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Construção identitária de escolas de sambas-exaltação: uma perspectiva dialógica

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Academic year: 2021

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CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUÍSTICA APLICADA

Flávia Ferreira Lopes da Costa

CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE ESCOLAS DE SAMBA EM SAMBAS-EXALTAÇÃO: UMA PERSPECTIVA DIALÓGICA

Natal ‒ RN 2018

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CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE ESCOLAS DE SAMBA EM SAMBAS-EXALTAÇÃO: UMA PERSPECTIVA DIALÓGICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem na área de concentração Linguística Aplicada. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marília Varella Bezerra de Faria

Natal ‒ RN 2018

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CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE ESCOLAS DE SAMBA EM SAMBAS-EXALTAÇÃO: UMA PERSPECTIVA DIALÓGICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem e aprovada pela seguinte banca examinadora:

_________________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Marília Varella Bezerra de Faria (Orientadora − Presidente)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

_________________________________________________________________________ Prof. Dr. Gilvando Alves de Oliveira (Examinador Externo)

Instituto Federal do Rio Grande do Norte

_________________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria da Penha Casado Alves (Examinadora Interna)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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Minha gratidão absoluta a Deus, por me dar força, saúde e energia para concluir esta pesquisa sem fraquejar ante as dificuldades de percurso.

Ao meu marido, companheiro de todas as horas, que vivenciou comigo todo este processo, por sua paciência e compreensão plena neste momento de travessia.

À minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Marília Varella Bezerra de Faria, exemplar profissional, que, em sua generosidade ímpar, me orientou com dedicação e competência intelectual, tornando bem mais fácil palmear o caminho.

À Prof.ª Dr.ª Maria da Penha Casado Alves, por acolher-me em seu grupo de estudos (aos sábados), dando-me a oportunidade de partilhar saberes e refletir melhor sobre meu objeto de estudo.

À Prof.ª Dr.ª Maria Bernadete Fernandes de Oliveira, que se fez presente, neste estudo, com sua inesgotável sapiência sobre o Círculo de Bakhtin.

A Anne Michelle, que, além de me “presentear” com sua preciosa amizade, me animou na caminhada com sua alegria contagiante.

A Diana Mendonça, amiga e companheira de todas as horas, que, com sua constante presença, seus bons papos regados a cafés e crepes, seus conselhos e suas reflexões sobre a vida e sobre nossas pesquisas, imprimiu leveza à jornada.

A Magda Renata, que, com sua grande generosidade, me recebeu de braços abertos, desde o início, sempre me aconselhando, orientando, motivando e, principalmente, sendo uma grande e fiel amiga.

A minha família que, mesmo longe, sempre me apoiou e torceu para o meu sucesso. Aos amigos: Cíntia, Artur e Marcelle, pela amizade construída neste feliz encontro, em que partilhamos saberes e vidas.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

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RESUMO

Há mais de um século, o desfile das escolas de samba continua surpreendendo o grande público, resistindo às cobranças, à mercantilização da cultura e às infindáveis mudanças em sua estrutura organizacional. Assim como qualquer outra instituição cultural, as escolas de samba passam por constantes transformações para se adequar à nova realidade e às exigências do público, que deseja sempre ser surpreendido por um grande espetáculo. Diante da proporção que a festa carnavalesca tomou e de todas essas mudanças ocorridas, dentro e fora do universo do samba, as escolas de samba são pressionadas a se afirmar e mesmo a redefinir suas identidades culturais. Considerando essa nova reordenação no universo do samba, este estudo objetiva analisar como as escolas de samba do Rio de Janeiro se constroem identitariamente a partir de seus sambas-exaltação. Para tanto, assume-se, a princípio, o pressuposto de que essas canções, assim como os hinos nacionais, são propagadoras ideológicas de modos de pensar e constitutivas de identidades da agremiação e da própria comunidade. Os sambas-exaltação, também conhecidos como hinos de exaltação, são fundamentais no processo de construção e de afirmação da identidade dessas instituições culturais. São gêneros discursivos que não só favorecem a elevação da autoestima da comunidade participante mas também contribuem para desperta-lhe o sentimento de pertencimento. A pesquisa insere-se na área da Linguística Aplicada, um campo teórico que entende a linguagem como prática social e se ancora no modelo sócio-histórico, em que a linguagem é entendida como prática discursiva (Círculo de Bakhtin). Ainda no campo teórico, estabeleceu-se uma interconexão com os estudos culturais (Hall; Canclini; Bauman; Woodward), considerando que a cultura constrói valores, produzindo diferenças em função de suas condições de produção. As escolas de samba analisadas foram as três com o maior número de títulos até 2018: Estação Primeira de Mangueira, Grêmio Recreativo da Portela e Beija-Flor de Nilópolis. No percurso investigativo, constatou-se que o processo de construção identitária das escolas de samba é semelhante ao dos hinos nacionais. Constatou-se também que as escolas de samba afirmam sua identidade por meio de sistemas representacionais, como a valorização de um autêntico passado de glórias, a bandeira, as cores que as singularizam, as suas tradições e os seus valores, o bairro/morro onde estão localizadas, um discurso de amor e devoção à “terra amada” a ser assimilado e reproduzido pela comunidade, a sensação de felicidade, a identidade feminina, a identidade religiosa, e a afirmação de seu status de lugar de samba, pelo qual querem ser reconhecidas.

Palavras-Chave: Enunciado. Identidade cultural. Escolas de samba. Samba-exaltação. Signo ideológico.

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ABSTRACT

For more than a century, samba schools parades keep surprising the audience, resisting to certain requirements, to culture commercialization, and also facing the endless changes in their organizational structure. Like any other cultural institution, they are in constant change to adequate themselves to the new reality and needs of the audience who always want to be surprised by a huge spectacle. Due to the high proportion that the carnival party has taken and to all these changes inside and outside of the samba universe, samba schools are impelled to reaffirm or even change their cultural identities. In this context, this study aims to analyze how samba schools in Rio de Janeiro have their identities built upon representations contained in their sambas-exaltação – also known as anthems of exaltation. We start out with the premise that these songs are ideological propagators of ways of thinking and constitutive of the identities of the institution and of the community itself. Sambas-exaltação are constitutive of the construction and of the affirmation of the identities of these cultural institutions. They are discursive genres that act upon building up the community’s self-esteem and they develop a feeling of belonging. This study is situated within the area of Applied Linguistics, a theoretical field that understands language as a social practice, and it is based on a social and historical model of language, with language construed as a discourse practice (Circle of Bakhtin). It also presents an interface with cultural studies (Hall, Canclini, Bauman, Woodward), taking into account the fact that culture builds up values and brings forth differences in respect of the conditions under which such values and differences are produced. Three top samba schools were analyzed according to their number of titles up to the year of 2018: Estação Primeira de Mangueira, Grêmio Recreativo de Nilópolis e Beija-Flor de Nilópolis. Analyses indicate that the process of identity construction of samba schools is similar to the one found in national anthems. Samba schools reaffirm their identities through symbolic values: an authentic past of glories; flags and school colors; traditions and values; the environment or the school neighborhood; words of love and devotion for the ‘beloved land’ that the community must develop for the school; happiness; female identity; religious identity; and the place of samba.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 ‒ Tabela de Ranking das escolas de samba ……...……..………...…...………….. 92

