PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ASSEMBLÉIAS DE BAIRRO NA ARGENTINA:
CRIANDO ESPAÇOS DE AÇÃO POLÍTICA PARA
RECONSTRUIR O TECIDO SOCIAL
Adriana Marcela Bogado
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ASSEMBLÉIAS DE BAIRRO NA ARGENTINA:
CRIANDO ESPAÇOS DE AÇÃO POLÍTICA PARA
RECONSTRUIR O TECIDO SOCIAL
Adriana Marcela Bogado
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais, do Centro de
Educação e Ciências Humanas da
Universidade Federal de São
Carlos, como parte dos requisitos
para a obtenção do título de Mestre
em Ciências Sociais, na área de
Concentração "Relações Sociais,
Poder e Cultura", sob orientação
da Professora Doutora Maria
Aparecida de Moraes Silva.
Financiamento: CAPES
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar
B674ab
Bogado, Adriana Marcela.
Assembléias de bairro na Argentina: criando espaços de ação política para reconstruir o tecido social / Adriana Marcela Bogado. -- São Carlos : UFSCar, 2006. 239 p.
Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de São Carlos, 2005.
1. Movimentos sociais. 2. Assembléias de bairro. 3. Memória. 4. História oral. 5. Argentina. I. Título.
À Roseli e ao Paulo por me dar um lar de diálogo, afeto e solidariedade fora de casa e
por compartilharem suas famílias comigo.
Ao Douglas, amorchisss, pelo seu apoio amoroso no trabalho, na leitura e na correção e
pelos nossos processos de ensino-aprendizagem enquanto viajamos pelo universo.
À minha orientadora, Professora Maria Aparecida de Moraes Silva, por aceitar o desafio
e assumir a orientação com sua sabedoria e compromisso.
Ao Prof. João Roberto membro da banca examinadora e professor de qualidade.
À Professora Mónica Bendini por compor a banca examinadora e tomar-se o trabalho de
vir de longe para contribuir com seu profissionalismo e sensibilidade crítica.
À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), pela bolsa
recebida e incentivo à pesquisa.
Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais por receber-me e apoiar o meu
trabalho, aos/as professores/as pelos ensinamentos e às Secretária Ana Maria e Ana.
À minha família toda, especialmente a minha mãe Norma pela sua força e por apoiar
minhas lutas e sonhos, a minhas irmãs Lorena e Natalia, a minhas sobrinhas Gabriela e
Florencia por me dar amor (mesmo estando longe), e ao meu pai, Ramón.
Aos/as assembleístas Estela, Paula e Pedro pelas contribuições e apoio na pesquisa.
Ao Demóstenes Silvestre, pessoa que não conheci, mas que construiu um lugar onde foi
possível trabalhar, viver e sonhar “denodadamente” e onde esta dissertação começou a
se concretizar no papel.
À Carmem pela sua generosidade pessoal e acadêmica e pela sua amizade.
À Eglen, Júnior, Daniel, Renata, Fabiana, Marcos, Thaís, Tiago (obrigada pela
tradução), por compartilharem comigo uma amizade sem fronteiras.
Ao pessoal do Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa (NIASE/UFSCar) pelo
apoio no trabalho e nos sonhos de transformação social.
Às minhas amigas, Estela, Silvina, Marina, Luisa, Norma e Sandra que acompanharam
minhas idas e vindas de perto e de longe.
Ao Ramón Flecha por animar-me a realizar a pesquisa quando o projeto era um sonho.
Quadro 01 Evolução da dívida externa, fuga de capitais e interesses pagos, 1970-1998
22
Quadro 02 Evolução do salário médio real, o desemprego e a sub-ocupação, 1959-1999
30
Figura 01 Mapa da Capital Federal indicando os bairro de Palermo, San Telmo (entre outros) e a Plaza de Mayo
18
Figura 02 Mapa do bairro Palermo Viejo indicando a esquina de reunião da Asamblea de Palermo Viejo
19
Figura 03 Mapa do Bairro San Telmo indicando a situação do prédio da Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego.
19
Figura 04 Logotipo da Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego 77
Figura 05 Frente do bono ladrillo 103
Figura 06 Mapa de mobilização para piquete urbano 159
Fotografia 01 Mural da Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego. 42
Fotografia 02 Participantes pintando o mural durante as Jornadas em Repúdio ao Terrorismo de Estado
46
Fotografia 03 1976 47
Fotografia 04 Os desaparecidos 49
Fotografia 05 Ronda de lenços 51
Fotografia 06 Democracia 52
Fotografia 07 A Festa 56
Fotografia 08 Basta 57
Fotografia 09 19 e 20 de dezembro 59
Fotografia 10 Assembléia 61
Fotografia 11 Plaza Dorrego 96
Fotografia 12 Tijolos da memória 105
Fotografia 13 Participantes da Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego reunidos no lugar onde se construiu o prédio
Fotografia 15 Participantes da Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego 138
Fotografia 16 Protesto contra a Companhia de Energia Elétrica Edenor 147
Fotografia 17 Escrache a Videla 155
Fotografia 18 Assembleístas da Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego durante a marcha contra a repressão em Puente Pueyrredón
164
Fotografia 19 La Asamblearia. Stand de vendas durante o 14o Encuentro de Asambleas Autónomas.
169
Fotografia 20 Participantes da Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego durante a preparação da Olla Popular.
173
Fotografia 21 Participantes da Asamblea de Palermo Viejo na esquina de
Humboldt e Costa Rica, preparando-se para a primeira caminhada
181
RESUMO ... 1
ABSTRACT ... 2
INTRODUÇÃO ... 3
CAPÍTULO 1 ... 20
1.1 Revisão histórica ... 20
1.2 Construindo lugares de memória, ação política e identidade ... 39
CAPÍTULO 2 ... 68
2.1 Surgimento das Assembléias de Bairro ... 68
2.2 Os/as participantes ... 79
2.3 (Re)significando o espaço público ... 93
2.3.1 Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego ... 94
2.3.2 Asamblea de Palermo Viejo ... 106
CAPÍTULO 3 ... 118
3.1 Organização e funcionamento ... 118
3.1.1 Dinâmica dos encontros ... 130
CAPÍTULO 4 ... 166
4.1 Compras comunitárias: Construindo a Economia Solidária ... 167
4.2 Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego ... 171
4.3 Asamblea de Palermo Viejo ... 179
CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 195
REFERÊNCIAS ... 204
RESUMO
Este trabalho aborda o estudo sobre as Assembléias de Bairro na Argentina, criadas após os panelaços1 dos dias 19 e 20 de dezembro de 2001, no contexto da atual crise social, política e econômica. As Assembléias caracterizam-se por promover mecanismos de democracia direta, organização territorial, autonomia em relação aos partidos políticos e por estar compostas, geralmente, por setores médios empobrecidos. Pessoas que nunca tiveram participação política, pessoas que militaram na década de setenta, pessoas com diferente militância em partidos, sindicatos ou em movimentos sociais reúnem-se semanalmente em diversos bairros para debater e gerar ações orientadas a criar alternativas ante a crise e desenvolver um espaço com novas formas de se relacionar com a política, aprofundando o processo de democratização.
Nosso estudo visa descrever as Assembléias de Bairro, seu surgimento e as práticas levadas a cabo pelos/as integrantes das mesmas, a partir das suas experiências. Para tanto a metodologia de pesquisa utilizada foi a História Oral concomitantemente com a Observação Participante das sessões da Assembléia e de outras atividades geradas pelas mesmas. Com o objetivo de ampliar o espectro de coleta de dados, incorporamos a busca e utilização de fotografias e diversos materiais produzidos pelos/as participantes das Assembléias, assim como o registro de informações no diário de campo. A coleta de dados, em campo, desenvolveu-se em janeiro e fevereiro de 2004, em duas Assembléias de Bairro, em Buenos Aires: a Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego e a Asamblea de Palermo Viejo.
