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Olhares para a Ordem Social na Freguesia de Santo Antônio da Lapa 1763-1798

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Olhares para a Ordem Social

na Freguesia de Santo Antônio da Lapa

1763-1798

*

Maria Luiza Andreazza

UFPR

Palavras-chave: conjugalidade colonial, ilegitimidade, Santo Antonio da Lapa, composição doméstica.

Dentre as fontes que impulsionaram o desenvolvimento da história da família, irradiado a partir da França, Inglaterra e Canadá nos anos 1950 e 1960, estiveram as listas nominativas de habitantes e os registros paroquiais (ANDERSON, 1984; BURGUIÈRE, 1988). O caráter seriado dessas fontes se presta às investigações de fenômenos ligados aos ciclos vital e matrimonial, da composição e estrutura familiar e doméstica, bem como da composição, estrutura e movimentos populacionais. E assim, sob a influência desses estudos, o ingresso dos historiadores brasileiros neste campo de conhecimento em grande parte também esteve associado à demografia histórica (SAMARA, 1982; FARIA, 1997; NADALIN, 1994).

É difícil ponderar sobre o surgimento deste corpo documental sem remeter aos estudos de Michael Foucault. E, se acompanharmos seus argumentos, os censos de população e os registros de catolicidade têm relação de dependência para com a reflexão que se estabeleceu, a partir do século XVI, em torno de ‘governo’: de si mesmo, das almas e condutas, da população de um Estado (FOUCAULT, 1986). Nessa perspectiva, é inegável que a produção dessas fontes está inscrita em registros discursivos específicos. Assim, tenho assente que, não obstante o regalismo, as atas de catolicidade e os demais registros produzidos por párocos são de natureza religiosa; em contrapartida, as listas de população são resultado de uma demanda secular.

Estabelecer este critério foi fundamental para organizar a investigação que se segue, dedicada a mapear a organização familiar em Santo Antônio da Lapa (PR) e, se

*

Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto, Minas Gearis, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002.

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possível, entrever os discursos que estariam sustentando e garantindo a sua legitimidade. Para realizar esta tarefa vou me apoiar nos censos de população e nos registros de batismo, casamento e óbito daquela freguesia, produzidos entre 1763 e 1798. Não se trata, assim, de utilizar estas fontes para construir indicadores demográficos — até porque já foram elaborados (VALLE, 1976; 1983) —, mas de um esforço no sentido de recompor traços das interações entre os grupos que viviam e conviviam naquela sociedade.

Se as práticas sociais são exercício de uma verdade, não é demais retomar a advertência de Foucault quanto ao fato de serem orientadas por uma subjetivação, para cuja construção concorrem inúmeros elementos (FUCAULT, 1999). Nestes termos, na

freguesia de Santo Antônio da Lapa estaria em circulação uma variedade de subjetivações, pois sua composição era em tudo similar a do restante da colônia — variada em origem, dividida pela escravidão e matizada em cores e hierarquias. Mas o fato é que aquelas pessoas, ainda que portadoras de verdades diferenciadas, relacionavam-se entre si. Assim, interessa reconhecer e dar sentido às suas interações.

É forçoso adiantar que o estudo se prendeu unicamente ao universo de livres e libertos. Igualmente, que o marco interpretativo foi balizado pela significação ‘ocidentalizante’ daquela sociedade. A meu favor tenho a dizer que, se mantive a hegemonia do discurso colonizador, foi na busca de entender sua leitura daquela sociedade. Afinal, a documentação compulsada está inscrita em seus quadros de interpretação. Vamos a Santo Antônio da Lapa...

Olhares para o Sul

No conjunto dos Campos Gerais, a ocupação da região onde se organizou o povoado de Santo Antônio se dará tardiamente. Suas partes norte e central, alvo da cobiça dos ‘paulistas’ de Santos, Itu, Paranaguá e São Paulo de Piratininga, estavam recobertas por fazendas de gado desde os primórdios do século XVIII. Entre 1725 e 1744, mais de noventa sesmarias foram aí requeridas, embora estes sesmeiros deixassem as propriedades sob a administração de capatazes, denominados ‘fazendeiros’. Por deterem o monopólio da criação do gado, que a abastecia, os sesmeiros conformavam um grupo que podia voltar seus interesses à zona mineradora

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(PINHEIRO MACHADO:1968, 29). Com interesses de tal vulto, chegaram a solicitar a Dom

João V que impedisse a abertura do Caminho do Viamão. Astuto observador dos interesses em jogo, o Capitão-General Caldeira Pimentel, entusiasta deste caminho, forneceu ao monarca sua versão:

Esse ministro [ouvidor de Paranaguá] é casado com mulher natural da Vila, que nela tem irmãos, cunhados e grande roda de parentes ....[e] pelo dote de sua mulher, assim como os mais de seus parentes e vários outros moradores de Paranaguá, tem currais de gado vacum e cavalar [nos Campos Gerais] dos quais tira provimento .... para a cidade de São Paulo e vilas de sua comarca, por não haver em aquele governo outros alguns currais (APud PINHEIRO MACHADO: 1968, 30)

E, em defesa da manutenção dos trabalhos a fim de efetivar o acesso ao extremo Sul da colônia, acrescentava:

...como com a introdução de gados e cavalgaduras pelo novo caminho entrarão dos campos do Rio Grande de São Pedro do Sul e Nova Colônia [do Sacramento], hão de diminuir nos preços os gados e os cavalos [dos Campos Gerais], e este prejuízo próprio vem rebuçado com o zelo de se evitarem os choques com os tapes. (AHU, APud

PINHEIRO MACHADO: 1968, 30)