Figura 2 ‒ Tabela de Ranking das escolas de samba ……….…...………..…….…93

Figura 3 ‒ Tabela de Ranking das escolas de samba ...…...…..…………...….……...…… 93

Figura 4 ‒ Águia da Portela ………....………105

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SUMÁRIO

1 ENSAIO TÉCNICO: As escolas de samba e os desafios do mundo pós-moderno ...20

2 PRIMEIRO ENSAIO OFICIAL ...26

2.1 FANTASIAS E ALEGORIAS DA IDENTIDADE ... 26

2.2 A CULTURA POPULAR E A CARNAVALIZAÇÃO ... 33

2.3 AS FESTAS POPULARES DO RIO DE JANEIRO: resistência e transgressão ... 40

2.4 ENFIM, AS ESCOLAS DE SAMBA E O SAMBA: Dentro da ordem do permitido ...47

2.5 ESTADO DA ARTE ... 55

2.5.1 Identidades de Escolas de Samba ... 56

2.5.2 Identidades de Comunidades, favelas e cidades ...61

2.5.3 As Festas populares do Rio de Janeiro e o surgimento das escolas de samba ...64

2.5.4. Sambas-exaltação e hinos institucionais ...,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,...65

2.5.5 Gênero samba em busca de representações identitárias ...68

3 SEGUNDO ENSAIO OFICIAL ... ...71

3.1 CONTRIBUIÇÕES DO CÍRCULO DE BAKHTIN PARA OS ESTUDOS DA LINGUAGEM ... 71

3.2 SAMBA-EXALTAÇÃO EM DIALOGIA COM OS HINOS NACIONAIS... 75

4 OUTROS ENREDOS: CORTEJO METODOLÓGICO ...87

4.1 A LINGUÍSTICA APLICADA E OS NOVOS CONTEXTOS: PESQUISA QUALITATIVA-INTERPRETATIVISTA ... 87

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5.1 ANÁLISE ENUNCIATIVA DOS SAMBAS-EXALTAÇÃO...96

5.1.1 Grêmio Recreativo da Portela...96

5.1.1.1 Samba-exaltação Hino da Portela ...100

5.1.1.2 Samba-exaltação Portela na Avenida ...102

5.1.2 Estação Primeira de Mangueira...107

5.1.2.1 Samba-exaltação Exaltação à Mangueira ...109

5.1.3 Beija-flor de Nilópolis...111

5.1.3.1 Samba-exaltação A deusa da passarela ...112

5.1.3.2 Samba-exaltação Eu sou de Nilópolis ...114

5.1.3.3 Samba exaltação A soberana ...114

5.2 DIALOGANDO COM AS IDENTIDADES ...117

6 APURAÇÃO FINAL ... 122

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Carnavalia ‒ Tribalistas

Vem pra minha ala Que hoje a nossa escola vai desfilar Vem fazer história Que hoje é dia de glória nesse lugar

Vem comemorar [...] Vamos pra avenida Desfilar a vida, carnavalizar

A Portela tem Mocidade Imperatriz No Império tem Uma vila tão feliz Beija-Flor vem ver A porta-bandeira Na Mangueira tem morena da Tradição

Sinto a batucada se aproximar Estou ensaiando para te tocar

Repique tocou, o surdo escutou E o meu corasamborim Cuíca gemeu Será que era eu Quando ela passou por mim [..]

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1 ENSAIO TÉCNICO: AS ESCOLAS DE SAMBA E OS DESAFIOS DO MUNDO PÓS-MODERNO

Como carioca, antiga moradora do bairro de Ramos, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, o universo do samba sempre esteve presente na minha vida, seja frequentando os ensaios na quadra das escolas de samba, seja participando das feijoadas ou até mesmo assistindo aos desfiles pela televisão. Apesar de não ter nascido dentro do que poderíamos considerar como uma comunidade do samba, mas sim em um grande bairro da zona norte carioca, frequentar a quadra da escola Imperatriz Leopoldinense, localizada neste bairro, afigurava-se-me uma oportunidade lúdica, principalmente, durante o período que antecedia aos desfiles.

Desde essa época, recordo-me que o momento de entoação do hino da escola era, para mim, o mais emocionante. Era lindo ver e ouvir a comunidade cantando o hino com tanta emoção como se estivesse participando de um jogo da seleção brasileira ou de algum outro momento cívico. O som da bateria, de fato, junto ao clamor do público participante, sempre me causou arrepios. E assim se foi construindo toda a minha relação afetiva com o samba e com as escolas de samba.

Depois de muitos anos morando fora da cidade do Rio de Janeiro, e distante desse universo, já no último período da graduação, no curso de Letras, iniciei os estudos sobre identidade cultural na disciplina Literatura Brasileira. A partir daí, despertada pela experiência com o mundo das escolas de samba, resolvi mergulhar na pesquisa sobre a construção da identidade de escolas de samba, dando a devida relevância a seus sambas-exaltação. Esta abordagem foi impulsionada, também, pela recém-descobertados estudos de análise discursiva, que se vieram conjugar à minha admiração e curiosidade pelo mundo do samba1.

1 De acordo com Leopoldi (2010), a expressão mundo do samba diz respeito ao conjunto de manifestações sociais e culturais que fazem parte dessa esfera de comunicação verbal.

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Ao ingressar no mestrado2, tive oportunidade de conhecer a concepção dialógica da linguagem do Círculo de Bakhtin3, o que possibilitou olhar para meu objeto de estudo com outras “lentes4”, fundamentais para melhor compreendê-lo.

Dito isto, sobre as escolas de samba, é importante recordar que, diferentemente do passado, escolas de samba, hoje, institucionalizaram-se e se transformaram em um importante empreendimento turístico e econômico para o Brasil. A partir do momento em que o desfile passou a fazer parte de uma grande competição, a gerar visibilidade e lucros às agremiações e às suas comunidades, novas escolas surgiram e a disputa ficou ainda mais acirrada. O que era antes considerado um prazer, uma diversão para as comunidades, deu lugar às constantes correrias, exigências e cumprimento de prazos para o desfile.

Há mais de um século o desfile das escolas de samba continua surpreendendo o grande público, resistindo às cobranças, à mercantilização da cultura e às infindáveis mudanças em sua estrutura organizacional. Assim como qualquer outra instituição cultural, está em constante transformação para se adequar à nova realidade e às exigências do público que deseja sempre ser surpreendido por um grande espetáculo. Diante da proporção que a festa carnavalesca tomou e de todas essas transformações dentro e fora do universo do samba, as escolas de samba são pressionadas a se afirmarem ou até redefinirem suas identidades culturais.

Tudo isso acontece porque vivemos no tempo de uma sociedade fluida e transitória (BAUMAN, 2001). E, nesse contexto de grandes incertezas, as identidades que até então se consideravam estáveis, passaram a sofrer volições; não são fixas sequer no interior de um mesmo grupo. Essa complexidade em que se transformou a vida moderna “exige que assumamos diferentes identidades, mas essas identidades podem estar em conflito”, vez que surgem em lugares de tensões “entre as expectativas e as normas sociais” (WOODWARD, 2014, p. 32-33).

2 Grupo de pesquisa intitulado A construção identitária da cidade múltipla, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Marília Varella Bezerra de Faria, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, vinculado ao grupo de pesquisa (no CNPq), Práticas Discursivas na Contemporaneidade. A pesquisadora integra também, desde 2016, o Projeto de Extensão Ciclo de Estudos: diálogos com o círculo de Bakhtin, sob a perspectiva da Linguística Aplicada, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Maria da Penha Casado Alves.

3 Nome dado ao grupo de intelectuais russos (Mikhail M. Bakhtin, Valentin N. Voloshinov e Pavel N.

Medvedev) que, entre 1919 e 1929, reuniam-se regularmente, com o intuito de discutir sobre o pensamento linguístico a partir de uma natureza filosófica. Juntos, desenvolveram um conjunto de obras sobre os estudos dialógicos da linguagem (FARACO, 2009).

4 Termo usado por Moita Lopes (2014) ao tratar dos novos rumos para pesquisas em Linguística Aplicada.

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Refletindo sobre essas questões e sobre os desafios enfrentados pelas escolas de samba no atual contexto pós-moderno, fluido e transitório, não há como negar que, ao transformarem-se numa grande instituição cultural, essas agremiações precisaram buscar mecanismos para a afirmação de sua identidade e a consolidação de sua importância dentro do universo do samba e, principalmente, dentro da própria comunidade onde estão localizadas. A integração e o envolvimento da comunidade com a escola são indispensáveis para que o desfile aconteça conforme a expectativa; afinal, seus integrantes é que dão vida ao espetáculo sob as mais variadas formas, em especial por meio de seu trabalho, muitas vezes, voluntário.