A História Oral permitiu reconstruir a memória recente, as lembranças do surgimento das Assembléias, dos primeiros encontros. Mas, também, possibilitou que aflorasse uma outra memória que estava presente nos testemunhos e ações dos/as informantes: a memória sobre a Ditadura Militar. Homens e mulheres identificam como principal conseqüência da ditadura e os governos democráticos que a sucederam: a destruição do tecido social. A partir dessa visão, começam a desenvolver espaços de ação política orientados à reconstrução desse tecido.
Assim, destacamos como aspectos relevantes da ação das Assembléias: o trabalho com a memória sobre a repressão; o desenvolvimento de espaços de deliberação que viram a enriquecer a cultura política; as redes de ação política e solidariedade com outros movimentos sociais; a (re) significação do espaço público e o compromisso de sua gestão; o trabalho coletivo e a realização de atividades e projetos visando criar alternativa em um contexto de crise generalizada.
1
ABSTRACT
Taking into account the current context of social, political and economic crisis this work consists of a study about the Neighborhood assemblies in Argentina that followed the panelaços2, which happened in the 19th and 20th of December of 2001. The main characteristics of the assemblies are that they promote mechanisms of direct democracy, territorial organization, autonomy in face of political parties and finally for being composed mainly of people belonging to poorer sectors of society. People that never had political engagement, people that protested in the Seventies, people that participate in different political parties, syndicates or social organizations gather weekly in different neighborhoods to debate and generate actions in order to create alternatives to face the crisis and also try to develop spaces where new ways of dealing with politics can take place and thus deepening the process of democratization.
Our study aims to describe the Neighborhood assemblies, its beginning and the practices performed, using the participants experience as a starting point. In order to accomplish that the chosen research methodology was Oral History alongside with Participative Observation of the assemblies and also other activities that resulted from these methods. With the objective of broadening the collected data spectrum, we have brought in photographs and a wide range of materials made by the participants as well as the entries in a filed diary. The data gathering was done between January and February of 2004 in two assemblies of the city of Buenos Aires, namely: a Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego e a Asamblea de Palermo Viejo.
The Oral History allowed us to rebuild the participants’ recent memories, those of the beginning of the assemblies, of the initial meetings. On the other hand it also worked as channel for yet another memory that was present inside the participants’ accounts to come to surface: that of the military dictatorship. Men and women identify the destruction of the social tissue as one of the main consequences of the military dictatorship and the following democratic governs. Beginning with this point of view they started to develop spaces of political action orientated to the reconstruction of this tissue.
Hence, we would like to point out some important aspects of the actions of the assemblies, namely: the work with the memories of the repression years, o development of deliberation spaces that eventually enriched the political culture, the political action and solidarity networks with other social movements, the process of (re) signify the publics spaces and its management, the collective work and the accomplishment of activities and projects that aimed to create alternatives in a context of generalized crisis.
2
INTRODUÇÃO
A descoberta do tema
O presente trabalho está centrado no estudo das Assembléias de Bairro na
Argentina, criadas após os panelaços3 dos dias 19 e 20 de dezembro de 2001, no
contexto da crise social, política e econômica. As Assembléias objetivam a construção
de mecanismos de democracia direta, organização territorial, autonomia em relação aos
partidos políticos, levando-se em conta a heterogeneidade social dos sujeitos
participantes. O estudo visa à descrição das Assembléias de Bairro, seu surgimento,
funcionamento e as práticas levadas a cabo pelos/as integrantes das mesmas, a partir de
suas experiências.
Nossos primeiros contatos com as Assembléias de Bairro deram-se no início de
2002, por ocasião de um estágio realizado na Espanha. A partir de leituras de jornais e
e-mails endereçados por conhecidos, nos inteiramos do início deste movimento e, ao
mesmo tempo, surgiu o interesse em realizar uma investigação sobre este tema.
A primeira versão do projeto acabara de se concretizar ao fim desse ano,
enquanto fazíamos um estágio na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no
segundo semestre de 2002, e especificamente para a candidatura ao mestrado pelo
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFSCar (PPGCSo). Desta maneira,
começamos uma pesquisa pela Internet, principalmente dos jornais e outros sites feitos
pelas/os participantes das Assembléias e, paralelamente, uma pesquisa da bibliografia
surgida em torno ao tema. Assim, escrevemos a primeira versão do projeto, apresentada
no fim de 2002, para o processo de seleção de mestrado. Posteriormente, à aprovação e
ingresso no PPGCSo da UFSCar, fomos incorporando bibliografia ao projeto, embora o
mesmo continuasse sem alterações estruturais muito profundas.
Pesquisa exploratória
No fim de abril de 2003, em uma viagem à Argentina, fizemos o primeiro
contato via e-mail com a “Asamblea Popular Altos de Palermo", do bairro de Palermo,
em Buenos Aires. Pedimos para assistir um dos encontros e que confirmassem o dia de
reunião, local e horário, porque a informação que tínhamos talvez não estivesse
3
atualizada. Rapidamente responderam e perguntaram o caráter de nossa presença, se
queríamos participar como moradora do bairro, com fins acadêmicos ou por outro
motivo, e agregavam que:
“en el primer caso, estas invitada desde ya. en caso contrario,
presentate el martes que viene e informa cual es tu intencion de la visita,
no creo igualmente que haya problemas. saludos.”
Na semana seguinte, no dia 6 de maio de 2003, participamos de um encontro.
Reuniam-se nas ruas Coronel Díaz e Arenales, em Palermo, na calçada do Shopping
Alto Palermo, todas as terças-feiras, das 21 às 23 hs. Nessa ocasião, participamos da
realização de uma entrevista realizada por estudantes da Universidade de Buenos Aires
(U.B.A.) e, logo, ficamos observando o desenvolvimento da Assembléia, a fim de
conhecermos melhor a dinâmica, da qual tínhamos conhecimento apenas pelas leituras
realizadas.
O primeiro contato permitiu que observássemos a existência, entre homens e
mulheres, de um trato muito respeitoso, e mesmo afetuoso. Conheciam-se pelos nomes
e, antes de começar o debate, iam falando sobre as causas pelas quais não estariam,
nesse encontro, outros/as participantes (problemas de saúde, viagens etc.). Os/as
estudantes e a pesquisadora nos apresentamos e expusemos o motivo de nossa presença.
Explicamos que a pesquisa de mestrado tratava, centralmente, das Assembléias de
Bairro. Receberam-nos muito amavelmente e mostraram-se bem dispostos/as a
responder as perguntas dos outros estudantes que estavam lá para fazer um trabalho
prático da disciplina “Sociología del Trabajo”.
Quando foram interrogados/as sobre o surgimento da Assembléia comentaram
que tinha surgido “(...)Como todas, al principio la gente comenzó a juntarse
espontáneamente en las esquinas, en diciembre 2001, febrero 2002, después de los
cacerolazos se quedaban charlando(...)”. Também destacaram como, no começo, eram
muitos mais participantes, cem pessoas, e que agora o número tinha diminuído a 15 ou
20 participantes estáveis.
Um dos participantes mais jovens, que era sociólogo, comentou que havia
participado com seus pais na Asamblea Interbarrial de Parque Centenario4 e lá avistou
4
pessoas com um cartaz, em que constava o nome da Assembléia do seu bairro. Então, se
aproximou dessas pessoas e perguntou como funcionava a Assembléia que estava no
seu próprio bairro. Disseram-lhe que a mesma ainda não tinha começado, então nesse
dia decidiram organizá-la, era fevereiro de 2002.
Também, como parte da pesquisa exploratória, nesse tempo, mantivemos
conversas telefônicas com duas participantes de Assembléias de outras cidades, mas da
Província de Buenos Aires, a Asamblea de Talar e a Asamblea de Carapachay. O
contato com a informante da Asamblea de Talar foi feito por intermédio de um amigo e,
no caso da informante da Asamblea de Carapachay, tratava-se de uma pessoa já
conhecida. A primeira Assembléia tinha se dissolvido, segundo a informante, depois de
vincular-se a um partido político de esquerda. No caso da outra informante, ela tinha
decidido deixar de participar depois de considerar que o jeito de "fazer política" da
Assembléia de seu bairro não correspondia às suas expectativas.
