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A educação no horizonte do provável: dispositivos biopolíticos na escolarização de pessoas jovens e adultas

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Academic year: 2021

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Universidade Federal de Pernambuco Centro de Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação Curso de Doutorado

Linha de pesquisa em Formação de Professores e Práticas Pedagógicas

JANAYNA SILVA CAVALCANTE DE LIMA

A EDUCAÇÃO NO HORIZONTE DO PROVÁVEL:

DISPOSITIVOS BIOPOLÍTICOS NA ESCOLARIZAÇÃO

DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS

RECIFE 2015

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Universidade Federal de Pernambuco Centro de Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação Curso de Doutorado

Linha de pesquisa em Formação de Professores e Práticas Pedagógicas

JANAYNA SILVA CAVALCANTE DE LIMA

A EDUCAÇÃO NO HORIZONTE DO PROVÁVEL:

DISPOSITIVOS BIOPOLÍTICOS NA ESCOLARIZAÇÃO

DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco como requisito para obtenção do título de doutora em Educação.

Orientadora: Profa. Dra. Rosângela Tenório de Carvalho

RECIFE 2015

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JANAYNA SILVA CAVALCANTE DE LIMA TESE DE DOUTORADO

A EDUCAÇÃO NO HORIZONTE DO PROVÁVEL:

DISPOSITIVOS BIOPOLÍTICOS NA ESCOLARIZAÇÃO

DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS

COMISSÃO EXAMINADORA:

_________________________________________ Profa. Dra. Rosângela Tenório de Carvalho

1ª Examinadora/Presidente

_________________________________________ Profa. Dra. Silke Weber

2ª Examinadora

__________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Simão de Freitas

3º Examinador

__________________________________________ Profa. Dra. Karina Mirian da Cruz Valença Alves

4ª Examinadora

__________________________________________ Prof. Dr. Rui Gomes de Mattos de Mesquita

5º Examinador

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À minha avó materna, Maria Odília da Silva, que viveu e morreu sem saber ler e escrever, mas sabia rir dessa condição, que não a impediu de ser uma das maiores fontes de sabedoria em minha vida, expressa em provérbios para todas as horas do dia, palavras que voam e permanecem, contrariando o ditado latino “verba volant scripta

manent”, palavras e saberes que se fazem presentes hoje e por longo tempo.

Ao meu avô materno, Luís Targino da Silva, operário da Fábrica da Macaxeira, alfabetizado, que dava aulas de ler e escrever no horário de almoço a outros operários que assim o desejavam.

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AGRADECIMENTOS

Em princípio, manifesto minha gratidão aos seres cujo labor secular e cuidado antiquíssimo me permitiram estar aqui e fazer o que faço e seguir fazendo. Àqueles e àquelas cuja caminhada na terra em vários planos energéticos traçou as estradas pelas quais pude percorrer minha própria andança neste mundo. Gratidão às forças do universo que me sustentam e me fazem ver o que tem de ser visto, escutar o que tem de ser escutado, falar o que tem de ser falado. Axé!

À minha orientadora, Profa. Dra. Rosângela Tenório de Carvalho, com quem naveguei para adentrar no arquipélago das ilhas desconhecidas do pensamento foucaultiano e dos meandros da escolarização, meu agradecimento profundo pela parceria intelectual, pelo afeto transbordante, pelas valiosas lições sobre a carreira acadêmica, pela habilidade de falar e silenciar nos momentos certos, permitindo que o meu processo de reflexão fosse constituindo-se com a autonomia necessária para o aprendizado.

À minha família ― Luzinete Targino, Samuel Cavalcante, Tatyana Cavalcante e Lucia Moura ―, cujo suporte afetivo vem sendo a base sólida para minha sobrevivência!

A Joana D’Arc Santos, professora da Rede Municipal de Ensino do Recife, meu reconhecimento pela sua perspicácia e compromisso que, mesmo em contexto altamente desfavorável, diante de um trabalho por vezes desumanizador à frente da coleta de dados da educação, não permitiu que a biopolítica limitasse sua visão a ponto de impedi-la de chegar até a mim ― então gerente da Educação de Jovens e Adultos daquela Secretaria Municipal ―, entregar um calhamaço de históricos escolares e fazer a pergunta certa: o que você vai fazer com isso?

Às amigas da Secretaria de Educação do Recife: Vilma Lins, Andréa Lobo, Fátima Bizarro, Lucia Ferraz, Márcia Cabral, Taciana Durão, pelas tardes e noites de trabalho, pelos risos, pelo companheirismo, pela dedicação, compromisso e pela confiança sempre inspiradora. Ao companheiro Inaldo Rocha, exemplo de servidor público e, sobretudo, amigo no compromisso com a educação. Ao companheiro Antonio Elba, que compartilhou desses momentos. A todas as diretoras de escolas, professoras, alfabetizadoras de programas que não poderei citar aqui por falta de espaço, mas com quem de algum modo pude aprender sobre o funcionamento da escolarização de EJA, meu agradecimento cheio de esperança!

A Lenira Silveira, pela amizade delicada e doce, e pela incrível habilidade de transformar cada dificuldade em um aprendizado profundo, duradouro e comprometido com o povo.

Ao Prof. Dr. Licínio Carlos Viana Silva Lima, da Universidade do Minho, pelas horas de intensa discussão sobre as políticas de Educação de Adultos, nas quais teoria e prática se combinavam para uma compreensão mais profunda sobre a realidade; pelos livros disponibilizados de sua biblioteca particular, inacessíveis de outro modo, pela generosidade intelectual que pude testemunhar durante o período de estudos no doutorado sanduíche sob sua orientação, meus agradecimentos sinceros.

Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação, nas pessoas de Morgana Marques e Karla Reis Gouveia, cuja competência técnica e capacidade de escuta foram imprescindíveis para que eu, mesmo distante, pudesse ter minha vida acadêmica organizada e exequível.

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Às companheiras do Grupo de Estudos Foucaultianos coordenado pela Profa. Dra. Rosângela Tenório de Carvalho, Ana Paula Abrahamian, Ana Paula Rufino, Ana Cristina Hazin, Camila Oliveira, Natália Belarmino, Patrícia Ignácio, Talita Nascimento, pelos momentos de aprendizado mútuo que contribuíram para minha compreensão melhorada sobre o pensamento de Michel Foucault.

A Jacirema Bernardo, educadora, antropóloga e pensadora olindense, ao lado de quem pude participar de algumas das mais contundentes experiências de aprendizagem da alfabetização e da Educação de Adultos, através do enfoque Reflect-Ação, quiçá uma das pedagogias mais revolucionárias já criadas para o fortalecimento dos povos. Evoé!

A Beatriz de Barros de Melo e Silva, a pessoa que me fez o primeiro convite para participar de uma atividade de alfabetização de adultos no sertão profundo de nosso estado. A Graça Melo Vital, cuja delicadeza e generosidade me fizeram aprender a observar os detalhes da prática pedagógica.

Ao Professor João Francisco de Souza, in memorian, pela vivacidade intelectual com que produziu em algumas de nós, estudantes dos projetos do NUPEP, a paixão pela Educação de Adultos e pelos estudos críticos da Educação Popular, no bom lugar onde estiver, professor João, meu agradecimento póstumo!

A Aline Cavalcanti, com quem o exercício da amizade vem sendo um longo diálogo, aberto, fluido, intempestivo, criativo e comprometido com a humanidade! Gratidão, irmã!

Aos colegas do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Humanas: Jorge Luiz Feitoza Machado, João Caetano Linhares, Márcio Javan Camelo, Clever Luiz Fernandes e Hawbertt Rocha Costa, do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Naturais, do Campus de Bacabal da Universidade Federal do Maranhão, pelos momentos de debates rigorosos e animados sobre as perspectivas epistemológicas do mundo contemporâneo, sobre os problemas da formação de professores e da produção de ciência a partir dos princípios éticos da vida docente concernentes à nossa condição de servidores públicos.

