• Nenhum resultado encontrado

1Provas de Inexistência e Impossibilidade na Geometria Entendida como Gramática

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2023

Share "1Provas de Inexistência e Impossibilidade na Geometria Entendida como Gramática"

Copied!
9
0
0

Texto

(1)

Provas de Inexistência e Impossibilidade na Geometria Entendida como Gramática1

Bruno Vaz Aluno do Curso de Doutorado da PUC-Rio Bolsista CNPq

O contato entre Wittgenstein e o Círculo de Viena entre dezembro de 1929 e julho de 32, publicadas em 1967 sob o título Wittgenstein und der Wiener Kreis2, marca o que Steve Gerrard classificou como o começo do período de transição da filosofia da matemática de Wittgenstein3. Esta fase da obra de Wittgenstein é marcada por uma concepção da matemática fortemente vinculada com a noção de cálculo. O sentido de uma proposição é tido então como determinado pelo seu papel no interior do cálculo do qual ela faz parte.

Nas notas de Waismann, encontram-se várias passagens que vinculam a geometria euclidiana tanto com a noção de cálculo como também com a de gramática de uma língua, como uma sintaxe.

Neste trabalho serão apresentadas as idéias de Wittgenstein sobre a matemática (sobre a geometria, em particular), e em seguida tentar-se-á aplicá-las a um caso particular de prova no interior da geometria euclidiana a fim de verificar as virtudes (e problemas) por elas apresentadas.

1. Matemática, cálculo e jogo

Logo nas primeiras observações de Wittgenstein a respeito da natureza da matemática encontramos a afirmação de que a matemática não descreve nada senão ela mesma, ou seja, possui a si mesma como objeto4. Não se faz necessária, portanto, uma realidade objetiva que a fundamente. A matemática funciona, de acordo com este ponto de vista, como um jogo com regras definidas, o qual não necessita de um fundamento externo, mas apenas de regras que o regulamentem. Seus objetos não são, portanto, representações de algo na

1 O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – Brasil

2 Será usada neste trabalho a versão em espanhol do referido texto: Waismann. F.. Wittgenstein y el Círculo de Viena. Arboli, M. (trad.). México: Fondo de Cultura Económica, 1973. (Doravante, WWK)

3 Gerrard, S.. “A philosophy of mathematics between two camps”. In: Sluga, H. & Stern, D. (eds.). The Cambridge Companion to Wittgenstein. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. [pp.171-197].

4 WWK, p. 30.

(2)

realidade, se assemelhado mais a peças de um jogo, definidas pelo conjunto de regras que governam sua atuação. A correspondência entre uma teoria matemática e os objetos do mundo não é, portanto, uma condição sine qua non para o seu bom funcionamento. Logo, procurar por um vínculo entre uma teoria matemática e o mundo físico é sinal de má compreensão a respeito da natureza da atividade matemática. A geometria como gramática das asserções a respeito do campo visual é totalmente diferente da geometria do espaço físico: somente a última procura descrever a realidade – e, por isso, pode ser mais ou menos aceitável que outra, conforme descreva de modo mais ou menos adequado a realidade empírica5. A matemática, diga-se de passagem, está mais próxima de um cálculo que de uma teoria. E um cálculo, diz Wittgenstein, “voa livremente”.

Sendo as teorias matemáticas concebidas como espaços fechados, auto-geridos, tais como jogos, só faz sentido procurar por algo em seu interior caso exista de antemão um método para tal. Deste modo, nem toda pergunta sobre objetos matemáticos dotada de sentido na linguagem ordinária fará sentido no interior de uma teoria matemática. Para dar um exemplo análogo, não se pode buscar uma situação de ko em um jogo de xadrez, embora isto seja possível no jogo de go. Mesmo que tais jogos possuam elementos em comum (são jogos de tabuleiro, com peças brancas e pretas, etc), e a situação em questão seja inteligível para um jogador de xadrez (a situação em que uma peça adversária é capturada enquanto, para isto, uma peça aliada é deixada à mercê do adversário, sem, no entanto, poder ser capturada na jogada subseqüente), não faz sentido buscar tal configuração no contexto do xadrez, uma vez que se trata de outro jogo. Em geometria euclidiana se daria o mesmo caso se falasse do heptágono regular. Sabe-se que faz sentido falar de polígonos regulares, mas entre o pentágono e o polígono regular de 17 lados não há polígonos regulares capazes de serem construídos com régua e compasso. Tentar construir o heptágono regular é como tentar desatar um nó que não existe, ilustra Wittgenstein6. Uma pergunta só é possível se há um método para respondê-la; se não há tal método, a questão não passa de prosa.