É interessante como estes primeiros contatos não mudaram o projeto em si,
porém aportaram temas e questões essenciais - que não tinham sido abordados nas
leituras que orientaram a formulação do projeto -, e permitiram-nos conhecer
pessoalmente a atividade desenvolvida por estas organizações e os/as participantes
delas, a partir do qual tínhamos planejado fazer o traçado do que seria a coleta de dados.
Embora, nesse momento, tais temas e questões não encontrassem espaço para serem
incorporados no projeto inicial, em poucos meses as disciplinas cursadas e o contato
com outras discussões e pessoas e, principalmente, a mudança na orientação,
levaram-nos a reestruturar alguns itens do projeto.
Principais mudanças no projeto
No segundo semestre de 2003 realizemos uma revisão do projeto e modificações
estruturais, que consideramos terem sido fundamentais para podermos dar conta do
objeto de pesquisa e de algumas de suas dimensões, que até então não havíamos
considerado. As mudanças mais significativas foram: a consideração da participação das
mulheres no movimento e a escolha da História Oral como metodologia principal de
pesquisa.
A respeito do primeiro item, consideramos que um dos “motores de mudança”
foi o curso da disciplina “Teorias de Gênero”. A presença e participação das mulheres
nas Assembléias já eram dados comprovados, mas não haviam sido incluídos no
trabalho, a essa participação do coletivo feminino. As primeiras conversas com a Profa.
Dra. Maria Aparecida de Moraes Silva aproximaram-nos da bibliografia sobre
participação política de mulheres, a leitura e a reflexão levaram-nos a retomar leituras
de Teoria Sociológica e Teoria Política, disciplinas cursadas no primeiro semestre de
2003.
A bibliografia refletia como as mulheres tinham sido excluídas no processo de
surgimento das democracias modernas e, agora, no marco da crise da democracia,
principalmente na América Latina, surgia como questão: quais as contribuições das
mulheres para os processos de democratização, desde o espaço dos movimentos sociais?
Esta é uma questão que não temos o intuito de responder neste trabalho, mas que
começa a motivar nossa reflexão e teve um primeiro espaço de discussão no trabalho
final da disciplina Teorias de Gênero, trabalho esse em que abordamos a participação
política das mulheres nas Assembléias pesquisadas.
O que pretendemos assinalar é que ao tentar dar conta do objeto de pesquisa,
muitas vezes destacando uma de suas dimensões, fazemos com que percam visibilidade
outras dimensões relevantes, que trazem contribuições e possibilidades de
transformação importantes. O destaque da heterogeneidade da composição das
Assembléias, que é uma característica fundamental e valiosa, poderia levar a uma
invisibilidade da participação das mulheres e, portanto, das contribuições
transformadoras que elas trazem ao movimento.
A segunda mudança significativa, como mencionamos acima, foi referente à
metodologia, em virtude, principalmente, da mudança na orientação do trabalho. Assim,
tomamos contato com a metodologia de pesquisa da História Oral, a fim de avaliarmos
se era possível, a partir dela, desenvolvermos a pesquisa sobre o objeto mencionado. As
leituras indicadas pela nova orientadora, suscitaram reflexões e discussões, após as
quais consideramos que a História Oral daria conta de retratar o objeto, a realidade
envolta nele e atingir o objetivo da pesquisa.
Certamente, encarar uma pesquisa a partir desta metodologia constitui para nós
um desafio em vários sentidos. Por um lado, é reconstruir a memória da história recente,
o vivenciado pelas pessoas que se envolveram nos acontecimentos do 19 e 20 de
dezembro e que, depois desses fatos, começam a desenvolver, em conjunto, novos
projetos. É, também, defrontar-nos com uma outra memória, que constitui a luta de
muitas pessoas e coletivos, a memória sobre a ditadura militar, suas conseqüências, seus
orienta o agir no presente, o que se faz e o que não se tem que fazer. Cabe destacar que
esta reflexão aplica-se, geralmente, a todas as pessoas tenham militado ou não na
década de setenta e aparece também em outras, mais jovens, como memória herdada
(Pollak, 1992). Assim, a memória dos/as desaparecidos na última ditadura militar,
constitui um eixo fundamental a partir do qual a Asamblea Popular de San Telmo-Plaza
Dorrego constrói identidade coletiva e ação política (Arendt, 1991). Este será um tema
que abordaremos a partir da análise de um mural realizado pelos/as participantes,
durante uma “Jornada Cultural em Repúdio ao Terrorismo de Estado”, em março de
2002.
E, finalmente, é um desafio porque se trata do nosso primeiro trabalho utilizando
esta metodologia, portanto, deveríamos dizer que mais que desafio é uma grande
possibilidade de aprendizagem. Uma aprendizagem que vale muito a pena porque faz
sentido com o intuito de que a democracia e as construções que ela fundamenta, e que
muitos tentamos trabalhar cada dia, constituam também uma forma de construir
conhecimento.
A metodologia
A escolha da História Oral veio enriquecer profundamente o trabalho que aqui
apresentamos, dando uma visão original do objeto, que não foi abordado a partir desta
perspectiva por outras pesquisas sobre o tema. A mudança na metodologia de pesquisa
implicou um novo planejamento da coleta de dados, como descreveremos mais adiante.
As potencialidades da metodologia são destacadas por Neves (2000, p.116-117),
que assinala três aspectos relevantes da História Oral: refere-se ao tempo presente, à
história contemporânea; o seu espaço é marcado pela intersubjetividade (no sentido de
diálogo entre diferentes identidades), e possibilita o afloramento de múltiplas versões da
história. Explorar esta metodologia permite disponibilizar um conhecimento sobre a
história, constituído por meio da visão de quem a vivenciou, para as gerações vindouras,
contribuindo para a construção da consciência histórica individual e coletiva. Neste
sentido, Thompson (1998) aponta para a construção de uma história mais socialmente
consciente e democrática, assinalando que:
“... as testemunhas podem, agora, ser convocadas também entre as
classes subalternas, os desprivilegiados e os derrotados. Isso propicia
uma reconstrução mais realista e mais imparcial do passado, uma
um compromisso radical em, favor da mensagem social da história como
um todo.” (op.cit., 1998, p. 26)
A escolha da História Oral nos fez deparar com uma questão já levantada pelos
pesquisadores/as desta metodologia, a saber: a necessidade da incorporação de
documentos (Vilanova, 1998) que enriqueçam as fontes orais. Os argumentos
baseiam-se tanto no fornecimento de evidências quanto na adequação da maneira de fazer
pesquisa na sociedade atual, caracterizada pelo desenvolvimento contínuo dos meios de
comunicação e sua inclusão vertiginosa na nossa vida cotidiana. Como
pesquisadores/as, segundo Vilanova (op.cit.) estamos ante um novo desafio posto pelos
novos sistemas de comunicação que implica a inovação na maneira de pensar, investigar
e ensinar.
“los nuevos sistemas de comunicación exigen un cambio de perspectivas
en nuestra manera de mirar, escuchar o escribir.(...) se amplían nuestros
marcos de referencia y, por lo mismo, hemos de inventar fuentes con
otros ángulos de visión antes no imaginados.” (op.cit., p. 33)
Ela propõe uma história sem adjetivos, uma história que necessariamente deve
usar fontes orais mas, também, dados, imagens e textos, a fim de não incorrer no risco
de escrever histórias incompletas que silenciem aspectos essenciais de nosso viver
(op.cit., p. 35). Assim, a construção apresentada ao leitor é mais participativa.
A possibilidade de acesso a outros documentos, segundo Thompson (1998, p.
25), já está posta pela própria metodologia e o argumento que utiliza relaciona-se com a
realidade que o/a pesquisador/a tenta abordar. Segundo o autor mencionado:
“A realidade é complexa e multifacetada; e um mérito principal da
história oral é que, em muito maior amplitude do que a maioria das
fontes, permite que se recrie a multiplicidade original de pontos de
vista.” (op.cit., p. 25-26)
Assim, destaca como a utilização da entrevista propicia o acesso a outros
documentos (sejam estes registros escritos, fotografias etc.) que, de outra forma,
dificilmente seriam localizados e que, portanto, vêm a enriquecer a pesquisa.