Às irmãs de fé e luta Ciani Neves, Janny Rodrigues e Rozário Silva, aos queridos irmãos Augusto Crisóstomo e Lucas Ryman, com quem pude atravessar com o coração leve e tranquilo uma tempestade necessária para confirmar que o mundo não é como estavam querendo nos dizer.

Aos professores do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco, pelo estimulante ambiente intelectual do qual pude desfrutar em diferentes etapas de minha formação em graduação e pós-graduação. Aos professores Alexandre Simão de Freitas e Flávio Henrique Brayner, pelos questionamentos, provocações e pelas leituras estimulantes e profundas dos problemas da educação.

À Prof. Dra. Cíndia Brustolin, pelas conversas de alto nível sobre as epistemologias da resistência aos processos de dominação, pela atenção cuidadosa que nunca poupou uma palavra coerente de incentivo e motivação, pela amizade sempre presente nos momentos mais difíceis de nossas vidas de imigrantes!

A Maria Tereza Trabulsi, Isabell Mendonça, Paloma Sá, Márcio Boás, educadoras e educador do Jardim Waldorf Guará Mirim, cuja ousadia e prática pedagógica me trouxeram de volta a esperança com os processos de Formação Humana. Mas, também por todo o acolhimento e afeto franqueados nessa minha vida tão especial no Maranhão.

A Márcio Soares e Gabriel Kafure, dois amigos cuja síntese entre inteligência e sensibilidade foram fundamentais para algumas das reflexões expostas neste estudo.

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A Johnny Martins, detalhista leitor deste texto, cujo apuro e delicadeza contribuíram com a legibilidade final da tese, minha gratidão!

Ao povo brasileiro que, através de seus impostos, financia estudantes como eu na realização de seus estudos, com bolsas fornecidas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.

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A escritura metódica me distrai da presente condição dos homens.

A certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos assombra.

Eu conheço distritos onde os jovens se prostram diante dos livros e

beijam com barbárie as páginas, mas não sabem decifrar uma só letra.

As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações que

inevitavelmente degeneram em banditismos dizimaram a população. Creio

ter mencionado os suicídios, a cada ano mais frequentes. Quiçá me

enganam a velhice e o medo, mas suspeito que a espécie humana – a única

– está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária,

infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil,

incorruptível, secreta.

J.L. Borges, A biblioteca de Babilônia, 1941.

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8 RESUMO

A tese intitulada “A Educação no horizonte do provável: dispositivos biopolíticos na escolarização de pessoas jovens e adultas” tem como objeto as relações de poder que sustentam os dispositivos de governamentalidade desenvolvidos para a administração social das populações adultas no âmbito da escolarização. Tomando a Educação de Adultos como um discurso biopolítico, o estudo objetiva explicitar e discutir as linhas de visibilidade e enunciabilidade pelas quais esta modalidade educacional se produz enquanto fenômeno biopolítico no âmbito da educação escolar. Para proceder a este intento, analisa as estratégias enunciativas que se desdobram sobre os territórios discursivos dessa modalidade educacional, configurando os mecanismos que a fazem agir sobre sujeitos e populações. A partir das conceituações de biopolítica e governamentalidade em Foucault, o estudo enfoca os procedimentos do poder no processo de criação da população não alfabetizada como alvo das tecnologias do constrangimento e do abandono. Com o aporte das discussões de Giorgio Agamben sobre subjetivação e dessubjetivação, vida nua e estado de exceção é desenvolvida a análise sobre as posições de sujeitos presentes nos enunciados da metanoia e da vergonha como operadores do constrangimento, e da precariedade como operadora do abandono. O posicionamento metodológico da tese realiza-se numa síntese das abordagens genealógicas, dos estudos foucaultianos sobre o discurso e de suas análises biopolíticas, priorizando os processos de compreensão sobre a atualidade das relações de poder nos dispositivos analisados. São focalizados enunciados advindos do discurso parlamentar, do audiovisual e das campanhas de alfabetização, além do campo reflexivo da pedagogia, os quais participam da produção de diferentes modos de veridição da relação do sujeito com o projeto social da escolarização. Também são enfocados os enunciados presentes em históricos escolares, pelos quais são discutidas as temporalidades divergentes e os deslocamentos produzidos pela população não alfabetizada presente ao espaço complexo da escola e inserida no processo ambíguo da escolarização. A análise problematiza categorias estáveis a respeito dos benefícios da Educação Escolar para populações adultas, o valor da escrita na vida dessas populações, além das formulações subjetivantes encarregadas pela interpelação dos sujeitos a inserirem-se na ordem do discurso escolar.

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9 ABSTRACT

The thesis entitled "Education in the horizon probable: education of young people and adults as bio-political device" has as its object the power relations that make up the governmentality devices developed for the social management of adult populations within the school. Taking Adult Education as a bio-political discourse, the study aims to explain and discuss the lines of visibility and enunciabilidade why this educational modality is produced as bio-political phenomenon in the field of school education. To carry out this purpose, it analyzes the declared strategies that unfold on the discursive territories this educational modality, setting up mechanisms that make it act on individuals and populations. From conceptualizations of biopolitics and governmentality in Foucault, the study focuses on the power of the procedures in the creation of the population illiterate targeting technologies embarrassment and abandonment. With the contribution of Giorgio Agamben discussions of subjectivity and desubjectivation, bare life and state of emergency is developed analysis of the subject positions present in the statements of metanoia and shame, and embarrassment operators, and precarious as operator of abandonment. The methodological positioning of the thesis carried out a synthesis of the genealogical approaches of Foucault's studies of the speech and its biopolitical analysis, prioritizing the understanding of processes on the current power relations in the analyzed devices. Are focused statements arising from the parliamentary speech, audiovisual and literacy campaigns, in addition to the reflective field of pedagogy, which participate in the production of different modes of veridição the subject's relationship with the social project of schooling. Also they focused on the statements present in transcripts for which discusses the different time frames and displacements produced by the population illiterate by the school complex space and ambiguous schooling process. It is considered as a result of analyzing the performance of denaturalization of the categories for which it is thought the Adult Education generated by the debate over the power lines that say what is visible and what can be said in the regime of truth of Adult Education educated in their version.

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10 RESUMÉ

La thèse intitulée «L'éducation à l'horizon probable: l'éducation des jeunes et des adultes en tant que dispositif de bio-politique» a pour objet les relations de pouvoir qui constituent les dispositifs de gouvernementalité développés pour la gestion sociale des populations adultes dans l'école. Prenant l'éducation des adultes comme un discours de bio-politique, l'étude vise à expliquer et discuter les lignes de visibilité et enunciabilidade pourquoi cette modalité éducative est produit comme phénomène de bio-politique dans le domaine de l'enseignement scolaire. Pour réaliser ce but, il analyse les stratégies déclarées qui se déroulent sur les territoires discursifs cette modalité d'enseignement, la mise en place des mécanismes qui rendent agir sur les individus et les populations. De conceptualisations de la biopolitique et la gouvernementalité à Foucault, l'étude met l'accent sur la puissance des procédures dans la création de la technologies de ciblage des populations analphabètes embarras et l'abandon. Avec la contribution de discussions Giorgio Agamben de la subjectivité et de désubjectivation, la vie nue et l'état d'urgence est mis au point l'analyse des positions de sujet présents dans les états de la metanoia et la honte, et les opérateurs de l'embarras, et précaire en tant qu'opérateur de l'abandon. Le positionnement méthodologique du travail de thèse réalisé une synthèse des approches généalogiques des études de Foucault du discours et son analyse biopolitique, la priorité à la compréhension des processus sur les relations de pouvoir actuelles dans les dispositifs analysés. Sont des déclarations ciblées découlant des campagnes parole, de l'audiovisuel et de l'alphabétisation parlementaires, en plus du champ de réflexion de la pédagogie, qui participent à la production des différents modes de veridição la relation du sujet avec le projet social de la scolarité. En outre, ils ont porté sur les comptes présentent dans les transcriptions pour lequel aborde les différentes échelles de temps et les déplacements produits par la population analphabète par l'espace complexe scolaire et processus de scolarisation ambiguë. Il est considéré comme un résultat de l'analyse de la performance de dénaturalisation des catégories pour lesquelles il est considéré l'éducation des adultes générée par le débat sur les lignes électriques qui disent ce qui est visible et ce qui peut être dit dans le régime de vérité de l'éducation des adultes instruits dans leur version.

