• Nenhum resultado encontrado

Infância e sociedades indígenas: uma aproximação de uma Antropologia da Criança a partir de estudos recentes de etnólogos brasileiros 1

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Infância e sociedades indígenas: uma aproximação de uma Antropologia da Criança a partir de estudos recentes de etnólogos brasileiros 1"

Copied!
15
0
0

Texto

(1)

Infância e sociedades indígenas: uma aproximação de uma Antropologia da Criança a partir de estudos recentes de etnólogos brasileiros1

Lucília da Glória Alves Dias2 Doutoranda no PPGCSO/UFJF

Palavras-chave: Etnologia; Crianças Indígenas; Experiências.

Influenciados, principalmente, por uma perspectiva fenomenológica, alguns antropólogos contemporâneos tem questionado a supremacia da ideia de representação sobre a de experiência. Dando ênfase ao estar e ao agir do sujeito no mundo, esses pesquisadores têm destacado a importância da experiência para se pensar a vida, o ser humano, as relações, o conhecimento, o corpo, entre outros temas caros a antropologia.

Tim Ingold (2000), por exemplo, substitui a velha dicotomia natureza e cultura, pela dinamicidade de organismo e ambiente, a fim de recuperar uma verdadeira ecologia da vida. A vida na concepção desse autor é um desdobramento criativo de todo um campo de relações em que os seres surgem e assumem suas formas particulares. A vida não é a realização de formas pré-determinadas, mas um processo. Um processo criativo que é levado sempre adiante por cada ser, de acordo com suas experiências.

A questão da experiência também é discutida por Thomas Csordas (2008) e Bruno Latour (2012) em seus estudos sobre o corpo. Csordas (2008) propõe pensar a corporalidade enquanto um paradigma metodológico que pode nos auxiliar a repensar as teorias da cultura e do sujeito. Segundo ele, “o corpo não é um objeto a ser estudado em relação à cultura, mas é o sujeito da cultura” (2008, p.102). Isto significa que sua grande preocupação é pensar como o sujeito experimenta seu corpo e age no mundo por meio dele.

Já Latour (2012, p.39), defende que uma conversa frutífera sobre o corpo não deve partir diretamente dele, mas da sensibilização deste para o que são os elementos que constituem o mundo. O corpo, na teoria laturiana é articulado, é uma proposição, no sentido de que não é algo exato, definido. Ele forma composições progressivas à medida que vai tomando contato, experienciando diferentes componentes artificiais e materiais.

1

Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB.

2

(2)

Chamo a atenção para a questão da experiência nesse artigo porque esta parece ser uma das principais contribuições dos etnólogos que se colocaram a estudar infância indígena nos últimos vinte anos no Brasil, qual seja, a de enfatizar as experiências vividas pelas crianças ameríndias em contextos multiéticos, principalmente junto a instituições e elementos da sociedade ocidental. Tal contribuição a meu ver, além de destacar os diversos contextos sociais onde se movimentam e atuam os (as) pequenos (as), complexifica temas clássicos da Etnologia Indígena Sulamericana, tais como a noção de corpo, pessoa, parentesco, socialização, entre outros.

Passemos, então, a apresentação dessas etnografias que destacaram as múltiplas relações sociais que as crianças indígenas estão envolvidas.

Infância Indígena no Brasil: algumas etnografias

Os primeiros trabalhos que lançaram um olhar mais atento às crianças indígenas sulamericanas são da década de 40 do século XX. Em 1945, Egon Schaden lança um texto sobre educação e magia nas cerimônias de iniciação dos índios guarani. O nascimento e a primeira infância dos índios Cayapó do Xingu foram temas de um artigo de Métraux e Dreyfus em 1958. Florestan Fernandes também abriu espaço para as crianças indígenas em sua vasta obra, discutindo a socialização das crianças Tupinambá em um trabalho de 1966. Na década de 1970, Egon Schaden volta a escrever sobre as crianças guarani em artigo intitulado Educação Indígena (1976) e Mellati e Mellati (1979) publicaram um artigo sobre a educação e os cuidados dos adultos marubo com suas crianças.