Uma teoria matemática assim entendida é dada de uma vez com todas as suas regras, o que está de acordo com a tese de que não há descoberta em matemática; o caráter

5 Cf., p. ex., WWK, p. 88.

6 WWK, pp. 32-33.

(3)

necessário de suas proposições é garantido pelo seu status de regra, sua normatividade. Se as regras de um jogo (de uma teoria matemática) são modificadas com vistas a incluir um caso que antes não poderia fazer parte dele, tem-se então um novo jogo (uma nova teoria), e não uma modificação do antigo7. Isto ajuda a explicar o motivo pelo qual Wittgentein repetidas vezes objeta Waismann e aos demais membros do Círculo quando estes falam da possibilidade de se encontrar contradições ocultas numa teoria matemática8. Não se trata de dizer que as contradições não aparecem de todo, pois elas de fato desempenham um papel importante nas demonstrações indiretas. O que não faz sentido é falar de uma contradição oculta sob os axiomas, que, como um vírus, estivesse levando o sistema à ruína, mesmo sem que se soubesse. Wittgenstein, lembrando Frege, ressalta que há dois sentidos em que podem ser concebidos os axiomas: 1) como regras segundo as quais se joga, ou 2) como uma disposição inicial para o jogo. No segundo sentido uma contradição nunca aparecerá, pois é requisito de um jogo que sua configuração não leve a uma situação que o paralise, uma situação de indecisão. Caso se chegue a uma tal situação, não se tinha de todo um jogo9. Já no primeiro sentido, o surgimento de uma contradição, devido talvez a uma má formulação das regras, é sanado pelo acréscimo de uma nova regra. A contradição pode aparecer neste nível porque se trata de regras, as quais podem ser convertidas em asserções sobre o que é possível de ser feito10; no cálculo elas são um tabu, uma vez que ali não há asserções. Não é possível sequer imaginar que uma determinada configuração de um jogo pudesse ser tal que sua descrição por meio de asserções resultasse logicamente contraditória. Não há como imaginar uma contradição.

Em resumo, não há motivos para se temer uma contradição em matemática. Se a entendemos como cálculo, como conjuntos de regras definindo operações, então as contradições estão nas regras, e então basta que se crie nova regra (um novo jogo, já que antes sequer tinha-se um); ou não estão em lugar algum, pois nas configurações geradas a

7 Gerrard observa uma mudança nesta concepção de Wittgenstein a respeito da possibilidade de modificações de um jogo. No período de transição isto é impossível, uma mudança implica um novo jogo. Já no período das Investigações Filosóficas as mudanças podem ser vistas como melhorias necessárias para certos fins. Gerrard, S.. Op. cit.. p. 176.

8 Isto aparece, principalmente, na defesa da legitimidade das provas de consistência de Hilbert. Veja-se, por exemplo, WWK, pp. 105-107, 111,124-126, 153-154, 183.

9 WVK, p. 172. Wittgenstein afirma que se uma contradição aprece, nestas condições, no interior de um cálculo, então não se tratava de um cálculo propriamente dito.

10 Wittgenstein sustenta que contradições só podem aparecer onde há asserções, e portanto estão fora do cálculo (WWK, p. 110)

(4)

partir da aplicação das regras ela não pode aparecer. Por isso, não há por que temer contradições ocultas. Se elas aparecem, foram introduzidas por uma tentativa frustrada de tentar incorporar ao sistema algum tipo de expressão que não esteja de acordo com as regras de construção das expressões permitidas no cálculo, como no caso das provas por reductio ad abrsurdum.