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11 SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

PARTE I: HORIZONTES TEÓRICOS

Capítulo 1: A população como objeto da razão: a arte de conduzir as multidões... 33

1.1. Trajeto teórico-metodológico ... 35

1.2. A genealogia como procedimento epistêmico ... 39

1.3. O biopoder e regulação das populações ... 42

1.4. O jogo estratégico das forças: a noção de dispositivo... 47

1.5. Uma análise biopolítica: seus desdobramentos ... 58

1.6. Exceção e vida nua como alegorias do analfabetismo... 63

Capítulo 2: A escolarização das populações adultas: um problema biopolítico 72 2.1. A emergência da população de adultos analfabetos e baixo-escolarizados... 78

2.2. Neoliberalismo: a razão política na administração do precário... 91

2.3. A Educação de Adultos nos diversos arranjos da estatalidade... 94

2.4. Poder dizer sobre Educação de Adultos: elementos do debate epistemológico... 103

PARTE II: TECNOLOGIAS BIOPOLÍTICAS DA ESCOLARIZAÇÃO DE ADULTOS Introdução: secularização e normalização da escrita... 123

Capítulo 3: A vergonha e a conversão: a enunciação do constrangimento ... 132

3.1. A vergonha nacional nos discursos parlamentares sobre alfabetização de adultos... 138

3.2. O circuito da conversão: uma linha de força na Tecnologia do Constrangimento . ... 148

3.2.1. O discurso da metanoia em Álvaro Vieira Pinto e Paulo Freire ... 150

3.2.2. Vida Maria: “perder tempo desenhando nome”... 162

Capítulo 4: O precário como estratégia: a visibilidade do Abandono... 172

4.1. A campanha como dispositivo biopolítico ... 180

4.2. Urgência, parcimônia e improviso: regularidades discursivas nas campanhas de alfabetização brasileiras 1947-2003... 186

Capítulo 5: Tempos e Deslocamentos Divergentes no Espaço Biopolítico da Escolarização... 196

5.1. Racionalidade estatística e biopoder na gestão da população não alfabetizada... 200

5.2. A documentação “Histórico Escolar” e as operações sobre o arquivo ... 205

5.3. Deslocamentos divergentes problematizando os parâmetros da escolarização... 219

5.3.1 A EJA de longa permanência: os ciclos dos adultos longevos... 220

5.3.2. Os excessos de ausência e os regimes de persistências de estudantes adultos... 228

5.3.3. 9,6 anos de estudos e nenhum diploma: o ciclo de escolarização das pessoas negras... 231

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 237

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 243 ANEXOS

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12 INTRODUÇÃO

O título desta tese faz referência a um texto de Haroldo de Campos de 1969, intitulado “A arte no horizonte do provável”, no qual o poeta e teórico da literatura discorre sobre a incorporação do acaso na produção estética, com especial ênfase na música e na poesia. Poeta concretista, integrante de um movimento que propulsou a poesia brasileira ao status de vanguarda de um tempo que começava a se autodenominar como “contemporâneo”, Campos informa que a incorporação do acaso na arte dialoga com o reconhecimento do princípio da incerteza tal como discutido na física quântica, mas busca também questionar os automatismos ― então em franco desenvolvimento ― que pareciam anunciar a supressão da liberdade e do acaso por uma sociedade do controle e da previsão.

Controle e previsão são dois dos principais termos relacionados à dimensão política do contemporâneo, na qual, para nosso assombro, torna-se mais forte o jogo de garantir que o movimento das populações, cada deslocamento dos sujeitos, seja devidamente registrado, fotografado, anotado. A produção contínua desse espaço social controlado produz documentações, técnicas e tecnologias cada vez mais diminutas, rarefeitas, dispersas, mas articuladas por linhas de força que condicionam práticas e lugares sociais, destinos, narrativas sobre o sujeito e caminhos que ele pode ou deve percorrer. Cria-se o espaço biopolítico, em que as regras do que pode ser dito e do que é visível são administradas, assimiladas às médias, e assim colocadas sob a providência da lei e da ordem através de seus dispositivos.

Para Haroldo de Campos, além de serem procedimentos incorporados pela arte como “contra tecnologias”, o acaso e a incerteza são assumidos em seu viés de possibilidades interpretativas, colocados, assim, no lugar da hermenêutica possível do presente, que se resguarda do passado como herança e o desmonta numa nova tradição da qual resta apenas uma proveniência. A genealogia dos dispositivos que se movem nessa proveniência assimila, desse modo, aquilo que o russo Boucourechliev (apud CAMPOS, 1977, p.20), discutindo a estética musical de Pierre Boulez, descreve como “duas redes de trajetórias que devem ser executadas alternativamente (são assinaladas com tintas de cores diferentes) propõem ao intérprete conjuntos de estruturas dentre os

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13 quais ele escolherá seu percurso guiado pela própria notação. O antes e o depois perdem aí seu sentido tradicional; a leitura não é linear, mas diagonal, vertical, em giro...”.

Com esse espírito interpretativo, necessário ao desdobramento de uma compreensão aprofundada sobre os mecanismos pelos quais dispositivos educacionais colaboram com o governo das populações, nosso trabalho mobiliza as teorizações de Michel Foucault e Giorgio Agamben sobre poder e sujeito ― relação instável, contingente, incerta e perigosa ― para dar conta das questões que a convivência com o campo teórico-prático da Educação de Adultos fez vir à tona.

O caminho tomado priorizou o estudo de algumas ancoragens que consideramos significativas na constituição do fenômeno da Educação de Adultos como prática biopolítica. Elencamos os pontos onde essa modalidade educacional sustenta um discurso da salvação do sujeito, no qual produz um lugar de vergonha a partir do qual ele deve se mover em direção à salvação pela alfabetização. Esses pontos de ancoragem constituem o regime do enunciável, da ordem das coisas ditas, denominado neste estudo por Tecnologia do Constrangimento. Além daqueles, elencamos os pontos em que o espaço institucional da escola funciona enquanto política que torna essa população visível e administrável. Sujeitos e objetos nessa dimensão recebem a marca do precário, sendo, por conseguinte, produzidos pelo regime de visibilidade que atua na população quando interpelada e colocada sob a lei e a ordem do aparato escolar. Essas ancoragens, da ordem das coisas visíveis, constituem a Tecnologia do Abandono.

É importante salientar que a face biopolítica da Educação de Adultos é uma das tantas possibilidades de sua realização. Esta pesquisa não se dedicou a análises de práticas singulares, mas de arranjos de práticas, que respondem por algumas regularidades de tal modo que constituem uma racionalidade posta em funcionamento quando acionamos a discursividade dessa forma da escolarização. A Educação de Adultos, portanto, não é apenas biopolítica, mas é biopolítica também. Compreender de que modo opera essa biopolítica é o objetivo central deste trabalho.