Esses trabalhos foram fundamentais por apontarem as crianças indígenas como objetos de pesquisa legítimos na etnologia e por trazerem mais dados empíricos para reforçar a colocação de Margareth Mead, feita no inicio dos anos de 1930, de que a infância é especifica a cada contexto social. Contudo, essas pesquisas tenderam a mostrar as crianças como sujeitos passivos frente aos ensinamentos dos adultos (TASSINARI, 2007, p.13). A elas não era atribuída à capacidade de elaborar maneiras para conhecerem a sociedade nas quais estavam inseridas.

(3)

Grosso. Uma das questões que a autora aborda nesse estudo é essa imagem corrente na antropologia da criança como imitadora do mundo adulto. Em uma revisão sobre o modo como a criança é tratada em textos representativos da etnologia brasileira, a autora demonstra que, em sua maioria, esses trabalhos apresentam dados sobre a transmissão e recepção dos saberes somente a partir da iniciação, como se o processo de aprendizagem começasse aí, ou como se o período da infância fosse irrelevante. Desse modo, Nunes sugere que o processo de aprendizado das crianças indígenas possa ser desvendado dando-se mais atenção às suas brincadeiras como um modo de conhecer e conhecer-se, tendo momentos de transmissão e recepção próprios, não como simples reprodução do mundo adulto.

É importante salientar que a etnografia de Nunes sobre as crianças xavantes serviu de fonte de inspiração para a elaboração de muitos trabalhos em outras realidades socioculturais, além de ter dado o primeiro passo para o desenvolvimento desse campo de pesquisa no país.

Foi no início do século XXI que a bibliografia antropológica sobre a infância indígena aumentou no Brasil. A coletânea de artigos “Crianças Indígenas: ensaios antropológicos” (2002), além de trazer informações sobre a infância em diferentes etnias indígenas brasileiras, mostram as crianças como sujeitos criativos e ativos em suas sociedades. Também nesse período, surgiram em alguns programas de pós-graduação linhas de pesquisa voltadas para a Antropologia da Criança3, além da abertura de espaços em congressos, como a RAM, RBA e ANPOCS4, para o debate de pesquisas que se ocupam de estudar crianças.

Da leva de trabalhos produzidos a partir dos anos 2000, o primeiro que podemos citar é a pesquisa de Cohn (2000) entre os Xikrin do Bacajá, grupo de língua jê que habita o sudoeste do Pará. Em sua dissertação de mestrado a autora trata do modo como

3 Como exemplos, podemos citar o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade

Federal de São Carlos (UFSCAR) e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

4

(4)

os adultos Xikrin definem a infância, o conhecimento e o aprendizado. Após uma apresentação do universo social desse grupo, o texto traz reflexões sobre o papel da criança nesse universo, ou seja, sobre qual a importância das crianças na vida social xikrin, complementando, portanto, a visão antropológica dessa sociedade com um olhar sobre as crianças, que até então não tinham sido foco de análise nas etnografias sobre este povo.

Em relação ao foco do presente artigo - a vivência dos (as) pequenos (as) em contextos multiéticos, principalmente junto a instituições e elementos ocidentais -, o trabalho de Cohn (2000) nos fornece dados sobre a vivência das crianças xikrin no espaço escolar oficial.

Sobre a concepção de desenvolvimento da criança entre os xikrin, Cohn destacada entre outras coisas que ele está relacionado à ornamentação corporal. Segundo ela, assim que uma criança nasce ela é imediatamente pintada para ser integrada à sociedade. Conforme ela vai crescendo, o corte de cabelo, os adornos e os motivos gráficos da pintura corporal vão se modificando e tomando outros significados. A pintura corporal entre esses indígenas é uma atividade feminina, sendo que desde pequenas as meninas reproduzem em suas bonecas os motivos gráficos. Com a implantação da escola, tanto meninas quanto meninos passaram a utlizar do papel como um suporte novo para a expressão gráfica, pintura que segundo a autora, vai além do grafismo geométrico explorado na pintura corporal, permitindo o desenvolvimento de um estilo figurativo próprio (COHN, 2000, p.165).