A triunfal passagem de Cristóvão Pereira de Abreu, em 1731, com as ditas 800 cabeças de gado rumo a São Paulo, encerrou definitivamente a questão. E a abertura do caminho do Viamão criou condições para que se iniciasse a expansão da população, embora rarefeira, no espaço sul dos Campos Gerais, particularmente nas proximidades dos pousos de tropas. O que atraía estas pessoas era certamente a possibilidade de comerciar com os tropeiros. Auxiliava nesta concentração, ainda, o fato de, a poucas léguas do ‘pouso da Lapa’, existir um posto de cobrança do ‘pedágio do gado’, o

registro do rio Grande ou registro de Curitiba. Coube ao Coronel Cristóvão Pereira de

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também foi pioneiro na atividade mercantil na região. Era dele uma venda na paragem

do Registro, de todo o gênero de fazenda seca e molhados cujo alvará de

funcionamento, obtido junto à câmara de Curitiba, indicava destinar-se ao costiamento

das tropas. (BAMC, v.13:30).

Mas a efetiva concessão de sesmarias nessa parte vai se dar mais tarde, e aí, diferentemente da modalidade de ocupação das outras partes dos Campos Gerais, porção significativa daqueles que as obtém não eram proprietários absenteístas. Muitos deles fixaram-se nas fazendas e assumindo seu papel junto a elite local (PEREIRA, 1999: 200).

Paralelamente, apresentaram-se alterações significativas na vida da população radicada em torno do pouso da Lapa, quando lhes foi ordenado organizar uma povoação. Se entre 1705 e 1767 nenhuma vila fora criada em território paulista, o Capitão-General Dom Luiz Antônio de Souza Botelho e Mourão estabeleceu, a partir de então, onze vilas e sete povoados, cumprindo metas do projeto urbanístico pombalino. Para as partes meridionais da Capitania de São Paulo, tal projeto detinha contornos próprios pois a

instalação de povoações, com a arregimentação de moradores, prendeu-se a questões de cunho estratégico-militar e recebeu acompanhamento constante da Metrópole

(SANTOS, 199:216-220).

É possível pensar que uma moeda de troca utilizada pelo Rei, para compensar a sujeição às suas ordens de não viverem dispersos, era conceder atendimento espiritual aos que se agrupavam em povoações. Isso infere-se na leitura da carta de sesmaria passada aos moradores do registro, destinada a ser patrimônio da capela de Santo Antonio da Lapa. Nela, o Morgado de Mateus explicita que para ter este projeto [povoado] o seu ultimo e desejado fim era preciso formar Igreja onde se celebrassem os

ofícios divinos, para pasto espiritual dos mesmos moradores.(Carta de Sesmaria/1768,

In:SABOYA CÔRTES:1950,6). Àquela população ‘ser freguês’ significou a disponibilidade

de assistência religiosa permanente. Aos párocos, além das atribuições específicas do ofício — celebrar os ofícios religiosos, registrar nascimentos, casamentos e óbitos — poderia recair a tarefa de cobrança de dízimos e das desobrigas e, neste período, efetuar recenseamentos, cobrar impostos e incentivar políticas do Reino, como a da miscigenação (TORRES-LONDOÑO:1997, 69).

A demarcação legal da sesmaria destinada a ser patrimônio da igreja foi realizada em 15 de julho de 1769, com a outorga, pelas mãos de Afonso Botelho, da

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carta de sesmaria ao padre João da Silva Reis que, ato contínuo, tornou-se o primeiro vigário da nova freguesia de Santo Antonio da Lapa (WESTHEPHALEN,1991:179).

Referindo-se a este momento, um ‘filho da terra’, em 1950, escreve que o antigo pouso

dos tropeiros que vinham do Sul, e a grande invernada que abrigava tropas cansadas do Riogrande, para as feiras de Sorocaba, passava a ter foros de ermida, sob a invocação de Santo Antonio de Lisboa. (SABOYA CÔRTES: 1950:6) . Para dimensionar o valor desta ‘ermida’,

Precisamos transportar-nos com um esforço de imaginação para ambiente inteiramente diverso, procurar participar daquela atmosfera clerical e de religiosidade. Não que haja então um sentimento religioso mais agudo, mais profundo e elevadamente sentido (...). De muito maiores conseqüências é o fato da onipresença de um conjunto de crenças e práticas que o indivíduo já encontra dominantes ao nascer e que o acompanharão até o fim da vida, mantendo-o dentro do raio de uma ação constante e perigosa. (...) Ele participará dos atos da religião, das cerimônias de culto com a mesma naturalidade e convicção que de quaisquer outros acontecimentos banais e diuturnos de sua existência terrena; e contra eles não pensaria um momento em reagir. Será batizado, confessará e comungará nas épocas próprias, casar-se-á perante um sacerdote, praticará os demais sacramentos e freqüentará festas e cerimônias religiosas com o mesmo espírito com que intervém nos fatos que chamaríamos hoje, em oposição, da sua vida civil. (PRADO JÚNIOR, 2000:335)

Não obstante esta rígida caracterização, é certo que a Igreja colonial perfilava-se a outras instâncias do quadro administrativo do Estado e, como tal, presente, de uma forma ou de outra, na vida daquelas pessoas. Mas no quadro em que a historiografia situa o clero colonial, os lapeanos tiveram sorte com a indicação do padre João das Silva Reis como vigário local. Filho dos reinóis João Pereira Braga e Josefa Gonçalves da Silva, seus pais foram os primeiros sesmeiros a se estabelecer com morada efetiva nos Campos Gerais (WESTEPHALEN:1991, 178). O parentesco deste casal — alguns afirmam

ser por parte dela (LACERDA, 1972:8), outros pela dele (LEÃO:1994, 989) — com Manoel Gonçalves do Aguiar, Sargento-Mor e Comandante da Praça de Santos, possivelmente contribuiu para que João Pereira Braga fosse escolhido para administrar as fazendas que

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o oficial possuía na região1. Mas em 1742 já haviam adquirido a sesmaria da Palmeira, e desde 1727 eram proprietários dos Campos de Tibagi (WESTEPHALEN, 1991:178). Assim, o vigário exercia seu ministério na localidade onde estavam não apenas seus pais, mas também seus irmãos e irmãs, integrando o círculo da elite campeira.

