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A violência contra a mulher Xavante que aos poucos se vê

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Academic year: 2021

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A palavra índio não retrata minha experiência de pertencimento a um povo. Não sou índio, sou Munduruku. Pertenço a um

povo e esse povo tem um lugar, uma história, tradição, cultura, religiosidade, economia... No entanto, quando as pessoas me

chamam de índio, elas ignoram a minha experiência de humanidade. Quando digo que não sou índio, digo que não sou uma ideia

que as pessoas desenvolveram equivocadamente” (Daniel Munduruku - fala retirada da Mesa “A imperdoável capacidade

humana de apagar seus antepassados

”, da Festa Literária Internacional de Cachoeira - FLICA / Bahia)

Esse depoimento mostra que a invisibilização dos indígenas no Brasil começa pelo nome, mas

se estende a todo o seu universo. A incompreensão da sua língua (enquanto eles se esforçam

para compreender o português), a redução do seu território, a consequente diminuição da caça e da

pesca, a incorporação de hábitos como o consumo exagerado de açúcar,sal e álcool são dramas

em grande parte invisíveis. Talvez porque a sociedade envolvente os trate como selvagens

(página 2).

Nesse contexto, a mulher indígena, como a Xavante, que é tema deste jornal, sofre dupla invisibilização,

étnica e de gênero

(página 8), mas trata-se de um processo que está em fase de reversão, graças à luta

dessas guerreiras. É o que este jornal tenta captar a partir do seu nome, com a palavra completa INVISÍVEIS,

produzida nas cores tradicionais dos Xavante. Mas a parte vermelha do nome busca demonstrar que aos

poucos a palvara VISÍVEIS começa a refl etir a vida dessas mulheres e do seu povo.

Drama especial é o das mulheres vítimas de violência, tema central deste jornal, abordado com o relato

dos estupros sofridos - muitas vezes por meninas vulneráveis - e suas possíveis explicações

(páginas 3 e

4). Mas também há a punição cultural relacionada ao sexo, retratada para contextualizar adequadamente

o assunto

(página 6), a mudança de hábito representada pelo ato das vítimas em denunciar os estupros

fora do seu próprio sistema de normas, controles e punições

(página 5) e, fi nalmente, a violência indireta

sofrida pelas Xavante que se prostituem para sobreviver

(página7).

Este jornal - fruto de uma das 10 pautas nacionais vencedoras do 9o Prêmio Jovem Jornalista

Fernando Pacheco Jordão 2017, do Instituto Vladimir Herzog (SP) - trata, portanto, de uma invisibilização

histórica, mas procurando captar o movimento de visibilização que dela emerge, ainda que lentamente.

Foto:

Skarleth Martins /

(2)

E

stimativas apontam que antes de 1500 o território brasileiro era habitado por 5 milhões de pessoas, segundo documento da Unesco do ano de 2006. Essa população nativa caiu para 896 mil ha-bitantes em 2010, o que representa 0,4% do País, segundo dados do Instituo Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE).

Reconhecer essa baixa no contin-gente populacional indígena é dar o pri-meiro passo rumo ao esclarecimento da história por trás das profecias de extinção dos povos, previstas ainda no milênio pas-sado, e sobre as “pacifi cações” - mesmo que em menor grau - ainda impostas.

Os povos originários resistem e dão continuidade aos seus projetos coleti-vos de vida, reconhecendo os valores her-dados de seus antepassados, expressando e vivendo sua cultura através dos ritos e crenças. São projetos de vida de 305 et-nias que resistiram a toda essa história de opressão e repressão.

Entre as etnias que quase sucum-biram estão os A’uwê Uptabi, o Povo Ver-dadeiro, ou Xavante, como são conhecidos pela sociedade não-indígena. São cerca de 20 mil indígenas que ocupam o leste do esta-do de Mato Grosso, dividiesta-dos em sete terras indígenas (TIs): Areões (município de Água Boa), Marechal Rondom (Paranatinga), Pa-rabubure (Campinápolis), Pimentel Barbosa (Canarana e Ribeirão Cascalheira), Sangra-douro (General Carneiro, Novo São Joaquim e Poxoréu), São Marcos (Barra do Garças) e Marãiwatsédé (Alto da Boa Vista, Bom Jesus do Araguaia e São Félix do Araguaia).

Guerreiros pacifi cados - O povo

Xavante, segundo o livro do sacerdote cató-lico Bartolomeu Giaccaria e do missionário

alemão Adalberto Heide, Xavante - o Povo

Au-têntico (1972), diz ser oriundo do mar, mas as

primeiras notícias das quais temos conheci-mento são de 1784 e 1788, quando já habita-vam a região do norte de Goiás e sofreram a

primeira tentativa de pacifi cação empreendida

pelo então governador da província, Tristão da Cunha. Os Xavante foram então submeti-dos à governança da Coroa portuguesa, que os manteve em uma aldeia única chamada Carretão. Nesse aldeamento, militarmente vigiado e sob constantes abusos, enfraque-ceram e caminharam rapidamente rumo à extinção.

Em 1850/1860, um pequeno grupo conseguiu fugir e atravessar o Rio Araguaia (que marca boa parte da divisa de Goiás e Mato Grosso) e o Rio das Mortes (afl uente mato-grossense do Araguaia), chegando à Serra do Roncador, parte norte-oriental do Planalto Central Brasileiro. Neste local, con-seguiram se restabelecer, recusando qual-quer contato com outra sociedade durante quase um século.

Em 1932, dois padres católicos sale-sianos, Pedro Sacilotti (32 anos) e João Fu-chs (52 anos), foram mortos por um grupo de xavantes descontentes com a invasão de seus territórios durante a Missão Mato Gros-so, projeto da Igreja Católica para promover a aproximação com os indígenas da região. Hoje, ambos são mártires da Missão Sale-siana, que ainda é efetiva nas TIs do Mato Grosso, principalmente em Sangradouro.

Em 1938, o governo de Getúlio Var-gas deu início à famosa Marcha para o Oeste, tendo como objetivo a migração de parte da população brasileira para a região “desocupa-da” do centro do Brasil, trazendo um novo risco de contato aos A’uwê. Ficou sob o

en-cargo do então Serviço de Proteção ao Índio (SPI), atual Fundação Nacional do Índio (Fu-nai), a tarefa de “pacifi car” os Xavante.

Nesta época, por motivos ainda desconhecidos, surgiram rivalidades e lu-tas sangrenlu-tas entre vários grupos do povo Xavante, que resultaram na morte de uma equipe de pacifi cação do SPI chefi ada por Pimentel Barbosa (nome de uma das atuais Tis), em 1941.

Porém, foi somente em 1946, tam-bém com a equipe do SPI, mas já liderada por Francisco Meirelles, que a meta de paci-fi cação foi atingida através da troca de bens com representantes do grupo Xavante lide-rados pelo indígena Apöena. A celebração da mídia foi intensa e a publicidade em torno da pacifi cação dos Xavante alçou Meirelles e

Apöena à posição de heróis nacionais.

Foi somente em 1960, quando quase todas as aldeias já haviam estabelecido algum tipo de contato pacífi co com as

representa-ções da sociedade envolvente, que essa

paci-fi cação foi reconhecida. Durante os anos

se-guintes, várias doenças foram contraídas por meio de roupas usadas doadas às aldeias, fato que resultou na morte da maioria dos anciões, principais transmissores da cultura.

Nos anos de 1970 os incentivos fi scais destinados à colonização e ao desenvolvimen-to econômico atraíram colonos para as áreas tradicionalmente ocupadas pelos Xavante e o território, que durante quase cem anos havia reestruturado seu modo de vida, estava ame-açado.

Segundo o relatório do Instituto So-cioambiental (ISA), que explica sobre a

his-tória da pacifi cação, “o acesso a porções do

território tradicional do povo Xavante envol-veu, muitas vezes, fraudes. Sabe-se de casos em que, para disponibilizar terras à produção capitalista, autoridades alteraram mapas e atestaram a ausência de habitantes indígenas”, relata o documento.

A fome e os constantes confl itos com os colonos fi zeram com que alguns gru-pos procurassem ajuda nos gru-postos do SPI, enquanto outros pediam auxílio em missões salesianas. Em meados dos anos 1970, as famílias que haviam deixado as terras habi-tadas retornaram e acharam áreas ocupadas por colonos e fazendeiros destinadas ao agronegócio. Em algumas localidades, ha-viam sido estabelecidas cidades inteiras.

O caso mais conhecido - e recente - é dos indígenas de Marãiwatsédé (municípios de Alto da Boa Vista, Bom Jesus do Araguaia e São Félix do Araguaia), que, somente depois de 34 anos, conseguiram retornar à sua terra

de origem e encontraram 61,5% do território explorado à exaustão pela pecuária.