Ângela Nunes em seu trabalho entre os Xavante da aldeia de Idzo’uhu, Terra Indígena de Sangradouro, Mato Grosso, também se depara com a introdução da educação escolar oficial e a tentativa de implementação de um projeto educacional idealizado por esses indígenas. Tal projeto está especialmente voltado à maneira como as crianças vivem as influências do mundo não indígena nas aldeias Xavante. Por meio de materiais elaborados pelas próprias crianças, como desenhos e histórias, os professores xavante procuravam perceber quais eram as idéias e demandas das crianças sobre a cultura xavante e a cultura não indígena, levando-os assim a elaborar um material de apoio que pudesse passar às crianças um sentimento de respeito por sua cultura e por si mesmo (NUNES, 2003, p.201).

(5)

como as crianças kaingang e as crianças guarani se percebem e se relacionam nesse espaço. Para isso, além da observação participante, a autora utilizou-se de textos, desenhos e entrevistas com as crianças:

Dado o contexto multiétnico da pesquisa, falar de como crianças kaingang e guarani relacionam-se umas com as outras não é um assunto fácil de ser exposto em público. A delicadeza do tema pediu a utilização de um método que fosse sutil a ponto de despertar nas crianças o interesse em falar o que pensavam sem, contudo, expô-las. Esses textos bem como os desenhos realizados por elas serviram como um material preliminar por meio do qual pude selecionar algumas histórias interessantes e realizar entrevistas direcionadas com as crianças, levando em conta aquilo que já havia sido colocado nos textos e desenhos. Da mesma forma, as entrevistas informais realizadas na escola, eram sempre individuais e procuraram preservar o que as crianças diziam, evitando a presença de outras crianças quando estas queriam ouvir a conversa ou mesmo ler o que eu escrevia durante a realização da entrevista. (LIMULJA, 2007, p.103).

Ao pedir que os alunos da 1ª a 8ª série (ou, como se denomina atualmente, do 2º ao 9º ano) desenhassem sobre sua escola e ao solicitar que os alunos da 5ª a 8ª série escrevessem sobre seu dia a dia na atual escola e sobre suas trajetórias escolares, a autora procurou apresentar não somente as especificidades da convivência dessas crianças, mas também mostrar que atentar-se às percepções infantis sobre o contexto escolar em que estão inseridas ou aos quais já pertenceram pode ajudar a se pensar a prática atual da educação na escola indígena.

Sobre os desenhos, as conclusões que Limulja (2007) chega são as seguintes:

(6)

com que as crianças aprendam, além do conteúdo que está especificado na grade curricular, a disciplinar seus corpos.

Como podemos notar, a autora apresenta a vivência no espaço escolar como uma técnica de construção corporal. Em entrevistas com adultos Kaingang e Guarani, ela percebeu que, por não praticarem mais determinadas técnicas para construção de corpos ideais, esses indígenas consideram que o corpo de hoje não é o mesmo corpo de antigamente. Nesse sentido, Limulja (2007, p.46) defende que com o desaparecimento dessas técnicas corporais outras práticas para produção do corpo foram tomando forma, como é o caso da escola.

Analisando os textos dos alunos, a pesquisadora notou que eles demonstram um conhecimento a respeito da história de seu povo, levando em consideração aspectos como as disputas por terras tradicionais, os conflitos entre índios e agricultores da região bem como também questões referentes à própria identidade indígena, como o fato de se auto afirmarem índios e recusarem a denominação de “bugre”. Para essas crianças está claro que ser índio hoje, não significa viver como os índios de antigamente, mesmo que essa seja uma idéia cristalizada e ainda presente nos dias de hoje no imaginário da maior parte das pessoas que questiona a identidade indígena atual (LIMULJA, 2007, p.119).