É muito comum as escolas de samba vincularem o nome da agremiação ao local onde se encontram sediadas: morros, favelas ou bairros. Essa associação é uma importante estratégia “para a sobrevivência e crescimento” dessas instituições culturais (MATOS, 2005, p. 71). E ainda que atualmente incorporem outros frequentadores que não pertencem à comunidade, continuam “reféns” de seus sambistas e de seus moradores; “são estes os que ensaiam durante meses na bateria, carregam a bandeira da escola no momento do desfile, frequentam a quadra da escola durante todo ano” (MATOS, 2005, p. 71), e principalmente assumem sua identidade ao se irmanarem “patrioticamente” na reprodução de seu hino, traduzido no seu samba-exaltação.

Em sua configuração de gênero discursivo, caracteriza-se pela exaltação das qualidades da escola de referência e, tal como os hinos nacionais e os hinos de agremiações futebolísticas, esse samba-exaltação, apesar de ter uma entoação diferente, pode ser entendido como uma representação sonora da escola de samba, objetivando construir e consolidar a identidade da instituição, desenvolver o sentimento de pertencimento e elevar a autoestima da comunidade. Essas canções podem ser entendidas como práticas discursivas que não somente disseminam mas também consolidam identidades de uma forma mais ampla.

A entoação dos sambas-exaltação é parte dos acontecimentos que marcam os desfiles das escolas de samba e também as disputas travadas entre as agremiações. Cada uma dessas instituições culturais carrega, como signo ideológico, um ou mais hinos de exaltação, uma bandeira representando as cores da escola “que podem ser reconhecidos como transmissores de uma consciência partilhada” (MORAES, 2015, p. 75).

O discurso dos compositores opera como uma forma de afirmação da identidade desses espaços e da própria escola. Nesse contexto, o samba-exaltação surge para reforçar

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a importância da escola de samba para a comunidade, atribuindo identidades múltiplas a essa instituição, transmitindo valores e formas de ver a agremiação. O principal propósito comunicativo desse gênero é fazer com que todos os participantes se sintam envolvidos e assimilem o mesmo horizonte comum, de exaltar e contemplar a escola de samba com a qual se identificam.

Como qualquer outro gênero, o samba-exaltação está diretamente ligado ao contexto e à esfera de comunicação verbal de que se deriva e a seu projeto de dizer, cumprindo sua funcionalidade e sua finalidade. Todas essas especificidades vão determinar seu tema, seu estilo e sua estrutura composicional.

A entoação dos sambas-exaltação e as escolhas lexicais expressam a identidade que se deseja atribuir e instituem uma forma de pensar. Dentro dessa comunidade discursiva, que são as escolas de samba, há a concretização de valores adquiridos e socialmente aceitos, que definem a seleção lexical. O samba-exaltação não pode, portanto, ser analisado desvinculado de seu contexto de produção e de circulação. Uma abordagem que desconsidere o social tornaria esse estudo pouco coerente com a proposta teórica do Círculo de Bakhtin.

Muito embora o samba-exaltação tenha sido estudado e analisado sob os mais variados prismas, apropriamo-nos, nesta pesquisa, da teoria do Círculo de Bakhtin, em que a linguagem é compreendida a partir de sua relação com o contexto de produção e circulação, seu caráter dialógico, valorado e responsivo. Nessa perspectiva teórica, os gêneros surgem a partir de relações dialógicas que constituem os enunciados e sua formação axiológica. Assim, a escolha pelo gênero samba-exaltação foi norteada pelo fato de tais canções, assim como os hinos nacionais, serem propagadores ideológicos de modos de pensar e constitutivos de identidades da agremiação e da própria comunidade. Em se tratando de uma investigação sobre o uso da linguagem na relação com o mundo da vida, numa visão não essencialista, e assumindo a pretensão de produzir respostas satisfatórias à nossa proposição de estudo, nortearemos nosso percurso investigativo pelas seguintes questões:

1. Quais identidades as escolas de samba constroem a partir dos seus sambas-exaltação?

2. Que relações dialógicas essas identidades estabelecem entre si? Para responder essas questões, traçamos os seguintes objetivos:

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avaliar como as identidades culturais das escolas de samba são construídas a partir dos sambas-exaltação;

analisar as relações dialógicas entre esses discursos construídos pelas escolas de samba em seus sambas-exaltação.

O trabalho tem como orientação teórica a concepção dialógica da linguagem do Círculo de Bakhtin (2010, 2011, 2013, 2015, 2016, 2017), e os conceitos de identidade sob a ótica dos estudos culturais contemporâneos (HALL, 2003, 2015; CANCLINI, 1997, 1999, 2015; BAUMAN, 2001, 2003, 2005, 2013; WOODWARD, 2014). Metodologicamente, esta pesquisa insere-se na área da Linguística Aplicada (LA), ancorada no paradigma qualitativo-interpretativista. Tal escolha justifica-se pelo fato de analisarmos enunciados concretos, construídos por sujeitos reais, em uma sociedade real. Não isolamos o objeto estudado da historicidade do acontecimento, que é parte constituinte e constitutiva do todo do enunciado.

O texto encontra-se organizado em seis seções. Na primeira, intitulada Ensaio Técnico: as escolas de samba e os do mundo pós-moderno, apresentamos uma breve contextualização das escolas de sambas e dos desafios enfrentados por essas agremiações dentro de um novo contexto pós-moderno; definimos o objeto de estudo desta pesquisa, o problema de pesquisa e sua justificativa, as questões que norteiam o estudo e as escolhas teórico-metodológicas que subsidiam nossa investigação.

Na segunda seção, Primeiro ensaio oficial, trataremos sobre o conceito de identidade, a partir da visão dos estudos culturais contemporâneos de Hall (2015) Canclini (1997, 2015), Bauman (2001, 2003, 2005, 2013) e Woodward (2014), e sobre o conceito de cultura popular, apoiando-nos em Bakhtin (2013), Canclini (1999), Hall (2003), entre outros autores. Abordaremos sobre as festas populares do Rio de Janeiro como um movimento de resistência e transgressão, dialogando com os conceitos de carnaval-carnavalização-riso-grotesco; o surgimento das escolas de samba como afirmação da identidade dos espaços marginais da sociedade carioca até figurar como símbolo da cultura nacional e entrar na ordem do permitido. Por fim, entrecruzaremos os saberes de algumas pesquisas sobre o que até então já foi dito acerca do nosso objeto e com outros que dialogam com o estudo em causa.

Na terceira seção, Segundo ensaio oficial, apresentamos a concepção dialógica da linguagem bakhtiniana (Círculo de Bakhtin), a noção de alteridade, do signo ideológico e dos gêneros do discurso, em que se ancora o presente estudo. É ainda nesta seção que

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discorremos sobre o gênero samba-exaltação e sua dialogia com outros enunciados concretos.

Na quarta seção, Outros Enredos: cortejo metodológico, definimos a metodologia, delineando o procedimento de análise dos dados, justificamos também a inserção desta pesquisa na área da Linguística Aplicada, e damos a conhecer os sujeitos participantes da pesquisa e o processo de investigação pertinente a este tipo de pesquisa. Na quinta seção, Abrindo o desfile: em busca de identidades, procedemos à análise dos sambas-exaltação selecionados e, retomando os teóricos apresentados nas seções anteriores, realizaremos uma análise dos posicionamentos identitários dos sujeitos partícipes deste universo cultural, ideológico e multifacetado de comunidades concretas da parte marginal carioca. Aqui, a música, compreendida como linguagem, ganha significado no interior de uma dada cultura.

Na sexta e última seção, Apuração final, discutiremos os resultados obtidos com a realização da pesquisa, bem como sua importância para os estudos da linguagem.