Há diversas racionalidades presentes na Educação de Adultos, desde aquelas que dizem respeito às suas formas não estatais, nas quais a prática dos movimentos

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14 emancipatórios encontra, no domínio do conhecimento poderoso1 e prestigiado da escrita, uma das ferramentas de sua luta, até aquelas que reconhecem no Estado um ente executor fundamental na garantia da ideia de universalidade a ser produzida pelas políticas públicas de educação. Há, também, as formas locais da razão que se apresentam ali onde o saber do método se dirige ao sujeito propondo sua instrução, onde professores se dirigem a alunos, onde escolas como instituições recebem, nos seus modos típicos, a população não alfabetizada. Nosso estudo se dirige à racionalidade biopolítica, aquele uso específico da razão que confere inteligibilidade à questão da escolarização de pessoas adultas no horizonte da modernidade, no recorte específico em que o Estado governamentalizado interpela as populações demarcadas pela “falta universal” da escrita.

Genealogia empírica da pesquisa

O tema do nosso estudo nasce de uma série de observações, vivências e leituras em torno à questão dos modelos de atendimento à demanda social por escola para adultos e “combate” ao analfabetismo. No Brasil, já se fala sobre campanhas de alfabetização de adultos há pelo menos 70 anos. A nossa pergunta inicial de pesquisa, ainda ingênua, porque composta no lugar da pesquisa informal, na dinâmica da operação de um sistema de alfabetização numa rede pública de educação, questionava: por que há tantos limites para que se realize a ação alfabetizatória?

A observação contínua dos mecanismos de operação dos programas de alfabetização e sistemas formais de ensino deixava a cada dia mais e mais perguntas no ar, tais como: por que o perfil de professor leigo não foi superado ainda? Por que os valores investidos continuam sendo tão pequenos? Por que o tempo de aprendizagem continua sendo o tempo do sistema e não o do sujeito? Por que há tantas brechas para a reinserção dos mesmos sujeitos nos mesmos programas? Por que a lógica quantitativa continua superando qualquer outro argumento na operação de uma ação educacional? Por que não conseguimos modelos diferenciados para atender mulheres com filhos, trabalhadores noturnos, moradores de rua? Por que não conseguimos que o

1 Conhecimento poderoso refere-se aos saberes que representam condição de acesso a um acervo de

saberes/poderes estratégicos para a obtenção de direitos, fortalecimento de lutas e empoderamento diante das opressões.

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15 financiamento público da educação cubra as matrículas dos estudantes da EJA, oriundos dos programas de alfabetização, no mesmo ano calendário2? Por que não podemos

matricular os estudantes diretamente na rede pública, no ensino fundamental, sem a passagem pelo programa de alfabetização? Por que precisamos submeter pessoas jovens e adultas a 200 dias letivos de aula, dezenas de horas anuais de frequência escolar, avaliações balizadas por critérios de frequência e rendimento? Por que as turmas de EJA precisam ter número mínimo de alunos para funcionar, e por que elas são fechadas quando possuem menos de 10 alunos com frequência regular? Por que o cálculo de frequência individual dos estudantes de turmas de EJA é feito com base numa lógica linear e formalista, desprezando a sabedoria das professoras, que contabilizam a presença e não a ausência, considerando já uma vitória a pessoa adulta conseguir chegar até a escola, num contexto essencialmente desfavorável a essa prática?

O argumento de que uma racionalidade orçamentária, liberal, estatal, presidiria as decisões no campo das políticas públicas não parecia suficiente, uma vez que ela também era e permanece sendo parte de alguma outra coisa, da qual é semelhante e com a qual é articulada. O fato de estarmos diante de políticas neoliberais parecia ser um horizonte de explicações, mas esse horizonte continuava não sendo suficiente, e precisávamos compreender de forma mais refinada essa influência.

Diante desse cenário, não era um fato surpreendente que os principais problemas das turmas de programas de alfabetização fossem justamente a dificuldade crescente em conseguir formar/mobilizar grupos de 15 pessoas não alfabetizadas para legitimar (ou ativar, na linguagem do sistema) uma turma, bem como a dificuldade em manter estas turmas em funcionamento durante o tempo de execução do programa. Ao lado dessa questão, o principal problema das turmas regulares de EJA, as turmas do ensino fundamental, era também relativo às matrículas, bem como à evasão e ao abandono escolar, assuntos já clássicos do campo da Educação de Adultos.

Os principais argumentos em circulação na explicação desses fenômenos remetem ao fato, aparentemente inegável, de que ocorre anualmente uma diminuição do público de EJA, pois a sociedade está sendo escolarizada mais cedo. Mas esse é um argumento sofismático. Ele não se sustenta diante de alguns contornos do próprio real:

2 No ano de 2012, foi criada a Resolução FNDE nº 48, de 02 de outubro de 2012, garantindo o

financiamento per capta dos estudantes de EJA oriundos do Programa Brasil Alfabetizado, para sua inserção no mesmo ano calendário em escolas públicas dos anos iniciais do ensino fundamental.

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16 pensando a EJA para além da alfabetização, como sustentar o argumento de uma sociedade mais alfabetizada diante de frequentes súmulas estatísticas que dão conta, pelo menos a cada dois anos, de uma diminuição dos índices de analfabetismo na população total, por um lado, e de uma ampliação do analfabetismo funcional, de outro, bem como da regularidade da taxa absoluta de analfabetos no total da população3?

Aumentando as evidências sobre as incertezas desse cenário, nosso olhar para o cotidiano das práticas de execução dos programas de alfabetização percebia constantemente os vazamentos do sistema: as dezenas de pessoas que passavam várias vezes pelos programas e pelas turmas de EJA, reincidindo numa relação com a escola e com o programa; a dificuldade da ação alfabetizatória se concretizar diante de tantos pequenos entraves que se acumulavam (materiais que nunca chegam aos estudantes, merenda inadequada em quantidade e qualidade, um tempo de atendimento diário precarizado pelas condições materiais dos alfabetizadores e alfabetizandos); a permanência longa de sujeitos nas ações, tanto na função de alfabetizadores, quanto na função de alfabetizandos (em contraponto com a lógica da urgência instalada nos discursos sobre alfabetização); pessoas que se inscrevem em turmas de alfabetização apenas para “ajudar” o alfabetizador a obter uma ajuda de custo, dentre outros infinitesimais elementos invisíveis que permeiam essas ações. A percepção de que o que menos ocorria nessas ações era o acesso à língua escrita, seu pretexto maior de existência, levou-me a sentir que participava de uma luta sisífica.

Ao mesmo tempo em que os processos de alfabetização e escolarização se apresentavam com tais instabilidades, elementos da cultural social em torno à pessoa não alfabetizada e ao analfabetismo pareciam articular um discurso da separação, da teratologia do analfabeto, da segregação econômica, produzindo um aparato subalternizante aparentemente invisível, mas, simultaneamente articulado a uma normatividade e, portanto, a uma forma específica de visibilidade da pessoa não alfabetizada, em línguas escritas de matriz colonial.

O estudo do pensamento foucaultiano trouxe às perguntas iniciais um grau de abstração sobre o tipo de relação que se estabelece entre tantos diferentes objetos, distribuídos no tempo e no espaço sem uma correlação de causalidade evidente, mas

3 No período em que se desenvolvia esta pesquisa, o IBGE, através do PNAD, identificou que o índice de

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17 articulados por um movimento similar no que tange à natureza das relações de poder ali ser configuradas4.

Aprendemos que Foucault (1988, p. 103) entende o poder como uma relação, como uma prática estratégica, articulatória e produtiva. Desde a problematização biopolítica, o poder é aquilo que, agindo sobre a vida, eleva ao máximo a eficácia das tecnologias mínimas no exercício de governo das populações (FOUCAULT, 1988, p.152). As perguntas impertinentes da fase ingênua inauguram a perspectiva genealógica da pesquisa no processo mesmo em que denotam um campo de lutas intrínsecas à efetivação da escola de adultos, mas lutas mantidas em silenciosa marcha no cotidiano das práticas.