Portanto, considerando estas discussões e tentando aproveitar ao máximo o
concomitantemente com a metodologia da Observação Participante. Finalmente, com o
objetivo de ampliar o espectro de coleta de dados, incorporamos a busca e utilização de
fotografias e diversos materiais produzidos pelos/as participantes. Pretendemos, assim,
recuperar a diversidade de expressões que o movimento tem, assim como sua
originalidade.
Nas Assembléias pesquisadas, comprovamos como a Internet era um meio
utilizado. Na Asamblea de Palermo Viejo só uma das participantes não utilizava a
Internet, os/as outros/as participantes comunicavam-se por correio eletrônico e a
Assembléia contava com uma homepage, com artigos próprios e de jornais etc., que
serão citados oportunamente no decorrer do trabalho. No caso da Asamblea Popular de
San Telmo-Plaza Dorrego, os/as participantes têm um endereço comum de correio
eletrônico e os comunicados, os projetos, as fotografias e outros documentos estão
disponíveis na rede. Inclusive, na última reunião observada, se apresentou como
proposta criar a homepage da Assembléia.
No trabalho priorizamos os materiais produzidos pelos/as participantes do
movimento, considerando nosso objetivo de descrever as Assembléias a partir de suas
experiências. Assim, os textos citados ou descritos são incorporados ao corpo da
dissertação, enquanto que os outros materiais, obtidos antes, durante e após a coleta,
geralmente são incluídos nos anexos.
Os outros materiais utilizados são diferentes publicações, como matérias de
jornais, revistas etc. e, também, publicações surgidas após os fatos do 19 e 20 de
dezembro. A utilização destes materiais tem caráter ilustrativo, referencial e, em alguns
casos, testemunhal, mas está sempre vinculado à análise das entrevistas realizadas
durante a coleta de dados. Como assinala Catela (2001), a imprensa escrita não pode ser
deixada de lado na pesquisa, por ser uma fonte importante de representação da
realidade. Segundo a autora:
"A imprensa escrita configura um suporte considerável na constituição
da ‘opinião pública’, formando um espaço altamente eficaz onde se
cristalizam os problemas da nação, as posturas e disputas sobre soluções
e caminhos políticos a serem tomados. Na Argentina, a imprensa escrita
tem alto consumo e forte impacto social."(idem., p. 43)
Assim, observamos que uma das Assembléias adquiriu um lugar destacado por
da Argentina, Página/12. O fato de utilizar os jornais traz uma outra questão: a relação
estabelecida entre as Assembléias e os "media", que no começo mostraram o trabalho
do movimento e, logo, foram não só tirando-o de cena, senão também se convertendo
em seus detratores (exemplo, o jornal Clarín). Este fato foi explicitamente manifestado
pelos/as participantes5. Não é este o caso particular do jornal Página/12, como podemos
observar em várias matérias publicadas por este jornal.
Delimitação do trabalho de campo
A mudança de metodologia de pesquisa trouxe imediatamente a necessidade de
avaliar o planejamento que tínhamos feito para a coleta de dados. Assim, surgiram
novas modificações que nos permitiram aprimorar o plano e delimitar mais
razoavelmente o trabalho de campo. O projeto inicial indicava as Assembléias onde se
desenvolveria a coleta de dados, a saber, três Assembléias de Buenos Aires e, se fosse
possível, uma de um outro Estado. Certamente, uma coleta assim vislumbrou-se como
claramente inviável, considerando os custos que o trabalho de campo implicaria e os
prazos estabelecidos para a realização do mestrado. Portanto, decidimos que a coleta se
faria em duas Assembléias da Capital Federal, principalmente, porque nela o
movimento teve maior força. Em março de 2002 contabilizavam-se 272 Assembléias de
Bairro, dispostas da seguinte maneira: 41% delas estavam na Cidade de Buenos Aires,
39% funcionavam na Província de Buenos Aires, e as demais em outras cidades do país
(Cerioli, G., 2002).
No tocante à escolha das Assembléias, optamos pela inserção destas em bairros
diferentes, a fim de obtermos uma visão das variantes que poderiam aparecer no
movimento em contextos diferentes. Embora, as Assembléias a serem pesquisadas
devessem responder aos eixos chaves do movimento (horizontalidade, democracia
direta e autonomia em relação aos partidos políticos), poderiam se diferenciar por suas
orientações, atividades etc. e, também, pelas escolhas que fizeram no percurso de sua
história. Assim, pensamos que seria possível ter uma visão das diferentes formas de
organização e possibilidades do movimento e também como forma de refleti-lo nas
suas particularidades.
5
Como mencionamos acima, o primeiro contato já havia sido feito com a
"Asamblea de Altos de Palermo" e com alguns participantes dela. Mas, antes de
restabelecermos o contato para começar a coleta de dados, um informante comentou
sobre uma outra Assembléia do mesmo bairro de Palermo destacando seu trabalho,
principalmente, a atividade político-cultural que desenvolvia (referia-se a “La Trama”,
evento que será descrito oportunamente), e manifestando que era uma Assembléia que
“valia la pena conocer”. Então, decidimos entrar em contato com os/as participantes
pessoalmente, visitando o prédio em um dia de reunião do grupo e apresentando-nos
como pesquisadora. Assistimos o encontro de 15 de janeiro de 2004. Após a
observação, decidimos fazer a coleta com este grupo, considerando que: o número de
participantes era maior nesta Assembléia, (a Asamblea de Altos de Palermo
encontrava-se com poucos participantes quando fizemos a pesquisa exploratória); mulheres e
homens tinham feito a gestão para declarar o prédio no qual trabalhavam como
patrimônio histórico (enquanto a outra Assembléia funcionava ainda na rua); o grupo
aceitou nossa presença e o bairro no qual a Assembléia apresentava características que o
diferenciavam do bairro da outra Assembléia pesquisada. Neste ponto, é preciso
esclarecer que naquele momento funcionavam dois grupos com o nome de Asamblea de
Palermo Viejo, paralelamente (mesmo local, dia e horário de encontro). Como o contato
foi feito com participantes do primeiro grupo, além dos demais motivos apresentados,
permanecemos participando das atividades deste.
Cabe destacar que a Asamblea de Palermo Viejo possibilitou o contato com a
outra Assembléia que escolheríamos para pesquisar, a Asamblea Popular de San Telmo
– Plaza Dorrego. Na primeira visita que realizamos ao prédio da Asamblea de Palermo
Viejo – um espaço recuperado onde homens e mulheres faziam as reuniões –
constatamos que tinham painéis, cartazes e recortes de jornais que informavam algumas
ações empreendidas, diferentes trabalhos, protestos, atividades etc. Nesse material,
encontramos um boletim informativo de uma outra Assembléia. Tratava-se da
"Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego". A leitura do boletim colaborou na
reflexão de que talvez esta fosse a outra Assembléia que estávamos procurando,
basicamente, pelas atividades que desenvolviam, as temáticas abordadas etc., (e mesmo
considerando o bairro, que tem outras características em relação ao de Palermo Viejo) e,
aparentemente, por ter um perfil diferente da outra Assembléia escolhida.
A partir disso, na semana seguinte, visitamos o prédio construído pelos/as
contato nos apresentamos como pesquisadora e comentamos sobre os objetivos do
projeto. As pessoas que nos receberam informaram que se reuniam nas terças-feiras a
partir das 20:30 hs., na Plaza Dorrego.
Cabe assinalar que as Assembléias reúnem-se semanalmente e, no caso da
Asamblea de Palermo Viejo, às quintas-feiras em torno das 20:30hs. Desde o primeiro
contato com os/as participantes, tanto desta Assembléia como da outra pesquisada,
merece destaque reconhecer que sempre fomos bem recebidos e tratados. Os/as
participantes sempre estiveram dispostos a nos orientar ou informar sobre as atividades
que desenvolviam e, também, costumavam nos indicar pessoas que tinham materiais e
que poderiam ajudar na pesquisa ou assinalavam com quais seria importante
conversarmos. Assim, conseguimos reunir diferentes artigos que foram escritos pelos/as
participantes, apresentados em congressos ou publicados em livros no país e no
estrangeiro, e participar e observar diferentes atividades desenvolvidas pelas
Assembléias.