Com o passar dos anos, devido à reação de alguns membros da comunidade em buscar seus direitos e, com o auxílio do Xavante Mário Juruna (PDT/RJ), primeiro e único índigena até hoje à chegar ao posto de deputado federal (1983 à 1987), a luta pela demarcação e homologação das terras tradi-cionalmente ocupadas ganhou força.

Povo invisível - A imagem do

in-dígena como um empecilho para o desen-volvimento, preguiçoso e improdutivo está fortemente marcada nos municípios em que estão localizadas as Terras Indígenas. O pre-conceito contrasta com a imagem de outros membros da comunidade não Xava nte, que enxergam os indígenas como valiosos prote-tores das fl orestas, dos rios, e possíveis sal-vadores do planeta, ou que reconhecem os indígenas como povo e nação e o seu direito a um mínimo de auto-determinação e ma-nutenção da sua cultura e do seu território.

O texto de Luís Donisete Grupioni, publicado em 1995 pela Unesco, explica que “a imagem de um índio genérico, estereoti-pado, que vive nu no mato, mora em ocas e tabas, permanece predominante, tanto na es-cola como nos meios de comunicação”.

Segundo o agente de indigenismo e ex-coordenador regional da Funai em Bar-ra do Garças, Gustavo Sanches Nunes dos Santos, “lá no Sudeste, o pessoal adora ín-dio e aqui o pessoal odeia eles. Eu fui ver as histórias, principalmente aquelas em que o povo acha que eles nascem aposentados. Essa é uma das que faz mais mal. O povo acha que eles estão no ‘bem bom da vida’, só porque são índios. Falam que eles não traba-lham ou que são burros porque não falam a nossa língua”.

De acordo com Gustavo, o Xavan-te possui três fonXavan-tes de renda principais: “A primeira são os benefícios sociais, como o Bolsa Família, a aposentadoria rural, o salá-rio maternidade e o auxílio doença. A segun-da, é o salário de servidor na Saúde ou na Educação. A terceira, são os empregos em atividades privadas. Mas a maior parte é de benefícios sociais. Os Xavante enfrentam muitas difi culdades para conseguir emprego. Há muito preconceito”, conclui ele.

O contato com a sociedade envolven-te gerou profundas modifi cações na cultura, enfraquecendo as matrizes cosmológicas e míticas em torno das quais a vida na aldeia era moldada.

Dentro da cultura Xavante, os sonhos defi nem nomes, cantos, rituais; são previsões de boas ou más notícias e defi nem o papel de cada indivíduo dentro da aldeia. O ritual

Waiá’rini (iniciação espiritual), que pode

durar até três meses, dependendo da aldeia, é baseado na privação de comida, água e conforto, na tentativa de induzir os participantes a sonharem e, assim, defi nir quem são os novos curandeiros, guerrei-ros e sonhadores daquela comunidade.

O geógrafo e his-toriador Magno Silvestri, professor da Universidade Federal de Mato Gros-so, Campus Universitário do Araguaia, em Barra do Garças, está em fase fi nal do

doutorado na Universidade Federal

Fluminense (UFF) sobre confl itos territoriais que envolvem o povo Xavante e explicou que “o poder dos Xavante tem uma forte relação com os sonhos, que ocorre após as exausti-vas atividades de caça, que se estendem por vastas áreas de terra, dia após dia. Então, a orientação dos anciãos, a cultura que eles transmitem para os mais jovens, tem muita relação com a integridade territorial. Se esse território está devastado, não tem mais caça pra esse povo. O ancião ou aquele guerreiro perdem o poder do sonho”.

“O território possui então uma importância tão subjetiva e tão ampla que a gente não dá conta de entender. Somos acostumados a tratar a natureza e as terras como recurso, como bem a ser consumido, mas ela não é apenas isso, ele é vida, é ma-téria, espírito e isso fi ca distante do que nos acostumamos a ter como valor”, acrescen-tou Magno.

Um exemplo claro da nova organi-zação de vida foi abordado pelo diácono sa-lesiano e membro do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) José Alves de Oliveira, que atua na região de Campinápolis. “Na hora do Dabatsa (casamento), o rapaz tinha que demonstrar um grande gesto ao pai da noiva antes de ele entregar a fi lha. Qual é o grande gesto? Ir à caçada e trazer muitos animais, carne. Quando o pai da menina vê o genro dele com muita carne, o velho fi ca tranquilo, porque sabe que a fi lha não vai passar fome, não vai passar necessidade. Mas com esse processo de demarcação de terra e a caça cada vez mais escassa, criou-se outro modo de ver a sobrevivência da fi lha, o salá-rio”, afi rma José Alves.

A liberdade cultural buscada por todos os povos do mundo passa necessa-riamente, no caso do povo Xavante, pela manutenção dos seus modos próprios de vi-ver, o que signifi ca formas de organizar tra-balhos, de dividir bens, de educar fi lhos, de contar histórias de vida, de praticar rituais e de tomar decisões sobre a vida coletiva.

Dessa maneira, os Auwê Uptabi não são participantes de uma sociedade do pas-sado. São povos de hoje, dentro de uma cul-tura que também se transforma, que repre-senta uma parcela signifi cativa da população brasileira e que por sua diversidade cultural, territórios, conhecimentos e valores ajudam

a construir o Brasil.

História marcada pela interferência

Depois de resistirem durante muitos anos ao contato com a sociedade

envolvente, os Xavante lutam hoje pela sobrevivência física e cultural

(iniciação espiritual), que pode durar até três meses, dependendo da

novos curandeiros, guerrei-ros e sonhadores daquela

O geógrafo e his-toriador Magno Silvestri, professor da Universidade Federal de Mato Gros-so, Campus Universitário do Araguaia, em Barra do Garças, está em fase fi nal do

doutorado na Universidade Federal

senta uma parcela signifi cativa da população brasileira e que por sua diversidade cultural, territórios, conhecimentos e valores ajudam

a construir o Brasil.

Encontro entre Meireles e xavantes

Professor Magno Silvestri (UFMT)

Foto: Lamonica /Museu do Índio, 1951

Foto:

João Paulo Fernandes

Ilustração:

(3)

Violência dentro e fora do seu mundo

Delegacias de polícia e de defesa da mulher registram muitos casos de violência sexual contra mulheres

Xavante. Maioria das vítimas têm menos de 14 anos e os agressores são, em geral, da própria etnia

D

e acordo com estatística

di-vulgada pelo Fórum Brasi-leiro de Segurança Pública (FBSP), cerca de 45.500 mulheres foram estupra-das em 2015 no Brasil. Isso signifi ca que a cada 11,5 minutos uma mulher sofre vio-lência sexual no País.

No mesmo ano, o estado de Mato Grosso acumulou 45 registros, mais que o dobro da média nacional, que foi de 22,2 casos registrados a cada 100 mil ha-bitantes. O estado perde apenas para o Acre e Mato Grosso do Sul, que registra-ram, respectivamente, 65,2 e 53,9 casos a cada 100 mil habitantes.

Já a Delegacia Especializada de De-fesa da Mulher (DEDM) de Barra do Gar-ças (MT) registrou 20 casos de estupro no município de Barra do Garças (MT) nos primeiros cinco meses de 2017. O Delegado Heródoto Souza Fontenelle informa que a cidade mantém os mesmos índices registra-dos de janeiro a maio de 2016.

Já em relação às mulheres indígenas, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da Igreja Católica, informa que, durante o ano de 2015, foram registrados nove casos de violência sexual, assim distribuídos: Amapá (1), Mato Grosso (1), Mato Grosso do Sul (3), Rio Grande do Sul (1), Roraima (2) e São Paulo (1).

Entretanto, no que diz respeito somen-te a Mato Grosso, esses dados representam apenas 5,9% dos casos apurados pela presente reportagem em uma pequena parte do territó-rio do estado e de sua área indígena. No total, foram identifi cados 17 casos de violência se-xual contra mulheres indígenas ocorridos nos municípios de Barra do Garças, General Car-neiro e Campinápolis nos últimos nove anos, a grande maioria nos últimos três. Desses, 16 são de estupro e um de assédio sexual.

Treze casos estão documentados em Boletins de Ocorrência e Inquéritos abertos na Delegacia da Mulher de Barra do Garças ou nas delegacias de Polícia Civil das outras duas cidades citadas e três foram relatados com ri-queza de detalhes por fontes públicas, motivo pelo qual foram incluídos na estatística. (Veja o quadro completo dos casos na pág 04)

Um dos quatro casos não documen-tados em delegacias foi relatado pelo 2º te-nente Alexandro Silva e pelo soldado Márcio Maciel, ambos da Polícia Militar de Campi-nápolis. Seria o de uma menina de nove anos de idade, que teria engravidado no ato desse estupro e, posteriormente, abortado.