A partir das observações empíricas que antecederam o presente estudo acadêmico do tema, e do aporte teórico do pensamento foucaultiano, auxiliado pelo pensamento agambeniano, observamos como o abandono e o constrangimento apareciam como linhas de força na caracterização da Educação de Adultos. Observávamos como aqueles problemas focalizados nas perguntas iniciais da pesquisa encontravam-se relacionados com os enunciados sobre precariedade, postergação, vergonha e salvação em livre circulação no território discursivo da Educação de Adultos.

Observamos como esses enunciados estão fortemente associados ao público da Educação de Jovens e Adultos, emergindo em diversos contextos discursivos que denotam os tipos de relações desses sujeitos com a instituição escolar, evidenciando a presença de um modo de racionalidade que governa tais relações. Esses enunciados surgem naturalizados em discursos, práticas e comportamentos e possuem uma

produtividade.

Ao nos debruçarmos mais atentamente sobre esse fato, percebemos que os diversos elementos do que hoje chamamos de dispositivo da campanha e dispositivo da

4 A fase experiencial desta pesquisa é o momento em que as perguntas iniciais nasceram, ainda antes

da entrada no curso de doutoramento, na qual atuei como gestora de EJA na Rede Municipal de Ensino do Recife, momento no qual a realidade nos desafiou com sua incongruência e despertou o interesse por uma compreensão mais refinada do que atualmente chamamos de “dispositivo da campanha”. Ao longo dos últimos quinze anos, minha convivência com programas de alfabetização e escolas de Educação de Adultos, em diversas funções, levou-me à mesma problemática enunciada acima. Passamos a considerar esse momento anterior como parte do estudo por compreender a pesquisa social dotada de uma dimensão auto-reflexiva, na perspectiva de uma conexão observador-no-campo (MELUCCI, 2005).

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escolarização concorrem para a criação de um espaço em que o direito a aprender e o

direito à educação escolar se apresentam mais como falta do que presença, mais negação do que vivência, mais interdição do que fluência. Observamos que a alfabetização e o analfabetismo não são problemas em si, mas eventos de certo modo essencializados em enunciados como “erradicação do analfabetismo” e “Brasil alfabetizado”, funcionando como índices de um modo específico da relação do sujeito adulto não alfabetizado com as práticas de educação.

A ferramenta conceitual que utilizamos para desenhar o diagrama dessa rede de relações é o dispositivo, oriundo da teorização biopolítica baseada em Foucault, com auxílio das leituras de Deleuze e Agamben. Nossa hipótese afirma que os dispositivos acionados para o governo das populações não alfabetizadas atuam através de duas tecnologias discursivas, configuradas em torno das noções de constrangimento e abandono, produzindo ininterruptamente um campo de veridição da relação do sujeito com a instituição escolar.

O dispositivo é um conjunto de elementos que se estende sobre a escolarização de EJA com a marca da precariedade tipificada na imagem símbolo da campanha. As campanhas foram construídas pela discursividade dos grupos que interpelam a governamentalidade como a expressão de uma precariedade a ser superada por “políticas públicas de Estado”, nas quais as escolas funcionam como a marca da plenitude do direito.

A escola, entretanto, e não apenas neste estudo, aparece como uma instituição ambígua, composta por muitas possibilidades, mas organizada de modo a dar sua contribuição ao processo mais geral de governo das populações. No âmbito dessa instituição, o governo da população analfabeta produz visibilidades severas, como a demarcação de um mesmo sujeito como retido, reprovado ou marcado pelo abandono num histórico escolar; produz, ainda, enunciações constrangedoras, aquelas usadas para convocar os adultos não alfabetizados através da vergonha e da salvação.

A condição produzida para as pessoas interpeladas por tal ordem discursiva é similar à que Agamben discute com o conceito de vida nua a partir da figura jurídica arcaica do homo sacer. Analisamos essa condição de modo a compreender como se produz a relação do sujeito adulto na escolarização com a sua inclusão num regime de

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19 exceção, que produz uma enunciação constrangedora e uma visibilidade abandonada à força da lei.

Com Agamben, tocamos em pontos dolorosos da experiência social da escolarização de adultos, como os processos de dessubjetivação que percorrem os enunciados da vergonha nas políticas de enunciação em jogo na referência à população. Por outro lado, ao lançarmos o olhar para as políticas de visibilidade da população analfabeta, o conceito de abandono emerge como operador das tecnologias do precário no espaço escolar.

A dessencialização de alguns termos desse debate, através da presente pesquisa, visa a contribuir com a reflexão sobre a produção da experiência escolar para adultos, superando o aparato biopolítico que produz o analfabeto e sua circunscrição em relações sociais subordinadas. Nossa pesquisa alia-se a estudos no campo da alfabetização de adultos que problematizam a validade da alfabetização universal, bem como os pressupostos liberais a respeito do valor intrínseco das alfabetizações em línguas escritas de matriz colonial (Cf. FACHEH, 2007; GRAFF, 1994; PARAJULI, 1990; FREIRE, 1978).

O analfabetismo, assim como a fome e a seca do nordeste, é um problema político e, como tal, aciona um conjunto de saberes, práticas e relações correspondentes ao fato de que a alfabetização e o analfabetismo de pessoas adultas não são problemas da ordem da biologia ou da cognição, mas da luta pelo poder. A dualidade entre analfabetismo e alfabetização interpela nossas reflexões sobre o poder quanto ao reforço de certas condições destinadas a determinados grupos populacionais, construídas sutilmente pelos aparatos jurídicos, institucionais, subjetivos e pedagógicos acionados no governo dessas populações. A análise que suporta esse tipo de questão é de natureza genealógica, ao investigar os focos de luta entre os saberes produzidos no interior do dispositivo, as formas do poder nas relações constituídas e os efeitos sobre subjetividades.

Um dos efeitos centrais do dispositivo investigado não seria tanto uma reprodução das condições de vida, não tanto uma subjugação, mas o convencimento a ocupar um lugar social, através do apelo ininterrupto à mudança de condição pelo sujeito. Esse processo ocorre, no entanto, através de práticas que não se consolidam, não se afirmam, e constantemente parecem deter a mudança de condição. As lutas políticas

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20 em torno à alfabetização, a luta pela escola pública, a luta de classes como “pano de fundo” da luta contra o analfabetismo, a disputa interna pela hegemonia entre as classes proprietárias, e, sobretudo, o conflito racial estruturante das relações sociais brasileiras, todos esses cenários corroboram a hipótese central de que os dispositivos de alfabetização e escolarização estão a serviço do controle de populações específicas.

O conjunto que temos diante dos olhos na atualidade fala de uma estabilidade, com mais de 90% de alfabetização no total da população adulta do país e uma estrutura ampla e disseminada de equipamentos escolares voltados ao atendimento educacional desse grupo. Mas a maioria das pessoas adultas passa pelo sistema e não atinge a conclusão da educação básica. O estremecimento vem de dentro. Ao analisar suas disfunções, encontramos sua produtividade. As palavras de Agamben (2010, p. 118) são, a respeito disso, provocativas:

É como se, a partir de um certo ponto, todo evento político decisivo tivesse sempre uma dupla face: os espaços, as liberdades e os direitos que os indivíduos adquirem no seu conflito com os poderes centrais simultaneamente preparam, a cada vez, uma tácita porém crescente inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e mais temível instância ao poder soberano do qual desejam libertar-se.