Em todos estes casos, os/as participantes manifestaram disponibilidade para
contribuir com a pesquisa. Tivemos a oportunidade de entrevistar algumas das pessoas
que participaram desde o início do movimento para, a partir dos seus depoimentos,
realizarmos a descrição do surgimento das Assembléias. Os depoimentos dos/as
participantes relatando sua própria história constitui um fato inestimável, para a
construção de uma história mais democrática. Portanto, tentaremos aproveitar da melhor
maneira esta oportunidade de trabalho e aprendizagem. Sobre a pesquisa e as relações
que a partir dela se estabeleceram, houve conversas e situações que consideramos ser
fundamental referir, porque marcaram nosso posicionamento como pesquisadora neste
trabalho.
Relação entre pesquisadora e sujeitos da pesquisa
As Assembléias não apenas foram espaços que se abriram para a participação
política, a ajuda solidária etc., também, foram pólos de atração para o turismo social e a
pesquisa acadêmica nacional e internacional. Este fato revelou-se prontamente na
pesquisa bibliográfica inicial, e comprovou-se posteriormente tanto na pesquisa
exploratória como na coleta de dados. Consideramos fundamental nos referir a esta
questão porque ela revela como nos foi requerido um compromisso como pesquisadora,
estudo tem. Assumido esse compromisso, foi possível estabelecer uma relação muito
enriquecedora com os sujeitos pesquisados, nas palavras deles/as “de ida y vuelta”.
Cada vez que nos apresentávamos como estudante de mestrado da Universidade
Federal de São Carlos fazendo uma pesquisa que tinha por tema “As Assembléias de
Bairro”, os/as participantes comentavam que já tinham recebido outras visitas de
estudantes do país e de outras partes do mundo (Brasil, Inglaterra, Espanha, Holanda,
Alemanha, Itália etc.). Mencionaram também a presença de cientistas sociais, como por
exemplo, Naomi Klein, autora de “No Logo”, que fez uma pesquisa sobre os
movimentos sociais surgidos na Argentina. Estela, da Asamblea Popular de San
Telmo-Plaza Dorrego, destacava o fenômeno.
“(...) a partir del turismo social que hay en la Argentina, que hay mucho
turismo social recibimos la visita siempre de gente que viene a ver qué
somos las asambleas. San Telmo, nos ven y ‘qué es esta asamblea?’ y
‘quién la dirige?’ y hay voces que se escuchan más que otras pero no la
dirige nadie.(...)”
A pesquisa exploratória já nos tinha permitido tomar conhecimento da situação
brevemente referida, enquanto que a pesquisa propriamente dita, requeria o
compromisso de devolução dos resultados do trabalho. Assim, em uma situação de
observação participante, assumimos o compromisso de entregar uma cópia do projeto de
pesquisa e, posteriormente, uma cópia da dissertação. Destacamos, também, que
acreditamos ser fundamental entregar a eles/as o trabalho, gerado nesse espaço, durante
as observações, e que faz parte da história que participantes, mulheres e homens, estão
construindo.
Como foi assinalado pelos/as próprios/as participantes no momento em que
realizamos nosso trabalho de campo, outros/as pesquisadores/as já haviam passado
pelas Assembléias. Assim, havia nas Assembléias uma atitude mais crítica a respeito da
pesquisa e se deseja, justamente, uma relação de reciprocidade. A entrega da cópia do
projeto, nas duas Assembléias pesquisadas, abriu-nos a possibilidade de entrevistas e de
acesso a materiais produzidos pelos/as participantes. O projeto foi lido por algumas das
pessoas que o receberam e elas decidiram fazer uma devolução, que incluiu correções,
A coleta
A coleta de dados em campo desenvolveu-se em janeiro e fevereiro de 2004.
Realizamos quatro observações participantes em cada uma das Assembléias, sendo as
duas primeiras da totalidade do encontro. Nas seguintes observações, decidimos
acompanhar os encontros no horário fixado pela Assembléia (de duas horas), devido ao
prolongamento das reuniões, em função de temas mais polêmicos ou que requeriam
maior discussão (houve encontros que acabaram após a meia-noite). Esta decisão foi
baseada na dificuldade de transporte (o local de pesquisa ficava a 50 km da moradia da
pesquisadora) e no fato de que ficar até depois da meia-noite nos encontros trazia muito
risco para a segurança pessoal da pesquisadora.
A respeito das entrevistas, elaboramos e utilizamos um roteiro de temas
(ANEXO 01). Para a escolha das pessoas a serem entrevistadas estabelecemos os
seguintes critérios: a participação desde o início (pelo menos uma pessoa entrevistada
de cada Assembléia devia responder a este critério, dado que um dos itens do objetivo
do trabalho é descrever o surgimento do movimento); a participação em outras
atividades desenvolvidas pela Assembléia, e a representação da heterogeneidade da
conformação do movimento (idade, gênero etc.). O objetivo dos critérios para a seleção
foi aproveitar ao máximo a entrevista e ter acesso a outras informações de “primeira
mão”.
É preciso mencionar que o segundo critério, que possibilitaria dialogar
diretamente com pessoas envolvidas no trabalho, criou uma grande dificuldade no
momento de realização da entrevista de grupo, por exemplo, na Asamblea Popular de
San Telmo – Plaza Dorrego. Por um lado, as pessoas com as quais combinamos
inicialmente a entrevista de grupo (representantes das diferentes atividades) não
conseguiram comparecer. Mas, afortunadamente, em seu lugar entrevistamos
individualmente quatro participantes (Paula, Bety, Ruth e Gabriela) que, nesse mesmo
dia e horário, estavam desenvolvendo diferentes atividades no prédio. As outras
entrevistas individuais já tinham sido feitas, considerando os critérios mencionados.
Primeiramente, entrevistamos Fany, que trabalha em um micro-empreendimento.
Realizamos duas entrevistas com Estela, que participa desde o início e está envolvida
em diferentes atividades, e uma entrevista com Gabriel, que faz parte da Comissão de
No momento de realização das entrevistas, perguntamos se poderiam ser citados
os nomes verdadeiros dos/as participantes no texto da pesquisa ou se preferiam
preservar sua identidade, sendo que todos/as preferiram que figurasse seu nome
verdadeiro. Portanto, assim são citados em todo o trabalho. A respeito da identificação
das falas registradas no diário de campo, durante as observações participantes, como
não estabelecemos acordo relacionado à utilização dos nomes, as mesmas serão citadas
como “a/o participante”, a fim de se preservar o direito delas/es não se identificarem.
No tocante às observações, a Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego,
desenvolve muitas atividades, portanto foi possível observarmos várias delas. Foram
realizadas observações: no merendero, realizado todos os domingos das 16 às 18 horas,
e ao qual recorrem crianças que moram nos hotéis do bairro; na olla popular,
especificamente a que se realizou no sábado 24 de janeiro de 2004; no plantão e reunião
da Comissão de Moradia, que se desenvolvem nas quartas-feiras, a partir das 17:30 hs.;
e, também, nos empreendimentos de pão, couro, ropero comunitário, e no ateliê de
corte e costura, e em uma reunião de coordenadores/as das diferentes atividades.
Na Asamblea de Palermo Viejo, desenvolvemos: observação de uma entrevista
de grupo realizada por outra pesquisadora; entrevista com um casal (Gabriela e Jorge)
que fora um dos dois casais que convocaram à primeira reunião da Assembléia; uma
entrevista de grupo (Pedro, Ángela, Carlos, Walter, Armonía etc.), mas com a
dificuldade de que apenas na última meia hora chegaram todos/as os/as participantes; e
uma entrevista individual com Armonía. Além disso, como o planejado também incluía
a observação participante em outras atividades desenvolvidas pela Assembléia, as
realizamos durante a celebração dos dois anos de existência da Asamblea de Palermo
Viejo e em uma atividade organizada para dar auxílio às pessoas que moravam em um
prédio do bairro que tinha se incendiado. Também coletamos diversos materiais
produzidos pelos/as participantes, como textos disponíveis na homepage da Assembléia,
livros e artigos, matérias de jornais etc.
