UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
SOCIAL
AS "PERIGOSAS" RELAÇÕES ENTRE MOVIMENTO
POPULAR/COMUNITÁRIO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
MUNICIPAL NA ILHA DE SANTA CATARINA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
SOCIAL
AS "PERIGOSAS" RELAÇÕES ENTRE MOVIMENTO
POPULAR/COMUNITÁRIO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
MUNICIPAL NA ILHA DE SANTA CATARINA
Dissertação submetida à Universidade Federal de Santa
Catarina para obtenção do erau de Mestre em
Antropologia Social
Tereza Mara Franzoni
As "perigosas" relações entre movimento popular/comunitário e administração pública municipal n a Ilha de Santa Cata r i n a
TEREZA MARA FRANZONI
Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do ti tulo de MESTRE e aprovada em sua forma final pela seguinte ' banca examinadora:
Prof. Doutor Rafael Jose de Meneses Bastos
j/À
{.a Or^
. Mir:
ProJr3 . Doutoráf U s e Scherer W a rren
Ao Rafael, in terlocu tor
p riv ileg ia d o no p r o c e s s o de
d iscu ssã o d este trabalh o - que fez dele, sem d uvida, um e s fo r ç o
co le tiv o - pela p resen ça constante e carinhosa insistên cia;
A
Míriam,
pela
cum plicidade
e
crítica
aô
minhas
reflexões duran te tod o o mestrado.
A Lia e ao R ogério, que tão bem conhecem os "ritu a is"
acadêm icos, pelo in can sável empréstimo do com putador, tão valioso
n estes "tem pos m od ern os".
A Glória, pela grato p resen te de con clu sã o do trabalho.
A Nana e a Bina, pelas várias noites que perderam
d igita n do os prim eiros e con fu sos m anuscritos desta p esqu isa.
Aos am igos, por eles mesmos. E, em esp ecial aos amigos
d o CECA/SC. pela com preensão, cum plicidade e im paciência.
RESUMO
Este
trabalh o
trata
das
relações
en tre
movim ento
popular/com u n itário e adm inistração pública municipal, nos anos
de 1989 e 1990, na Ilha de Santa Catarina. Tem como referên cia
comparativa a década de 80, p eríod o em que este m ovimento se
constituiu
num
n ov o in terlocu tor
da
adm inistração,
em
suas
relações com a "p op u la çã o". P rocu ra m ostrar como as relações
informais
existentes
en tre
os
dois
"a tores"
estu dados
são
determinantes da p ró p ria constituição dos movimentos e de novas
possibilidades de n egocia çã o com a adm inistração.
A d iscu ssã o sob re as relações informais é feita à p a rtir
da reflexão sob re a tensão en tre a "ética b u rocrá tica " e a "ética
h ierárqu ica". Neste
sen tido d esen volv e a d iscu ssã o s o b re os
diferentes sig n ifica d os que assume a categoria nativa
autonomia
e
a forma como são tratadas as relações entre adm inistração e
movimento, on de a passagem de um "p ólo" (adm inistração) a o u tro
(movimento), é con sid era da significativam ente "p erig osa ".
A p esqu isa estabelece um diálogo com os estu dos sob re
os "novos movimentos sociais" p rocu ra n d o m ostrar a con trib u içã o
do trabalho de campo, d esen volv id o pela an tropologia, para estes
estudos. Toda a d isserta çã o é permeada pelas reflexões da autora
sobre
suas
p róp ria s
am biguidades
d ecorren tes
de
seu
envolvim ento com os g ru p o s que p esqu isou e da bu sca de manter
em seu texto a "p olifon ia " encontrada em campo.
ABSTRACT
This w ork deals with the relationsh ips betw een the
p opular/com m unitary
movement
and
the
p u b lic
m unicipal
adm inistration, d u rin g 1989-1990, in Florianópolis, Santa Catarina.
The decade o f the 1980’ s is used as a com parative re fe re n ce , as it
was in this p eriod that this movement becam e a new in te rlo cu to r
betw een the adm inistration and the "p op u la tion ". It tries to show
how the existing inform al relations betw een the two "a cto r s " on
fo cu s are determ ining fa ctors fo r both the constitution o f the
movements them selves, and fo r the new p ossib ilities o f n egotiation
w ith the adm inistration.