Levi Pereira (2010), desenvolvendo pesquisa sobre crianças kaiowá e guarani moradoras de aldeias localizadas no sul do Mato Grosso do Sul, chama a atenção para a vivência dessas em ambientes originários do universo não-indígena. De acordo com o autor existiria uma duplicidade de sistemas de socialização dessas crianças.

(7)

Com relação a esse comportamento infantil, Pereira (2010, p.15) fala de situações que ocorrem dentro das escolas de reservas e aldeias da região. Segundo ele, mesmo recebendo um tratamento indistinto e homogêneo, é comum dos alunos formarem grupos exclusivos na escola, que tendem a replicar as configurações dos diversos “pedaços”, o que faz com que ocorram rivalidades entre estes grupos na escola ou no caminho de volta para casa. O autor continua dizendo que a ocorrência de brigas entre as crianças muitas vezes causa desentendimentos entre os pais, que inclusive em situações mais graves se vêem obrigados a mudar de localidade.

O segundo sistema de socialização vincula-se a diversidade de ambientes originários do universo não-indígena nos quais as crianças se socializam. Eles envolveriam formas de socialização desenvolvidas na escola e nas igrejas pentecostais, por exemplo. O cotidiano dos módulos organizacionais, seja eles o fogo familiar, a parentela, ou o tekoha (comunidade), é marcado atualmente pelas “alianças com instituições oriundas da sociedade nacional, o perfil ou estilo comportamental de cada segmento sendo, em grande medida, orientado pelas características da instituição não-indígena à qual o segmento está vinculado” (PEREIRA,2010, p.23). Como destaca o pesquisador, essas vinculações, além de não serem nada desinteressadas, pois servem para aumentar o prestígio e o poder de fogos e parentelas, também interferem diretamente nos processos de socialização das crianças, instituindo ambientes de vida diversos nos quais as crianças se socializam. É a partir de sua imersão neste microcosmo que as crianças aí socializadas pensam e agem sobre a diversidade interna e externa às suas comunidades.

Viviane Vasconcellos (2011), em sua dissertação, tem como foco os casos de circulação de crianças entre os Guarani de Santa Catarina5 e suas relações com o processo de parentesco. Considerando a circulação de crianças enquanto a transferência delas e sua criação dentro, entre e fora das parentelas guarani, essa pesquisadora buscou mapear as redes sociais em que se movimentam, percebendo algumas recorrências e modos mais frequentes de relacionar-se.

Ao falar da circulação de crianças entre diferentes parentelas, a pesquisadora dá destaque para os casos de gemelaridade entre os Guarani. Para os Mbya a gestação múltipla é vista como um castigo divino, uma anormalidade perigosa e uma má comunicação com os deuses. Por isso, de acordo com os padrões antigos de práticas, se

5

O campo de Vasconcellos (2011) foi realizado em três aldeias: Itaty – Morro dos Cavalos em Palhoça,

(8)

os gêmeos fossem detectados antes do nascimento deviam ser abortados e se nascessem vivos deviam ser abandonados (VASCONCELLOS, 2011, p. 104, apud LARRICQ, 1993, p.32).

Atualmente, sob o risco de serem criminalizados, as mães Mbya, com a ajuda de profissionais da Saúde Indígena, além de deixarem um dos gêmeos com outra parentela, deixam uma de suas crianças geralmente aos cuidados de mães Chiripa. Isso porque para os Chiripa as crianças gêmeas em si não se constituem em um problema e, se elas são mandadas, é antes por um desajuste dos próprios pais da criança, sendo um sinal de Nhanderu e um meio para que eles reflitam sobre seus maus comportamentos (abuso de álcool ou briga constante entre cônjuges) e melhorem (VASCONCELLOS, 2011, p.163).