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2 PRIMEIRO ENSAIO OFICIAL

Nesta seção, visando compreender o processo de construção identitária das escolas de samba em seus sambas-exaltação, num contexto pós-moderno, em que a velocidade do tempo contribui para a construção de identidades cada vez mais instáveis, ancoramo-nos em postulados teóricos dos Estudos Culturais contemporâneos. Subsidiando essa abordagem adotamos o conceito de cultura popular, tomando como referência contribuições de Canclini (1997, 1999, 2015), Hall (2003, 2015) e Bakhtin (2013), particularmente sobre carnaval-carnavalização. Ainda nessa seara, tratamos sobre as festas populares do Rio de Janeiro que antecederam as escolas de samba, e que foram fortemente coibidas pela polícia, sobressaindo-se, nesse contexto, como um fenômeno de resistência e transgressão. Em arremate, procedemos a uma revisão de pesquisas que dialogam com as discussões aqui empreendidas.

2.1 FANTASIAS E ALEGORIAS DA IDENTIDADE

Vivemos em tempos de velocidade e mobilidade, de identidades fluidas e transitórias. Essa aceleração do tempo que caracteriza a sociedade moderna exige táticas de sobrevivência. Nessa mesma linha de raciocínio, num mundo globalizado, pertencer a uma comunidade e estabelecer a diferença é uma forma de ser notado. É bem esse o posicionamento assumido por Geraldi (2009, p. 4) quando assim se pronuncia:

a aceleração do tempo, a mobilidade num mundo globalizado pelas novas tecnologias, e supostamente também pela economia, parece trazer a pá de cal: as identidades com que nos definimos como pertencentes a uma cultura, a uma nação, a um povo evaporam-se. O sólido estaria se desmanchando no ar. Somos ‘trans’ ou ‘pós’ qualquer coisa que, talvez, nunca tenhamos chegado a ser.

Abstraímos, desse pensamento, a compreensão de que uma identidade não é sempre igual a si mesma, pois os sujeitos são, desde sempre, múltiplos, porque as vozes que os constituem são de ordens diversas. Desvendamos, sob essa perspectiva, uma nova forma de conceber as identidades, que estão constantemente em processo de reconfiguração, em permanentes mudanças.

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a temática central dos estudos culturais contemporâneos contempla o processo de formação das identidades culturais, baseado na fragmentação e no deslocamento das identidades modernas. Estudam-se as identidades de clasEstudam-se, de gênero, de Estudam-sexualidade, de etnia, de raça e de nacionalidade, além de suas características, de suas implicações e de suas prováveis consequências.

Indubitavelmente, a problemática das identidades culturais tornou-se uma abordagem preferencial nos vários campos de produção acadêmica, quer no âmbito do estudo das linguagens, quer no domínio das ciências sociais, e para além dessas áreas de saberes. Tudo isso se justifica pelas atuais mudanças trazidas pela globalização que causaram a chamada “crise de identidade” na sociedade moderna (HALL, 2015, p. 50).

De acordo com Hall (2015), essa “crise de identidade” de que padece a sociedade moderna faz com que os sujeitos percam suas referências que até então eram consideradas estáveis e inabaláveis. Todas essas transformações sociais, além de causarem uma crise contemporânea da identidade, contribuem, ao mesmo tempo, para o “fortalecimento de identidades locais ou para a produção de novas identidades” (HALL, 2015, p. 50). Na visão do autor, apesar de a globalização parecer excluir as diferenças, ela caminha junto a um projeto de (re)afirmação das identidades como forma de reação ao “racismo cultural e de exclusão” (HALL, 2015, p. 50). Essas estratégias visam a um retorno às identidades de origem. E vale ressalvar que, nesse processo, as antigas identidades não são excluídas; elas caminham simultaneamente às novas identidades. Ou seja, ao mesmo tempo em que surgem novas construções identitárias, a globalização contribui também para o fortalecimento das antigas identidades como forma de resistência.

Em outras palavras, a globalização, além de contribuir para o surgimento de novas identidades e para a manutenção das já existentes, cria o que Hall denominou efeito “pluralizante” (HALL, 2015, p. 51) sobre as identidades. Isto é, produz-se uma variedade de possibilidades e novas posições de identidades. Há, nessa “pluralidade”, algumas identidades que buscam recuperar uma tradição, uma pureza que sentiram perdida. Já outras aceitam que as identidades estão sujeitas a mudanças e, por isso, não são “puras”. É o que Hall (2015, p. 51-52) chamou de movimento de contradição entre “Tradição e Tradução”, e que se está tornando evidente num mundo globalizado, dinâmico e transitório. Isso implica dizer que, paralelamente à globalização, existe um processo de “revitalização de diferenças” (GERALDI, 2009, p. 4).

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E é nessa perspectiva que Hall trabalha o conceito de identidades múltiplas para explicar o conceito de cultura num mundo globalizado. Em tempos de fluidez, de transitoriedade, discutir identidade é refletir sobre os papéis desempenhados pelos sujeitos nos dias atuais. O sujeito contemporâneo é cada vez mais instável, descentrado. E nem poderia ser diferente; afinal, faz-se reflexo da sociedade em que vive, tão bem definida por Hall (2015):

a sociedade não é, como os sociólogos pensaram muitas vezes, um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade, produzindo-se através de mudanças evolucionárias a partir de si mesma, como o desenvolvimento de uma flor a partir de seu bulbo. Ela está constantemente sendo ‘descentrada’ ou deslocada por forças fora de si mesma (HALL, 2015, p. 14, grifo do autor).

É justamente por ser dinâmica que a sociedade produz, ao mesmo tempo, uma pluralidade de identidades, ou seja, diferentes “posições de sujeitos”. Por isso mesmo, não podemos pensar a identidade como um conceito; tampouco como uma essência.

Os sujeitos são sensíveis; assim, à medida que há transformações no cenário cultural em que estão inseridos, também sofrem mudanças e/ou ressignificações. Esse conjunto de mudanças é constante e acontece em tempo acelerado. Em outras palavras, o sujeito não possui uma identidade única, sempre fixa e estável; ela muda de acordo com o papel que o sujeito desempenha. Sob essa perspectiva, “[...] a identidade é formada na ‘interação’ entre o ‘eu’ e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘real’, mas esse é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem” (HALL, 2015, p. 11, grifo do autor).

A discussão sobre identidade é aqui concebida como uma construção sociocultural, visto que resulta da junção entre o social/coletivo e individual. Todas as transformações que ocorrem no meio social provocam alterações no processo de construção identitária, sempre nesse processo de reformulação. Ademais, trata-se de uma construção, uma representação e não de uma verdade em essência.

Parece, pois, bem evidente o fato de que estudar identidades na linha dos Estudos Culturais é compreender que essas construções ocorrem na interação e essa interação não precisa ser necessariamente entre sujeitos; ocorre também entre os espaços em que estes habitam e se relacionam. Conforme Woodward (2014, p. 8), “essas identidades adquirem

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sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas” (WOODWARD, 2014, p. 8).

Se, por um lado, se enfatiza a importância crucial da identidade para o bem-estar pessoal e para a ação coletiva, por outro, teoriza-se a identidade como algo fluido, em construção, múltiplo, dinâmico e fragmentado (BAUMAN, 2003). Tal fato se explica porque os sujeitos não se definem mais apenas como seres pertencentes a uma única identidade. A sociedade moderna, por ser dinâmica, produz uma variedade de identidades que são contraditórias e estão em constantes processos de reconfiguração (HALL, 2015). A ideia de identidade (comum a todos os sujeitos), sólida, firme e inabalável, numa perspectiva essencialista, desconsidera os princípios éticos, sociais, culturais e individuais. Logo, não deve ser pensada a partir do conceito de origem, associando os sujeitos sempre a partir de características prefixadas e imaginárias. Esse tipo de entendimento revela que, sendo a identidade uma construção discursiva, pode ser facilmente manipulada.

A questão sobre identidade tem-se tornado um elemento central para agrupar sujeitos em dois lados opostos e colocá-los numa relação de oposição entre o nós e os outros. Essa oposição dá-se, em primeiro lugar, pelo compartilhamento de passado comum e tradições; em segundo lugar, pelo reconhecimento dos mesmos valores. Em sua gênese, esse jogo de oposição ocorre a partir do estabelecimento da diferença e se tem tornado crucial na construção identitária de determinados grupos e nações. Trata-se de uma forma de ser diferente, de singularizar-se; sobretudo, para obter vantagens em relação aos outros grupos. Aqueles que gozam de determinada situação de prestígio sentem-se em vantagem e subjugam o grupo do qual diferem, lançando mão de estratégias para denigrir e fragilizar o outro, ou até mesmo dominá-lo para sentir-se superior e pregar valores de natureza racionalista, como prática para manter a ordem vigente.