O segundo caso não registrado foi relatado pela assistente social da equipe vo-lante do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) de Barra do Garças, órgão do governo federal, Suelainy Rodrigues Morei-ra, que atende 49 aldeias da Terra Indígena São Marcos, em Barra do Garças.

Trata-se do caso de uma menina de 12 anos estuprada na sua aldeia, cujo agres-sor, segundo Suelainy, seria o primo da víti-ma, professor da escola local. Essa menina teria fugido para a cidade com a mãe dela e, segundo Suelainy, está morando em uma casa alugada na cidade de Aragarças (GO), separada de Barra do Garças apenas pelas pontes dos rios Garças e Araguaia.

Já o terceiro caso não registrado em delegacias foi informado pela diretora da Escola Estadual Couto Magalhães, de Campinápolis, Miriam Lacerda. Trata-se de assédio sexual denunciado pelos pais de alunas, que apontam um motorista de ônibus escolar da Prefeitura da cidade como o agressor.

O quarto e último caso não docu-mentado em delegacias de polícia foi in-formado por uma psicóloga do serviço de saúde indígena. Este, tem como vítima uma xavante adolescente e como agressor um ho-mem da própria etnia.

Seis dos oito casos em que a idade está identifdicada são de meninas menores de 14 anos de idade, consideradas vulneráveis aos olhos do Estado brasileiro. A maioria das víti-mas é da etnia Xavante, víti-mas há casos em que a vítima e o agressor são da etnia Bororo, das Terras Indígenas de Meruri (General Carnei-ro e Barra do Garças) e SangradouCarnei-ro (General Carneiro, Novo São Joaquim e Poxoreéu).

Entre os agressores, a grande maio-ria (15) é de homens da própmaio-ria etnia. So-mente três são da sociedade envolvente. Neste caso, homens que possuem algum tipo de vínculo com os indígenas. Um dos três agressores não indígenas, segundos os relatos ou registros policiais, é um freteiro (que faz transporte de e para os indígenas), outro é motorista de ônibus escolar e o terceiro, um Policial Militar do Estado de Goiás. São denúncias que ainda passam por investigação e segredo de justiça. Por isso, não podem ter nomes de vítimas e supostos agressores divulgados.

O número de casos de violência

se-xual contra as mulheres indígenas em todo o território da etnia Xavante pode ser maior do que os casos aqui apontados. Isso por-que, em razão do tempo e da logística da reportagem, apenas os casos de Barra do Garças, General Carneiro e Campinápolis foram pesquisados.

A população Xavante dessas três re-giões é, respectivamente, de 3.487, 1.427 e 7.621 indígenas, segundo dados do IBGE de 2010, o que representa um total de 12.535 membros dessa etnia. Já a população Xa-vante total apontada pelo mesmo censo é de 19.259 indígenas. E a população dos Bororo é de 1.817 pessoas.

É possível, portanto, haver casos de violência sexual nas demais quatro regiões e entre os demais Xavante da região. Além dis-so, é preciso considerar que muitos não são denunciados ou não chegam a ser comenta-dos pelas vítimas e seus familiares, por vergo-nha, medo e outros fatores. E não é diferente com as mulheres da chamada sociedade en-volvente. Nesta, o número de casos denuncia-dos ou divulgadenuncia-dos também é considerado pe-las autoridades da área, entidades de proteção à mulher ou estudiosos como bem inferior ao dos que ocorrem efetivamente.

O ex-juíz da Terceira Vara Cível de Barra do Garças, Wagner Plaza, hoje atuando em Rondonópolis (MT), diz que “os dados de violência sexual e domés-tica não são bem fiéis. Há o que chama-mos de cifra negra, os fatos que aconte-cem e não chegam ao Poder Judiciário. Uma quantidade mínima de crimes sexu-ais chega a público”.

Para Plaza, é a cultura dos povos in-dígenas que impede o acesso a essas infor-mações. “Acho que a sociedade indígena é mais machista, sequer deixando chegar ao conhecimento da sociedade branca os fatos. Com certeza, as indígenas são abu-sadas sexualmente, mas não há qualquer apoio ou forma de repressão ao agressor”, afi rma o magistrado.

Por outro lado, e além do fato de que a mulher não indígena também não denuncia sempre, é preciso considerar que a sociedade indígena possui seu pró-prio sistema de normas, controles e pu-nições, baseado na sua própria tradição cultural, o que pode ter inibido a denûn-cia e a busca por proteção e punição em outro sistema.

Fragilidade dos dados - É

ní-tida a falta e o desencontro de

informa-ções sobre a violência sexual contra as mulheres indígenas. Além do Cimi, so-mente a Organização das Nações Unidas (ONU) possui dados sobre os indígenas. Um relatório da ONU de 2010 afirma que uma em cada três índias sofre vio-lência sexual durante a vida, em todo o mundo. Mas o organismo não tem dados específicos sobre o Brasil.

A Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República tam-bém não possui informações sobre os casos denunciados. Por isso, foi necessário recor-rer à Ouvidoria da Secretaria Especial de Po-líticas para as Mulheres para obter os dados. Após consulta à área técnica da Secretaria de Enfrentamento à Violência contra as Mulhe-res, a Ouvidoria informou que a Central de Atendimento 180 não possui dados estatís-ticos sobre exploração sexual indígena que possam certifi car o fato. A Central 180 é um serviço à disposição do cidadão para denun-ciar, com proteção do anonimato, os casos de violência contra a mulher.

Nesse contexto de carência ou con-tradição de informações, surpreende o fato de nem a Fundação Nacional do Índio (Fu-nai) ter dados. Não há registros de estupros e todos os servidores procurados formal ou informalmente, falando ou não em nome da entidade, negam a existência do fato ou dizem que existe, mas não há documentos ou dados. O agente de indigenismo da Funai Gustavo Gomes Sanches Nunes dos San-tos confi rma a existência desse tipo de faSan-tos e chegou a comentar um caso de um indí-gena que teria relatado a ele o estupro de sua fi lha por um fazendeiro não indígena, mas que, após ter ouvido a recomendação de que deveria denunciar o caso à polícia, o indígena teria dito que, se recebesse R$ 5 mil, não levaria o caso adiante. Gustavo também confi rma a inexistência de dados e a ausência de políticas para o assunto.

Alguns servidores da Funai e da Ca-sai em Barra do Garças e Campinápolis se-quer aceitaram responder perguntas sobre o tema, sob alegação de não poderem falar ofi cialmente pelo órgão ou de que esse é um assunto complexo e que envolve a cultura própria dos indígenas.

Contudo, os 17 fatos aqui identifi -cados (ver página 04) não parecem se en-quadrar em questões estritamente culturais (veja matéria sobre estes à página 6), porque se referem a estupros, a maioria de meninas vulneráveis, que estão sendo denunciados pelos próprios indígenas, vítimas ou lideran-ças, nas delegacias dos municípios em que ocorreram.

Isso reforça a hipótese de que, dife-rentemente de outra situação que envolve a cultura específi ca, os estupros informados-nesta e na página 4 não são atos tolerados pelos indígenas ou, no mínimo, de que, se alguma vez eram aceitos e naturalizados como parte da cultura, não tem mais apoio unânime, assim como foi abandonado, por exemplo, o infanticídio, largamente praticado pelos Xavante no passado.

Gustavo Gomes Sanches Nunes dos Santos - agente de indigenismo/Funai

Foto:

João Paulo Fernandes

Releitura de um desenho feito por uma adolescente Xavante da Escola Couto Magalhães, Campinápolis (MT)

ilustração:

Ana Carolina Custódio

Caso de estupro sob investigação na DEDM de Barra do Garças

(4)

U

m dos possíveis fatores a ex-plicar a prática dos estupros por parte dos indígenas seria o fato de eles acreditarem que somente a Polícia Fede-ral pode intervir em crimes que envolvam a etnia. Isso pode explicar certo sentimento de impunidade quando se trata de crimes come-tidos por indígenas.

Contudo, o delegado da Polícia Fede-ral de Barra do Garças, Divino Alves Caetano Neto, diz que existe uma nova decisão sobre a forma de atuação do órgão. O trabalho po-licial é compartilhado com os órgãos de segu-rança pública estaduais. Isso muda a tradição de atendimento policial vigente até 2010.

Segundo o Delegado, em 2010, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) publicou a súmula de número 140, que autoriza a Polí-cia Civil a agir em qualquer assunto criminal na sua jurisdição. Pela nova distribuição de atribuições, todos os casos que forem con-siderados contra a coletividade devem ser reportados à Polícia Federal.

Coletividade, neste caso, refere-se a

questões que podem ferir a etnia de forma geral. “Quando um índio individualmente pratica ou é vítima de algum crime, a atri-buição já é da Polícia Civil. Está sumulado pelo STJ que não competem à Polícia Federal esses casos. Um crime contra a coletividade indígena típico da região é a invasão de terras indígenas”, afi rma o delegado.

