindo estritamente o raciocínio dos proponentes desta segunda via, é a ausência de poder, de dinâmicas de poder, e não a omnipotência do mesmo. isto só pode querer dizer, sendo coerentes com a sua perspectiva, que o que está na base da anarquia é um problema antropológico, económico, que tange, quando muito, a onto‑

logia política, e de maneira nenhuma o problema da secularização do poder e da sua alforria enquanto puro poder: da sua autonomização através da novel figura do estado, coroado como fim majestático em si mesmo através da soberania, materializada esta na razão de estado, na salvação pública. um poder soberano que politicamente, sabêmo ‑lo, transforma os homens em indivíduos, dessocializando ‑os, mas que, como já vimos, não consegue ser de todo incontido em absoluto, especialmente no âmbito externo.

Mas como poderiam os proponentes desta segunda via da tese da anarquia internacional alcançar tal conclusão, se a preocupação deles não era o poder. uma vez mais, a tese da anarquia não toca o cerne do poder nem pode justificar serem as relações internacionais basicamente relações de poder.

(14)

todavia, as consequências políticas mesmo daquilo que não é directamente político no novo paradigma individualista são tão profundas que poderiam fazê ‑los, aos proponen‑

tes do conceito de anarquia internacional, chegar lá, ao que verdadeiramente estava em causa com a nova ordem soberana, e com a internalização da guerra no edifício político, como exercício político ordinário a par da paz – uma questão de cálculo. infelizmente, os proponentes de tal conceito derivam o seu raciocínio, seja de premissas escatológicas, seja de premissas antropológicas quase sem o saberem, ao jeito do senso comum inques‑

tionado donde partem. e quando vão mais além parecem basear ‑se em leituras indirec‑

tas e imprecisas, o que é visível na completa tergiversação de hobbes.

5.

Metanoia – Mas não façamos de ingénuos, nem nos deixemos levar por tolos. toda a digressão até aqui empreendida foi ‑o apenas por antanagoge, e como que uma quase contínua suspensão do juízo principal, porque aquilo que o discurso da anarquia inter‑

nacional quer na prática de há muito é sabido.

É célebre uma inspiradora passagem de Benjamin, inúmeras vezes glosada e norte de tantos percursos, e que também nós devemos reproduzir: «a tradição dos oprimi‑

dos ensina ‑nos que o “estado de excepção” em que vivemos é regra. temos de chegar a um conceito de história que corresponda a esta ideia. Só então se perfilará diante dos nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de provocar o verdadeiro estado de excepção.»34

Cá está em acção mais um dos índices secretos que caracterizam a metodologia ben‑

jaminiana, a mostrar que não há anarquia internacional nenhuma por detrás das ruínas da história, mas sim uma ordem bem precisa de potestades e dominâncias em acto soberano. evocar a anarquia serve antes de mais para preservar o poder, ou, enveredando por truques de ilusionismo, para o mascarar debaixo da ideia que o mundo é caótico e depende da roda da fortuna, estando todos por igual a ela submetidos, mesmo que assim não pareça acontecer: vítimas e verdugos; oprimidos e opressores; deserdados da terra e privilegiados – tudo seria fruto do acaso, mas de um acaso como fado, superlativamente arbitrário, contra o qual seria vão intentar qualquer acção.

Para começar a escancarar a porta ao messias, para que o messias chegue só depois de ter chegado, quando já não for preciso, a não ser para nos exaltar ao jubileu perpétuo, devemos libertar ‑nos dos mitos que nos enfeitiçam.

Já é tempo, pois, de passar a certidão de óbito ao conceito de anarquia internacional.

Mais que um instrumento analítico que não explica nem pode explicar nada, um dis‑

positivo que nos logra e nos pretende manter cativos.

(15)

n o t a s

* A pedido do autor este texto não adopta as normas do Novo Acordo Ortográfico.

1 Por exemplo, Alexander Wendt teria sido muito mais consequente se em vez de dizer que a anarquia «is what states make of it», tivesse dito que a anarquia é somente aquilo (aquele constructo) que os pensadores queiram fazer dela. Cf.

