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A LINGUÍSTICA APLICADA E OS NOVOS CONTEXTOS: PESQUISA

Como dissemos na seção de introdução deste estudo, esta pesquisa é norteada pela concepção de linguagem dialógica do Círculo de Bakhtin, associada aos estudos culturais contemporâneos. Insere-se metodologicamente no âmbito das Ciências Humanas e Sociais, no domínio da Linguística Aplicada (LA) e está amparada pelo paradigma qualitativo-interpretativista (MOITA LOPES, 1994); (BOGDAN & BIKLEN, 1994). Essa escolha torna-se pertinente na medida em que se coloca em sintonia com os novos cenários que se configuram na atualidade, exigindo dos pesquisadores uma nova postura, uma nova forma de produzir conhecimentos que possam satisfazer as demandas dessa nova realidade.

Nesse modelo de pesquisa, não há lugar para a concepção de linguagem tradicional, considerada como objeto autônomo, em que a língua é apenas uma estrutura sintagmática ou abstração do pensamento, relegando-se, em sua fundamental importância, a linguagem em uso, sua historicidade e suas esferas de produção e circulação. A noção de linguagem aqui assumida dialoga com a vida, uma vez que é considerada como prática social, não se devendo desvincular do estudo da sociedade e da cultura da qual ela é parte constituinte e constitutiva.

Atualmente, a LA é uma área que dialoga com a vida e está focada na “resolução de problemas das práticas de uso da linguagem dentro e fora da sala de aula” (MOITA LOPES, 2015, p. 18). As pesquisas em LA buscam refletir sobre o problema da linguagem em uso nas práticas sociais e nas diversas esferas sociais. Constitui-se, dessa forma, em uma das áreas de produção de conhecimento mais amplas, cuja principal característica é estar sempre em processo de reconfiguração.

Essa compreensão de língua como prática social rompe com a lógica de uma linguagem entendida como estrutura gramatical. A língua está diretamente ligada à

realidade, às mudanças da vida social. Ela não está isolada como uma abstração. Seu objeto de estudo não nega o sujeito e nem sua historicidade.

As transformações ocorridas ao longo dos últimos séculos contribuíram para a formação de novos cenários e outros modos de ser dos sujeitos. A origem dessa problemática está no processo de globalização, em que as mudanças ocorrem numa velocidade ímpar, o que vem afetando as identidades, que se definiam antes tão estáveis e seguras. Ao inserirmos esta pesquisa no campo de estudos da LA, enredamo-nos num emaranhado de fios a serem conectados; isso porque as respostas para essas questões requerem um passeio por múltiplos saberes. Afinal, uma das características mais notáveis e unânimes da LA é a sua transdisciplinaridade, sua capacidade de dialogar com diferentes áreas do conhecimento: História, Sociologia, Psicologia, Antropologia, estudos culturais, entre outras.

E para enfrentar os questionamentos da pós-modernidade, a Linguística Aplicada busca respostas diferentes daquelas consideradas como universais, abrindo espaço para as diferenças, para a “periferia social” (BOHN, 2005, p. 21). Preocupa-se em problematizar e questionar as contingências do mundo atual, sem pretensões de trazer verdades incontestáveis e indiscutíveis, nem de provar exaustivamente as causas e os efeitos, assim como ocorre nas áreas das ciências naturais. Esse tipo de investigação adotado nas ciências naturais e exatas reduz a “complexidade do mundo a leis simples” (BOAVENTURA, 2016, p.1), “insuficientes” para gerar respostas para as ciências humanas. Isso porque o objeto de estudo é “multifacetado, repousando em multicausalidades” (OLIVEIRA, 2012, p. 2).

Em diálogo transfronteiriço com outras áreas de produção de conhecimento, assume-se como uma área mestiça, transgressora e indisciplinar. Indisciplinar porque não se constitui como disciplina, mas como uma área de produção de conhecimento que se coloca além dos paradigmas consagrados (MOITA LOPES, 2015).

A LA indaga as teorias tradicionais, propondo novas formas de produzir conhecimento, distanciando-se de “verdades consideradas universais”. Os estudos tradicionais ignoravam a historicidade dos sujeitos, desvinculando-os do mundo real. A LA entende a linguagem como prática social constitutiva das relações humanas, atuando nas múltiplas esferas de atividade sociais. Nesse sentido, fazer pesquisa em LA pressupõe que é preciso levar em conta o contexto sócio-histórico.

Para “criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem tem um papel central” (MOITA LOPES, 2015, p. 14), a LA necessita aliar-se a teorizações e a uma concepção de linguagem que deem respostas a essas perguntas e sejam compatíveis com esse pensamento. Dentre as várias concepções de linguagem existentes na atualidade, a do círculo de Bakhtin é uma das que têm contribuído para apreender o ser da linguagem.

O conjunto de obras dispostas pelo Círculo de Bakhtin conduz ao entendimento do que seria produzir conhecimento em Ciências Humanas e as diretrizes para compreender melhor o objeto estudado. Para os autores do Círculo, nas pesquisas em ciências humanas, “a questão da voz do objeto é decisiva” (AMORIM, 2001, p, 10).