João da Silva Reis recebeu preparo no seminário de São Paulo e, ordenado padre, recebeu nomeação de D. Frei Antônio Madre de Deus para ser coadjutor, a partir de 1758, na paróquia de Curitiba. Teria então 25 anos e suas funções eram na capela de Nossa Senhora do Tamanduá. Menciona-se que, bem antes da criação da freguesia de Santo Antônio da Lapa, ele já havia construído uma capela em suas terras no Registro. (LEÃO:1994,998). É possível que isto tenha acontecido pois, em testamento, uma tia lhe legou uma fazenda caso ingressasse na carreira eclesiástica (T/CEDOPE) Sendo homem

de posses, o vigário da freguesia da Lapa não deve, da mesma forma que outros seus contemporâneos, ter exigido dos fiéis mais do que a Igreja necessariamente deles exigia. E até onde pesquisei, não encontrei reclamações contra sua conduta moral ou pastoral. O mesmo, aliás, ocorreu em relação ao ministério dos que o sucederam durante o século XVIII.

Se era este o perfil do clero, cabe indicar que a elite que se organizou na localidade conformou-se a partir da família de João Pereira Braga. Seus filhos e genros, e sucessivamente os descendentes, assumiram a liderança política local. Desde a primeira lista nominativa de habitantes e até a de 1798, seus familiares consangüíneos constam dentre os que detêm os principais cargos nas milícias e nas companhias de ordenança, exercendo funções que iam desde alferes, tenentes, sargentos e, especialmente, de capitães. No sentido de demonstrar o prestígio desta rede parental é importante observar que o número de capitães das ordenanças de Santo Antônio da Lapa oscilou entre três e cinco. Deveria existir alguma hierarquia entre eles, pois não deixa de ser instigante o fato de que em todas as listas nominativas o “fogo” primeiramente relacionado — a cabeça daquele corpo social? — era o do capitão que assinava como responsável por sua elaboração. Nas listas de Santo Antônio da Lapa, especialmente após 1775, é o reinól Francisco Teixeira Coelho que as assina, talvez pelo acaso de ter por mulher Gertrudes, uma neta do primeiro sesmeiro da região.

1 Estas fazendas, mais tarde conformarão o Vínculo de Nossa Senhora das Neves. Um estudo minucioso sobre o

conjunto destas fazendas se encontra em: LOPES, José Carlos Veiga. Informações sobre os bens de Nossa Senhora

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Elites inegavelmente homogâmicas, em todo o período focalizado — que acaba cobrindo três gerações de casamentos2 — mantinham uniões com pessoas do reino ou, no limite, com filhos de reinóis.3 Se o estudo destas relações não é objetivo deste estudo, vale indicar que eram cônjuges egressos de localidades notadamente do Arcebispado de Braga, como o Arraial de Servocha, São Miguel de Bastos, Santa Eulália de Cerdal, Ponte de Lima, Santa Maria das Covas, Vila de Coura. Em menor número dos Bispados de Angra, de Aviz e do Porto.4

No que se refere ao restante da população, é sempre mais difícil precisar sua origem. O mapeamento do mercado matrimonial desta localidade, efetuado por VALLE, indica que os noivos provinham maioritariamente de Curitiba e de outras freguesias dos Sertões de Curitiba, especialmente a de São José dos Pinhais e, quando o quadro se amplia, sucessivamente, vislumbra-se um movimento originário da capital da Capitania e de vilas como Sorocaba, Cotia, e Taubaté, bem como de outras freguesias dos Campos Gerais e da região litorânea, próxima a Paranaguá (VALLE: 1976, 85-86). Saber de onde vieram e, até, de onde não vinham os noivos e noivas — das partes do Rio Grande — nos diz algumas coisas. Mas é importante também sabermos que, diferentemente da elite, avessa ao casamento legítimo com crioulos, a população dos demais degraus da hierarquia daquela sociedade era majoritariamente constituída por mestiços, descritos na documentação como pardos e mulatos, sendo porém raras as indicações de serem ‘pretos’, caso mais freqüente entre os forros e os ‘índios’, ou gentio da terra.

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Já reconstituí estas famílias e estou implementando banco de dados que permita cruzamentos com dados provenientes de outras fontes. Desta forma, menciono três gerações, pois as atas de casamento mais antigas permitem reorganizar genealogias amplas favorecendo a recomposição das redes de relações que estas pessoas estabeleciam com um universo mais amplo que se desdobra, no mínimo, entre a ampla área campeira.

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No que diz respeito aos notáveis da localidade, venho completando os dados genealógicos com dados de outras fontes, especialmente genealogias elaboradas por Francisco Negrão e Ermelino Augusto de Leão.

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Em desdobramento futuro da pesquisa em curso, pretendo desenvolver uma análise da inserção social dos portugueses que, a partir da segunda metade do XVIII, se instalaram nos Campos Gerais. O estudo de Bacellar (1990) indicou esta corrente migratória no sentido da capitania de São Paulo. Soma-se ao interesse o fato de a produção do NEPS, permitir um conhecimento detalhado dos comportamentos matrimoniais em suas terras de origem.