The
point o f d epartu re o f the « stu d y
o f inform al
relations
is
the
reflection on
the
ten sion
existing
betw een
"b u r o c ra tic e th ics" and. "hierarchical e th ics ". In this sen se, it
d e v e lo p s the d isc u ssio n about the d ife re n t meanings that the
n ative ca te g o ry o f autonom y takes on, and the way in w h ich the
relations betw een adm inistration and movement are dealt with,
w h ere the passa ge from one "pole" (adm inistration) to another
(movem ent) is co n sid e re d significan tly "d a n g e ro u s".
The re se a rch establishes a dialogu e w ith w ork s about
"new social movem entes" aiming to show the con trib u tion o f the
an th ropological field w ork to these studies. The w hole w ork is
perm eated with the reflection s o f the author about her own
am biguities due to her involvem ent with the grou p s that she
w ork ed with,
and
th e
attempt
to
r e fle c t
in
the
text
the
Í N D I C E
R E S U M O ... ... ... ... i
A B S T R A C T ... :... ii
INTRODUÇÃO... ... .••••.’... 1
CAPÍTULO I - SOBRE O CONTEXTO; UMA PEQUENA INTRODUÇÃO... .11
1.1 - F r a g m e n t o s ... ... -... 12
1.2 - As cidades: Desterro e F l o r ianópolis...19
1.3 - Inscrições no p r e s e n t e ... 27
CAPÍTULO II - O PRETEXTO DAS RELAÇÕES: UMA OCUPAÇÃO O R G A N I Z A D A ... ... . . . 36
11.1 - Meu próprio p r e t exto... .--40
11.2 - Os caminhos da ocupação organizada....,./’... 42
II. 3 - Sobre algumas "relações p e r i g o s a s " ... ... 48
II. 4;-- A formação do grupo de a p o i o ... ..52
II.5 - O grupo dos moradores: contra representação... 59
\ II. 6 - O encontro com o p r e f e i t o ... ... 65
11.7 - Significados e m u d a n ç a s ... . ... 73
11.8 - O c u l t o ... . ... 78
CAPÍTULO III - A ADMINISTRAÇÃO M U N I C I P A L ... ...85
111.1 - O administrador; "progamas" e "projetos"...'... 90
III.3 - Administradores-empresários e suas i d é i a s . ...110
III. 4 - Administradores e técnicos .. , . ... ...115
III.5 - Afinidades e I n s t i tuições... ... ...119
CAPÍTULO IV - A ADMINISTRAÇÃO E ALGUNS DE SEUS INTERLOCUTORES,. ... . .1 ... ... . 124
IV.1 - Aspectos da "estrutura" da administração... 125
IV.2 - Relações de hierarquia e apadrinhamento...133
IV.3 - O outro do "Estado": população e m o v i m e n t o s ...138'
CAPÍTULO V - A CONSTITUIÇÃO DOS NOVOS INTERLOCUTORES..-.... 148
V ..1 - Quatro caminhos, quatro h i s t ó r i a s ... .154
V.2 - Dos Fragmentos aos g r u p o s ... 176
V.3 - O movimento na administração do P M D B . ... 185
CAPITULO VI SOBRE AS "RELAÇÕES PERIGOSAS" NA CONSTITUIÇÃO DOS NOVOS INTERLOCUTORES....;...194
VI.1 - A criação da U F E C O . . ... 194
V I .2 - O pessoal da igreja e o Movimento dos Sem teto...203
V I . 3 - A Administração e o Movimento em 1 9 8 9 / 9 0 ... 212'
CONSIDERAÇÕES F I N A I S ... ... 227
INTRODUÇÃO
Este trabalho p rocu ra relatar a pesquisa q u e in iciei
em n ovem bro de 1989, com o b je t iv o de o b te r o grau de m estre
em a n tropologia na U niversidade Federal de Santa Catarina. A
pesqu isa
de
campo,
iniciada
com
m otivações
relativam ente
d iversa s das que tenho h oje ao in tro d u zir este texto, foi
conclu ída nos prim eiros m eses de 1991. No entanto, a escrita
sob re o campo, de forma contínua e sistemática, inicia apenas
no verã o de 1992, quando após
um ano de trabalh o com
d ed icação
exclusiva
numa
pequena
Organização
Não
Governamental da
Ilha,
retomo as atividades da d isserta çã o com
dedicação aproximada de 20 horas semanais. Este p ro ce s s o , do
qual falo com mais
vagar nesta introdu ção, imprimiu
suas
p rópria s
tonalidades ao trabalho,
p ossibilita n d o in c lu siv e a
reelaboração de seus o b je tiv o s .