Tudo isso é revelador de que a identidade é uma questão relacional: uma identidade depende da outra para existir. Ela é marcada por meio de sistemas simbólicos que envolvem o estabelecimento da distinção, excluindo-se aquilo que ela não é. Os grupos buscam afirmar suas identidades reivindicando um passado, um antecedente histórico; e ao reafirmar “uma verdade histórica podem nos dizer mais sobre a nova posição-sujeito”. Essa necessidade de afirmação pela reivindicação de um passado “sugere um momento de crise e não, como se poderia pensar, que haja algo estabelecido e fixo na construção da identidade [...]” (WOODWARD, 2014, p.11).

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As reflexões precedentes levam-nos a compreender as perspectivas essencialista e não essencialista sobre identidade. Justamente pelo fato de as identidades não serem sempre as mesmas, elas são múltiplas e inacabadas; estão sempre em processo de reconfiguração. Na visão essencialista, excluem-se as diferenças. Já na visão não-essencialista, defendida por Hall (2015), a identidade não limita o sujeito.

Os sistemas simbólicos de representação identitária estão intrinsecamente relacionados à cultura e ao significado, ou seja, para compreendermos seus significados, precisamos entender quais são as posições-de-sujeito produzidas “e como nós, como sujeitos, podemos ser posicionados em seu interior” (WOODWARD, 2014, p. 17). Em outras palavras, as representações identitárias incluem

[...] as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar (WOODWARD, 2014, p. 17-18). A construção identitária também é uma relação de poder, facilmente manipulada. A mídia e as instituições culturais, por exemplo, nos dizem quais posições-de-sujeito devemos assumir. Isso porque produzem sistemas simbólicos não arbitrários e que podem ser facilmente identificados como reais. Como observa Silva (2000, p. 81), “a identidade e a diferença não são, nunca, inocentes”. É pelo processo de diferenciação, de inclusão e exclusão, quem pertence e quem não pertence, que se fazem presentes as relações de poder. São demarcações simbólicas responsáveis em definir quem somos nós e quem é o “outro”.

Anderson (1989, p. 14) defende a ideia de que a identidade de uma nação é uma “comunidade imaginada”. Isso porque manipula símbolos que podem ser reconhecidos facilmente por suas especificidades culturais, fazendo com que os sujeitos tenham coisas em comum e que se “imaginem” pertencentes a essa nação. Sobre essa questão, Pacheco (2004, p. 3-4) esclarece:

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para haver essa “consciência” de nação, esse sentimento de pertencer a um mesmo grupo, a uma mesma cultura nacional e tornar possível uma identificação nacional, alguns dispositivos são acionados para representar a nação e produzir significados. Nesse sentido, a língua, a raça e a história enquanto narrativas homogeneizadoras foram/são essenciais para a constituição das identidades nacionais, para a constituição das culturas nacionais e para a formação de uma consciência nacional, essas narrativas possibilitaram/possibilitam a internalização da ideia de pertencimento nacional, de nacionalidade. Para tal alcance, o Estado-nação vale-se da sustentação de determinadas características que visam uniformizar e unificar modos de ser. A distinção cultural e identitária é uma das estratégias para unificar e criar um sentimento patriótico, de pertencimento. Os discursos da cultura nacional são modos de construir sentidos com os quais os indivíduos se identificam, sentem-se pertencentes àquela nação.

No entanto, não é mais possível pensar uma identidade nacional como uma construção homogênea. Nas palavras de Faria (2007, p. 42-43), isso ganha ainda mais clareza:

a história moderna sinaliza para algo que poderosamente desloca as identidades culturais – a globalização, que embora não seja um fenômeno recente, tem uma característica importante para a aceleração dos processos globais – a compressão espaço-tempo. Há no interior desse processo, no entanto, dois movimentos opostos – enquanto um reforça a autonomia nacional, o outro nos torna mais globalizados. Esses movimentos simultâneos (de hegemonia e resistência) fazem com que algumas identidades nacionais se desintegrem, dando lugar a novas identidades; com que outras permaneçam inalteradas, como forma de resistir bravamente à globalização, e tantas mais se remodelem e surjam como identidades híbridas.

Como vimos, todas essas transformações têm como pano de fundo a globalização. Aliás, desde então, tudo em nossa vida tem sido moldado por essa tendência. As alterações sociais daí resultantes ocorrem de forma acelerada e se estendem a vários campos, repercutindo nomeadamente na conceitualização da identidade e, consequentemente, no sentimento de pertença a uma dada comunidade.

Com a globalização e as rápidas mudanças no mundo atual, as comunidades, que pareciam se sentir plenamente seguras por laços de identificação, estão perdendo terreno e se desestabilizando. O termo comunidade é também muitas vezes ligado ao sentido de homogeneidade, um lugar onde grupos vivem de forma integrada, compartilham objetivos em comum, os mesmos costumes, as mesmas tradições e estão ligados ao espaço

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que ocupam (PAVÃO, 2009). Para Hobsbawm (1984), a comunidade seria o significado moderno para nação, pois existe a ideia de compartilharem os mesmos valores.

No julgamento de Bauman (2003, p. 17), fazer parte de uma comunidade, “ter uma comunidade” ou “estar numa comunidade” é “a busca por segurança no mundo atual”. Mas essa comunidade que oferece tal sensação de segurança é uma “comunidade imaginada”, uma “comunidade dos sonhos”. A real comunidade exige lealdade e é homogeneizante. Isso porque a “distinção” significa “divisão entre nós e eles”. Na comunidade dos sonhos, há uma relação de entendimento que é “natural” e “tácito”. A partir do momento em que essa comunidade “passa a ser objeto de contemplação”, quando fala de si mesma, exalta seus valores e virtudes, essa “comunidade não existe mais” (BAUMAN, 2003, p. 10-17).

Bauman (2005) denomina esse novo cenário de grandes incertezas e transições de “modernidade líquida”. Para o sociólogo, a globalização constitui-se com uma “grande transformação” na vida quotidiana e nas relações humanas. As comunidades surgem nesse contexto como abrigo aos efeitos trazidos pela globalização. Com os grandes “deslocamentos, desencaixes e desenraizamentos”, pertencer e fazer parte de uma comunidade seria uma das “tentativas desesperadas de reencaixar e reenraizar” (BAUMAN, 2003, p. 31).

Levando em consideração todas essas questões aqui levantadas, o estudo sobre as identidades torna-se cada vez mais relevante. Ademais, as atuais pesquisas em LA nos conduzem a produzir novas respostas para os problemas que se colocam na pós-modernidade, de forma não excludente, não homogeneizante, ou essencialista como até então se teorizava.

Como dissemos, esta pesquisa pretende analisar sambas de exaltação e buscar as representações identitárias das escolas de samba expressas nesse gênero discursivo. Se analisarmos essa instituição sem considerar todas as mudanças e demandas trazidas pela pós-modernidade, estaremos recaindo numa visão essencialista, ou seja, de que sua identidade cultural não sofreu influências e permanece fixa no tempo e no espaço.

Nessa perspectiva, com vistas a melhor conhecer nosso objeto de estudo, as seções a seguir pretendem discutir sobre o conceito de cultura popular e também sobre as festas carnavalescas da cidade do Rio de Janeiro como forma de compreender os significados imbricados no surgimento dessas manifestações.

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2.2 A CULTURA POPULAR E A CARNAVALIZAÇÃO

Como nosso objetivo é analisar os sambas-exaltação de escolas de samba do Rio de Janeiro ‒ uma manifestação cultural de origem popular ‒, e considerando o fato de que a compreensão que se tem de cultura popular é relativamente ampla, vez que um mesmo conceito passeia sob olhares distintos e perspectivas diversas, faz-se necessário delimitar o que podemos definir como cultura popular. Sendo assim, apresentaremos, nesta seção, algumas concepções que vão auxiliar na compreensão desse conceito tão polissêmico. Canclini (1997, 1999, 2015), Hall (2003, 2015) e Bakhtin (2013), mais particularmente, favorecerão, com suas ideias, esta abordagem.