Quanto ao fato de mulheres Mbyá aceitarem deixar suas crianças com famílias não-indígenas, a pesquisadora diz que isso acontece raramente. Em seu trabalho de campo, Vasconcellos (2011, p.106) ouviu apenas um caso de uma menina gêmea que está sendo criada por uma mulher jurua.

De acordo com a autora, quando as crianças circulam fora do sistema social Guarani, é de forma simbólica, quando dos apadrinhamentos. Estes são compreendidos atualmente como um “real” caminho de construção e fortificação dos laços de parentesco realizados por um compromisso ritual entre os padrinhos e os pais da criança e entre padrinhos e apadrinhados. No nhemongarai – cerimônia de batismo – acaba-se por criar uma rede social pela e para a criança, estabelecendo-se laços entre adultos que não ocorreriam de outra forma. As dimensões de tal rede social acabam por escapar do contexto da aldeia podendo englobar também o mundo jurua.

Por fim, apresentamos o trabalho de Diógenes Cariaga (2012), que realizou pesquisa etnográfica entre os anos de 2010 e 2011, entre os Kaiowá, grupo indígena falante de guarani, que vive em Te’ýikue, Caarapó em Mato Grosso do Sul. O objetivo desta pesquisa foi compreender as transformações no modo de ser kaiowá a partir do modo como diferentes gerações vivenciaram seu modo de ser criança.

(9)

Desse modo, a geração mais velha, ao falar de sua infância salienta as situações de intensificação do contato e o deslocamento de famílias extensas para áreas reservadas pelo SPI, como Te’ýikue, devido a privatização das terras da região para a formação de pastos para a pecuária. Este fator também provocou outro tipo de mobilidade, motivado pelo trabalho dos indígenas nas fazendas de gado e produção de erva mate, que levou a construção de relações com Kaiowá de outras regiões e com não-indígenas. As narrativas dos mais velhos informam também que houve uma diminuição da autonomia das famílias com a introdução da figura do capitão para conduzir e ordenar a vida política nas áreas reservadas pelo SPI, assim como outras políticas de caráter assimilacionista, como a educação escolar, por exemplo.

Tais mudanças, como nota Cariaga (2012, p. 126) ao conversar com um homem Kaiowá de cerca de 80 anos, influenciaram na organização espacial das famílias e na educação das crianças. Se antes as famílias viviam próximas, mas não juntas, e podiam se mover para visitar os parentes e com isso educar as crianças ao modo de cada parentela, com a demarcação e diminuição das terras, isso já não é mais possível, já que pessoas de diferentes parentelas passaram a dividir o mesmo espaço e conviverem intensamente, o que reflete negativamente para a educação das crianças, já que as chances destas tomarem contato com ensinamentos de parentelas diferentes da sua é muito grande.

Por outro lado, a experiência de ser criança vista pelos mais velhos, foi muito mais intensa que as da geração intermediária e atuais, pela qualidade do ambiente da época (um lugar tranquilo), a baixa densidade demográfica e a oportunidade de ficarem mais tempo junto aos parentes, aprendendo sobre sua cultura.

(10)

Ao realizar entrevistas com adultos Kaiowá sobre as crianças atuais, Cariaga (2012, p.150) percebeu que elas são vistas como detentoras de conhecimentos sobre os quais os mais velhos e os adultos não tem. Esse conhecimento pode não ser identificado enquanto tradicional aos olhos dos mais velhos, mas é a marca que define crianças e jovens atualmente, a facilidade em se lidar com as tecnologias e de acessar e assimilar novas informações, que eles podem utilizar para fortalecer a cultura.