Trata-se de uma dispersão de enunciados que alimentam práticas e imaginários sociais sobre a modalidade e seus sujeitos, e reforçam subjetivações em torno a significados que subordinam. Dizermos que tal produtividade está relacionada à produção da subescolarização não significa colocá-la numa relação de causalidade linear, torná-la evidência de um insucesso, ou motor único de um conjunto de relações. Significa, conforme Foucault, aprofundar nossa leitura em torno das nossas próprias demandas e ainda reconhecer a força dessa discursividade na criação das relações que elas interpelam, compreender, através do jogo poderoso das palavras, a implicação dessa racionalidade com os efeitos produzidos pela escola e, ainda, poder questionar essa escola e o tipo de oferta de escolarização que estamos a fazer aos sujeitos da Educação de Adultos. Nesse sentido, o estudo se insere no conjunto de pesquisas que se dedica a

Fazer uma análise ascendente do poder, ou seja, partir de mecanismos infinitesimais, os quais têm sua própria história, seu próprio trajeto,

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21 sua própria técnica e tática, e depois ver como esses mecanismos de poder, que têm, pois, sua solidez e, de certo modo, sua tecnologia própria, foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados, inflectidos, transformados, deslocados, estendidos, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global. (FOUCAULT, 2005, p. 36).

A história da escolarização de adultos no Brasil atravessou todo o século XX para se configurar já no século XXI como um aparato aparentemente estável de garantia do direito à educação para pessoas jovens e adultas. Dos modos de afirmação da educação como instrução básica aos modos de afirmação da ideia de “qualidade social”, a forma de incidência das práticas de poder sobre as populações não alfabetizadas vem sendo caracterizada ou como “necessidade” ou “urgência” ou “reparação”. No Brasil, a ideia de qualificação é introduzida a partir do parecer nº 11/2000, de Carlos Roberto Jamil Cury, um dos raros documentos jurídicos que dedica atenção substantiva à escolarização de adultos, a partir do ano 2000.

Nesse parecer, o jurista discorre sobre três funções básicas para a escolarização de jovens e adultos ― sejam elas: a supletiva, de caráter compensatório; a reparadora, também de caráter compensatório; e a função equalizadora, que propõe a equalização das desigualdades ―, assim formulada: “Esta tarefa de propiciar a todos a atualização de conhecimentos por toda a vida é a função permanente da EJA que pode se chamar de qualificadora. Mais do que uma função, ela é o próprio sentido da EJA.” (BRASIL, 2000, p. 11, grifos no original). Compreendemos, neste estudo, que as diferentes funções apresentadas pelo Parecer nº 11/2000 extrapolam uma função descritiva sobre o funcionamento da escolarização de adultos, e correspondem a diferentes racionalidades que demarcam as práticas da EJA, sejam elas discursivas ou extradiscursivas.

A função qualificadora se coaduna com a concepção de Educação Permanente, propugnada pela UNESCO, a partir do relatório Aprender a Ser, redigido por Edgar Faure em 1972. Esse conceito, segundo Lima (2007), é fonte de diferentes posicionamentos consignados nas perspectivas da educação ao longo da vida e

aprendizagem ao longo da vida. Fazendo a crítica das posições reducionistas da

Educação de Adultos, que a subordinam a lógicas funcionais e adaptativas, Licínio Lima (2007, p.44) reflete que,

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22 As perspectivas mais pragmatistas e tecnocráticas de formação e aprendizagem ao longo da vida vem, de fato, subordinando a vida a uma longa sucessão de aprendizagens úteis e eficazes, instrumentalizando-a e amputando-a das suas dimensões menos mercadorizáveis, esquecendo, ou recusando, a substantividade da vida ao longo das aprendizagens. Esquecendo, ainda, que a principal força da educação reside, paradoxalmente, na sua aparente fragilidade, nos seus ritmos próprios e geralmente lentos, nos ensaios de tentativa-erro, na incerteza e na falta de resultados imediatos e espetaculares, nos seus continuados processos de diálogo e convivialidade, os quais partem do princípio de que ninguém educa, forma ou muda alguém rapidamente e à força, seja através de instrumentos legislativos, seja por meio de programas vocacionalistas, de reeducação, ressocialização ou reconversão. Simplesmente porque a educação exige sempre a participação ativa dos sujeitos, ou educandos, no processo educativo.

A ideia de uma Educação de Adultos é, portanto, segundo Lima, irredutível a algumas de suas formas e formulações do campo teórico e político em que se dá a luta pela sua definição. Tomada como algo mais que uma simples estratégia de treinamento para a inserção subordinada na esfera laboral ou mesmo de algumas porções da cultura, a Educação de Adultos seria responsável por uma tarefa emancipatória e civilizatória mais ampla. Na formulação de João Francisco de Souza (2007, p. 166), Educação de Adultos é fenômeno mais amplo, portanto, que alfabetização, escolarização e treinamento laboral:

Trata-se, portanto, de processos e experiências de intercomunicação e interação que possam garantir a recuperação, a valorização, a produção e a apropriação de valores e conhecimentos: recognição e reinvenção. Ressocialização. Essa constituir-se-á como um exercício emancipatório e intercultural do poder-conhecer-ter-emocionar/se (SER). Por meio do desenvolvimento da competência linguística, argumentativa, decisória, ética, estética, técnica, política. Essa perspectiva situa-nos no seio da cultura em construção na história.

Depreende-se, pelas formulações apresentadas, que o debate de resistência do campo da Educação de Adultos produz concepções mais amplas para essa prática, atentas à multidimensionalidade dos processos humanos e à contingência das relações. Logo, nesta tese, quando nos referimos à Educação de Adultos, estamos fazendo

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23 menção a esse processo mais amplo de formação humana defendido pelo pensamento de resistência às práticas reducionistas da Educação.

A distinção entre os processos de Educação de Adultos e escolarização de pessoas adultas é fundamental na leitura deste trabalho. A Educação escolar de Jovens e Adultos é o processo mais geral mediado pelo Estado, seja na forma da lei, seja na forma de práticas efetivas realizadas pelas escolas públicas ou privadas regidas pelo ordenamento legal em vigor. A Educação de Jovens e Adultos, portanto, representa uma singularização daquele processo mais amplo de formação humana, sendo uma das formas pela qual o Estado se envolve na rede de atendimento à educação de pessoas adultas, concernente, de modo específico, à Educação Básica.

O que chamamos de EJA – Educação de Jovens e Adultos ― nesta pesquisa, é o conjunto de práticas de escolarização de pessoas adultas, executadas através de uma modalidade da educação básica, em conformidade com o que define o Parecer CNE/CEB nº 11/2000 (embora uma noção abrangente de EJA estenda sua vigência até o Ensino Superior e inclua outras práticas além da escolarização) através da qual grupos sociais de pessoas acima de 15 anos são interpelados pelas ações de governo a se (re)inserirem na ordem do discurso escolar.

A EJA contempla tanto ações de alfabetização, através de programas, quanto ações de escolarização através de estabelecimentos regulares de ensino, podendo assumir a feição do que o Parecer supra citado chama de “cursos de Educação de Jovens e Adultos”. Para Cury, ainda no mesmo documento, a “EJA é uma categoria organizacional constante da estrutura da educação nacional, com finalidades e funções específicas.” (2000, p.5). A EJA é uma prática específica do campo mais abrangente da Educação de Pessoas Adultas, ou Educação de Adultos, da qual participam ainda as práticas não escolares de educação.

Enquanto problema da ordem das relações de poder, a escolarização de adultos no Brasil atravessa um diagrama difícil e complexo que articula diferentes questões. As relações que envolvem o sujeito não escolarizado e o projeto de escolarização da modernidade, em sua versão brasileira, estão marcadas pelo estabelecimento de uma modernização tardia, configurada pela situação colonial que rege o conjunto das relações sociais e é demarcada pela inserção subordinada do País nas relações econômicas mundiais. A condição colonial e pós-colonial é circunscrita a um projeto

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24 social racista, configurado pelo procedimento de separação entre sujeitos legítimos e não legítimos para ascender à esfera do social através da escola e da escrita.