No romantismo, a cultura popular era sinônimo de tradição e preservação do passado. De acordo com Chauí (1986), foi a partir desse período que surgiram os primeiros traços definidores da cultura popular: o primitivismo (preservação de tradições), o comunitarismo (o popular nunca é algo individual) e o purismo (preservação da pureza, não se contaminando pelos hábitos urbanos). Nesse primeiro momento, a cultura popular é, portanto, associada a uma visão de povo e de folclore.

Outra concepção bastante explorada foi a relação entre o nacional e o popular, que se colocou historicamente como uma discussão central no Brasil. Nessa abordagem, o popular é compreendido como tradição e preservação folclórica, ou seja, “[...] o popular é visto como objeto que deve ser conservado em museus, livros e casas de cultura” (ORTIZ, 2006, p. 160).

Nesse contexto, até meados do século XVII, ainda não se estabelecia uma distinção entre cultura popular e de elite. De acordo com Ortiz (2006), a elite frequentava as mesmas religiões e os jogos realizados pela classe subalterna. No entanto, aos poucos, a fronteira entre as duas culturas passou a ser bem delimitada e se instaurou um grande processo de repressão sobre as manifestações populares, como veremos posteriormente. Contrário a esse pensamento, surge uma outra perspectiva, deslocada para uma discussão de natureza mais política, afastando-se do viés romântico, cujo interesse era estabelecer a hegemonia burguesa. Os bens culturais produzidos pela elite passam a ser valorizados em detrimento daqueles derivados da cultura tradicional e popular. Para Ortiz (2006), esses ideais são impulsionados pela implementação de uma nova política e um novo projeto de centralização do Estado e, principalmente, pela preocupação com práticas

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geradoras de manifestações, tumultos e protestos, como o carnaval, entre outras manifestações de cunho popular.

Em meados do século XIX, surge uma nova perspectiva de cultura apoiada num projeto iluminista em que se rompe com a religião, e a ciência passa a ter um papel central. Nesse contexto atual, há uma grande corrida rumo ao progresso, que “afaga” a todos com seus grandes avanços tecnológicos, com meios de comunicação mais eficazes e transportes mais modernos.

A partir da revolução industrial, a discussão sobre cultura passa a ser direcionada por outra vertente ideológica. Com o aparecimento da teoria marxista, a questão central não era mais o povo, numa visão de "povo como plebe explorada, dominada e excluída (CHAUÍ, 1986, p. 21)”, mas a luta de classe. Aliada a esse pensamento marxista, surge, nos anos 50, outra concepção fundamentada por estudiosos americanos em ciências sociais: o de sociedade de massa e cultura de massa.

Ainda nesse período de grande efervescência e de “vários matizes ideológicos” (ORTIZ, 2006, p. 162), ocorre o rompimento dessa perspectiva tradicionalista que concebia o popular do ponto de vista folclórico. Com o desenvolvimento da cultura popular há, um redimensionamento daquilo que até então era compreendido como cultura popular. A indústria passou a transformar os produtos culturais em bens de consumo.

É em função dessa abordagem de cultura de massa e de sociedade de massa que passa a separar e distinguir os artefatos culturais em "desejáveis e indesejáveis". Ter cultura, portanto, significava ter um gosto refinado, apreciar o que era considerado "grande arte", reservado à elite cultural, como, por exemplo, frequentar óperas e concertos. Os bens voltados para o grande público, para a sociedade de massa, como programas de TV, eram vistos como indesejáveis "para um homem ou mulher de cultura" (BAUMAN, 2013, p. 7). E muito embora esse pensamento ainda persista entre muitos sujeitos, Bauman (2013) refuta a ideia de se entender cultura a partir do estabelecimento hierárquico entre bens culturais que pertencem à elite de um povo e aqueles que estão abaixo dela. A sociedade não é mais a mesma e, nesse contexto de grandes mudanças, surge um novo sujeito que consome os artefatos culturais de "maneira onívora", ou seja, consome um pouco de tudo. Não há mais um confronto entre o que é considerado de massa e o que é considerado de elite.

Assim, com o crescimento da indústria cultural, o “popular se reveste de um outro significado, e se identifica ao que é mais consumido, podendo-se inclusive estabelecer

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uma hierarquia de popularidade entre diversos produtos ofertados no mercado” (ORTIZ, 2006, p. 164).

Não parece mesmo restar qualquer dúvida quanto ao fato de que o conceito de cultura popular sempre foi mal compreendido, e até tomado, muitas vezes, num sentido genérico, “como uma expressão tradicional e subalterna, contrária ao erudito e assinalada pelo moderno e hegemônico, colocada ao lado do folclore e da cultura de massa” (PAJEÚ, 2011, p. 114). Sob essa ótica, concebe-se a cultura a partir da marginalização da cultura popular, usada como um mecanismo de distinção entre as classes sociais, “isto é, a classe da elite versus a classe subalterna; a cultura popular versus cultura erudita” (PAJEÚ, 2011, p. 114), limitando, assim, toda a riqueza de significados que o domínio cultural abarca.

Como vimos, a cultura não apenas representou uma relação de poder entre as classes sociais mas também serviu para fins mercadológicos, sendo traduzida como objeto de desejo e de consumo. Essa visão de cultura está fundamentada numa perspectiva antropológica de que a cultura representava os valores, os costumes e a mentalidade do povo.

De acordo com Canclini (1999), a cultura popular está inserida num processo de muitas contradições entre moderno e tradicional; culto e popular; hegemônico e subalterno. Apesar de hoje existir uma predileção pelo tradicionalismo que se combina com o moderno, no que diz respeito à exaltação dessa tradição com vistas a perpetuar a modernização, essa dicotomia colocada pelo autor ainda, de certo modo, persiste.

Em oposição a essas concepções, os atuais estudos orientam-nos a pensar o conceito de cultura não como um conjunto de características e de costumes que diferenciam uma sociedade da outra, mas como um “sistema de relações de sentido que identifica diferenças, contrastes e comparações” (CANCLINI, 2015, p. 24). Essa redefinição do conceito de cultura, ao invés de comparar culturas, deixa evidentes as misturas e os mal-entendidos que se estabelecem entre os grupos. Para entender os grupos sociais, é necessário descrever como se apropriam dos produtos materiais e simbólicos alheios e os reinterpretam (CANCLINI, 2015). A cultura popular caracteriza-se pela heterogeneidade, pelo hibridismo; portanto, hoje não deve mais ser entendida na mesma visão apresentada pelos folcloristas e antropólogos.

Na esteira desse pensamento, existem outros tantos modos de compreender a cultura. A concepção de Bakhtin (2013) surge como resposta a essas diversas vertentes.

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Como se sabe, o autor não restringiu seus estudos apenas à reflexão sobre a linguagem; seu empreendimento visa a um campo mais vasto, como a cultura popular.

O autor mergulha no estudo da cultura popular ao analisar a obra de François Rabelais no contexto da Idade Média e do Renascimento. A festa carnavalesca coloca-se, nesse entendimento, como um dos elementos centrais em toda obra de Rabelais. Para Bakhtin (2013), é impossível não recuperar essa cultura para compreender a obra literária. A prosa não existe isolada da realidade e é nessa relação entre o autor e seu universo que a cultura popular tem um papel preponderante. Ainda segundo o autor, o ponto “chave” para mergulhar na obra rabelaisiana é a materialização de uma outra “visão de mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à igreja e ao Estado” (BAKHTIN, 2013, p. 4-5).