Por outra parte, participamos do 14º Encuentro de Asambleas Autónomas, que se
realiza uma vez por mês, nos domingos pela tarde, e reúne a Assembléias de diferentes
bairros. Nessa ocasião entrevistamos Lúcio, da Asamblea de Nuñez-Saavedra, que
estava junto a outras participantes em um posto de venda de produtos da Cooperativa
"La Asamblearia", criada pela Assembléia mencionada. Também, como já foi
mencionado, coletamos fotografias dos/as participantes e produzimos outras, algumas
fotografias correspondentes ao mural realizado pela Asamblea Popular de San
Telmo-Plaza Dorrego constituem um material interessante que discutiremos e analisaremos no
primeiro capítulo.
Finalmente, gostaríamos apontar como uma das falhas no planejamento da
pesquisa, a falta de um orçamento detalhado para o trabalho de campo. Esta questão
poderia ter inviabilizado a coleta de dados, devido aos custos relativamente altos do
trabalho de campo, que não foram previamente analisados e avaliados.
O marco histórico
Com o intuito de explicar o surgimento das Assembléias e pelo fato do trabalho
ter sido produzido no Brasil, apresenta-se como indispensável fazer uma introdução da
história da Argentina. Pretendemos, assim, realizar a explanação para situar o
surgimento das Assembléias como processo decorrente dessa história e de marcos
históricos específicos, tais como o golpe de Estado de 1976 e a conseguinte implantação
da ditadura militar que se prolongou até 1983. Em um primeiro momento pensamos em
iniciar o recorte histórico a partir do retorno ao regime democrático, dado que em
dezembro de 2003, cumpriram-se 20 anos de democracia. Mas, ao considerar os fatos
do 19 e 20 de dezembro como "defesa da democracia" e a mobilização gerada ante a
declaração do estado de sítio sem restrições, feita pelo então Presidente Fernando De la
Rúa, decidimos que seria preciso fazer algum tipo de retrospectiva desde a ditadura
militar na Argentina.
Este novo recorte foi chave, porque a partir dele pudemos orientar a coleta de
dados e estes confirmaram imediatamente que estávamos no caminho certo. Estela, da
Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego, comentava:
“(...) O sea, nosotros, salimos básicamente para frenar un golpe de
Estado, (...) Creo que todos entendimos el mensaje del 19 de diciembre
cuando dijeron ‘Estado de sitio’. El estado de sitio nosotros sabemos lo
que significó en la Argentina entonces ahí dijimos ‘Basta’, dijimos ‘No’,
‘No al estado de sitio’(...)”
Assim, o trabalho de campo corroborou a importância deste novo recorte, como
podemos também observar tanto no mural da Asamblea Popular de San Telmo -Plaza
Dorrego, como em "La Trama" da Asamblea de Palermo Viejo. Estes fatos demonstram
memória, os/as participantes constroem argumentos, ações e formas de fazer
MAPAS
Figura 01: Mapa da Capital Federal.
Figura 02: Mapa indicando o lugar de reunião da Asamblea de Palermo Viejo no Bairro.
Fonte: http://cgi.grippo.com.ar/mp/go.mpc?http://www.cybermapa.com
Figura 03: Mapa indicando a localização do prédio da Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego.
CAPÍTULO I
Neste capítulo, desenvolveremos uma breve descrição da História Argentina6, a
partir do golpe de Estado de 1976até o surgimento das Assembléias, após o 19 e 20 de
dezembro. Esta introdução histórica tem por objetivo apresentar o contexto no qual
surgem as Assembléias, e dar ao leitor uma ferramenta para a melhor compreensão dos
fatos que serão referidos pelos/as informantes – muitas vezes em forma fragmentada ou
não cronológica – especialmente na apresentação do mural que se realizará na parte
seguinte. Como já assinalamos, o recorte temporal estabelecido abrange fatos históricos
mencionados pelos/as participantes do movimento como argumentos referentes ao
surgimento, existência e permanência das Assembléias, assim como de sua participação
nas mesmas. Portanto, é importante explorarmos este tema antes de desenvolvermos os
objetivos da pesquisa, como a descrição das Assembléias de Bairro, seu surgimento e as
práticas levadas a cabo pelos/as integrantes das mesmas, a partir de suas experiências.
Esta revisão histórica precederá a apresentação e análise de um mural produzido
pelos/as participantes da Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego. Este mural
conta alguns fatos históricos, a começar pelo golpe de 1976, e finaliza na atualidade,
com o surgimento das Assembléias de Bairros. A escolha do mural se explica pelo fato
de que ele reflete, por meio de outra linguagem, alguns acontecimentos significativos da
História Argentina e, simultaneamente, constitui uma construção de uma das
Assembléias pesquisadas. Portanto, constituirá uma primeira aproximação ao
conhecimento do nosso objeto de pesquisa.
1.1 Revisão histórica
Nesta parte pretendemos de forma sucinta caracterizar a História Argentina a
partir do Golpe militar de 1976 até o surgimento das Assembléias. Assim, o texto inicia
pela implantação da ditadura militar em março 1976, posteriormente a volta ao regime
democrático com o governo de Raúl Alfonsín, seguido pela primeira e segunda
6
presidência de Carlos Menem, a presidência de De La Rua e a situação que se viveu nos
dias seguintes a sua renúncia, até o surgimento das Assembléias, isto é, janeiro de 2002.
Ditadura militar (1976-1983)
Em 24 de março 1976, a Presidente argentina, Isabel de Perón7, foi detida e
transferida para uma província do sul do país. Uma Junta de Comandantes8 assumiu o
poder e designou como presidente de fato Jorge Rafael Videla9. Começou, assim, o
“Proceso de Reorganización Nacional” (PRN), que teve como objetivos restaurar a
economia e lutar contra a subversão (De Riz, 1980, p. 71). Vinculado ao primeiro
objetivo apresentado, os militares optaram por um modelo de acumulação. Esta opção,
segundo De Riz (1980), manifestou uma das especificidades do regime militar. Para a
autora, a política implementada buscava produzir transformações profundas na estrutura
econômica argentina, e respondia a um contexto de crise registrada nos países
industrializados, criando as condições para uma nova divisão internacional do trabalho
orientada pelo neoliberalismo (op.cit., p.73).
O plano econômico contou desde o começo com o apoio do governo dos Estados
Unidos. Assim, uma semana após o golpe militar o Fundo Monetário Internacional
(FMI) aprovou um empréstimo de cem milhões de dólares para recompor as reservas do
país (Ayerbe, 1998, p. 44). No mês de agosto foi aprovado um segundo crédito de 260
milhões, deixando claro que a política econômica do governo argentino tinha respaldo
internacional. Com José Martínez de Hoz como Ministro da Economia, mudou-se o
padrão de acumulação, da industrialização substitutiva para a valorização financeira. O
endividamento externo e fuga de capitais iniciaram um ciclo de “rentismo financeiro”,
que consistia na rotação dos capitais sobre si mesmos, criando interesses sem respaldo
na produção real (García, 1989, apud. Rodríguez, 2004). Os ganhos obtidos no mercado
financeiro local eram remetidos ao exterior (ver Gráfico 1). Esta fuga de capitais
representou 71,8% da dívida até 1982 (Rodriguez, op. cit.). Portanto, a situação
caracterizou-se por processos inflacionários, desvalorizações sucessivas e/ou criação de
nova moeda, aumento do déficit das empresas nacionais – por exemplo, Yacimientos
Petrolíferos Fiscales (Y.P.F.) –, aumento da dívida externa e aumento da especulação.
7
Segunda esposa do ex-presidente Juan Domingo Perón. Foi sua companheira de candidatura em 1973, quando ele é eleito presidente. Ao morrer Perón em 1 de julho de 1974, ela como vice-presidente assume o cargo.