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Olhando a freguesia de Santo Antonio da Lapa

Este quadro social inspirou os seguintes comentários de um tropeiro que passou pela Lapa em 1797:

havia muita gente, porém pobre; deve-se atribuir que é pelo mau método do seu governo e pela preguiça a que se abandonam; porquanto sendo uma passagem geral e freqüente das tropas que se exportam do Rio Grande para São Paulo, podiam fazer, por sua parte um pingue negócio, e por outro, utilizando-se da fertilidade dos seus campos que são homogêneos aos do Continente do Rio Grande, e próprios para criar toda a espécie de animais ...teriam ou possuiriam muitas estâncias.(RIHGB, V. 21: 309)

É possível que este tropeiro tenha balizado seu comentário por observações feitas quando cumpria rota em direção ao norte. Caso contrário sua percepção seria outra, pois o termo da vila de Sorocaba possuía, em 1798, 7.177 pessoas, aí incluídos os escravos (BACELLAR, 2001:36). Neste mesmo ano, a freguesia da Lapa somava o

modesto número de 1.360 habitantes, dentre as quais 84,5% eram livres e libertos. Se a população era pequena na comparação com outras vilas e povoados, ela não estava demograficamente estagnada. Em 1777 ali estavam 877 pessoas; em 1783, 1.132; em 1792, 1.240 chegando ao final do XVIII com pouco menos de 1.500 pessoas. Neste processo de crescimento o que manteve certa estabilidade foi a proporção de escravos que, com raras exceções, situou-se em torno de 15% no conjunto da população.

E se a esse tropeiro, como a tantos outros indivíduos que por diversos motivos circulavam pelo interior da Colônia, incomodava a preguiça e a falta de empenho no trabalho dos homens comuns (BURMESTER, 1987), é fato que na Lapa todos ‘plantavam

para o gasto’. Mas na localidade também havia oferta de trabalhos especializados nos diversos ofícios mecânicos e nas atividades associadas ao trato com o gado. Se observarmos a tabela 1, em anexo, o detalhamento das atividades por domicílio indica que apenas 22% deles se dedicava unicamente à lavoura de subsistência. Todos os demais, à exceção dos que ‘vivem de esmolas’ ou dos ‘sem menção de atividade’,

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acrescentavam à labuta com a roça algum tipo de trabalho, com o qual, em maior ou menor graus, usufruíam ganhos.

Esta tabela demonstra ainda, como era de se esperar, a dimensão do envolvimento dos lapeanos com o trato com gado. Do conjunto de domicílios, nada menos que 55,4% deles viviam ou sobreviviam com esta atividade. E se subtrairmos do cálculo os domicílios de esmoleiros e os que não têm atividade mencionada, o indicador se altera para 64,2 %. O gado, inegavelmente, era a base sobre a qual se assentavam as relações de trabalho na localidade. Se isto é verdadeiro para o universo dos livres e libertos, mais ainda o foi para o dos escravos. Neste ano, apenas 38 domicílios (14%) detinham a posse dos 210 cativos da Lapa, e os maiores plantéis — nos termos locais entre 16 e 30 escravos — pertenciam a um reduzido número de fazendeiros. Para além das atividades exclusivamente ligadas ao gado, como já foi dito, estavam radicados neste povoado diversos oficiais mecânicos e comerciantes. Mas para ambas as atividades, há evidente sub-registro quando se comparam os dados da tabela 1 com os alvarás de licença para exercício de ofícios na freguesia de Santo Antônio da Lapa. (BARBOZA, 2001).

Talvez, de todas as observações de nosso tropeiro, a mais apurada tenha sido a de que os fazendeiros da Lapa não tinham disposição para formar ‘estâncias’ e criar ‘toda a espécie de animais’. De fato, desde a abertura do caminho do Viamão a tendência geral das fazendas dos Campos Gerais foi o abandono da atividade criatória:

pressionada pela concorrência com o gado sulino, a economia da região entra em processo de reorientação onde a comercialização de muares desempenharia papel fundamental. (PEREIRA, 1999:199).

Um primeiro olhar para os ‘fogos’ dos lapeanos

A transformação das propriedades em locais de invernagem e não mais de criatório de gado, não parece ter influenciado em muito a composição doméstica local. A forma mais recorrente foi a nuclear, reiterando o que de resto a historiografia vem mostrando para as áreas do sul e do sudeste (MARCÍLIO, SAMARA, BURMESTER, BACELLAR,

FARIA). Mas naqueles domicílios que apresentavam alguma forma de complexidade

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consangüíneo. Esse tipo de organização domiciliar era mais freqüente até finais da década de 1770 e início dos anos de 1780, quando o fluxo migratório para a região parece ter sido mais intenso. Daí não decorre sugerir que a organização doméstica transitou da organização complexa para a simples, mas destacar que as listas nominativas, talvez por fixarem um momento da configuração doméstica, registrem composições contingenciais. Isto explicaria, por exemplo, a diferença entre os dados das listas mais antigas e as da década de 1790: as primeiras estariam indicando que pessoas, especialmente solteiros, migravam para a região e encontravam acolhida temporária na casa de algum parente ou conhecido. Esta hipótese não é de todo descabida, pois no acompanhamento dos domicílios em anos subsequentes, as pessoas que lhe emprestaram complexidade num dado momento, não necessariamente se mantêm presentes. Alguns organizaram unidade própria, muitas vezes em casas próximas ao domicílio de origem, outros, uma vez que nas listas em que aparecem na condição de dependência a um chefe indica-se apenas seus prenomes e grau de parentesco (ou situação), dificilmente foram reconhecidos em listas posteriores. Destes, boa parte desaparece e outro tanto emerge após árdua garimpagem de indícios que acabam por permitir o resgate de suas identidades.

Em poucas situações percebe-se que aquelas pessoas aceitavam ampliar seu quadro doméstico por tempo prolongado. Uma exceção a esta tendência parece ter sido a inclusão de agregados, o que em Santo Antônio da Lapa sempre significou vincular ao domicílio crianças, idosos, mulher com prole de tenra idade ou inválidos.