A investigadora de Polícia Civil e pre-sidente da Rede de Enfrentamento à Violên-cia Contra Mulher de Barra do Garças (Rede de Frente), Andrea Cristine Oliveira Costa Guirra, afi rma que “os indígenas acham que estão protegidos pela cultura. A cultura indí-gena é muito fechada. Eles acreditam na im-punidade. Eles não acreditam que alguém vai

ter coragem de denunciar, pois percebemos um comportamento machista por parte do índio Xavante”.

A investigadora acredita que a cultura esteja sendo usada para justifi car a violência contra a mulher indígena que ela teve a expe-riência de acompanhar, pois esse argumento já foi usado em situações que o indígena dizia ser um comportamento cultural.

Segundo Andrea, a lei penal vale para todos, inclusive para o indígena. “Eles acreditam que estão acima da lei”, afi rma a investigadora. O único caso em que a lei não pode ser aplicada seria o de silvíco-las ou indígenas em completo isolamento. “Não podemos considerar os indígenas lo-cais assim: todos eles frequentam a cidade”, completou Andrea.

O Delegado Heródoto de Souza Fon-tenelle, da Delegacia Especializada de Defesa da Mulher (DEDM), concorda com a exis-tência de um sentimento de impunidade por parte de indígenas Xavante, que, segundo ele, ainda não entenderam que essas leis podem ser aplicadas a eles.

O Delegado defende que “o trata-mento é igualitário. Hoje, não existe o índio não civilizado. Aqui em nossa região todos os índios têm contato com a civilização. Então, são considerados civilizados. Não há porque tratar esses fatos de forma diferenciada, nem à margem da lei. O sentimento de impunida-de está caindo por terra. Mas eles acreditam que nossa intervenção seja ilegal”.

O ex-juiz da Terceira Vara Cível de Barra do Garças Wagner Plaza também en-tende que a lei não faz distinção. “O objeto da lei é a proteção da criança e do adolescen-te, de qualquer raça ou sexo”, afi rma Plaza.

Contudo, por um lado, essas visões expressam o ordenamento jurídico do Esta-do brasileiro, no qual estão inseriEsta-dos os in-dígenas, elas representam um confl ito com a visão dos próprios indígenas e de muitos estudiosos, ainda que não de forma absoluta. Alguns pesquisadores, entre os quais a pro-fessora Águeda Aparecida da Cruz Borges, que há 14 anos procura aplicar o método Paulo Freire à alfabetização dos indígenas, concordam com que a lei nacional deva se es-tender claramente aos indígenas que escolhe-ram viver entre os não indígenas, nas cidades. Mas, ao mesmo tempo, não concordam com a integralidade da interpretação das autorida-des policiais e judiciais acima apresentadas.

Essa visão envolve a questão de auto-determinação dos povos. A ideia está basea-da no conceito de povo e nação. Se os Xa-vante e todos os demais indígenas brasileiros forem considerados como povo, nação, justi-fi ca-se a noção de independência em relação ao europeu, que aportou no Brasil quando os indígenas já viviam aqui, também consi-derado representante de um povo ou uma nação. Neste sentido, trata-se de dois povos ou nações, cada qual com os seus sistemas, costumes, tradições. Qual seria a razão de a lei do europeu se sobrepor à dos povos ori-ginários do Brasil?

Essa linha de raciocínio é defendida pelo indígena José Acácio Serere

Xavan-te ao dizer que “esse sisXavan-tema A’we Uptabi

[povo verdadeiro] tem de ser respeitado

pelo waradzu (homem branco) e nós

tam-bém respeitaríamos o sistema waradzu, tendo uma constituição paralela produzida segundo nossa cultura”. Seria uma espécie de diplomacia cultural aplicada ao relacio-namento interétnico.

Os fatores de caráter jurídico até aqui apontados, com destaque para um pos-sível sentimento de impunidade, explicam apenas parcialmente a sensação de liber-dade que o agressor pode ter em praticar o abuso sexual. Não esclarecem, contudo, o que vem antes dessa impressão, que é a sua tendência ou propensão (psicológica, cultural, biológica ou de outra natureza) à agressão.

A explicação para esse aspecto do problema está vinculada, ao menos em par-te, segundo alguns depoimentos, à relação interétnica, forçada, entre outras coisas, pela redução do território tradicional indígena. À medida que o Xavante absorve aspectos cul-turais da sociedade envolvente, ele começa a interagir com costumes que são prejudiciais à sua saúde. O consumo de álcool e drogas tem sido apontado como uma das consequ-ências negativas da forma como se deu essa relação ao longo da história e causa para prá-ticas não habituais, como a violência sexual. A psicóloga e responsável técnica do Programa de Saúde Mental do Distrito Sani-tário Especial Indígena (DSEI) Xavante, Ana Cristina Ferreira, diz que “é difícil quantifi car o que é qualifi cado, sobre o perfi l epidemio-lógico existente. Além do álcool, há o consu-mo de outras drogas coconsu-mo a maconha. O uso dessas substâncias não determina o abuso sexual, mas infl uencia bastante”, conclui ela.

A profi ssional explica que o proble-ma precisa ser entendido nuproble-ma perspectiva histórica, pois “a bebida alcoólica foi usada pela sociedade envolvente na época da co-lonização como instrumento de dominação desses povos. Foi um processo de alcooliza-ção, para chegar ao ponto que chegou hoje”. O vereador Xavante de Campinápo-lis, Libércio Ernesto Serewiba, diz que “a bebida traz prejuízos para a família indígena. Mas a proibição da venda para o indígena se-ria algo difícil, porque a oposição sese-ria muito grande. Então, a falta de orientação dos pais pode colaborar para o uso de bebidas”.

A professora indígena da Escola Es-tadual Etenhiritipá, localizada na cidade de Ribeirão Cascalheira, Terra Indígena Pimen-tel Barbosa (Aldeia Wederã), Severiá Maria Idioriê, afi rma que o organismo do indígena não está preparado para receber o álcool. Se-gundo ela, o uso de bebida alcoólica não faz parte da tradição Xavante. “O indígena que começa a beber na aldeia não bebe cerveja ou vinho, mas bebe a pinga [aguardente/ca-chaça]. O índio quer ser socialmente aceito e para isso faz uso de bebidas e drogas”.

apontados como explicação para os estupros

Vereador Libércio Serewiba - PV

MAPA DOS CASOS DE ESTUPRO

Caso 1

Idade da vítima: 13 anos Agressor: indígena xavante Denunciante: marido

Local: aldeia de Barra do Garças Tipo de registro: B.O. (DEDM) Ano da denúncia: 2015

Caso 2

Idade da vítima: 16 anos Agressor: não indígena Denunciante: marido Ano da denúncia: 2015 Local : Barra do Garças Tipo de registro: B.O. (DEDM)

Caso 3

Idade da vítima: 26 anos Agressor: indígena xavante Denunciante: a própria vítima Ano da denúncia: 2016

Local: aldeia de Barra do Garças, Tipo de registro: B.O. (DEDM)

Caso 4

Idade da vítima: 10 anos Agressor: não indígena Denunciante: marido Ano da denúncia: 2017

Local: aldeia de Barra do Garças Tipo de registro: B.O. (DEDM)

Caso 5

Idade da vítima: 13 anos Agressor: indígena xavante Denunciante: pai da vítima Ano da denúncia: 2015

Local: aldeia de Barra do Garças Tipo de registro: Inquérito (DEDM)

Caso 6

Idade da vítima: 12 anos Agressor: indígena xavante Denunciante: mãe da vítima

Ano da denúncia: 2015

Local: aldeia de Barra do Garças Tipo de registro: Inquérito (DEDM)

Caso 7 e 8

Duas vítimas e o mesmo agressor Idade das vítimas: Não informado Agressor: indígena Bororo

Denunciante: Não informado Ano da denúncia: Não informado Local: Barra do Garças

Tipo de registro: Transitado em julgado, com condenação

Caso 9

Idade da vítima: Não informado Agressor: indígena xavante Denunciante: Não informado Ano da denúncia: 2008 Local: General Carneiro Tipo de registro: Inquérito (PJC)

Caso 10

Idade da vítima: Não informado Agressor: indígena xavante Denunciante: Não informado Ano da denúncia: 2012 Local: General Carneiro Tipo de registro: Inquérito (PJC)

Caso 11

Idade da vítima: Não informado Agressor: indígena xavante Denunciante: Não informado Ano da denúncia: 2014

Local da denúncia: General Carneiro Tipo de registro: Inquérito (PJC)

Caso 12

Idade da vítima: Não informado Agressor: indígena xavante Denunciante: Não informado Ano da denúncia: 2016