Wendt, Alexander – «Anarchy is what states make of it: the social construction of power politics». In International Organi‑

zation. Vol. 46, N.º 2, 1992, pp. 391 -425, e ainda, de Wendt, Alexander – Social The‑

ory of International Politics. Cambridge:

Cambridge University Press, 1999, em particular o capítulo 6, intitulado «Three cultures of anarchy» (pp. 246 -312). O pro- blema é que Wendt acredita que o conceito de anarquia é operacional porque há con- dições para o idear, ensimesmar e repro- duzir, em virtude da possibilidade de guerra sempre subjacente na ausência de uma autoridade central na cena interna- cional (mesmo numa anarquia kantiana, expressão que não é nada despicienda, pois descodifica a sua sensibilidade sobre a ausência ou a superação do conflito, que se configura a partir do conflito). Mas das duas uma: ou o estado de guerra é onto- logicamente patente e fenomenologica- mente latente, com maior ou menor probabilidade de ocorrência – presunção que o presente artigo pretende confutar –, ou o estado de guerra é apenas ontologi- camente eventual e nesse caso não há lugar a anarquia porquanto, em termos ontológicos, a diferença entre o ser e a sua eventualidade é como do dia para a noite, para dizê -lo de algum modo. Não estamos seguros de qual seja a posição de Wendt.

2 Numa dissertação de doutoramento defendida não há muito, também Luís Tomé julga pertinente afirmar que na perspectiva realista o domínio das relações internacio- nais é anárquico e permanentemente competitivo -conflitual. Salientando que está a incidir nos seus traços definidores cru- ciais, sem prejuízo das diversas variantes realistas. Cf. Tomé, Luís Leitão – A Geopo‑

lítica e o Complexo de Segurança na Ásia Oriental: Questões Teóricas e Conceptuais.

Dissertação de doutoramento policopiada.

Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Abril de 2010, p. 26. Disponível em:

https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream /10316/14031/1/A%20geopol%C3%ADtica%

20e%20o%20complexo%20de%20seguran%

C3%A7a%20na%20%C3%81sia.pdf. Natu- ralmente que as variantes realistas em que estamos a pensar se cingem em exclusivo à ciência das relações internacionais (ri).

3 Neste particular, Kenneth Waltz é pro- vavelmente o mais coerente de todos os internacionalistas que brandem o conceito de anarquia, ao afirmar, com meridiana clareza e de forma amplamente justifi- cada, que entre homens ou entre estados a anarquia (enquanto desordenamento) está associada à violência. Cf. Waltz, Kenneth – Theory of International Politics.

Reading: Addison -Wesley, 1979, p. 102.

é verdade que ao parafrasear Waltz omi- timos uma outra sua frase intercalada que identifica anarquia com ausência de governo – literalmente a passagem reza assim: «Among men as among states, anarchy, or the absence of government, is asociated with occurrence of violence.»

Mas omitimo -la pela sua ambiguidade. Se a mesma quer significar ausência de regras, então nada há a acrescentar. Já no caso de a frase apontar para ausência de uma autoridade central de governo, então sim, há muito a dizer, uma vez que a ausência de uma tal autoridade não implica necessariamente a inexistência de regras políticas comuns, como o mostram as teses da segunda escolástica (teses que configuram a primeira aproximação teórica às relações internacionais) e, até certo ponto, as primícias das relações internacionais de facto que emergem no período primomoderno.

4 Não deve ser um acaso que a grande tradição realista tenha nascido no mundo anglo -saxónico, berço do moderno indivi- dualismo possessivo (que marca por igual a síntese neoliberal em RI, que neste ponto não se nos afigura diferente da rea- lista no essencial). E se pensarmos que também as restantes tradições principais das RI, bem como as novas correntes crí- ticas, são oriundas do mundo anglo- -saxónico ou perfilham em grande parte a koine individualista contemporânea, tal- vez não seja estranho que o conceito de anarquia internacional continue a ser con- siderado como operacional, mesmo quando fortemente criticado. Todavia, nem sequer para o realismo, será este o nosso ponto crítico nevrálgico. Fica apenas como acicate para uma reflexão sistemática de raiz metateórica em RI, a ver se alguém a quer pegar.

