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O Estado de São Paulo

Quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Arte de furtar

MARCELO DE PAIVA ABREU*

Fim de ano triste. Não se abre o jornal ou liga a televisão sem que o assunto seja corrupção.

Não é que o tema seja exatamente novo. É, de fato, longa a história da corrupção no Brasil.

No século 17, o tema já ocupava as melhores cabeças do império luso-brasileiro. Antonio Vieira, no seu Sermão do Bom Ladrão, de 1655, baseado na história de Dimas, crucificado à direita de Jesus, incitou os reis a “levarem consigo ao paraíso os ladrões”, mas lamentou que

“o que vemos praticar é”, tanto pelo contrário, “os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno”. Registrou que “o roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza”. Insistiu em que, sem restituição do roubado, não há salvação.

Em A arte de furtar, autor anônimo contemporâneo de Vieira apresentou magistral taxonomia da estafa, ou das “unhas”, expressão corrente no século 17. A lista inclui desde unhas reais às militares, maliciosas, invisíveis, apressadas, amorosas, entre mais de meia centena de modalidades, recheadas de exemplos pitorescos. O remédio proposto para conter a ladroeira era usar três tesouras para cortaras unhas: vigia, milícia e degredo. “Comam-se lá uns aos outros”

no degredo. O livro merece reedição, com notas inspiradas cm episódios brasileiros recentes, como o mensalão, os trens paulistas e o petrolão.

Mas é preciso não abusar da ideia de que a corrupção tem vida longa no País. O PT vem tentando usar o gambito de que corrupção sempre existiu no Brasil e que, portanto, não é razoável associar o partido à corrupção endêmica. A presidente Dilma Rousseff, em entrevista ao jornal chileno El Mercúrio, afirmou peremptoriamente que o Brasil não vive “crise de corrupção” e que se suspeita que o “esquema” da Petrobrás tem “décadas de existência”.

O presidente do PT, em entrevista ao jornal Valor, em meio à defesa de políticas questionáveis como o regime de partilha na exploração de petróleo, a “exclusividade” da Petrobrás e a política de conteúdo nacional, afirmou que “nunca dissemos que éramos uma organização de santos, um convento”. Alguém distraído poderia pensar que deve haver algo intermediário entre

“convento” e o bordel em que o País está mergulhado. Estamos em meio a um autêntico mar de lama, metáfora que, em contraste com excessos retóricos de 60 anos atrás, hoje descreve a realidade com precisão.

O que os líderes petistas têm dificuldade de perceber é que há diferença essencial entre corrupção venal e corrupção sistêmica. Se funcionários corruptos da Petrobrás tivessem favorecido indevidamente empreiteiras ou supridores de equipamentos, em troca de suborno, sem o envolvimento de partidos políticos, isso caracterizaria corrupção venal. Estariam essencialmente na mesma categoria de “ladrões de galinha”, embora os valores envolvidos fossem, é claro, muito maiores.

Com o envolvimento de partidos políticos, a corrupção passa a ser sistêmica, pois o suborno tem repercussões eleitorais e beneficia os partidos envolvidos. As bancadas no Congresso dos

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partidos beneficiados na tramoia são infladas pelos recursos desviados para financiar campanhas. Seria uma versão modernizada dos “burgos podres” da Grã-Bretanha do século 18, um “congresso podre”, parcialmente eleito com recursos mobilizados de forma corrupta.

O PT, a despeito do que dizem seus dirigentes, nasceu com um projeto de renovação política que incluía postura eticamente mais correta do que a dos “partidos burgueses”. O petrolão configurou a repetição da crise que abalou o partido em 2005. A decisão estratégica de Lula, ao ignorar a ameaça do mensalão à credibilidade do partido, abriu espaço para a reincidência em episódios recentes Em vez de buscar a reconstrução partidária, a ênfase foi no projeto de poder. Perdeu-se o PT. Perdeu o Brasil com o fim do PT como partido sério.

* Doutor em Economia pela Universidade de Cambridge, é Professor Titular no Departamento de Economia da PUC-Rio.

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