Local da denúncia: General Carneiro

Tipo de registro: Inquérito (PJC)

Caso 13

Idade da vítima: 13 anos Agressor: indígena xavante Denunciante: Não informado Ano da denúncia: 2015

Local da denúncia: Campinápolis Tipo de registro: Inquérito (PJC)

Caso 14

Idade da vítima: Não informado Agressor: não indígena

Denunciante: Professora de Campinápolis Ano da denúncia: 2017

Local da denúncia: Campinápolis Tipo de registro: Ata da escola

Caso 15

Idade da vítima: Não informado Agressor: indígena xavante Denunciante: Não informado Ano da denúncia: Não informado Local da denúncia: Campinápolis Tipo de registro: Relato (PMs)

Caso 16

Idade da vítima: 12 Agressor: indígena xavante Denunciante: Funcionária do Cras Ano da denúncia: Não informado Local da denúncia: Barra do Garças Tipo de registro: Não informado

Caso 17

Idade da vítima: Adolescente Agressor: indígena xavante Denunciante: funcionária da Saúde Indígena

Ano da denúncia: Não informado Local da denúncia: Barra do Garças Tipo de registro: Não informado

Foto: Mauro de

Sousa /Cam.Mun. de

(5)

T

reze dos 17 casos de estupro contra mulheres indígenas informados nas páginas 3 e 4 deste jornal, boa parte de meninas menores de 14 anos, foram denunciados pelos próprios Xavante em delegacias da Polícia Civil.

Dentro da cultura desses povos originários, existe um sistema de normas que penaliza práticas não aprovadas por eles. Mesmo assim, os Xavante começam a procurar a sociedade envolvente como forma de serem atendidos quando ocor-rem esses delitos.

Os povos originários estão sendo in-seridos no contexto urbano e, à medida que isso acontece, eles também absorvem aspectos da cultura ocidental, sem perder suas caracte-rísticas culturais. Algumas questões começam a surgir nesse processo interétnico, como o possível enfraquecimento da cultura indígena, em detrimento ao uso de recursos disponíveis pela sociedade envolvente, como os órgãos da Segurança Pública e o Poder Judiciário.

O agente de indigenismo da Coor-denação Regional Xavante da Funai, Gus-tavo Gomes Sanches Nunes dos Santos, diz que há uma mudança de postura em curso, mas que o fato de haver denúncias às delegacias de polícia deve ser visto como parte natural do processo de contatos cres-centes com a comunidade não indígena.

Para Gustavo, “quando algum tipo de violência contra a mulher acontecia, o Xavante tinha suas formas de punição

mui-to bem consolidadas. Por isso, é positiva a denúncia na delegacia, pois, se não há solução na cultura, então eles procuram a sociedade envolvente, isto é, já se esgotou o modo deles de resolverem. Eles conside-ram o abuso sexual como um crime menor, mesmo assim eles têm os limites culturais que precisam ser respeitados”.

As opiniões sobre o signifi cado des-sa mudança de hábitos divergem, revelando a complexidade que há para compreender as interações culturais do Xavante com a so-ciedade majoritária ou envolvente, simplo-riamente chamada de branca.

O procurador da República Wilson Rocha Fernandes Assis, que trabalhou com os indígenas Xavante enquanto exerceu o cargo em Barra do Garças, até 2016, diz que “a gente erra quando acha estranho que o

índio[sic] procure uma delegacia para

ver questões internas que não foram resol-vidas na sua comunidade. Não há nada de estranho nisso. São cidadãos brasileiros for-çados a manter relações conosco enquanto sociedades separadas, mas em relação. En-tão não tem nada de estranho nisso”

No entendimento do procurador, que hoje atua no Ministério Público Fe-deral (MPF) em Anápolis (GO), mesmo que a prática de denunciar crimes contra a dignidade sexual não fosse parte da cul-tura indígena, “tudo é culcul-tural. Não existe uma cultura estacionada. A cultura é dinâ-mica, tanto a nossa quanto a deles. Assim como a gente não pode compreender que o branco se comporte daqui a 100 anos, se vis-ta e coma, como faz hoje, não tem o direito de exigir isso em relação ao índio também. Grande parte da nossa alimentação vem da comunidade indígena. A gente tem uma difi -culdade enorme de reconhecer essa herança. A gente invisibiliza a comunidade e as contri-buições que ela deu para nossa cultura”.

Por outro lado, a professora Severiá Maria Idioriê, da etnia Karajá, casada por mui-tos anos com um Xavante, explica que, na T.I. Xavante em que viveu por 15 anos, da área de Pimentel Barbosa (municípios de Canarana e Ri-beirão Cascalheira), se casos de violência sexual fossem denunciados a um órgão de segurança pública, isso poderio signifi car o fi m da cultura.

Mudança de hábito

existem comunidades em que o líder

tem fl agrantes perdas de legitimidade.

Isso certamente leva à violência, seja

ela qua for. Inclusive a violência sexual

Os Xavante estão denunciando cada vez mais os casos de estupro praticados pelos próprios indígenas às delegacias

de polícia. Uma das explicações é o fato ao enfraquecimento do sistema interno de normas e punições

Líder indígena José Acácio Serere Xavante

Foto:

João Paulo Fernandes

Se isso acontecesse, signifi caria que “nossas leis já não regem nosso povo, por-que, se nós tivermos que buscar uma solução no grupo de fora, é porque a gente enquanto ser [Xavante] não existe mais. A gente não teria mais respeito pela mulher, pela palavra dela. A gente não pode deixar chegar a nossa destruição”, disse a professora.

Entretanto, Severiá considera que em casos específi cos de indígenas que não encontram mais segurança interna na so-lução de seus confl itos internos, é preciso recorrer às leis gerais do país.

Já o professor Magno Silvestri (UFMT - Araguaia) diz que essa postura de denunciar os casos de estupro em delegacias signifi ca uma mudança e uma fragilização, mas não perda da cultura. “Certamente, nas relações interétnicas que se estabeleceram desde o contato sistemático com o povo Xavante a partir da década de 1940, alguns

valores políticos e organizacionais da socie-dade envolvente foram assimilados. Por isso, há um processo de fragilização cultural, por causa desse contato, mas ela se reinventa”.

No entendimento de Magno, o contato interétnico pode causar o enfra-quecimento da autoridade indígena, o que colabora para o desequilíbrio do poder da comunidade, mas esses contatos também acrescentam novos valores, absorvidos pelo Xavante. De acordo com o professor, “existem comunidades em que o líder tem fl agrantes perdas de legitimidade. Isso cer-tamente leva à violência, seja ela qual for. Inclusive a violência sexual. Se partirmos do contato interétnico, há valores que não assimilamos, como os indígenas também não compreendem e não assimilam valores do não indígena”.

O líder Xavante José Acácio Serere Xavante, da cidade de Campinápolis (MT), que denunciou pessoalmente um dos casos de estupro à Delegacia de Polícia da cidade, a pedido da família da vítima, reconhece a mudança de atitudes hoje em curso, atri-buindo-a, também, ao enfraquecimento das tradições e dos costumes internos, especial-mente da fi gura do líder.

Mas ele defende que a punição con-tra o crime do estupro volte a ser aplicada para indígenas no contexto da aldeia. “Se for crime praticado por indígena, dentro da cultura a gente penaliza.” Para Serere, como é conhecido em Campinápolis, isso não sig-nifi ca impunidade. “Não admito isso. Até dentro da cultura sou capaz de morrer de-fendendo as crianças”, afi rma.

Serere diz que é preciso ter um tipo de punição que respeite a cultura Xa-vante. “Vamos supor que isso aconteça com 20 mil indígenas. Ou seja, guerreiros que praticaram esse crime. Aí todos eles vão ser presos. Vai acontecer a extinção do povo indígena. Então, sugiro que te-mos que capacitar uma nova geração para combater esse crime, respeitando sempre nossa cultura”, diz o indígena. No entan-to, quando o estupro acontece por mem-bros da sociedade não indígena, Serere entende que a denúncia deve ser feita na Delegacia de Polícia.

Dr. Wilson Rocha Fernandes, Procurador da República

Foto:

João Paulo Fernandes

DEDM de Barra do Garças (MT): única delegacia especializada da região leste de Mato Grosso

Foto:

(6)

A

separação de gênero dos Xavante é algo tão fl agrante dentro das aldeias que, em uma primeira análise e sob

o olhar do waradzu (não

indí-gena, na língua Xavante), eles acabam sendo considerados machistas.

Aparentemente, na sociedade Xavante, a mulher assume papel secundário. Sobre ela recai o reino absoluto da casa. Na página 16 do

livro Xavante Ano 2000 (UCDB, 2000), o autor,

sacerdote salesiano Bartolomeu Giaccaria, diz que é “a mulher é quem providencia a constru-ção do lar, quem prepara e distribui os alimen-tos obtidos na caça e é a ela que pertencem os produtos da lavoura”. Além disso, a fi gura ma-terna é a principal responsável pela educação da criança nos primeiros anos de vida.