5 Se o conceito não se aplica às épocas moderna e contemporânea, muito menos se poderia aplicar a períodos históricos anteriores (que, de qualquer forma, não configuram relações internacionais), onde brilha a dicotomia entre paz e guerra, lançando a guerra para os confins da polí- tica, e onde a incidência da soberania não se fazia sentir enquanto figura acabada.

6 Cf. Fernandes, António Horta – Aco‑

lher ou Vencer? A Guerra e a Estratégia na Actualidade. Lisboa: Esfera do Caos, 2011, pp. 91 -98; e Fernandes, António Horta –

«Soberania». In Relações Internacionais.

N.º 24, Lisboa, dezembro de 2009, pp. 141 -146.

7 Reflexões fundamentais sobre o tema fê -las Foucault nos vários cursos minis- trados no Colégio de França. Mas já antes escrevera que se deveu ao humanismo, ou seja, ao conjunto de discursos enquanto sintagma de poder, o persuadir o homem ocidental moderno de que podia ser sobe- rano apesar de não exercer o poder. Pelo contrário, quanto mais renunciasse a exercer o poder e quanto mais submetido estivesse ao que lhe fosse imposto, mais esse mesmo homem seria soberano, mais

liberto estaria do ominoso fardo para se dedicar a ser inteiramente si mesmo e à sua plena liberdade; ou, em rigor, à liber- dade (administrada) que o biopoder lhe achasse por bem atribuir. Cf. Foucault, Michel – Microfísica del Poder. Madrid: La Piqueta, 1979, p. 34. Aqui, apenas a ideia que Foucault e os foucaultianos fazem do humanismo nos parece desajustada. A invenção do sujeito enquanto ser encasu- lado, indivíduo, e a sua defesa, apelidada de humanismo, nada retiram a um sentido mais profundo daquilo que é o humanismo:

a abertura e a responsabilidade pelo outro homem.

8 Cf. Esposito, Roberto – Bios. Biopolí‑

tica e Filosofia. Lisboa: Edições 70, 2010, p. 94.

9 Efectivamente o soberano é lobo do homem (uma metáfora que os biólogos bem sabem os lobos não merecer) e o estado de excepção tende a tornar -se regra, mas a discricionariedade do sobe- rano não é a arbitrariedade da ausência de regras, da norma, expressando antes a sua suspensão. Esta inclui, por força da excepção, o que a norma não abrangia anteriormente. querendo isto dizer que a norma se mantém vigente sob a forma peculiar da sua própria suspensão, tor- nando impossível a distinção entre obser- vância e transgressão da mesma. Neste caso não existe verdadeiramente um fora de lei, mas uma submissão sem defesa ao soberano, o estar pura e simplesmente à sua mercê. «O estado de excepção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua sus- pensão.» Por outro lado, a soberania nunca se dá na realidade em estado puro, e, como se verá abaixo, a própria relação de facto dos soberanos entre si comporta uma contenção de raiz incompatível com a anarquia, isto é, com a ausência de qual- quer regra como pano de fundo do com- portamento inevitavelmente securitário daí decorrente. Acerca do estado de excepção que caracteriza o poder sobe- rano, cf. o incontornável ensaio de Schmitt, Carl – Théologie Politique. Paris:

gallimard, 1988. Nele afirma Schmitt expressamente que o soberano é aquele que decide o estado de excepção (p. 15).

De Agamben, giorgio – O Poder Soberano e a Vida Nua. Homo Sacer. Lisboa: Pre- sença, 1995, em particular, a primeira parte, donde, aliás, retirámos a passagem acima citada (p. 29); e ainda Agamben, giorgio – Estado de Excepción. Homo Sacer.

Valência: Pre -Textos, 2004, ii, 1.

10 Economia como oikonomia. Como

«administração da casa» e de tudo o que lhe diga respeito. Logo, economia enquanto governo, ordenação, disposição, organi- zação funcional, natureza gestionária do reino das pessoas e/ou das coisas em que incide.

11 Cf. Agamben, giorgio – El Reino y la Gloria. Por una genealogía de la economía y del gobierno. Valência: Pre -Textos, 2008, pp. 154 e seguintes.

Referências

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