Ao contrário do que pensam, o Círculo de Bakhtin criou não apenas uma teoria para os estudos da linguagem mas “também uma metodologia para as Ciências Humanas” (GERALDI, 2010, p. 27). Os pensadores do Círculo colocaram o ser “humano como centro das pesquisas”. Em outras palavras, seus estudos demonstram que a linguagem decorre de toda atividade humana e, portanto, não se deve estudá-la fora de seu contexto de produção e circulação porque é “onde a linguagem circula e onde ela faz sentido” (GERALDI, 2010, p. 27). Vê-se, pois, que esses estudiosos não se amarram nas estruturas sintagmáticas, “ou no sistema, ou no signo isolados dos seus contextos e relações, ou no objeto objetivados”. Retiram a ideia de texto como objeto puramente linguístico, colocam “o texto como o material sígnico ideológico por excelência” (MIOTELLO, 2005, p. 10) porque partem do entendimento “da palavra como arena mínima de embates ideológicos” (MIOTELLO, 2005, p. 10).

É nesse aspecto que, segundo Bakhtin (2016), reside a diferença entre fazer pesquisa nas ciências humanas e fazer pesquisa nas ciências naturais:

o pensamento das ciências humanas nasce como pensamento sobre pensamentos dos outros, sobre exposições de vontades, manifestações, expressões, signos atrás dos quais estão os deuses que se manifestam (a revelação) ou os homens (as leis dos soberanos do poder, os legados dos ancestrais, as sentenças e enigmas anônimos, etc.) (BAKHTIN, 2016, p.72).

As ciências humanas estão voltadas para desvendar os pensamentos, os sentidos e significados que se materializam em forma de texto. O texto é, portanto, o ponto de partida para o conhecimento, independente dos objetivos. Os elementos verbais são dados

primários porque “todo texto tem um sujeito, um autor (o falante, ou quem escreve) (BAKHTIN, 2016, p. 72)”. Nesse processo, o pesquisador entra como um segundo autor porque cria um novo “texto emoldurador (que comenta, avalia, objeta, etc.)” (BAKHTIN, 2016, p. 73).

O texto, seja oral ou escrito, faz parte de uma realidade imediata. São fontes substanciais de conhecimento: “onde há texto há objeto de pesquisa e pensamento” (BAKHTIN, 2016, p. 71). Ademais, todo texto “pressupõe um sistema universalmente aceito (isto é, convencional no âmbito de um dado grupo) de signos, uma linguagem (ainda que seja a linguagem da arte)”. Se não há linguagem, não é um texto, “mas um fenômeno das ciências naturais (não embasado em signo), por exemplo, um conjunto de gritos naturais e gemidos desprovidos de repetição linguística (semiótica)” (BAKHTIN, 2016, p. 74).

Bakhtin não rejeita a ideia de que todo texto tem elementos que vão além dos limites humanísticos e que podem ser chamados de elementos técnicos: “Não há e nem pode haver textos puros”; todo texto pressupõe um sistema de linguagem. O que faz o texto ser um enunciado são todas as intenções comunicativas pelas quais foi criado e, portanto, faz dele algo único, singular e individual.

No campo de estudo da LA, os sujeitos de pesquisa não são considerados objetos estáticos que se afastam do funcionamento real da língua, dos discursos produzidos em sociedade. Seu propósito é estudar a língua real, a língua em uso, em seus vários contextos de produção e circulação.

Ao tentar compreender o ser humano no “processo de sua existência”, Bakhtin (2012) critica os princípios universais que direcionam as teorias da época. Para o autor, a produção de conhecimento não pode ser isolada “do ser e de sua existência concreta nos eventos do mundo da vida” (OLIVEIRA, 2012, p. 3). O mundo da vida, mundo em que se realizam as ações humanas, é onde se encontram as orientações necessárias para a investigação e a compreensão dos seres humanos e suas ações.

Esse tipo de pesquisa requer, portanto, um modo de pensar “pós-abissal” (BOAVENTURA, 2016). A produção de conhecimento nas ciências humanas não deve separar a realidade das formas de fazer ciência; deve tonar visível as minorias, não dividir o mundo humano do subhumano.

Parece-nos bem evidenciado o fato de que o objeto de estudo da LA é a linguagem em suas práticas discursivas, configurando, nesse sentido, um modo específico de

investigação, pois estudar a linguagem por meio da relação do sujeito com a sociedade à qual pertence requer uma análise que vá além dos dados quantitativos.

E vale ainda considerar que, nas ciências humanas, trabalhamos com a “interpretação das estruturas simbólicas” e o sujeito é um objeto falante e não mudo como se encontra nas ciências exatas (FREITAS, 2002, p. 24). Sendo assim, torna-se necessário um método de estudo compatível com o estudo da língua em sua natureza viva como componente de análise. Por isso optamos pelo método qualitativo-interpretativista. Sobre essa questão, Bogdan e Bliken (1994) deixam claro que as análises na investigação qualitativa assumem caráter indutivo, pois, diferente de outras formas de fazer ciência, não há, nesse procedimento, a preocupação em confirmar hipóteses. Na percepção de Oliveira (2016, p. 56), a construção do conhecimento é um ato de responsabilidade social, até porque

[...] o pesquisador não é um observador objetivo, politicamente neutro. Seu posicionamento é o de um observador da condição humana e, na relação entre pesquisador e pesquisado, um não pode emudecer a voz do outro. Isso é, ao pesquisador é necessária a clareza de que o ato cognitivo a ser por ele praticado vai encontrar um objeto (sujeito) já apreciado e de certa forma ordenado, perante o qual ele deve ocupar, com conhecimento de causa, sua posição axiológica.

Nas ciências humanas, o pesquisador tem participação ativa no ato de investigar. Ele não é neutro e assume responsabilidades na produção de conhecimentos, pois “sua ação e também os efeitos que propicia constituem elementos da análise”. O pesquisador entra numa relação com o sujeito pesquisado, questionando, desafiando e, ao mesmo tempo, dialogando com ele, ou seja, faz parte da “própria situação de pesquisa” (FREITAS, 2002, p. 24).