Os pilares desse universo da cultura cômica popular é o riso, o vocabulário, a festa, a feira na praça pública, o banquete, a imagem grotesca, o baixo material e corporal. Para compreender esse universo particular, o autor deixa claro que ele não é homogêneo, os mundos culturais coexistem e um não predomina sobre a outro. O que distingue a cultura popular da Idade Média ‒ em que o “riso ocupa o lugar de destaque” (BAKHTIN, 2013, p. 23)” da cultura “oficial” é um conjunto de expressões comuns e de uma visão de mundo como um “processo ambivalente, interiormente contraditório” (BAKHTIN, 2013, p. 23).

Como se pode constatar, o autor não trata da cultura popular como sendo independente da cultura “oficial”. Vê-se, ao contrário, que ela só existe e só faz sentido se compreendida em partilha. Assim sendo, a cultura popular coloca-se paralela a um universo “oficial”, interligada à cultura de elite.

Consoante entende Bakhtin (2013, p. 122), o carnaval

[...] propriamente dito (repetimos, no sentido de um conjunto de todas as variadas festividades de tipo carnavalesco) não é, evidentemente, um fenômeno literário. É uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variações dependendo da diferença de épocas, povos e festejos.

Outra característica importante da cultura popular observada por Rabelais é o tempo e o espaço, cronotopo5. No carnaval, ocorre um cronotopo diferente daquela

5 Conceito usado para Bakhtin por explicar o tempo e o espaço em que ocorre a festa carnavalesca e que logo depois ele transporta para a obra literária.

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concepção de mundo medieval; trata-se de “uma nova forma de tempo e uma nova relação entre o tempo e o espaço” (BAKHTIN, 2013, p. 315-316).

O conceito de carnavalização criado por Bakhtin (2013) surge a partir da compreensão dos modelos do carnaval e da cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O carnaval diz respeito à festa propriamente dita, ao ritual carnavalesco. Já a carnavalização é a inversão da ordem durante essa manifestação cultural.

Sobre tais concepções, Ponzio (2009, p. 172) assim elucida:

Bakhtin chama de ‘carnavalização’ da literatura a transposição da linguagem do carnaval à linguagem literária, que se reflete em várias formas simbólicas (ações de massa, gestos individuais, etc.), unificadas pela visão do mundo que todas elas expressam. Entre essas duas linguagens, o carnavalesco e o artístico-literário, produz-se uma relação de afinidade que tem permitido historicamente, a passada da primeira para a segunda, isto é, a transposição, a tradução da linguagem carnavalesca para a linguagem da literatura.

Nesse sentido, a carnavalização deve ser pensada a partir da transposição da linguagem carnavalesca para o universo literário, que, obviamente, não se restringe ao caráter verbal da obra, mas a todo o conjunto de significados e expressões de gestos que envolve o carnaval. Todos esses elementos exprimem uma visão de mundo, uma cosmovisão carnavalesca; melhor dizendo, uma visão de mundo que atravessa esse universo, que é o carnaval, entendido como os modos de conceber o mundo e experimentá-lo.

Assim, para pensar a cultura popular e suas diversas manifestações, do ponto de vista bakhtiniano, é preciso entender que suas contribuições surgem como resposta às outras concepções. Para o autor, não existem limites definidos quando se trata de cultura popular, como bem traduzem suas próprias palavras:

não se deve, porém, imaginar o domínio da cultura como uma entidade espacial qualquer, que possui limites, mas que possui também um território interior. Não há território interior no domínio cultural: ele está inteiramente situado sobre fronteiras, fronteiras que passam por todo lugar, através de cada momento seu, e a unidade sistemática da cultura se estende aos átomos da vida cultural, como sobre fronteiras: nisso está sua seriedade e importância; abstraído da fronteira, ele perde terreno, torna-se vazio, pretensioso, degenera e morre (BAKHTIN, 2013, p. 29).

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Essa concepção nos permite pensar a cultura entre fronteiras, numa relação de troca, de aproximação. A cultura está em todos os lugares, está nos diversos grupos sociais, nas comunidades e nas diversas esferas, sempre em diálogo, em embate e em constante transformação. Portanto, não podemos falar de cultura no singular; não existe um único signo para definir o popular, porque são distintos fenômenos ligados e atrelados a ela. Essas variadas manifestações culturais se constituem nas relações dialógicas, nas diversas esferas. E é justamente essa mistura, essas diferenças, essa pluralidade ‒ e como se relacionam ‒ que interessa a Bakhtin.

Em consonância com o pensamento de Bakhtin sobre cultura popular, Hall (2003), a partir de estudo realizado por Allon White, propõe pensar a relação entre cultura popular e cultura hegemônica diferente da “metáfora clássica”, ou seja, mudar os velhos padrões de pensar o conceito de cultura. Para o autor, não se deve dicotomizar cultura popular e cultura “hegemônica”, colocando-as como opostas. Trata-se de problematizar essa relação, mesmo porque

[...] o que é surpreendente e original a respeito do “carnavalesco” de Bakhtin enquanto metáfora da transformação cultural e simbólica é que esta não é simplesmente uma metáfora de inversão – que coloca o “baixo” no lugar do “alto”, preservando a estrutura binária de divisão entre os mesmos. No carnaval de Bakhtin, é precisamente a pureza dessa distinção binária que é transgredida. O baixo invade o alto, ofuscando a imposição da ordem hierárquica; criando, não simplesmente o triunfo de uma estética sobre a outra, mas aquelas formas impuras e híbridas do “grotesco”; revelando a interdependência do baixo com o alto e vice-versa, a natureza inextricavelmente mista e ambivalente de toda vida cultural, a reversibilidade das formas, símbolos, linguagens e significados culturais; expondo o exercício arbitrário do poder cultural, da simplificação e da exclusão, que são os mecanismos pelos quais se funda a construção de cada limite, tradição ou formação canônica, e o funcionamento de cada princípio hierárquico de clausura cultural (HALL, 2003, p. 226).

De acordo com Hall, não é esse o processo de carnavalização sobre o qual Bakhtin aborda; não se trata de uma metáfora da inversão: o alto e o baixo não desaparecem; as duas culturas estão numa relação de poder. A carnavalização, para Bakhtin, é uma relação de resistência e transgressão. A oposição está, nessa relação, na problematização do alto e do baixo. Numa visão marxista, a lógica é a de que uma se opõe a outra, e uma vence a outra, rompendo com o hibridismo.

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A cultura popular não surge a partir da cultura de elite e para se opor a ela. As duas estão numa relação de troca; portanto, não há dicotomias rígidas entre elas. Colocá-las em diálogo foge dessa lógica, coloca-as em relações semânticas. O “alto” e o “baixo” existem, mas não é uma relação simples. A cultura do alto não apaga a do baixo. São de ordem da ambivalência, do híbrido. A plurivalência e o dialógicopermitem viabilizar essa metáfora da transformação. A cultura popular e a cultura oficial estão numa relação de alteridade, de transgressão, por isso o conceito de carnavalização. Para Bakhtin (2013), durante um determinado período, nas festas, nas ruas, nas praças, as relações hegemônicas são invertidas. O não oficial é considerado canônico e hegemônico, como se as outras manifestações culturais não existissem.

No Brasil, a ideia de cultura e sociedade brasileira constituiu-se, durante muito tempo, numa relação complexa. Algumas manifestações culturais passaram a ser usadas como instrumento de poder entre as classes sociais e a refletir uma disputa/jogo entre culturas consideradas hegemônicas e populares. Como já mencionamos na sessão anterior, ao discutir sobre identidade e relação de poder, a classe dominante da sociedade apodera-se de um conjunto de conhecimentos para exercer maior influência sobre as outras classes sociais e manter um status de supremacia e vigência.

Vale ainda recordar que, durante os primeiros séculos de história brasileira, a sociedade era basicamente constituída por senhores e escravos. Com a instauração da República, seguida de um grande desenvolvimento no país, surgem, nesse novo contexto socioeconômico, duas classes sociais distintas: a classe operária e a classe burguesa.