2. Geometria como sintaxe

Se a sintaxe é tida como um conjunto de regras que regem a formação e o comportamento das expressões de uma linguagem, pode-se então entendê-la como uma espécie de cálculo, no sentido acima descrito, uma vez que a noção de regra parece ocupar um lugar central na sua caracterização. É neste sentido que Wittgenstein diz, a respeito da geometria11, que

“não há problemas em se dominar a multiplicidade do espaço com uns poucos axiomas, pois o que se está fazendo não é senão estabelecer a sintaxe de uma linguagem”12. Ou seja, não se está querendo descrever as características essenciais do espaço, mas sim estabelecer regras para a formação de expressões numa determinada linguagem. Em outras palavras, estabelecem-se as regras de um jogo. Um jogo cujo “tabuleiro” é uma forma mais rígida do espaço visual, e cujas peças são linhas e pontos.

Embora se correspondam em certa medida, o espaço visual e o espaço euclidiano não são a mesma coisa13. Há no primeiro um fator de indeterminação que falta ao último.

Não podemos, por exemplo, dizer a partir de que ponto um objeto entra no espaço visual.

No espaço visual não podemos identificar de modo preciso os limites de uma figura, embora isto seja possível no espaço euclidiano. Visualmente também não se consegue distinguir um polígono de 200 lados de um de 201. Pode-se objetar, contudo, que tampouco vemos tais limites de modo claro na geometria euclidiana; bem como não podemos saber se uma determinada figura é realmente um círculo ou possui defeitos em seu contorno que o descaracterizem. Neste ponto, Wittgenstein responderia que o que importa na geometria não é o que percebemos; não se trata de uma ciência empírica, mas sim de um cálculo, onde o que interessa são as regras. Há um método para se determinar o número de lados de um polígono, por exemplo, e é este o fator importante. Não importa, diz ele, que se ao

11 Entenda-se “geometria euclidiana”.

12 WWK, p. 33.

13 WWK, p. 49.

(5)

desenharmos uma tangente esta não possua um ponto em comum com a circunferência que ela tangencia, mas sim que assim o pareça14. O fator de indeterminação que o espaço visual possui não constitui um problema para seu uso como recurso na geometria euclidiana, pois o que realmente importa são as regras, e as imperfeições do simbolismo são meras contingências15.

Quatro dias depois de fazer estas observações, em 29 de dezembro de 1929, Wittgenstein esclarece que são empregadas duas linguagens distintas ao fazer referência ao espaço visual e ao espaço euclidiano, e é dada primazia à linguagem deste sobre a daquele.

Sabe-se de antemão a diferença entre ser e parecer, e sabe-se também que o que importa é o parecer. Aqui reside a diferença entre as sintaxes destas linguagens. Pois na geometria do espaço visual nem sempre A=B e B=C implicam A=C. Há no espaço visual, como foi dito, um fator de indeterminação16. O que vai garantir a implicação, no espaço euclidiano, serão as regras de construção. Para ilustrar, é dado o exemplo da propriedade da divisibilidade infinita do espaço (euclidiano): no campo visual tem-se, a partir de um certo número de divisões, a cor cinza, onde se deveria ver linhas e espaços em branco. Então, pergunta Wittgenstein, isto significa que o espaço visual é infinitamente divisível ou o contrário? Ao que responde, nem uma coisa nem outra, apenas que quando emprego euclidianamente a expressão “estar dividido”, o que tenho no espaço visual é o cinza.

Sendo os axiomas entendidos como regras sintáticas, pode-se dizer que eles não tratam de nada, não descrevem nada. São parâmetros para ação, de natureza semelhante à de uma régua, que não pode ser medida por ser ela mesma o parâmetro para medições.

Podemos postular nosso modo de expressão, mas não o comportamento das coisas17. Neste sentido, a geometria euclidiana, construída a partir de postulados, definições e noções comuns, está mais próxima de um jogo, de uma gramática de uma língua que de uma descrição da realidade18. Por se tratar de diferentes empregos da geometria, não há contradição em se considerar a geometria como sintaxe e como parte de uma hipótese19.