Ao acompanhar as crianças em suas atividades, principalmente no contexto familiar e na escola, o pesquisador notou que mesmo tendo intenso contato com elementos pertencentes ao mundo não-indígena como, brinquedos industrializados, celulares, televisão, computadores, os (as) pequenos (as) conhecem valores e o que os identifica como pertencente a um grupo. Como relata o autor, a proximidade entre grupos diferentes e rivais, ocasionada pelo crescimento populacional, resulta muita vezes em brigas, que não somente envolvem os adultos, mas também as crianças (Idem). Na escola, a disposição das crianças nas salas de aula é como nas escolas regulares, mas os professores não impedem que as crianças façam seus grupinhos na sala, geralmente formado por crianças com relações de parentesco (CARIAGA, 2012, p.162).

No dia - a - dia as crianças geralmente ajudam os pais nos afazeres domésticos e no cuidado das crianças menores. Nas brincadeiras não há diferenciação entre sexo e idade, mas, geralmente, os grupos de crianças são formados por membros de uma mesma parentela. Cariaga (2012, p.155) percebeu que ao mesmo tempo em que há mais produtos industrializados ou eletroeletrônicos no cotidiano das crianças, as brincadeiras coletivas (futebol, pega-pega) que ocorrem no pátio da casa, no deslocamento entre a casa dos parentes são as que mais mobilizam a maioria das crianças.

(11)

outros contextos sociais, mas que também procura desenvolver nas crianças um sentimento de respeito pela cultura a qual pertencem.

Considerações finais:

Todos os trabalhos apresentados acima e tantos outros que foram produzidos no início do século XXI6

, são de notável importância para o processo de consolidação desse campo de investigação que é a Antropologia da Criança. Esses estudos contribuem para enxergarmos melhor a pluralidade e diversidade de infâncias entre os coletivos indígenas, chamando a atenção para formas infantis de socialidade, para a dimensão da escolha da criança e sua relação com os processos de parentesco, entre outros.

Sobre informações sobre as crianças nas etnografias clássicas, Tassinari (2007, p. 12) aponta que o longo período em que se deixa de ser bebê até os ritos de iniciação da puberdade parece esquecido. Segundo a autora, há na literatura muitas informações etnográficas referentes ao ciclo de vida de uma pessoa que vai do período de gestação, perpassando pelos tabus alimentares e resguardos que os pais devem respeitar na gravidez e no momento logo após o nascimento do bebê. Nesse sentido, o que notamos é que alguns trabalhos ao abordar o tema da infância têm suprido essa carência.

As etnografias de Cohn (2000), Nunes (2003), Limulja (2007), Pereira (2010), Vasconcellos (2011) e Cariaga (2012), são apenas uma amostra do esforço que vem sendo feito por vários etnólogos que buscam apresentar as várias faces das realidades sociais que estão imersas as crianças indígenas.

Em termos teóricos percebemos que estas análises ao chamarem a atenção para experiências infantis em contextos multiéticos se enriquecem na medida em que complexificam temas clássicos da Antropologia e da Etnologia Sulamericana. O viver das crianças indígenas com pessoas de origem diferentes das delas, principalmente no espaço escolar e em instituições religiosas não-indígenas, e também o uso de produtos da cultura ocidental, como industrializados e eletrônicos, devem ser considerados pelos etnólogos em suas elaborações sobre a noção de corpo, pessoa, parentesco, socialização,

6

(12)

etc. Como apontam as etnografias voltadas para a infância, esses elementos parecem ter influencia na formação do corpo e na percepção de mundo desses (as) pequenos (as), mesmo que ao mesmo tempo, haja um esforço dos adultos que vivem com estes (as) de desenvolver neles (as) um sentimento de respeito pela cultura a qual pertencem e por si próprios.

No que tange a métodos e técnicas de pesquisa, percebemos que cresce a cada ano um diálogo dos etnólogos brasileiros com os pesquisadores dos Novos Estudos Sociais da Infância7 e da Antropologia da Criança, que apostam na combinação de métodos de pesquisa para a produção de dados sobre a infância. No entanto, as etnografias sobre infância indígena no Brasil nos apontam que ainda é preciso realizar avanços. São poucos os trabalhos sobre crianças indígenas que os utilizam, e quando o fazem, em sua grande maioria não exploraram ao que parece, exaustivamente. Exceção, como vimos, é a pesquisa de Hanna Limulja (2007), que complementou sua observação participante, com métodos como, entrevistas, desenhos e textos.