O diácono salesiano e membro do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) José Alves de Oliveira, que atua na região de Nova Xavantina e Campinápolis há cin-co anos, reforça que é importante entender o universo Xavante. Ele diz que a mulher está “voltada a uma liderança mais interna, enquanto o homem tem esse poder no âm-bito externo”. A vida social é própria para

o homem; sua participação se dá no Wa’rã

(reunião diária e exclusivamente masculina no centro da aldeia para tomada de decisões importantes da comunidade), na caça e nas viagens para conversas com autoridades.

É comum nas aldeias a manutenção de espaços e ritos culturalmente masculinos

ou, como o caso do rito Abadzi’rãihidiba

(iniciação familiar), em que o objetivo é a representação e a confi rmação do valor da obediência da mulher ao homem. Uma mu-lher atravessar caminhos masculinos é uma transgressão passível de pena, dentre elas o estupro coletivo, ou como preferem os Xavante, a “punição do sexo”. Essa expres-são não se refere exclusivamente à punição decorrente de desrespeito a regras sexuais, mas à forma de aplicação da pena, ou seja, o estupro coletivo da transgressora.

Um dos líderes indígenas em Cam-pinápolis, José Acacio Serere Xavante, reve-lou a complexidade dessa questão e o peri-go da generalização, já que aldeias indígenas de diversas localidades adotam diferentes métodos de punição, mesmo pertencendo a uma só etnia.

A punição ocorre principalmente em duas ocasiões: a primeira quando a mulher não respeita o segredo dos homens, como

o ritual Wai’á Rini (iniciação espiritual), e o

segundo, e mais comum, quando são que-bradas as regras das relações sexuais.

“Punição do sexo”

O estupro coletivo ainda é aplicado como pena às mulheres que violam regras

importantes da comunidade Xavante, mas começa a ser questionado

A professora da Escola Estadual Indígena Etenhiritipá, Severiá Maria Idio-riê, nasceu em uma aldeia Karajá e, apesar da rixa histórica entre os respectivos povos, foi casada por 13 anos com um Xavante. Conhecedora da cultura não indígena e for-mada em Letras-Inglês e com Mestrado em Educação na Universidade Federal de Mato Grosso no ano de 2016, explicou tudo que

presenciou nos anos de casada dentro da aldeia Xavante de Pimentel Barbosa, nos municípios mato-grossenses de Canarana e Ribeirão Cascalheira.

Severiá, como é mais conhecida no círculo acadêmico da UFMT, relata que “o Xavante pode ter mais de uma mulher, des-de que ele possa cuidar des-delas, cuidar bem des-de todas. A tradição Xavante é: o marido pode namorar com as minhas irmãs e primas e eu posso namorar com os irmãos e os pri-mos dele – pelo lado do pai; não é qualquer primo! Tem que ser dos meninos do clã do pai”. Ela diz estranhar o conceito “estupro cultural” utilizado por alguns membros da sociedade envolvente e afi rma que os Xa-vante não toleram o estupro. A única prática confi rmada por ela, mas como exceção, é a existência do que ela própria denominou “estupro coletivo”, não como prática corri-queira, mas exclusivamente como punição, que seria aplicada à mulher que ousa espio-nar os rituais masculinos. “Mas, na prática, ao menos no grupo em que eu vivi, nunca acontece, porque a punição é tão severa que nenhuma mulher se arrisca”, diz Severiá.

Todos os indígenas entrevistados para esta reportagem, homens e mulheres, confi rmam a existência dessa punição e a entendem como cultural, embora, em geral, os homens se apressem bem mais em justi-fi cá-la. Um deles é o chefe da Casa de Saú-de Indígena (Casai) Saú-de Campinápolis (MT), o técnico em enfermagem e líder Xavante Lino Tsere’ubudzi Moritu. “Existe, mas é da cultura, é cultural!”, diz ele rapidamente e com certo constrangimento ou contrarieda-de com a pergunta.

“Uma mulher casou com alguém. Só que uma vez, ou várias vezes, ela fez paquera com homem de outro ‘círculo’. É proibido, é crime! Aí a população fi ca sabendo que ela tem caso proibido. Mesmo não permitido, ela faz escondido. O homem leva a situação

para o Waiá (segredo dos homens) e a pena é

que todos os homens vão ter relação sexual com ela”, acrescentou José Acácio Serere, o

líder mencionado anteriormente. Segundo ele, essa atitude da mulher é tratada pela cul-tura Xavante como uma desonra. “Ela se torna uma mulher desonrosa. O corpo é dela e ela pode fazer o que quiser, mas respeitan-do nossos valores, porque, se não, acaba a linhagem, acaba a cultura”.

Já a professora e diretora de escola Marcelina, embora demonstrando certo des-conforto quando questionada, também inse-riu a punição no âmbito da cultura, diferen-temente dos casos de estupro denunciados nas delegacias da região. “Quando tem esse ritual deles, as mulheres têm que respeitar. A mulher tem que fi car em casa, não pode sair. Já escutei falar de mulheres que foram puni-das por desrespeitarem”, explicou.

A aplicação da punição sexual

não é exclusiva do povo Xavante, segundo a antropóloga Carmem Junqueira, que estu-da a cultura dos Kamaiurá. "Se uma mulher olhar a fl auta jacuí, ela é estuprada por toda a aldeia. Esse é o castigo. Nunca soube de alguma que tenha sido punida, mas conta-se que uma mulher, de tal povo, que pas-sou inadvertidamente, talvez tenha sofrido as consequências. Então, existe o estupro como a maior punição que pode ocorrer a uma mulher, quando transgride a regra de não poder ver as fl autas". Essas declarações constam de uma entrevista concedida por Carmem ao site SciELO Brasil.

A prática do estupro coletivo, confi r-mada apenas como punição do sexo, começa a perder o status de unanimidade entre os Xavante, seja devido ao contato com a socie-dade não indígena ou por mais respeito a mu-lher. Dentro das aldeias, já começam a surgir

“Então, existe o estupro como a maior

punição que pode ocorrer a uma mulher,

quando transgride a regra”

encontros para debates femininos motivados por órgãos indigenistas e, em paralelo, a pre-ocupação de homens - em sua maioria jovens - em demonstrar desconforto e contrarieda-de a esse aspecto cultural.

Um dos exemplos foi dado por um pesquisador, que não quis se identifi car, relatou uma roda de conversa que teria presenciado em uma aldeia Xavante. Nes-se diálogo, uma liderança indígena em as-censão teria se aproximado do líder, mais velho, e manifestado a sua contrariedade, dizendo que essa prática precisaria ser re-pensada. Esse é um indício de que essa forma de punição pode vir a ser extinta, especialmente com as novas lideranças.

Mulher fi ca restrita à casa durante os rituais exclusivamente masculinos

Foto: Kariny Ellen

Oliveira /

Arquivo NPD

Lino Tsere’ubudzi Moritu, chefe da Casai de Campinápolis

Foto:

João Paulo Fernandes

Foto:

João Paulo Fernandes

(7)

Foto:

Sckarleth Martins /

Arquivo NPD

N

o imaginário comum

so-cial, a mulher indígena seria a silvícola, que mora no mato, longe da civiliza-ção. Mas essa imagem não coincide com a atual realidade dos indígenas Xavante, pois o contato com a sociedade en-volvente já é tão grande que diariamente um considerável número deles se desloca até as cidades originariamente não indígenas. Mui-tos até já vivem nelas. As aldeias possuem tecnologia, o meio ambiente já não oferece a base do sustento, o dinheiro é moeda de troca, o álcool é vício, o agronegócio reduz o território, as mudanças climáticas e o agrotó-xico infl uenciam na colheita.

Espremidas pelo território, pela falta de recursos e pela ausência de políticas pú-blicas, segundo depoimentos, as mulheres indígenas de Campinápolis (MT) têm re-corrido à prostituição, especialmente para garantir o sustento, mas também para se in-serir no mercado de consumo característico do mundo capitalista. Alguns homens tam-bém recorrem a essa prática, pelas mesmas razões, mas com a venda do corpo de suas fi lhas ou esposas.

Segundo a diretora da Escola Es-tadual Couto Magalhães, Miriam Lagares, muitas alunas indígenas se prostituem pela falta de recursos para sobreviver na cidade. “A prostituição é por necessidade. Pela fal-ta de comida dentro de casa. Elas chegam e se oferecer por R$10,00/20,00. Percebo quando elas chegam com roupas, batons e dinheiro, porque muitas vêm estudar na ci-dade e não têm condições de manter as coi-sas básicas, como água e energia”. Segundo a diretora, essa oferta do corpo ocorre es-pontaneamente nas ruas e nos espaços pú-blicos da cidade.