O cenário que configura a legitimidade da educação na modernidade (POPKEWITZ, 2005) está relacionado à naturalização do valor intrínseco do conhecimento como prática emancipatória, herança iluminista que subsidia a instalação progressiva de técnicas de controle e regulação da distribuição social do saber, através de mecanismos dualistas que definem que tipo de conhecimento para qual tipo de sujeitos. É dessa forma que a escola, da maneira como foi formulada entre os séculos XVI e XIX no continente europeu (VARELA 1991; VEIGA-NETO, 2010; SOUZA, 2004), atende a classes sociais de modo diferenciado e diferenciador, e sempre atento ao papel do acesso controlado ao saber como ferramenta de regulação dos movimentos das diferentes populações.

O saber regente dessa formação histórica é a escrita, valorizada na luta entre as classes sociais em disputa no processo de constituição da modernidade, bem como entre as forças religiosas que lhe atribuem diferentes papéis no processo de formação e controle das almas. A hipertrofia da valorização do conhecimento escrito acompanha o processo de institucionalização da Educação Escolar, sendo o principal elemento legitimador desta instituição e servindo de parâmetro para o processo de separação acionado pelo racismo de Estado.

É nesse lugar em que os mecanismos de separação, seleção e diferenciação social se inscrevem que a Educação de Adultos constitui sua existência enquanto prática biopolítica. Referindo-se a um dos modos de compreender o poder como “condução de condutas”, a biopolítica é uma prática que se dirige à condução da vida de uma multidão, construída como uma população a ser conduzida através de uma série de mecanismos que visam a mantê-la sob os “cuidados” adequados para que se movimentem no ambiente social de forma conveniente.

Os vários mecanismos têm funções e incidências diversas e a educação escolar se configura como um mecanismo que denominamos, no interior dessa teorização, como dispositivo da escolarização. O dispositivo da escolarização para a população adulta foi formulado pela produção discursiva do sujeito não alfabetizado, pela sua localização numa subalternidade política, produtiva e social amplamente reafirmada, e pelo movimento temporal caracterizado pelo “adiamento” reincidente de seu acesso

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25 pleno às práticas escolarizadas no horizonte em que elas são compreendidas como direito.

A produção do sujeito não alfabetizado é um processo que se observa na primeira metade do século XX, até aproximadamente os anos 1940 (CARLOS, 2008) através do surgimento de uma discursividade que se dedica a localizar, afirmar e produzir o analfabetismo como chaga social e vergonha nacional.

A subalternidade social do analfabeto é alvo de uma difusão de discursos que vão do religioso ao legislativo, a exemplo das narrativas sobre o voto do analfabeto, que se faz presente também nas afirmações sobre a vida triste e pobre das pessoas sem acesso à escrita, discursividade reforçada até os dias de hoje, inclusive com a inscrição desses enunciados nos registros mais típicos de nosso tempo, tal como as peças audiovisuais, a exemplo da animação “Vida Maria”, analisada no Capítulo 3 desta tese.

A mesma racionalidade se expressa nas peças publicitárias que apresentam com notas tristes a vida dos escolares da Educação de Jovens e Adultos e o quanto suas vidas se transformaram com a escola, peças que, em geral, se concluem com um sorriso alegre em câmera fechada no rosto do sujeito, ou imagens de suas mãos calejadas pelo trabalho escrevendo o nome num caderno. O processo de restrição reincidente tem como exemplo mais expressivo a série temporal que começa com as primeiras discussões sobre o acesso de homens negros adultos a cursos noturnos de primeiras letras, ainda no império, em classes especiais, e encontra sua atualidade na questão do financiamento progressivo da modalidade EJA pelo Fundo Nacional de Financiamento da Educação Básica, no qual essa modalidade de educação escolar só teve pleno repasse de recursos a partir do ano de 2011.

O projeto de escolarização da sociedade brasileira escolheu suas prioridades e definiu os sujeitos que deveriam viver a experiência da escolarização. A retórica da alfabetização cumpriu ao longo de todo o século XX uma função sustentadora do mecanismo de controle dessa população, primeiro esvaziando o mundo simbólico das populações a que se dirigia, centralmente operado pelo processo em que esse mundo simbólico não foi assimilado pela escola. Segundo, porque acionou uma série de dispositivos não discursivos que atuaram sobre a população. Esses dispositivos discursivos e não discursivos sustentados pela retórica da alfabetização são chamados neste estudo de “dispositivo da campanha”, que é um dispositivo especializado no

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26 interior do dispositivo mais amplo da escolarização. Não é coincidência que a campanha seja uma forma de organização militar e que os dispositivos de segurança dos estados tenham utilizado tal estratégia para enfrentar os perigos a que estavam expostas as sociedades modernas recém-constituídas (FOUCAULT, 2008a).

O analfabetismo é um problema da segurança do Estado brasileiro e o analfabeto é constituído como alguém que representa risco. Por isso, não podia votar e, por isso, o enfrentamento a uma questão da ordem da cultura foi alinhavada pelo uso de um dispositivo de ampla utilização no campo das problemáticas biológicas. A campanha é mais do que uma forma de organização de salas de aula baratas e rápidas para superação de uma problemática social. É o signo de uma racionalidade que se naturaliza na sociedade brasileira e carrega, entre outros elementos, o fato de que uma parte da população nunca esteve integrada ao projeto de nação defendido pelas classes governantes.

Retornamos, pois, ao problema do racismo estrutural da sociedade brasileira, e retomamos a informação de que levamos mais de 100 anos apenas para afirmar de forma constitucional o direito à educação “independente da idade” de seu demandatário. Dessa forma, além da precariedade explicitada no modo de funcionamento da campanha, ela também representou ― vem representando ainda ― o fato de que nunca escolhemos, como nação, priorizar o acesso aos saberes legitimados e poderosos da cultura escrita escolarizada pelos sujeitos adultos, pobres, em sua maioria negros e nordestinos ― e, essencialmente a nós, mulheres negras.

A produtividade biopolítica da escolarização de adultos participa da produção do lugar subalterno atribuído na sociedade às pessoas não alfabetizadas ou não escolarizadas. As emancipações presumidas pelos discursos iluministas e seus desdobramentos na modernidade, inclusive na pós-modernidade, não se confirmam, e a escolarização cumpre seu papel político no governo das populações interpeladas pela sua retórica.

Nessa contextualidade, o papel de uma teorização biopolítica é colocar no debate sobre escolarização a relação entre educação e poder a partir de uma teorização pós-metafísica sobre esse fenômeno, o que gera alguns deslocamentos no âmbito da teoria educacional. A colocação em xeque das noções de sujeito, razão e verdade supõe a

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27 desnaturalização daquilo que constituiu a ideia moderna de escola em suas principais bases.

A própria ideia de escola como um bem maior parece poder ser problematizada, assim como as suas realizações específicas, no âmbito de situações concretas que podem ser analisadas e “desmontadas”. No caso da reflexão sobre o papel da escola para adultos numa sociedade de classes, de todo o leque de explicações teóricas, o argumento mais largamente utilizado tem sido o da reprodução. A análise biopolítica não se ocupa da reprodução, mas da produção contínua não da mesma sociedade entendida como um ente, mas da adequação permanente das relações de poder através das novas estratégias exigidas para sua manutenção.

O poder, entendido como uma relação, um campo de forças que se organiza de maneira estratégica e atua sobre a conduta dos indivíduos, tem menos a tarefa de garantir que as pessoas estejam no mesmo lugar de classe e mais a função de assegurar que estejam submetidas a uma relação de controle eficiente e econômica, de modo que o controle seja produzido através das diferentes técnicas disponíveis, sejam elas disciplinares, biopolíticas ou éticas.