Como as próprias organizadoras do debate em torno de infâncias indígenas têm apontado8, para uma aproximação mais fecunda das experiências infantis nos contextos que estudamos, é preciso “levar a sério as crianças”. Desse modo, além de ouvir os adultos para construir as elaborações que fazemos sobre a infância da sociedade em que pesquisamos, devemos atentar para as experiências vividas pelos (as) pequenos (as) e para as elaborações que as crianças fazem sobre suas vidas. E para isso, acreditamos que a utilização de desenhos, redações, fotografias, entre outros materiais, conjugados com a observação participante só tem a contribuir nessa difícil tarefa de tornarmos cada vez mais presentes e mais fortes “as vozes das crianças” nas descrições das experiências de crianças indígenas nas terras baixas da América do Sul.

Certamente, não se poderá alcançar sempre o pensamento e as imagens infantis, mas, na medida do possível, o pesquisador deveria esforçar-se por trazer para suas etnografias o ponto de vista das crianças sobre suas experiências de vida, o que certamente contribuiria, entre outras coisas, no exercício antropológico de deslocar o próprio ponto de vista.

7

Para mais informações sobre a discussão de método empreendida pelos pesquisadores dos Novos Estudos Sociais da Infância, ver PIRES (2007).

8 Antonella Tassinari e Clarice Cohn no seminário temático intitulado “Do ponto de vista das crianças:

(13)

Bibliografia:

CARIAGA, Diógenes. As transformações no modo de ser criança em Te’ýikue

(1950-2010). Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Grande Dourados,

Dourados, Mato Grosso do Sul, 2012.

CSORDAS, Thomas. “A corporeidade como um paradigma para a Antropologia”. In:

Corpo, significado e cura. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2008.

CODONHO, Camila. Aprendendo entre pares: a transmissão horizontal de saberes

entre as crianças indígenas Galibi-Marworno. Dissertação de mestrado,

Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.

COHN, Clarice. A criança indígena: a concepção Xikrin de infância e aprendizado. Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.

_______________. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2005.

INGOLD, Tim. The perception of the Environment. Essays on livelihood, dwelling

and skill. London: Routledge, 2000.

JESUS, Suzana Cavalheiro de. No campo da educação escolar indígena: uma

etnografia sobre territorialidade, educação e infância na perspectiva mbyá-guarani. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria,

RS, 2011.

LATOUR, Bruno. “Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre ciência.” In: NUNES, João; ROQUE, Ricardo (orgs.). Objetos Impuros: experiências

em Estudos sobre a Ciência. Edições Afrontamento, Porto, Portugal, 2012.

LECZNIESKI, Lisiane Koller. Estranhos laços: predação e cuidado entre os

Kadiwéu. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,

(14)

LIMULJA, Hanna C. Uma Etnografia da Escola Indígena Fen´Nó à luz da Noção de

Corpo e das Experiências das Crianças Kaingang e Guarani. Dissertação de

Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.

LOPES DA SILVA, Aracy; NUNES, Ângela; MACEDO, Ana Vera L. S. Crianças

Indígenas: ensaios antropológicos. São Paulo, Global, 2002.

MALDONADO, Maritza Maciel Castrillon. Espaço pantaneiro: Cenário de

subjetivação da criança ribeirinha. Tese de doutoramento, Universidade Federal

Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, 2009.

MANTOVANELLI, Thaís. Crianças Invisíveis da Reserva Indígena do Icatu/SP. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, 2011.

MEAD, Margareth. Adolescencia y Cultura. Buenos Aires, Paidos, 1961. _______________. Educación y Cultura. Buenos Aires, Paidos, 1985.