Entretanto, a prostituição também ocorre dentro das aldeias. A diretora da es-cola estadual Aldeona, Marcelina Ro’onhiwe, diz que dentro da aldeia também encontra mulheres vendendo o corpo aos madeirei-ros, por necessidade ou pela aproximação com o não indígena e seus hábitos. “Dentro da aldeia já tem prostituição de mulheres in-dígenas com o branco. As mulheres querem fi car e pra eles é normal”.

Mesmo com sua existência reconhe-cida pela comunidade indígena, e conside-rada normal em alguns casos, a prostituição

não é vista com bons olhos por Marcelina e muitos outros Xavante da região. O líder Serere, casado com uma mulher não indí-gena e morador da cidade de Campinápolis, vê a prostituição como culpa dos homens. “Quem está errado é o marido, porque quem deve garantir o sustento é ele. Quan-do a mulher não tem [esposo], quem garan-te é o pai”, pontua.

Na Casa de Saúde Indígena (Casai) da cidade, órgão vinculado ao Ministério da Saúde, a prostituição de mulheres indígenas já é vista como um problema social, ao lado do alcoolismo e da diabetes. Neste caso, por causa do consumo de açúcar e sal, presentes nos refrigerantes e outros produtos larga-mente consumidos pela população indígena. O diagnóstico é compartilhado pelo chefe local do órgão, o líder indígena Lino Tse-re’ubudzi Moritu e o assistente social Divino Pereira de Jesus.

O agente de indigenismo da Funai Gustavo Gomes, que atuou como coorde-nador da Regional Xavante de 2013 até abril de 2017, confi rma a existência da prostitui-ção e as necessidades pelas quais os indígenas passam. “A prostituição existe, é por questão

de miséria mesmo. O Xavante, eu vejo que é 100% de necessidade. É nítido que eles estão passando difi culdades”.

A crescente prostituição de

indíge-nas, assim como o alcoolismo, a diabetes e outros problemas, está relacionada, segundo os depoimentos colhidos, à forma com que se deu a relação interétnica, isto é, o contato com os não indígenas, como uma violência indireta. Não é direta porque, diferente-mente do estupro, na prostituição, o sexo é consentido, voluntário. Mas a violência se faz presente porque a decisão de oferta do corpo aos homens não indígenas em troca de dinheiro ou bens não é rigorosamente voluntária. Segundo os depoimentos, ela é fruto da necessidade criada a partir dessa re-lação desfavorável com a sociedade majori-tária, ou de incorporação abrupta de valores não originais, como o consumo de itens não tradicionais da cultura.

Para o professor universitário Magno Silvestri (UFMT), a redução territorial é um dos principais fatores que levam os indíge-nas a viver em estado de penúria. “A própria imposição da lógica territorial que o Esta-do faz a eles, retiranEsta-do a caça, a coleta e a pesca que havia em certa ‘abundância’, faz com que muitas comunidades passem neces-sidade. Mesmo com a roça, muitas famílias dependem ainda da assistência dos órgãos indigenistas, com cesta básica, e assim o Bol-sa Família se torna o carro-chefe para conse-guir recursos do Estado”, pontua

Em Campinápolis, a oportunidade

de emprego para homens e mulheres indíge-nas se resume aos cargos indíge-nas escolas, inclu-sive de professor, e nas unidades de saúde. Os comerciantes não contratam os indígenas porque se protegem no preconceito do senso comum ao afi rmarem que os indígenas rou-bam, não sabem trabalhar ou são preguiçosos. Esse preconceito foi relatado por vereadores, funcionários públicos, servidores da área in-dígena, funcionários de escolas, entre outras fontes. Também é possível constatar essa im-pressão andando pela cidade.

Uma exceção à onda de

preconcei-tos é Dalva Silva, comerciante e dona de hotel na cidade, que há quatro anos man-tém mulheres indígenas Xavante no quadro de funcionários. Ela critica os seus colegas comerciantes e diz que a relação de patroa e empregada é de confi ança. Ela designa a função de ir aos supermercados às suas duas funcionarias indígenas e diz nunca ter havido qualquer motivo que a fi zesse desconfi ar das funcionárias ou para se decepcionar com a qualidade do serviço

A vereadora Fernanda Maia (PSC) afi rma que o preconceito esconde uma grande contradição, já que, segundo ela, os indígenas sustentam a economia da cidade. “Hoje, sabemos que quem mantém a eco-nomia de Campinápolis são os indígenas. São mais de oito mil indígenas no municí-pio [53,5% da população]! Se retirarem eles, o município entra em falência”, comenta. Ela se refere ao dinheiro gasto no comércio

local pelos indígenas decorrente de salários de professores e servidores da saúde, de aposentadorias e pensões e de programas sociais públicos. Fernanda é mais uma voz da cidade a confi rmar a existência da pros-tituição das mulheres indígenas, que classi-fi ca como um problema social, ao lado da pobreza e do alcoolismo.

Segundo o assistente social da Casa de Saúde Indígena (Casai) no município de Campinápolis, Divino Pereira de Jesus, a mi-gração para a cidade ocorre sem que exista uma política pública que se preocupe ade-quadamente com as condições de vida na cidade. “O poder público não está preocu-pado em criar políticas públicas para essa parte da população. E a Funai também está deixando a desejar”, comenta.

O coordenador técnico da Funda-ção Nacional do Índio (Funai) em Cam-pinápolis (MT), Isaac Mie Ajawe, confi r-ma que não há apoio e recursos para ur-ma política de inserção do jovem Xavante na cidade, como oferta de cursos profi ssio-nalizantes e outras medidas. “A Funai não dá assistência para quem mora na cidade, porque atua dentro das aldeias. Sabemos que há mais de 400 famílias de Xavante que moram aqui na cidade de Campinápo-lis. O papel da Funai hoje é simplesmente guardar o direito deles; ela deixou de ser tutor”, acrescenta Isaac.

O agente de indigenismo da FUNAI Gustavo Gomes informa que “a renda dos Xavante normalmente é do aposentado rural [R$ 937,00], que sustenta dois ou três fi lhos adultos e vinte netos. Essa renda é dividida com mais 30 pessoas”. Entretanto, ele lem-bra que alguns indígenas são funcionários nos serviços de educação e saúde e que, por-tanto, têm renda melhor.

Segundo o Censo do Instituto Bra-sileiro de Geografi a e Estatística (IBGE) de 2010. Segundo o levantamento, Campiná-polis está entre os municípios que possuem um dos maiores índice de pobreza (47,48%) em relação aos outros municípios de Mato Grosso. O Índice de Desenvolvimento Hu-mano (IDH) chega a 0,538. A “síntese do va-lor do rendimento nominal mediano mensal per capita dos domicílios particulares permanentes da zona rural”, segundo a classifi -cação do instituto, é de R$ 93,33. Esse dado da zona rural, portanto, é bem inferior ao da zona urbana, de R$ 403,33 mensais, embora este também seja extremamente baixo.

Violência indireta

A prostituição se transformou em alternativa de sobrevivência para várias

mulheres Xavante e, em alguns casos, para a inserção na sociedade de consumo

“A prostituição existe, é por questão de

miséria mesmo”

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A

sociedade indígena sofre constante invisibilização por parte da sociedade envolven-te, seja pela inexistência ou pela inefi ciência de políticas públicas, pelo desconhecimento da cultura ou até mesmo pela falta de reconhecimen-to dos seus membros como seres humanos. Esse é o cenário de várias etnias e não é dife-rente com o Povo Xavante.

A professora indígena Karajá Seve-riá Idioriê, que foi casada com um homem Xavante da aldeia Wederã, Terra Indígena Pimentel Barbosa, localizada nos municípios de Canarana (320 km de Barra do Garças e 840 km de Cuiabá) e Ribeirão Cascalhei-ra (381 km de BarCascalhei-ra do Garças e 885 km de Cuiabá) e conviveu com o povo do seu marido por mais de 15 anos, aponta que a invisibilização aos povos indígenas existe, e que ela acontece especialmente por parte das políticas públicas. “A invisibilidade acontece o tempo todo, principalmente pelas políticas governamentais, quando os indígenas não são consultados para as políticas públicas que deveriam estar salvaguardando o ser humano que o indígena é”, comenta ela.