A trajetória de José Corrêa Porto e Quitéria Maria da Luz Buena, cuja vida conjugal é iniciada em 1780, ilustra a situação. Casaram-se relativamente tarde, pois se a ata de casamento não indica suas idades, a lista nominativa de 1782 situa José com 32 e Quitéria com 44. Homem do Reino, natural da freguesia de São Pedro Fins (sic), do Bispado do Porto, José consta dentre aqueles que ‘vivem de suas lavouras’, com o acréscimo de ser auxiliar das tropas de ordenanças. Até onde já reorganizei as relações parentais do povoado, parece que nem ele nem sua mulher, uma mulata, tinham ali parentes consangüíneos, à exceção de uma irmã de Quitéria. Em todo seu ciclo conjugal, encerrado em 1806 quando morre Quitéria, contaram com o trabalho de um ou dois escravos. O fato de não terem filhos nem parentes talvez tenha contribuído para que, a partir de 1782, constantemente tivessem agregados. Neste ano, estavam com eles

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Izabel Carvalho, 70 anos, Escolástica Domingues do Espírito Santo, 30 anos e suas filhas Gertrudes e Rita, com cinco e três anos. Passada uma década, moravam com o casal a viúva Anna Maria e seus dois filhos: Manoel e Roza, com 2 e 4 anos respectivamente. Vizinhos de longa data, é provável que a viuvez de Anna Maria tenha encaminhado à ‘agregação’. Neste meio tempo, é crível que Izabel Carvalho tenha morrido, e quanto a Escolástica, encontrava-se agregada em outro domicílio, o de Nicolau e Madalena, cujas atividades eram as de conduzir tropas e roçar. Eles com quatro filhos, e ela com mesmo número, pois sua prole aumentara em duas filhas, Antonia e Joanna. No final da década de 1790, as coisas estão novamente modificadas: Anna Maria não está mais com Quitéria e Jozé Correa Porto, mas no domicílio vive o menino Fortunado, indicado como filho. Bastante difícil sustentar que o seja por consangüinidade: as listas nominativas indicam que Quitéria beirava os 60 anos e deste casal, presente em atas de batismo ou de casamento, não há qualquer menção do batismo de um filho. Além disso, quando da morte de Quitéria, seu testamento designava o marido por herdeiro e a terça, para missas por sua alma e pagamento do funeral. Nos resta pensar que a dinâmica que emprestaram às suas relações domésticas os tenha incluído em algum sistema de circulação ou exposição de crianças (VENÂNCIO, BACELLAR, MARCÍLIO)5.

Quanto à Escolástica, cabe enfatizar que parece exemplificar bem o caso das mulheres, especialmente as mães-solteiras, que por certa fase da criação dos filhos agregavam-se a um domicílio, à espera de condições para alçar autonomia. Em 1798, com ‘43 anos’, ela aparece na condição de chefe de um fogo e com ela está Antonia, agora com 14 anos. A mais velha, Gertrudes, casou-se e mora no domicílio que sucede o seu na lista nominativa deste ano. Não há menção das atividades que exerce, mas sendo seu genro tropeiro, pode-se pensar que aí agregavam-se as forças femininas para manter a roça ‘plantando para comer’. Situação que vem sendo indicada como recorrente, especialmente onde o trabalho masculino implicava ausências prolongadas (BACELLLAR, 2001; FARIA, 1998).

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Para este trabalho não foram explorados os casos de crianças expostas, mas como nas demais localidades houve fluxo contínuo de exposição de recém-nascidos e de circulação de crianças.

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Outra situação em que claramente se percebe uma aceitação da complexização da composição do fogo era no caso de filhos, especialmente filhas, enviuvarem6. Há aqui necessidade de se demarcar uma diferença entre esta modalidade de agregação e a explanada acima, com o acompanhamento da trajetória domiciliar de Escolástica. Para esta mulher, agregar-se não pareceu ter implicado em restrição a relacionamentos fortuitos. De fato, todas as suas quatro filhas foram batizadas como ilegítimas. Mas, a ‘agregação de filhas viúvas’ estaria indicando, nos casos observados, um retorno à autoridade paterna, inscrita num quadro de representação dos papéis familiares, que pode denotar sujeição à moral tridentina. Parece que o objetivo desta guarda — e correlata agregação domiciliar — era a proteção da honra com vistas a um novo casamento.

Sabe-se que era bem mais fácil para viúvos retomar a vida conjugal, mas o que estava em jogo para os pais que retomavam a guarda das filhas não era o conhecimento dos nossos indicadores. Certamente era o comportamento geral das mulheres lapeanas, solteiras, casadas e viuvas em idade procriativa. Dele hoje sabemos que foi bem mais comedido enquanto o padre João da Silva Reis estava vivo. Pode ser que sua boa formação religiosa, aparente na documentação que produziu, tenha funcionado no sentido de exigir dos fiéis comportamento louvável dentro da perspectiva da moral social pretendida por uma certa corrente do clero colonial, empenhada em fazer valer as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (TORRES-LONDOÑO: 2000). Por ora

fica apenas a hipótese de uma efetiva ação moralizadora do padre João, para a qual corroboram os modestos 11 a 13% de nascimentos ilegítimos enquanto ele foi vigário da Lapa. Depois de sua morte verifica-se uma linha ascendente, atingindo a ilegitimidade, entre 1784 e 1788, a marca de 47,2%, e nos anos posteriores mantendo-se numa freqüência entre 25 a 30% do total dos nascimentos (VALLE, 1976:66). Para mim esses números são indicadores consideráveis. Aos pais que reassumiam a guarda das filhas sob seus tetos eram desnecessários pois bastava olhar à sua volta e verificar a quantidade e as dificuldades de mulheres com filhos ilegítimos.