Ao provocar novos movimentos na população interpelada, o biopoder apresenta-se através de muitas facetas, algumas sutis, como um projeto de atuação sobre a vida. Lembrando que a vida pressupõe a morte, em certas circunstâncias é do caráter do biopoder propiciar o desaparecimento ou “entregar à própria sorte” partes “não necessárias” do Estado Nação. No limiar em que o biopoder se encontra com esta possibilidade, o que está posto é a estratégia do genocídio.

Por outro lado, antes de atingir esse limiar, o biopoder tem a capacidade de gerar uma série de posições desfavoráveis, constrangedoras, de hipertrofia de uma visibilidade pejorativa, tal como no caso dos analfabetos. A trajetória social do analfabeto, sua construção como sujeito “anormal”, sua teratologia são focalizados neste estudo através do conceito agambeniano de vida nua. A vida nua, antes de ser uma excepcionalidade, é uma regularidade quando acionada para determinados grupos sociais, inseridos numa rede difícil de ser desatada.

A condição em que o sujeito convive numa sociedade que torna a escrita uma condição vital de existência, que tem assegurada a legitimidade de seu acesso a esse conhecimento, mas não dispõe do aparato concreto que lhe garanta atingir esse objetivo

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28 de forma pertinente ― adiando-o através de vários mecanismos, inclusive fechando as salas de aula disponíveis ―, pode ser concebida como uma experiência de vida nua, ou de homo sacer, se preferirmos utilizar a terminologia do Direito Romano indicada por Agamben.

Homo sacer não é uma etiqueta teórica para descrição de uma condição objetiva,

é uma alegoria da posição estratégica assumida pelo sujeito no dispositivo da escolarização em sua interpelação às pessoas adultas pobres, negras, nordestinas e do gênero feminino, e recentemente às idosas, sobre sua participação no projeto de escolarização da sociedade brasileira. Tal alegoria nos permite a visualização de todo o diagrama que descreve o modo peculiar com que o biopoder atua sobre essas vidas em específico.

O acionamento destas condições para a vida de um sujeito exposto ao biopoder produz imagens nas multidões atingidas pela escolarização que implicam a produção não apenas discursiva de posições subalternas nas relações sociais. A emancipação prometida é regulada por um acesso tendente a zero ao Ensino Superior pelos estudantes da EJA, pela “reincidência” na condição do analfabetismo, pela dificuldade de obter a certificação nas etapas da educação básica.

Em virtude de uma inserção precária nos códigos regentes da vida sociopolítica, o efeito central é a subalternidade como norma, sugerindo que a população adulta analfabeta interpelada pela escola não altera muito de sua condição a partir dessa inserção. Porém, o poder se interessa por essa população, produz um lugar e uma documentação sobre ela, demarca sua posição, de modo que o efeito central da escolarização não recai em benefícios para o sujeito, mas é amplamente eficaz na estratégia de poder, que assim obtém informações contínuas sobre essa multidão, torna-a visível e torna-a torna-administrtorna-a torna-atrtorna-avés dtorna-as forçtorna-as trtorna-açtorna-adtorna-as nos enuncitorna-ados, como o constrangimento e o abandono. A esse efeito, Souza (2004, p.26) chamou de “inclusão perversa”, do mesmo modo que Agamben fala de uma “exceção” que é produzida não pela dissolução dos contratos anteriores ao vínculo biopolítico, como na relação soberana, mas ― e, sobretudo ― pela estratégia do abandono do sujeito, de sua zoé e de sua bios, aos poderes que, ao incluir, excluem.

A EJA se torna problema político desde sua emergência ainda sob a discursividade do analfabetismo: foi a questão do voto que inaugurou a preocupação

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29 com a existência de amplos contingentes populacionais analfabetos. O contexto eleitoral influenciou de maneira fundamental o processo histórico que faz as “condições de possibilidade” para a emergência das práticas alfabetizatórias e de escolarização de adultos com caráter massivo. A educação dos adultos como problema político passou por várias enunciações: erradicar o analfabetismo, proibir ou liberar o voto do analfabeto, alfabetizar para o desenvolvimento, direito à educação e, mais recentemente, política de Estado.

“EJA como política de Estado” significa uma articulação estratégica em torno da qual os movimentos e grupos interessados em disputar o modelo de atendimento de Educação de Adultos põem em jogo a garantia do papel do Estado na consecução das políticas de atendimento para esse setor. Esse é atualmente o discurso predominante dos movimentos sociais da Educação de Jovens e Adultos, representados pelo Fórum Nacional de Educação de Jovens e Adultos, organismo da sociedade civil que, em íntima relação com os governos instituídos no poder executivo, vem construindo o debate público da EJA, entendida nesse contexto prioritariamente enquanto educação básica.

Neste estudo, defendemos que a EJA sempre foi assunto de governos, tendo sido criada como problema educacional da ordem das relações de poder na sociedade brasileira.

A Educação de Adultos, especificamente da educação básica de pessoas adultas, configurada nas etapas do Ensino Fundamental e Médio, sempre foi uma política em que o poder investiu atenção, esforços, recursos. Obviamente que o fez conforme suas próprias demandas internas: necessidade de ampliação do número de eleitores, necessidade de obtenção de índices em indicadores internacionais de desenvolvimento, formação de mão de obra. E o fez nem sempre com a mesma intensidade, com a mesma frequência, nem com a eficiência e a eficácia investidas na construção de outras tecnologias, como a base energética brasileira, por exemplo, ou das tecnologias aeronáuticas ou de exploração de petróleo. Numa perspectiva biopolítica, a EJA sempre foi uma política de Estado.

A análise biopolítica nos permite compreender a produtividade da EJA não como um problema de reprodução social, ou de exclusão social, mas como um problema da ordem da regulação, em que está em jogo a permanência no sistema

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30 escolar, não como índice de uma continuidade em relação ao sistema social, nem como a colocação do sujeito numa exterioridade do social, mas a regulação de seus movimentos no interior desse sistema, como uma manifestação do controle sobre uma população.

A escola obrigatória nasce da solução a dois problemas de governo conjugados. De um lado, as iniciativas que coibiam de forma permanente e estável a participação dos clérigos na direção cultural das populações e, de outro, a contenção do movimento de trabalhadores, com sua crescente organização e os perigos que ela envolvia, na perspectiva do poder das classes proprietárias (VARELA, 1991, p.179). Uma administração política e outra moral estavam, pois, no cerne da invenção da escola da modernidade. É realmente digno de nota que a educação oferecida a pessoas adultas no início do século XXI seja realizada nos mesmos moldes do modelo que nasce com tais tarefas. É essa matriz que sugere que a Educação de Jovens e Adultos no Brasil não seja apenas uma modalidade de inclusão educacional ou de reparação de direitos, mas, sobretudo, uma manifestação do biopoder.

Visando a elaborar argumentos para dar conta desse debate, esta tese está organizada em cinco capítulos, através dos quais apresentamos as discussões que suportam a problemática apresentada. O texto está dividido em duas partes, sendo a Parte I composta por dois capítulos: no primeiro, são discutidos os conceitos que constituem nossa grade analítica e explicitados os caminhos metodológicos das reflexões expostas ao longo do trabalho; no segundo, apresentamos os debates teóricos que constituem nosso objeto no campo reflexivo da educação e procuramos evidenciar pensamentos com os quais construímos “amizades” no estudo da questão da alfabetização.

A segunda parte do trabalho é composta por dois capítulos, nos quais cruzamos nossa grade analítica com a análise das séries de enunciados que evidenciam o diagrama dos dispositivos biopolíticos estudados. O primeiro capítulo dedica-se à tecnologia do constrangimento, em que são analisadas a vergonha e a conversão como enunciados genealógicos da escolarização de adultos; o segundo capítulo é dedicado à tecnologia do abandono, no qual o próprio enunciado do abandono à lei e da oferta do precário são analisados. Esses dois capítulos são precedidos por uma breve introdução.

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