Severiá também aponta a invisibiliza-ção por parte das outras instituições, como os veículos de comunicação, que fazem gene-ralizações incorretas ao reportarem as infor-mações sobre os povos indígenas. Segundo a professora, os jornais não identifi cam a etnia, a terra e a aldeia e, em alguns casos, usam fo-tografi a de outros povos para se referirem aos Xavante. “Não é somente no jornalismo; é em qualquer lugar. Tem que pesquisar para falar”, afi rma. Ela relata um episódio da juventude, quando foi convidada para um evento na cida-de cida-de Goiás (GO) e colocaram somente uma cadeira, para ela ou para a outra pessoa que representava o Movimento Negro. “Fizeram a gente fi car brigando, enquanto deveriam ter colocado mais cadeira e ter alguém que repre-sentasse a diversidade”, reclama.

Severiá relata que existem alguns espaços da sociedade envolvente que

acei-tam a indígena civilizada, que tem dinheiro, a

professora que ela é, enquanto esses mesmos ambientes excluem a mulher que sempre mo-rou na aldeia. Trata-se, portanto, de uma invi-sibilização étnica, mas ela ocorre também nas relações de gênero, nas aldeias. Mesmo as-sim, ao menos no grupo de Pimentel Barbo-sa, segundo seu relato, as mulheres estão aos poucos conquistando espaço nas decisões, embora o predomínio ainda seja masculino.

Uma prova da invisibilidade e, ao mesmo tempo, o reconhecimento dela, é a crescente luta das mulheres indígenas de todo o Brasil por igualdade e políticas públi-cas. Para isso, elas vêm se organizando em movimentos como o Acampamento Terra Livre, a Aty Kña (Assembleia das Mulheres Indígenas de Mato Grosso do Sul), o Encon-tro Nacional de Mulheres Indígenas (2006), o Projeto Voz das Mulheres Indígenas, cria-do pela Organização das Nações Unidas, a Rede de Juventude Indígena e outros. São atividades e organizações que se desmem-braram por cada etnia e em cada aldeia e vi-sam maior respeito, proteção e participação nas decisões que, tempos atrás, eram exclusi-vamente masculinas.

“Nós temos que participar, conversar e ter reunião. Hoje temos direitos de partici-par, somos comunidade também”, afi rma a diretora do Colégio Estadual Indígena Alde-ona (Campinápolis-MT), a Xavante Marcelina Ro’onhiwe, que, indagada sobre a posição da mulher na aldeia, deixou bem claro: “o que

Mulheres Xavante sofrem com a invisibilização étnica e de gênero,

mas lutam por respeito e participação nas políticas que afetam a comunidade

Duplamente invisibilizadas

não podemos participar? Festa. Na festa [ritu-al] é tudo dos homens”. De acordo com ela, o que muda é a participação na tomada de de-cisões coletivas: “igual na vida do não índio, a mulher tem que participar também”.

Apesar de ser uma luta por visibili-dade, no sentido de que a mulher seja vista e de que haja o reconhecimento de sua ca-pacidade, o professor universitário Magno Silvestri (UFMT, Campus Araguaia) enxerga o movimento das mulheres indígenas como uma estratégia de organização comunitária e não como oposição aos homens. “Eu vejo o movimento de mulheres indígenas antece-dendo a questão da política identitária, vin-culado a uma estratégia de fortalecimento da comunidade na qual elas estão inseridas, por-que o movimento das mulheres indígenas me parece o fortalecimento de outras demandas, outras questões, que são comunitárias. Na verdade, elas são as porta-vozes das questões para as quais os homens não são. Os homens estão envolvidos em outras estratégias de organização. Então, cabe entender o movi-mento das mulheres indígenas, não primei-ramente por serem mulheres, mas como uma questão de estratégia comunitária, uma visão do comum da aldeia, da comunidade em que elas estão inseridas”, afi rma Magno.

Lei Maria da Penha - Segun-do o relato da indígena Xavante Marcelina Ro’onhiwe, o esposo dela bebia e aparente-mente praticava a violência moral,

caracteri-zada no Art. 7o, parágrafo 5o da Lei Maria da

Penha como “qualquer conduta que confi

gu-re calúnia, difamação ou injúria”.

“Eu sofria, meu marido bebia. Ele fa-lava mal de mim para minha mãe. Hoje, sou diferente. Já falo o português, tenho conheci-mento e posso registrar na delegacia o nome dele”. Marcelina não só conhece a Lei Maria da Penha (que tipifi ca e penaliza os casos de violência doméstica) como a traduz para as outras mulheres da sua aldeia. “Nem todas as mulheres falam o português. Por isso, eu gosto de dialogar e passar meu conhe-cimento para elas. Eu traduzo e levo para elas”, diz Marcelina.

Durante os encontros de mulheres realizados nas diversas aldeias pela Coorde-nação Regional Xavante da Funai, cuja sede está localizada na cidade de Barra do Gar-ças, muitas mulheres pedem para que seja discutida a Lei Maria da Penha, segundo a indigenista da Funai Maíra Ribeiro. “Fize-mos vários encontros em aldeias diferentes. Sempre com mulheres. Falamos de exames preventivos e amamentação. A gente pro-põe a pauta, mas geralmente elas pedem para inserir a discussão de como é com a Lei Maria da Penha, sobre a qual elas per-guntam e tiram dúvidas. Essa procura apa-receu em três encontros.”

O livro Pelas Mulheres Indígenas

(THY-DÉWHÁ, 2015), produzido por mulheres da região Nordeste, ligadas às comunidades Karapotó Plaki-ô (Alagoas), Kariri-Xocó (Alagoas), Pataxó Dois Irmãos (Bahia), Pa-taxó Barra Velha (Bahia), PaPa-taxó Hãhãhãe (Bahia), Xokó (Sergipe) e Pankararu (Per-nambuco), aborda a Lei Maria da Penha e

depoimentos de mulheres indígenas que sofreram algum tipo de violência domés-tica. No livro, elas destacam o motivo de procurarem a lei de fora de suas comunida-des: “Nossas leis internas devem ser valo-rizadas, mas existem problemas que foram introduzidos em nossas aldeias, como o álcool e a droga, que nos levam a precisar de ajuda externa”.

Marcelina Ro’onhiwe entende que essa postura não signifi ca que a essência da cultura Xavante esteja se perdendo. Ela afi rma que, ao menos em Campinápolis (MT), o alcoolismo e a incorporação de ou-tros elementos da cultura do homem não indígena são a causa por trás das agressões.

Além da violência sexual sofrida por mulheres indígenas e relatadas neste jornal especial, em 2013, foram abertos dois inquéritos policiais de violência do-méstica física (lesão corporal) contra mu-lheres Xavante na Delegacia Especializa-da de Barra do Garças.

A presidente da Rede de Enfren-tamento à Violência Contra a Mulher de Barra do Garças (Rede de Frente) e inves-tigadora de Polícia Civil, Andrea Cristine Oliveira Costa Guirra, vê essas mudanças como confi ança nas instituições original-mente não indígenas. “Em algum momen-to, alguém conversou com elas. Para a mu-lher vir aqui, ela tem que ter um mínimo de confi ança e o desespero por ajuda”.

Mesmo havendo demanda por parte das mulheres indígenas, nem a Funai, nem a Rede de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher ou a Delegacia Especializada têm, até o momento, políticas específi cas que contemplem as difi culdades que as mulheres indígenas Xavante enfrentam, como o desco-nhecimento da língua portuguesa e dos seus direitos como mulher previstos na legislação brasileira. Mesmo assim, como se percebe em outra matéria deste jornal, os represen-tantes da DEDM e da Rede de Frente defen-dem que a lei do Estado brasileiro se aplique plenamente às comunidades indígenas.

A Funai alega que não possui recur-sos e que acaba “contemplando” a pauta durante os encontros (acima relatados). Os titulares da Rede e da Delegacia dizem não compreender a cultura e também alegam a falta de equipe, como aponta Andrea Guirra: “Temos um monte de atividades na Rede e precisaríamos de um grupo que se preparasse. Teríamos que ter um agente social, um psicólogo e alguém que falasse a lingua deles”, afi rma.

Marcelina traduz a lei Maria da Penha para a língua xavante

Foto:

João Paulo Fernandes

JORNAL ESPECIAL PARA O 9o PRÊMIO JOVEM JORNALISTA

FERNANDO PACHECO JORDÃO (INSTITUTO VLADIMIR HERZOG)

REPORTAGEM E EDIÇÃO: Fernando Ribeiro Lino, Clea Torres Guedes e João Paulo Fernandes

DIAGRAMAÇÃO: Ana Carolina Custódio e João Paulo Fernandes

ORIENTADOR: Prof. Edson Luiz Spenthof

MENTOR: Jor. Paulo Oliveira*

* A equipe agradece a valiosa colaboração de Paulo, mas assume integral responsabilidade pelas falhas

Agradecimento especial à UFMT - Campus Araguaia e ao Núcleo de Produção Digital - MT, pelo apoio.

EQUIPE: CURSO DE JORNALISMO DO CÂMPUS UNIVERSITÁRIO DO ARAGUAIA (UFMT)

Referências

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