Feita a observação de que certos domicílios eram complexos dado o retorno das filhas viúvas ao jugo paterno, avançamos a pesquisa no sentido de verificar qual o

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Este texto não vai contemplar o redimensionamento domiciliar decorrente de recasamento mas a observação da prática de sucessivos casamentos de viúvos merece estudo particularizado.

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impacto que os altos índices de ilegitimidade encontrados por Valle, tiveram sobre a chefia e a composição dos domicílios. Inicialmente, deve ser indicado que não se encontrou um grande número de fogos com chefia feminina. Em 1792, por exemplo (ver anexo, tabela 2), dos 266 domicílios7, apenas 47 eram chefiados por mulheres, ou seja, 17,6%. Dentre os chefiados por homens, 9% tinham uma ‘unidade secundária’, significando alocar um menor com seus progenitores ou apenas um deles. Nos chefiados por mulher esta situação se apresentou em 4% dos casos. Ainda, em 26 domicílios chefiados por homens há crianças cuja relação não é de filiação para com o chefe e não estão aí acompanhados de pai ou mãe, significando 15,4% dos casos. A mesma situação, quando a chefia é feminina, é de 19,1%.

Destes dois últimos indicadores, poder-se-ia deduzir que às mulheres cabia, com maior freqüência, assumir a criação de crianças, que poderiam ser seus netos ou expostas em suas casas? Creio que sim. Isto porque o fato de um maior número de crianças estar em ´fogos’ chefiados por homens indica apenas sob qual autoridade – masculina ou feminina – se dava sua vivência doméstica.. No exemplo em questão, a tutela masculina geral é de 78% e, em quase 20% destes fogos encontram-se menores que, aparentemente, não eram consangüíneos da família. Não obstante este dado, o que concorre para afirmar que cabia às mulheres a responsabilidade para com crianças geradas por outras mulheres é o fato de que, chefiando ou não o domicílio, de acordo com os papíes de gênero à época, à elas cabia acompanhar a criação dos menores.

Já que a análise da composição doméstica levou a constatar que cerca de 20% das casas lapeanas criavam filhos alheios, restou averiguar se este suposto sistema de circulação de menores influenciou na dimensão domiciliar. Na busca de indicadores a este respeito fomos novamente conferir a lista de 1792. O critério foi identificar o número de co-residentes menores de 25 anos, excetuando desta contabilidade o chefe e, em havendo, sua mulher, bem como todos os demais integrantes em faixa etária superior a 25 anos (cf., em anexo, tabela 2). O que resultou foi no mínimo intrigante, haja vista ser mais freqüente domicílios entre quatro e nenhum filho. Este perfil totalizou 82,7% dos fogos do ano. (cf. anexo, tabela 2) não indicando diferença

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Dada a prolongada permanência com os pais, para construir estes dados utilizei como critério a menoridade no período pombalino que era de 25 anos.

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significativa com a dimensão domiciliar de outras localidades afeitas à economia de subsistência (CORREA, 1982).

Se, como vimos demonstrando, a ilegitimidade dos nascimentos era alta e não existia na Lapa um número correspondente de domicílios chefiados por mulheres; se, por outro lado, a pressuposta alocação de crianças em domicílios alheios não imprimiu alterações significativas no conjunto de co-residentes, colocou-se a hipótese de que o equilíbrio desta situação – alta taxa de ilegitimidade/composição domiciliar – estaria na baixa fecundidade legítima. Esta hipótese ficou totalmente desautorizada face aos indicadores apresentados por VALLE. no que se refere a descendência legítima completa. Segundo ela, que se utilizou do método Henry,

no conjunto de mulheres observadas, para os dois tipos de fichas (MF I E MF II), nota-se que a descendência é bastante elevada, pois as mulheres casadas aos 10-14 anos, que viveram até os 45 anos de vida, casadas, tiveram cerca de 12 nascimentos vivos. No segundo e terceiro grupos de idade, a descendência baixou para 10 filhos, em ambos os casos. As mulheres casadas após os 25 anos de idade, tiveram em média, 5 filhos. (1983:279).

Dado este quadro, o estudo buscou recuperar a idade média em que aquelas mulheres casavam pois, se tardia, sua associação com a genérica alta mortalidade infantil do Antigo Regime, daria conta de explicar a reduzida dimensão doméstica geral. O quadro decenal das idades médias ao casar, construído por VALLE, apresenta para o

período 1770-1779, 19,8 anos; para 1780-1789, 18,8 e para 1790-1799, 19,6 anos (1983: 185). E, novamente, os indicadores não sustentam uma explicação satisfatória ao problema que se colocou.

Sua compreensão me pareceu situar-se além do plano das interações sociais objetivas que deixam vestígios fortes, marcando tendências que podem ser quantificadas numa perspectiva macro. Nesta busca, retomei advertências já antigas, feitas em 1984, por NIZZA DA SILVA. Dizia ela:

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Convém não esquecer, ao estudarmos o sistema de casamento no Brasil colonial, nomeadamente na Capitania de São Paulo, que as leis do reino eram observadas na colônia muito antes da divulgação da doutrina tridentina acerca do matrimônio, e que, mesmo depois do Concílio, elas continuaram vivas nas tradições populares. Muitos casos de concubinato, para usarmos a terminologia da Igreja, nada mais seriam, aos olhos do povo, do que casamentos de acordo com as leis do Reino. A validade civil destes casamentos não pode ser posta em dúvida, uma vez que a legislação, ao tratar do modo como a marido e mulher eram meeiros em seus bens, distinguia claramente dois tipos de casamento: aquele em que o marido e mulher eram “casados, por palavras de presente à porta da Igreja, ou por licença do prelado fora dela, havendo cópula carnal”; e aquele em que o homem e a mulher provavam estarem “em casa teúda e manteúda, ou em casa de seu pai, ou em outra, em pública voz e fama de marido e mulher e por tanto tempo, que, segundo Direito, baste para presumir matrimônio entre eles, posto que se não provem as palavras de presente. (NIZZA DA SILVA, 1984:110)