14 WWK, p.51.

15 Não se exigiria, por exemplo, que se escrevesse os numerais sempre do mesmo modo para que o resultado de uma soma fosse confiável.

16 WWK, p. 55.

17 WWK, pp. 56 e 144.

18 As definições, vale lembrar, embora possuam também o caráter arbitrário dos postulados, devem pautar-se por sua adequação aos objetos a que se referem. Com as noções comuns parece acontecer o mesmo. Daí o fato

(6)

Se pode, com efeito, conceber a geometria tanto no primeiro sentido quanto no segundo (na descrição do espaço físico, por exemplo). Neste último caso, se pode dizer que uma geometria pode ser mais aceitável que outra, caso esteja mais de acordo com a descrição pretendida. No primeiro caso, entretanto, não cabe tal observação. A geometria, tanto como a aritmética, pode fazer parte de uma descrição, mas a descrição não é geometria. Enquanto parte de uma hipótese, ela serve como regra para a formação de asserções, e pode ser abandonada caso as asserções formadas a partir dela sejam menos condizentes com o objeto da descrição que aquelas geradas por meio de outras regras.

Enquanto hipótese, ela pode ser “avaliada”, por assim dizer, de acordo com os resultados obtidos pela teoria. Enquanto sintaxe, entretanto, ela é fechada, não estando sujeita a revisão nem a avaliação.

A geometria, segundo Wittgenstein, não é uma teoria que descreve figuras no espaço e suas propriedades. Uma prova em geometria não versa sobre figuras no papel nem na realidade. A própria figura deve ser vista como o simbolismo, e os axiomas como regras de manipulação deste. As regras são o essencial; as linhas e pontos são como as peças de um jogo; constituem um cálculo.

3. Impossibilidade e inexistência

A fim de que se tenha presente um caso particular de prova de impossibilidade, será apresentada a seguir a demonstração da proposição I,6, dos Elementos, de Euclides.

A proposição diz que, se em um triângulo dois ângulos são iguais, então os lados opostos a estes ângulos também devem ser iguais. A demonstração é feita por meio da tentativa de se construir um contra-exemplo, um triângulo que tenha dois ângulos iguais, mas cujos lados opostos a estes sejam desiguais. Temos, então, uma hipótese (H): seja ABC um triângulo com o ângulo ABC igual ao ângulo ACB, mas com o lado AC diferente do lado AB. A demonstração prossegue de acordo com o que é permitido pelos axiomas, noções comuns, definições e proposições antes demonstradas:

(1) Se AB é diferente de AC, um deles é maior; seja AB o maior [Noção Comum].

de a geometria, mesmo sendo um jogo fechado em si mesmo, poder se aplicar tão excelentemente ao espaço visual (ver WWK, p. 156-157).

19 Como sintaxe ela possui o caráter de cálculo acima descrito; como parte de uma hipótese - caso da geometria do espaço físico, por exemplo - a geometria é uma ciência empírica, e pode ser aceita ou descartada conforme descreva de modo melhor ou pior a realidade em questão.

(7)

(2) Corte de AB um segmento DB igual a AC [Prop. I,3].

(3) Trace DC [Post. I].

(4) Já que DB é igual a AC, e BC é comum, os ângulos DBC e ACB são iguais, e DC é igual a AB, e o triângulo DBC é igual ao triângulo ABC [Prop. I,4].

(5) Então, o maior é igual ao menor [Absurdo].

(6) Logo, AB não é diferente de AC [abandona-se a hipótese] e portanto é igual a ele [Noção Comum 5].

Se a geometria é vista como a gramática de uma língua, então suas regras dão um parâmetro segundo o qual uma expressão pode ser considerada como possuindo ou não possuindo um sentido. Como a construção de um triângulo com os ângulos da base iguais e lados opostos diferentes mostrou-se impossível, a expressão que o nomeia carece de sentido no interior da geometria euclidiana. A suposta demonstração na verdade seria um teste de sentido para a expressão “triângulo com os ângulos da base iguais e lados opostos diferentes”. A expressão mostrou-se contraditória com os axiomas, e deve ser riscada do vocabulário.