MELATTI, Júlio Cezar e MELATTI, Delvair Montagner. A criança Marubo:

educação e cuidados. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro:

INEP, vol.1, nº1, pp. 293-301, 1979.

MÉTRAUX, Alfred;DREYFUS-ROCHE, Simone. La naissance et la prémière

enfance chez les indiens Cayapó du Xingu. In: ______. Miscellanea Paul Rivet.

México, 1958.

MIRANDA, Sarah. Aprendendo a Ser Pataxó: um olhar etnográfico sobre as

habilidades produtivas das crianças de Coroa Vermelha, Bahia. Dissertação de

mestrado em Antropologia Social, UFBA, 2009.

NUNES, Ângela. A Sociedade das Crianças A´uwê-Xavante – por uma

antropologia da criança. Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São

Paulo, 1997.

______________. “Brincando de ser criança”: contribuições da etnologia indígena

brasileira à antropologia da infância. Tese de Doutoramento, Departamento de

(15)

OLIVEIRA, Melissa. Infância, educação e religião entre os Guarani de M'Biguaçu,

SC. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,

2004.

PEREIRA, Levi Marques. A socialização da criança kaiowá e guarani: formas de

sociedade internas às comunidades e transformações históricas recentes no ambiente de vida. Comunicação, ANPOCS, 2010.

PIRES, Flávia. Quem tem medo de mal-assombro? Religião e infância no

semi-árido nordestino. Tese de doutoramento, Museu Nacional, Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

___________. Ser adulta e pesquisar crianças: explorando possibilidades

metodológicas na pesquisa antropológica. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 50, n.1, 2007.

SCHADEN, Egon. Educação e Magia nos rituais de iniciação. Revista Problemas Brasileiros. Rio de Janeiro, v.3, n.8, p.271-74, 1945.

______________. Educação Indígena. Revista Problemas Brasileiros. São Paulo, ano XIV, n.152, p.23-32, 1976.

TASSINARI, Antonella. Concepções indígenas de infância no Brasil. Tellus. Núcleo de Estudos e Pesquisas das populações Indígenas – NEPPI, Campo Grande UCDB, ano 7, n. 13, pp. 11-25, 2007.

VASCONCELLOS, Viviane Coneglian Carrilho de. Tramando Redes: Parentesco e

circulação de crianças guarani no litoral de Santa Catarina. Dissertação de

Referências

Documentos relacionados

O Custeio Baseado em Atividade nas empresas de prestação de serviço, assim como na indústria, envolve os seguintes passos: os recursos consumidos são acumulados por

O presente texto pretende refletir sobre a questão da alfabetização como conceito presente nas políticas educacionais que tem como objetivo ofertar uma

Ainda segundo Gil (2002), como a revisão bibliográfica esclarece os pressupostos teóricos que dão fundamentação à pesquisa e às contribuições oferecidas por

Este trabalho, seguindo o método Design Science Research, fez uma revisão da literatura, uma análise bibliométrica e o estudo de uma empresa para encontrar os elementos da

Os candidatos reclassificados deverão cumprir os mesmos procedimentos estabelecidos nos subitens 5.1.1, 5.1.1.1, e 5.1.2 deste Edital, no período de 15 e 16 de junho de 2021,

DATA: 17/out PERÍODO: MATUTINO ( ) VESPERTINO ( X ) NOTURNO ( ) LOCAL: Bloco XXIB - sala 11. Horário Nº Trabalho Título do trabalho

Almanya'da olduğu gibi, burada da bu terimin hiçbir ayrım gütmeden, modern eğilimleri simgeleyen tüm sanatçılar için geçerli olduğu anlaşılıyor.. SSCB'de ilk halk

Com intuito, de oferecer os gestores informações precisas atualizadas e pré-formatas sobre os custos que auxiliem nas tomadas de decisões corretas, nos diversos