Dialogar com estudos que comungam esta perspectiva (TORRES-LONDOÑO, NADALIN, FARIA, LOPES, VENÂNCIO), favoreceu interpretar a alta taxa de ilegitimidade

de Santo Antônio da Lapa como decorrência do método que se aplicou para estabelecê-la. Sabe-se que as técnicas propostas por Henry produzem indicadores a partir dos dados existentes em registros de catolicidade. Neste caso, seu bom funcionamento é para aquelas sociedades onde o discurso católico já está suficientemente ativo tendo forças para unificar comportamentos, direcionando as ações do conjunto da sociedade. Nas condições do Brasil colonial, dadas as possibilidades que aí existiram para que se dessem inúmeros arranjos matrimoniais, poderíamos ampliar, minimamente, suas categorizações para aceitarmos a coexistência de duas formas ‘legítimas’ de união — o casamento costumeiro e o casamento canônico — e teríamos, fatalmente, que repensar o significado que se dá às taxas de ilegitimidade obtidas pelo uso da metodologia Henry. No mínimo, comparar os resultados com outras evidências documentais para não nos mantermos colocando, sobre comportamentos socialmente legítimos, o mesmo olhar discriminatório que a Igreja lhes impôs.

Empreendendo um exercício neste sentido, retomei a leitura das fontes, para acompanhar, caso a caso, os 1.638 batizados efetuados na freguesia entre 1769 e 1798,

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correlacionando as mães de filhos ‘ilegítimos’ das atas paroquiais com sua situação nas listas nominativas. Esta busca, ainda não finalizada, vem mostrando que na localidade estavam em curso, sim, práticas matrimoniais que podem ser interpretadas, ao menos, sob o foco de uma dupla significação. Uma fundamentada das normas eclesiásticas, que situava no casamento religioso a condição de uma criança ser legítima, e outra nas leis do Reino, que também por ato de vontade mútua unia o casal e lhes garantia respeitabilidade social. Isso não reduz em nada a fenomenal cifra de 47% de crianças havidas, aos olhos da Igreja, nos quadros da ilegitimidade. Eram, segundo seus pressupostos, frutos da natureza pecaminosa dos homens. Mas, isto parece ter tido pouco significado para os pais destas crianças, que as criaram em uniões consensuais estáveis.

Há inúmeros exemplos neste sentido, mas vou ilustrar com um que entendo como bastante significativo: a história do casal Antônio da Silva e Francisca Pinheira. As primeiras menções a Francisca, encontramos na década de 1780, quando ela era agregada na casa do Tenente Domingos Pereira da Silva. Nas listas do final desta década ela aparece morando com Antonio da Silva. Porém, pelo tempo em que conviveu no domicílio do Tenente Domingos podemos supor que ela estabeleceu algum tipo de relacionamento no círculo mais amplo daquela família. Isto porque ao ter seus filhos com Antônio da Silva, se sentiu autorizada a buscar dentre os filhos do irmão do Tenente Domingos, o Capitão José dos Santos Pacheco, os padrinhos para seus filhos Ladislau e Rita. Podemos supor também que o Capitão Teixeira Coelho, cuja mulher era sobrinha do Tenente Domingos, tenha reconhecido o casal quando lia nas relação dos habitantes da Lapa o nome de Francisca Pinheira e sua condição parental com o chefe do domicílio: “molher” de Antonio da Silva.

O reconhecimento desta condição conjugal não era partilhada pelo padre Antonio Gonçalves Pereira Cordeiro. Ele, ao qualificar a condição dos nascimentos dos filhos de Rita Pinheira, não hesitou em registra-los como ilegítimos. De fato, ao padre cabia promover e valorizar as uniões sacramentadas, e indicar como legítimos unicamente os frutos destas uniões. Deste ponto de vista, Antônio da Silva perfila-se junto a outros tantos ainda anônimos que estariam casados sob as Leis do Reino. Sob o ponto de vista da Igreja, suas práticas matrimoniais alimentam os indicadores para caracterizarmos como ilegítimos seus comportamentos. Para aquela população, porém,

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tais práticas deveriam ter pleno sentido e densidade, condições para sua durabilidade. Mas vale apontar a possibilidade de o Capitão Francisco Teixeira Coelho também haver dedicado à união do Francisca e Antônio um olhar filtrado pela cultura matrimonial própria de sua terra de origem. Egresso de um lugar do Arcebispado de Braga, nasceu em meio a cultura minhota, na qual a bastardia integrava a lógica do comportamento reprodutivo (SCOTT: 1999:216)

Vale indicar, finalmente, que se as esferas religiosa e secular orientavam classificações diferenciadas às uniões conjugais, a vivência cotidiana era muito mais rica e diferenciada. Disso nos dá conta a história de Joanna Rodriguez mostrando, mais uma vez, que imaginação humana tem infinitas formas de criar, organizar e praticar formas de interação e de interpretação do mundo em que vivem. Viúva, cujas filhas eram mães solteiras, sentindo-se merecedora de parte de uma esmola, deixada em testamento aos pobres da localidade, Joanna textualmente, disse ao juiz: vivo

pobremente com três filhas solteiras que vivem com toda a honestidade e estão para se casar.