Esta interpretação da posição de Wittgenstein é exposta em um artigo de Jean- Philippe Narboux, intitulado Non-sens, contre-sens et contre-exemple20. Narboux chama de

“tese radicalmente deflacionista” a posição de Wittgenstein segundo a qual as provas de impossibilidade servem para riscar do vocabulário uma determinada expressão21. Sem entrar em maiores detalhes, cabe mencionar ao menos alguns aspectos desta concepção que parecem estar mais expostos a criticas. Objeta-se, sobretudo, que o colapso das esferas do sentido e da referência faz com que muito do que se faz em matemática seja considerado inútil, já que muitas vezes, como nas provas indiretas, por exemplo, se manipulam nomes para os quais uma atribuição de significado é impossível. Em suma, nas demonstrações indiretas se estaria lidando com signos que não designam nada, e, portanto, as próprias demonstrações seriam de caráter duvidoso.

20 Narboux, J.-P.. “Non-sens, contre-sens et contre-exemple – Husserl et Wittgenstein sur lesdémonstrations d’impossibilité” In: Benoist, J. & Laugier, S. (eds.). Husserl et Wittgenstein – De la description de l’experience à la phénoménologie linguistique. Hildesheim, Zürich, New York: Georg Olms Verlag, 2004.

[pp. 139-167].

21 Tal tese é formulada explicitamente em 1939, nas Lectures on the Foundations of Mathematics, mas parece de acordo com o que Wittgenstein diz nas notas de Waismann, e, portanto, é bem-vinda na elucidação do tópico que ora se discute.

(8)

É possível defender Wittgenstein destes ataques de diferentes maneiras. Poder-se-ia dizer que as demonstrações indiretas não possuem o mesmo caráter das demais, devendo ser para elas indicados modos de procedimento especiais caso surja em seu desenvolvimento algo como uma contradição, por exemplo. De fato, elas parecem introduzir, de fora do sistema, uma expressão cujo sentido ainda não foi descoberto. Se tal expressão denota alguma configuração legítima do jogo, então ela já estava prevista pelas regras (e talvez se devesse poder chegar a ela de maneira direta); se, ao contrário, a configuração pretendida revela-se impossível, tal expressão não será aceita, e não fará sentido. Deste modo, não há boas razões, ao que parece, para se considerar o sentido e o significado como dois níveis distintos, como se as palavras possuíssem uma referência independentemente do contexto em que estejam sendo empregadas.

É possível dizer que numa gramática o sentido acaba sendo o que realmente importa, e se uma proposição não se refere a nada no interior desta gramática, se não está de acordo com suas regras, então ela realmente não possui sentido algum, mesmo que seus componentes atômicos sejam bem-formados. Não é porque a expressão “heptágono regular” pode ser entendida na linguagem comum que ela deve ser entendida, digamos, por alguém que, familiarizado com as regras da geometria, saiba que entre o pentágono regular e o polígono regular de 17 lados não há outro polígono regular. Não é porque se entende o que a expressão ½ quer dizer que esta expressão deva fazer algum sentido no contexto dos números naturais.

A demonstração acima seria análoga à suposição de uma determinada configuração no tabuleiro de xadrez que levaria, em alguns lances, a uma configuração incompatível com as regras do jogo (por exemplo, os dois bispos brancos atuando nas diagonais brancas).

Pode-se perguntar: alguém diria que se tratava ainda de um jogo de xadrez quando as peças brancas possuíssem seus dois bispos cobrindo as mesmas casas do tabuleiro?

Por si só, dizer que o segmento AB é maior e é igual ao segmento DB não é dizer uma contradição, do mesmo modo que não há nada de contraditório, em princípio, na configuração do jogo de xadrez acima descrita. Esta aparece quando se tem em mente as regras do jogo, quando se compara o sistema proposicional com a situação pretendida22. Quando há algo que diga que tal expressão é proibida, ou que ela leva a uma contradição

22 WWK, p.57.

(9)

lógica, então descarta-se a proposição23. Se não houvesse uma tal proibição, continuar-se-ia calculando, e a igualdade dos lados opostos aos ângulos iguais da base talvez seria mera contingência.