Desde o início, a elite brasileira cercou-se de bases jurídicas, religiosas e científicas para subjugar a classe dominada, sobretudo os negros. Estes eram proibidos de exercer seus direitos sociais e o desenvolvimento pleno da cidadania. As teorias raciais do século XIX serviram para assegurar a superioridade da classe branca em relação às classes representadas pelos não-brancos. A classe dominante, constituída por brancos, colocava-se como raça superior e considerava os negros e os mestiços um atraso à sociedade branca, rica e civilizada. Circunscrito nesse cenário, o Brasil vive um período de branqueamento do tom da pele, assimilando unicamente os traços da cultura branca. Esse processo contribuiu para aniquilar toda e qualquer autoestima do negro e sua possível luta pelos direitos de igualdade, conformando-se ante os privilégios do branco e sendo obrigado a aceitar a superioridade deste.

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A classe dominante fez uso de todo seu poder para afogar qualquer artefato cultural negro, principalmente o samba e o candomblé que, por sua vez, eram manifestações de resistência a toda maneira de exclusão e segregação de sua cultura. Nessa perspectiva, não podemos falar de cultura popular sem falar de resistência, pelo menos em relação aos séculos anteriores. E cabendo uma melhor verticalização dessa temática, reservamos à próxima seção tal abordagem, em que contemplaremos os processos de resistência e transgressão da cultura popular, tendo como foco a cidade do Rio de Janeiro.

2.3 AS FESTAS POPULARES DO RIO DE JANEIRO: RESISTÊNCIA E TRANSGRESSÃO

Vimos, na seção anterior, que, ao estudar as festas populares na Idade Média e no Renascimento, Bakhtin (2013) mostrou que essas manifestações, em especial o carnaval, são fecundos espaços para a compreensão das tensões e conflitos das sociedades. Apesar da singularidade do contexto social e histórico, o estudo realizado pelo autor contribui para uma visão mais abrangente sobre as festas populares, (particularmente o carnaval), o que nos permite compreender, um pouco mais, a evolução e o significado das escolas de samba, bem como os processos culturais que ocorreram na cidade do Rio de Janeiro antes de se configurarem em elemento da cultura nacional.

Ademais, a história das escolas de samba está diretamente ligada às manifestações culturais de origem popular que ocorreram na cidade do Rio de Janeiro. É impossível falar dessa instituição sem tratar do árduo caminho que os sujeitos (seus atores) enfrentaram para se inserir e permanecer numa cidade que insistia em marginalizá-los. Como veremos no decorrer desta seção, as escolas de samba não apenas renovaram a festa carnavalesca mas também conferiram identidade aos sujeitos e aos espaços habitados por eles (FERNANDES, 2001).

Inspirando-nos, a seguir, nas palavras de Bakhtin sobre o conceito de festa, esta seção visa discutir sobre as festas populares do Rio de Janeiro, a princípio, como elemento de resistência e transgressão, até se transformarem em uma das maiores manifestações culturais do país, a ponto de as escolas de samba serem reconhecidas como símbolo da identidade de toda uma nação.

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as festividades (qualquer que seja o seu tipo) são uma forma primordial, marcante, da civilização humana. Não é preciso considerá-las nem explicá-las como um produto das condições e finalidades práticas de trabalho coletivo nem, interpretação mais vulgar ainda, da necessidade biológica (fisiológica) de descanso periódico. As festividades tiveram sempre uma concepção do mundo. Os “exercícios” de regulamentação e aperfeiçoamento do processo do trabalho coletivo, o “jogo no trabalho”, o descanso ou a trégua no trabalho nunca chegaram a ser verdadeiras festas. Para que sejam, é preciso um elemento a mais, vindo de uma outra esfera da vida corrente, a do espírito das ideias. A sua sanção deve emanar não do mundo dos meios e condições indispensáveis, mas daquele dos fins superiores da existência humana, isto é, do mundo dos ideais. Sem isso, não pode existir nenhum clima de festa (BAKHTIN, 2013, p. 8, grifo do autor).

No fragmento acima, podemos observar, já na antiguidade, que as festividades são importantes instrumentos de socialização entre os homens e uma necessidade humana (foge de uma explicação biológica ou fisiológica). Ao falar de festa, Bakhtin (2013) toma especialmente o carnaval por ser um momento de transgressão; por isso mesmo, longe de representar prazer e descanso. O carnaval de que Bakhtin fala é a festa, um “espetáculo ritual”, em cujo transcurso o tempo é suspenso e a vida transforma-se “como um modo particular de existência” (BAKHTIN, 2013, p. 8). Essas manifestações culturais expressam uma outra visão de mundo e de ideais, que circundam a existência, inerentes àqueles em que estão imersos. Para o homem medieval, as festas surgiam como uma nova possiblidade de vida, posto que

[...] durante o carnaval é a própria vida que representa, e por um certo tempo o jogo se transforma em vida real. Essa é a natureza específica do carnaval, seu modo particular de existência. O carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva. A festa é a propriedade fundamental de todas as formas de ritos e espetáculos cômicos da Idade Média (BAKHTIN, 2013, p.7).

Trazendo as concepções de Bakhtin para pensar as festas populares do Rio de Janeiro, é importante situar que as primeiras manifestações carnavalescas dessa cidade ocorreram no período colonial e imperial, “ainda que celebrados fora do período do carnaval” (MATOS, 2005, p. 18). Muitas aconteciam durante as festas religiosas que dominavam o seu calendário festivo. As festas partiam de dentro das igrejas para as ruas (TINHORÃO, 1962) e se tornaram um importante momento lúdico e mais esperado pela população carioca. Este também era o átomo em que os grupos populares dividiam o

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mesmo espaço com a monarquia que “transformava suas aparições em espetáculo, transformando realidade em representação” (SCHARCZ, 1998, p. 253).

Desde o período colonial, esses festejos ocorriam dentro do calendário religioso e duravam até três dias; eram celebrados em praças públicas, mas a frente das igrejas ainda era o espaço central onde aconteciam essas manifestações que envolviam um grande público. Assim, além do carnaval, as festas religiosas continuavam sendo o principal ponto de encontro entre as pessoas, pois surgiam como uma oportunidade lúdica para esses sujeitos. De acordo com Albin (2009, p. 250), “o carnaval carioca seria influenciado em suas origens mais remotas por festas de igrejas como as da Glória, da Penha, da Matriz e por procissões religiosas, como as de São Jorge [...]”.

De acordo com Cabral (1996), o Rio de Janeiro, quando capital do Brasil, recebeu um grande contingente de pessoas vindas de várias regiões do país, entre eles escravos, além de africanos vindos de seus lugares de origem, “transformando a cidade numa espécie de síntese da cultura popular do país” (CABRAL, 1996, p. 23).

Nesse contexto, a festa da Igreja da Penha foi um importante espaço para a expressão cultural dos segmentos mais populares e “encontrou seu apogeu em fins do século XIX e início do XX [...]” (SOIHET, 1998, p. 20). Para chegar à Igreja da Penha durante o primeiro período, não era uma tarefa fácil: alguns chegavam de carros de bois, em burros, cavalos, a pé. E ainda havia outros que se deslocavam bem antes para chegar na véspera e garantir seu espaço com bastante antecedência. Com a criação do trem e a facilidade de deslocamento, o número de frequentadores passou a ser maior.

Vários intelectuais da elite carioca da época expressavam seu desprezo e preconceito a essas manifestações, chegando mesmo a sugerir a proibição da “escandalosa e selvagem romaria” (SOIHET, 1998, p. 24). Vale salientar que, durante as celebrações da igreja da Penha, além da presença significativa do segmento pobre, havia “inclusive ‘senhoras da nossa melhor sociedade’ e famílias das ‘mais distintas’[...]” (SOIHET, 1998, p. 23, grifo do autor). Tempos depois, pessoas de pontos mais afastados passaram também a comparecer; dentre eles, a “comunidade de negros baianos, que, nas décadas iniciais do nosso século, teriam passado a predominar” (SOIHET, 1998, p. 24).

Além do cumprimento de promessas e realização de missas, a festa da igreja da Penha assumia uma natureza de arraial, com bandeirolas, barraquinhas de jogos, prendas, muito vinho, comidas típicas e apresentações musicais e de dançarinos. Em torno das

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