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ANEXOS

Tabela 1 –Ocupações dos chefes de domicílios em Santo Antonio da Lapa, em 1798. Número de domicílios Sexo do chefe Domicílios por categoria de atividade CATEGORIA DE

ATIVIDADE ATIVIDADE ESPECÍFICA

abs M F abs rel

1.1 Planta para o gasto 60 35 25

1.2 Planta para o gasto e vende excedente 5 4 1 1. LAVOURA DE

SUBSISTÊNCIA

1.3 Vive do seu jornal 1 1

66 24,5

2.1 Planta para o gasto, vende excedente e cria vacas

5 4 1

2.2 Planta para o gasto, vende excedente, cria capados e conduz tropas

1 1 2.3 Planta para o gasto, vende excedente e cria

capados [derivados]

5 4 1

2.4 Planta cereais, cria gado (éguas/potros/vacas) 5 5 2. CRIAÇÃO E

LAVOURA

2.5 Planta para o gazto e vende capados/porcos 2 1 1

18 6,7

3.1 Cria e comercializa gado bovino 5 5 3.2 Cria gado e conduz tropas 2 2 3.3 Cria gado bovino e/ou eqüino e comercializa

gêneros em venda de porta aberta

3 3 3.4 Cria e comercializa bovinos e eqüinos 1 1

3.5 Cria e comercializa eqüinos 3 3 3. CRIAÇÃO DE

ANIMAIS E COMÉRCIO

(GADO E/OU GÊNEROS)

3.6 Vive de comprar e vender animais 4 4

18 6,7

4.1 Vive de conduzir tropas 99 94 5 4.2 Vive de conduzir tropas de capados 1 1 4.3 Conduz tropas do Viamão para Lapa 12 12 4. ATIVIDADES

CORRELATAS À LIDA COM OS

ANIMAIS

4.4 Vive de conduzir tropas da Lapa para Sorocaba 1 1 113 42,0 5.1Caixeiro de venda 1 1 5.2 Clérigo 1 1 5.3 Cobrados de dízimos 1 1 5.4 Coronheiro 1 1

5.5 Comerciante com venda de porta aberta 2 2 5.6 Conduz algodão de Sorocaba para a Lapa 1 1

5.7 Curtidor de sola 1 1

5.8 Lombilheiro e criador de porcos 1 1

5.9 Oficial de alfaiate 1 1

5.10 Oficial de carpinteiro 3 3

5.11 Oficial de carpinteiro com venda do excedente da produção doméstica

1 1 5.12 Oficial de carpinteiro e proprietário de

venda

1 1

5.13 Oficial de Sapateiro 1 1

5. OFÍCIOS

5.14 Oficial de sapateiro e juiz vintenário 1 1

17 6,3

6.1 Vive de esmolas 11 2 9

6. Outras

6.2 Sem menção de atividade 26 5 21

37 13,8

TOTAL 269 205 64 269 100

Fonte: Lista geral dos habitantes que exixtem na freguezia de Santo Antonio da Lapa seu destrito o Anno de 1798, suas ocupações

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Tabela 2 – Distribuição de filhos menores (1) segundo a chefia do domicílio - 1792 Chefia Masculina Chefia Feminina Unidade principal(2) Unidade secundária (3) Isolado (4) Unidade principal (2) Unidade secundária (3) Isolado (4) TOTAL Núme ro de filhos e/ou menor por domic ílio

abs rel abs rel abs rel abs rel abs rel abs rel abs rel

0 40 23,8 8 17 48 18 1 23 13,7 10 7,1 17 65,4 9 19,1 1 50 6 67 66 24,8 2 25 14,9 1 27 5 10,6 2 33 40 15 3 24 14,3 7,1 3,8 7 15 1 50 1 11 34 13 4 19 11,3 1 3,8 11 23,4 32 12 5 15 8,9 2 14,3 3 6,5 20 7,5 6 5 3,0 4 8,5 9 3,4 7 10 5,9 10 3,6 8 2 1,2 2 0,8 9 2 1,2 2 0,8 10 1 0,6 1 0,4 11 2 1,2 2 0,8 TOTAL 168 (5) 100 14 100 26 100 47 (6) 100 2 100 9 100 266 100

Fonte: Lista Geral do povo que existe, no destrito desta Freguesia de Santo Antonio da Lapa – 1792. Microfilmes do CEDOPE/originais no APESP.

(1) Tendo como critério a menoridade legal no período pombalino, qual seja, 25 anos;

(2) Estas colunas relacionam o número de filhos solteiros do chefe do domicílio, independentemente da idade;

(3) Estas colunas relacionam menores acompanhados por pai ou mãe, coabitando em domicilio chefiado por outrem;

(4) Estas colunas relacionam menores cuja relação com o chefe não é de filiação e que não estão acompanhados no domicílio por pai ou mãe. Com esta categoria buscou-se agregar o conjunto de menores designados na lista nominativa sob atributos como neto, sobrinho, exposto, agregado bem como aqueles para os quais não designação alguma.

(5) A soma dos totais das unidades principais (168 + 47 = 215) indica o conjunto dos domicílios considerados nesta tabela, que excluiu a fazendo do Gonçalo Jozé.

Obs: Esta tabela foi construída pelos alunos-bolsistas do CEDOPE André Luiz Cavazzani (PIBIC/CNPq 2000/2001), Cesar Otavio Cundari da Rocha Santos (PIBIC/CNPq 2002/2003), Lucia Amorim Moutinho (Programa Licenciar/2002), Milton Stanczick Filho (PIBIC/CNPq 2001/2002), Valeska Moura Jorge (Programa Licenciar/2002), Rodrigo Duarte Rojas (PIBIC/CNPQ 2001/2002;2002/2003) integrando suas atividades de treinamento em pesquisa com fontes seriadas.

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FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FONTES:

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