8
Fonte: Basualdo (2002) La crisis actual en Argentina: entre la dolarización, la devaluación y la redistribución del ingreso, Chiapas, No. 13: México DF, p. 7-39
As políticas adotadas criando condições favoráveis para o comércio exterior e
para a “fuga de capitais” beneficiaram as grandes empresas de capital nacional e
estrangeiro, mas eliminaram as empresas medianas e pequenas. Definindo, assim, um
processo de “massiva mobilidade descendente” que, embora tenha raízes anteriores ao
Processo (termo com o qual costuma se referir à ditadura), acentua-se e aprofunda-se
com as medidas implementadas a partir da metade da década de 70 (Minujin, 1992). Os
capitais que eram transferidos ao exterior no processo de valorização financeira eram
fruto da “brutal redistribuição do ingresso posta em funcionamento desde o mesmo
momento do golpe militar, contra os assalariados” (Basualdo, 2002, p. 14).
Segundo Beccaria (1992), a queda dos salários e a distribuição mais desigual
acentuaram-se a partir de 1975, mas ganharia força com as medidas repressivas
implementadas pelo regime militar. A neutralização do movimento sindical realiza-se
de diversas formas. Por um lado, a Central General de Trabajadores (C.G.T.) e a
Confederación General de Empresarios (C.G.E.) foram interditadas e eliminaram-se as
convenções coletivas. Por outro, aplicaram-se medidas de ajuste e de diminuição do
salário real, que chegou a 50% (De Riz, 1980). As medidas econômicas são entendidas,
pelos autores consultados, como forma de disciplinar a classe trabalhadora. Desta
9
maneira, os trabalhadores não somente viam anuladas as possibilidades de negociação
pelo poder sindical, senão que também se enfrentavam com um contexto que priorizava
a especulação financeira e era incapaz de gerar novos empregos. Incrementa-se o
emprego informal (Beccaria, op.cit, p.100-101).
A política econômica do governo estabeleceu-se em base a um disciplinamento
social, também, por meio do terrorismo de estado, enquanto que a política
implementada corroía as bases de sustentação dos setores em questão diminuindo seu
peso político e aprofundando, em conseqüência, o modelo (Rodríguez, 2004). Assim, o
primeiro objetivo, restaurar a economia, estava vinculado ao segundo, lutar contra a
subversão. O novo governo ordenou a dissolução do Congresso e dos partidos políticos
e a destituição da Corte Suprema de Justiça. Segundo Ayerbe (1998), desde o início da
ditadura:
“até dezembro de 1978 são implementadas as principais medidas para
criar as precondições das mudanças estruturais que permitam a
reestruturação da sociedade argentina de acordo com as intenções do
regime militar” (p. 43).
Como segundo objetivo, os militares desenvolvem o plano de aniquilar o
“inimigo interno” em nome da segurança nacional (De Riz, op.cit.; Dellassoppa, 1998).
Sucederam-se, a partir desse ano, diferentes ações de grupos armados e de repressão,
cada vez mais violentas. Os grupos das Forças Armadas atuavam já em um marco de
clandestinidade. A repressão não se limitava a recair sobre organizações “subversivas”,
também, foram seqüestrados, “desaparecidos” e/ou assassinados membros da Igreja
(bispos, padres, freiras e catequistas), líderes de organizações de base, estudantes,
escritores e outros intelectuais. Por exemplo, em La Plata (Capital da Província de
Buenos Aires), em 16 de setembro de 1976, aconteceu a chamada “Noche de los
Lápices”. Um grupo de membros da Unión de Estudiantes Secundarios (UES), que
protestava por passes de ônibus para estudantes, foi seqüestrado torturado e seis deles
continuam desaparecidos.
Propriedades de pessoas presumidas guerrilheiras foram transferidas para
integrantes das forças da repressão e muitos/as argentinos/as optaram por se exilar. Um
relatório aponta que dois milhões e meio de argentinos/as saíram do país como exilados
ou em busca de trabalho. Nos primeiros anos do Processo, apareceram queixas de
numerosos abusos cometidos. Em 1977, um grupo de mães de pessoas desaparecidas
iniciou as manifestações (chamadas “rondas”) em torno da pirâmide da “Plaza de
Mayo”.
Segundo cálculos da Junta, em setembro de 1977 estavam detidos ou mortos
cerca de 8.000 subversivos e, embora nunca fosse revelado, existiam 300 campos
clandestinos de detenção - os principais foram “Campo de Mayo”, a “Escuela de
Mecánica de la Armada” (ESMA) e “la Perla” (Córdoba). Havia um plano de
cumplicidade, “Operativo Cóndor”, entre as ditaduras do Chile, Uruguai, Brasil e
Argentina que ampliava o campo de atuação do regime.
Em 1978, durante a Copa do Mundo tornou-se evidente que o resto do mundo
sabia melhor o que acontecia na Argentina que os próprios argentinos/as. Os
organismos de direitos humanos divulgavam os efeitos da “guerra sucia”, enquanto na
Argentina havia um rigoroso controle dos meios de comunicação e, mesmo, jornalistas
eram assassinados se divulgassem informações não permitidas.
Outro fato que merece observação, mais vinculado à política externa, foi o
conflito de limites com o Chile. Um acordo assinado em 1971 encarregava a
decisão, a respeito da posse das Ilhas do Canal de Beagle, a uma Corte Arbitral
integrada por cinco juízes do Tribunal Internacional de La Haya, presididos pela
Rainha da Inglaterra. Em 1977, a Corte decidiu em favor do Chile. Mas, na
Argentina, essa sentença foi considerada arbitrária e, em conseqüência disso,
apresentaram-se duas posições: uma disposta a um novo diálogo com Chile e outra
que tentava beneficiar-se com uma possível guerra. A segunda posição impôs-se.
Finalmente, no dia fixado para começar o ataque, o Papa João Paulo II ofereceu-se
para mediar a solução do conflito. Assim, a guerra foi impedida, embora não se
tivesse chegado a uma solução definitiva.
Em meados de 1980, o presidente de fato Jorge Rafael Videla insinuou a
possibilidade do fim da ditadura, enquanto outros militares, como Galtieri, chefe do
Exército, afirmava que “las urnas están bien guardadas”. Em outubro do mesmo ano, a
Junta de Comandantes designou como sucessor da presidência o General Roberto Viola,
que assumiu o cargo em março de 1981. Nesse momento, diferentes partidos políticos
uniram-se para acelerar a saída democrática. Desde o exterior, continuavam os protestos
de organizações de direitos humanos, por exemplo, Amnesty International, que
Em dezembro de 1981, o segundo presidente de fato é retirado do seu cargo e
substituído pelo General Leopoldo Fortunato Galtieri. Novamente, alguns fatos
assinalavam uma possível chamada às urnas. Mas em 2 de abril de 1982, tropas
argentinas desembarcaram nas Ilhas Malvinas10. Segundo Ayerbe (1998):
“A ocupação das ilhas é concebida como uma ação sem grandes custos
militares e de enormes ganhos políticos internos e externos. No plano
interno, porque permite angariar o respaldo da opinião pública,
fortalecendo o regime e a liderança de Galtieri. No plano externo, pelo
efeito didático em relação ao Chile na disputa pelo canal de Beagle”(p.
49)
Esta situação gerou a reação de cidadãos e cidadãs, uma multidão congregou-se
na “Plaza de Mayo” para apoiar o governo. O governo argentino, também, contava com
o apoio do governo de Reagan. Mas, no momento das definições, a Inglaterra,
respaldada pelos Estados Unidos, retoma o controle das Ilhas. Em 14 de junho, o
General Benjamín Menéndez, no comando das tropas, declarou rendição. Este fracasso
marcou a derrota total do Processo (Ayerbe, 1998; Linz & Stepan, 1999 e outros).
Segundo Ayerbe (1998):
“O apoio inicial da opinião pública se transforma em repúdio à
incompetência dos militares argentinos no seu próprio métier,
transformando a incipiente oposição ao regime, prévia à guerra, num
consenso pelo fim da ditadura” (p. 49)
Uma multidão exigia, naquele momento, a renúncia de Galtieri. Após a rendição,
os militares não somente tinham que procurar uma saída à manifestação dos setores
importantes da sociedade civil e política, senão também enfrentar “disensões,
recriminações e a indisciplina nos meios militares”, temendo “um conflito armado
intramilitar e a dissolução das forças armadas como organização” (Linz & Stepan,
1999, p. 227-228). Após a renúncia de Galtieri, os comandantes em chefe designaram
como Presidente ao General Reynaldo Bignone, que teve a seu cargo a liquidação do
Processo. Lidou com a inflação e com uma dívida externa que já somava 44 bilhões de
10
dólares. Mas, sua função principal foi tomar medidas que garantissem a impunidade dos
militares envolvidos na “guerra sucia”.