Pode-se bem imaginar um jogo em que sempre que chega a uma contradição, o jogador deve voltar à posição inicial. Aliás, este parece realmente ser o caso nas provas que usam a reductio. A contradição neste caso não é do tipo temido pelos matemáticos, pois a que eles temem, segundo Wittgenstein, é aquela que está lá, escondida entre os axiomas e ainda não notada. O que Wittgenstein parece insistir em mostrar é que, pelo mesmo motivo que se solucionou este caso, se solucionaria todos os outros: se a contradição vem de fora, não se lhe abre a porta; e não há outro caso possível, pois se não tenho um método para encontrar as contradições ocultas dentro do sistema, então elas não existem, pois não há espaços vazios no cálculo onde elas possam estar escondidas.

De acordo com a concepção de sintaxe24 adotada por Wittgenstein, as expressões formadas de acordo com suas regras devem possuir um sentido unívoco. Ora, no exemplo mostrado temos uma expressão que possui dois sentidos (a saber, o segmento DB, que ora é tido como idêntico a AB, ora como diferente deste). Se um sistema de signos é adequado a ponto de representar perfeitamente seu objeto não necessitaria de sintaxe25. As proposições expressam sentidos, mas não podem expressar sem-sentidos, contra-sensos. Estes vêm da combinação de signos à revelia das regras de gramática, e não constituem proposições 4. Considerações finais

A demonstração analisada se revelaria, para Wittgenstein, como o impedimento da entrada, no vocabulário da geometria euclidiana, de uma expressão que contraria as regras estabelecidas pelos axiomas. Ela só poderia ser aceita caso fossem modificadas as regras;

como, no entanto, se trata de geometria euclidiana, um todo fechado em si mesmo, não- sujeito a revisões, a gramática de uma determinada língua cujas expressões dotadas de sentido estão pré-estabelecidas por suas regras, a única alternativa seria descartá-la.

23 Vale lembrar que uma contradição só pode aparecer onde houver asserções, e portanto só pode aparecer fora do jogo, de acordo com Wittgenstein, numa espécie de teoria que descreve o jogo, ou, dito de outro modo, na teoria que descreve o cálculo.

24 WWK, p. 210.

25 Não há razão para se supor, portanto, que a geometria euclidiana dispõe, com as figuras que dela fazem parte, de uma notação perfeita, uma vez que elas ainda possuem uma sintaxe.

Referências

Documentos relacionados

Esse menu contem opções para reiniciar a sua máquina, verifique a tabela detalhada abaixo. • Reset coins

 Ao clicar no botão Congurar Apresentação de Slides , uma caixa de diálogo será aberta (gura 59), para que congurações sejam estabelecidas, tais como tipo

RESUMO - O trabalho objetivou avaliar a qualidade das sementes de arroz utilizadas pelos agricultores em cinco municípios (Matupá, Novo Mundo, Nova Guarita, Alta Floresta e Terra

Signatários: Cid Thomé Travassos da Costa e Ronald Araújo da silva pela INB, e Liberato Paulo Gomide Sigaud e Rodrigo Meirelles Sigaud, pela Contratada.. Objeto: Transporte de

Contribuições/Originalidade: A identificação dos atributos que conferem qualidade ao projeto habitacional e das diretrizes de projeto que visam alcançá-los, são de fundamental

DATA: 17/out PERÍODO: MATUTINO ( ) VESPERTINO ( X ) NOTURNO ( ) LOCAL: Bloco XXIB - sala 11. Horário Nº Trabalho Título do trabalho

O pressuposto teórico à desconstrução da paisagem, no caso da cidade de Altinópolis, define que os exemplares para essa análise, quer sejam eles materiais e/ou imateriais,

Lisboeta de nascimento e com dupla formação em música clássica e jazz na Escola Superior de Música de Lisboa, na Escola de Jazz Luiz Villas-Boas e no Conservatoire Superieur