Em 28 de abril, foi sancionada uma “Acta Institucional” que declarava como
mortas às pessoas desaparecidas e remetia os “excessos” cometidos ao “juízo de Deus”.
Esta medida provocou reações no país e no exterior, aproximadamente 100.000 pessoas
fizeram uma manifestação em Buenos Aires para repudiá-la. Os partidos políticos
anunciaram que não considerariam vigente essa “auto-anistia”. Somavam-se denúncias
a respeito de violações de direitos humanos, a imprensa escrita e de radio difusão
divulgavam os fatos macabros da ditadura.
Linz & Stepan (1999) identificam alguns traços peculiares do regime militar
argentino que tiveram impacto no processo de transição democrática. O primeiro é o
fato de ser um regime militar sob comando hierárquico que nunca chegou a “colapsar”,
permanecendo assim em condições de causar sérias complicações à tarefa de
consolidação da democracia (op.cit., p. 228). Somava-se, a esse fato, a falta de preparo
dos partidos políticos; a ausência de diagnósticos da situacão econômica e o déficit
político gerado pelas políticas autoritárias. Neste sentido, Calderón & Jelin (1987)
apontam como, nos países que viveram ditaduras militares, os processos de transição
democrática operam, por um lado, em um contexto de destruição ou limitação do
sistema político e dos direitos dos cidadãos, marcado por um recolhimento para a vida
privada e, por outro, caracterizado por:
“uma incomunicabilidade no interior da trama das relações sociais e
entre a sociedade e os partidos políticos que, por motivos repressivos ou
outros, foram-se distanciando da vida cotidiana” (op.cit., p. 82).
Nesse contexto, os partidos começaram os processos internos. Raúl Alfonsín,
líder da Unión Cívica Radical (U.C.R.), realizou uma dura campanha contra o governo
militar e denunciou um pacto sindical-militar. Merece destaque o dado apresentado por
Ayerbe (1998), que destaca a elevada porcentagem de afiliação a partidos políticos: em
maio de 1983 são 5.610.520 pessoas afiliadas. Em 30 de outubro realizaram-se as
eleições e foi eleito Raúl Alfonsín, que obteve quase 52 % dos votos. Assim, o
peronismo perdeu sua histórica hegemonia eleitoral e começou o processo de
redemocratização do Estado. Constituiu-se novamente o Congresso e no dia 10 de
Presidência de Raúl Alfonsín (1983-1989)
O governo de Raúl Alfonsín foi encarregado de restabelecer as instituições
republicanas e a convivência democrática e pluralista. Mas, também, procurou
instâncias para julgar as pessoas responsáveis por delitos contra os direitos humanos
durante a ditadura militar. Assim, uma das primeiras medidas do governo consistiu em
processar dirigentes subversivos e integrantes das três Juntas do Processo. Além disso,
formou a “Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas” (CONADEP)11,
comissão encarregada de compilar dados sobre as violações dos direitos humanos
durante o regime militar (Catela, 2001). Enquanto isso, o “Consejo Supremo de las
Fuerzas Armadas” afirmava a legitimidade dos atos e diretivas do Processo.
O retorno da democracia promoveu a volta ao país de muitos docentes e
pesquisadores que tinham estado exilados. Como fatos importantes no âmbito cultural,
eliminou-se a censura para livros e espetáculos e as pessoas começaram a ocupar
novamente os espaços públicos.
Outra preocupação do presidente foi encerrar o conflito de limites com o Chile. A
oposição negou-se a ratificar o Tratado e, devido a isso, foi decidido convocar uma
consulta popular não vinculante. Com 81% dos votos favoráveis ao governo, o “Tratado
de Paz y Amistad con Chile” foi ratificado (1984). Este fato gerou novas formas de
cooperação pacífica com os países vizinhos. Dois anos depois, uma vez que o Brasil
democratizou-se, os presidentes Alfonsín e José Sarney assinaram os primeiros acordos
com vistas ao Mercosul.
Em 22 de abril de 1985, a Câmara Federal começou o julgamento contra os
ex-comandantes em chefe. Foi uma das poucas vezes em que se processou no próprio país
quem exerceu ilegalmente o poder12. O tribunal resolveu aplicar penas que foram desde
prisão perpétua, para Videla e Massera, até penas menores para outros acusados.
Leopoldo Galtieri, Omar Graffigna y Arturo Lami Dozo foram absolvidos. A sentença
coincidiu com os julgamentos que, no âmbito judicial militar, realizaram-se contra os
responsáveis pela Guerra das Malvinas. Neste sentido, Linz & Stepan (1999) apontam
como principais dificuldades do governo de Alfonsín a reação dos militares ante "as
11
Esta comissão foi composta por personalidades intelectuais, religiosas e da imprensa e presidida por Ernesto Sábato. A investigação da Conadep foi sintetizada no livro “Nunca Más” (Eudeba, 1984) e contribuiu, junto com outras publicações muito divulgadas, à tomada de consciência sobre o acontecido no país durante a ditadura militar.
12
iniciativas de pôr na cadeia os líderes hierárquicos do governo militar anterior" (op.
cit., p.230). Assim, os distintos levantes militares que aconteceram de abril de 1987 e
janeiro de 1990, enfraqueceram o governo da Alfonsín. Por um lado, o Presidente tentou
aliviar a pressão militar e foi aprovada, em fevereiro de 1987, a “Ley de Punto Final”,
que estabelecia a caducidade das ações contra militares. Por outro lado, os levantes
mobilizaram o país.
Na Semana Santa de 1987, a “Escuela de Infantería de Campo de Mayo” foi
tomada por um grupo de oficiais e suboficiais sob o comando do Tenente Coronel Aldo
Rico. Exigiam a renuncia do Chefe do Exército, o reconhecimento da atuação positiva
na repressão e que os meios de comunicação respeitassem as Forças Armadas. A
resposta dos/as cidadãos e cidadãs foi contundente, enormes concentrações na “Plaza
del Congreso” e na “Plaza de Mayo”, e universidades tomadas, pedindo a repressão dos
sublevados (Catela, 2001). Finalmente, no domingo de Páscoa, o Presidente foi até o
“Campo de Mayo” e conseguiu que os amotinados negociassem sua rendição. O preço
da rendição foi a sanção da “Ley de Obediencia Debida” (1987), que exime de punição
as pessoas que obedeceram a ordens na luta contra a “subversão”. Os grupos de
esquerda condenaram as leis como “leis de impunidade” e os protestos continuaram.
No percurso do Processo, a sociedade argentina adquiriu duas características
muito negativas: pobreza e desigualdade, que se agudizaram nos governos
democráticos. O retorno à democracia esteve marcado pela chamada “crise da dívida
externa”, iniciada em 198213. Neste período consolida-se estruturalmente a valorização
financeira e o sistema econômico é conduzido por setores em expansão (grupos
econômicos locais, conglomerados estrangeiros e a Bolsa), em base à redistribuição dos
salários dos trabalhadores (Basualdo, 2002). Esta redistribuição realizou-se de maneira
direta reduzindo os salários dos trabalhadores e, de maneira indireta, através dos
impostos e das privatizações ("Proyecto Privatización y Regulación en la Economía
Argentina" de 1999, e "Ley de Reforma del Estado", No. 23.696/1989).
A estas dificuldades somaram-se as ações dos sindicatos. A CGT unificou-se,
conduzida por Saúl Ubaldini. Linz & Stepan (1999) consideram que as possibilidades
de manobras de Alfonsín estavam limitadas por não contar com uma maioria em ambas
casas legislativas e, também, por não conseguir um acordo com os sindicatos peronistas
responsáveis do golpe de 1967. Disponível em: <http://www.odonnell-historia.com.ar/reciente/illiahoy.htm#conadep> Acesso em: 5 jul. 2004.
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