O
trabalho
trata
das
rela ções
en tre
m ovim ento
p op u la r/com u n itá rio
e
a
adm inistração
pública
m unicipal,
durante os anos d e 1989 e 1990, na Ilha d e Santa Catarina. Tem
como re fe rê n cia a década d e 80, p eríod o em que este m ovim ento
se con stitu iu
num n ovo in terlocu tor
da adm inistração.
No
d e co r re r d o texto p ro cu r o m ostrar como as formas trad icion ais
da
relação
adm in istra çã o-"popu la çã o"
tais
com o
o
apadrinhamento
e a tensão en tre a "ética b u rocrá tica " e a
"ética
h ierá rq u ica "
(Da
Matta,
1990)
estão
profundam ente
im bricadas
no
p ro c e s s o
de
con stitu içã o
d estes
n ov os
in terlocu tores. Neste
sen tido
são con sid era dos os
a sp e cto s
p róp rios d o funcionam ento da adm inistração e da d iv e rsid a d e
que lhe é p róp ria , além das variantes esp ecífica s q u e são
colocadas p or cada nova equipe adm inistrativa que assum e a
p refeitu ra . Da p a rte do movimento são con sid era da s também
suas d iv isões em d ife re n te s g ru p os, suas redes de rela ções e
in flu ên cias, e a form a como procuram n eg ocia r sua legitim idade
(B ourdieu, 1989), tanto com a adm inistração como com o g r u p o
que representa.
Para
a p rofu n d a r
a
d iscu ssã o
s o b re
as
rela ções
inform ais
com a
adm inistração,
d esta co a p a rticip a çã o dos
técn icos da p re fe itu ra , em atividades e reun iões p ró p ria s do
movimento,
num
p r o c e s s o de n egociação de
suas
p ró p ria s
iden tidades (G oodenough, 1965), on de a passagem d e um pólo
(adm inistração)
a
o u tro
(m ovim ento),
é
con sid era d a
significativam ente "p e rig o sa " (Douglas, 1966). A liga çã o inform al
e n tre os dois p ólos relacionais, articulada p or estes
técnicos
e
pelas d iferen tes rela ções pessoais ai esta b elecid a s, p ossib ilitou ,
a meu v e r , n ovas form as de atuação d estes m ovim entos e,
principalm ente
uma
linguagem
comum
nos
p r o c e s s o s
de
n egociação com a adm inistração. O trabalho p ro cu ra assim
esta b elecer
um d iá log o
com os
estu d os
s o b re o s
"n o v o s
movimentos
socia is"
procu ran d o d e se n v o lv e r a sp ectos p o u co
con sid era d os
n estes
estu dos
tais
como:
a
au sên cia
de
co n sid e ra çõ e s analíticas sob re as adm inistrações locais (C a rdoso
1983); os d ife re n te s sign ificados assum idos pela c a te g o r ia /v a lo r
autonomia; e a con sid era çã o das relações inform ais como fa to re s
determ inantes.
O p e r c u r s o da pesquisa, é revela d or de algumas de
suas p róp ria s armadilhas e dos m otivos em nome dos quais seus
o b je tiv o s foram sen d o alterados. Hoje, ao olhar meu p ró p r io
trabalho de forma retrosp ectiv a , p osso dizer que ele se d iv id iu
basicam ente
em
cin co
momentos
d iferen cia d os.
O
prim eiro
momento, inicia no segu ndo sem estre d e 1989. Um ano bastan te
d en so no que se refere as polêm icas geradas em to rn o dos
p ro je to s apresentados pela adm inistração municipal. A im prensa
noticiava com freq u ên cia opiniões, propagan das e co n tro v é rs ia s
em torn o da adm inistração que, apesa r das con testa ções, via
p o u co a p ou co todos os seus p r o jé to s , a p rovad os. Ao final
daquele anò os con testadores da adm inistração haviam cria d o
vários
espaços
de
disòussão e n v o lv e n d o as mais
d iv e rsa s
entidades
populares e com unitárias além de in te re ssa d o s de
o rig e n s d iversas. Espaços que se tornaram mais fre q u e n te s no
ano seguinte, quando in clu sive a lgu n s deles deram o r ig e n s a
redes e articulações relativamente perm anentes.
Foi no contexto d e s cr ito acima que ela b orei meu
p r o je t o
de
pesqu isa
com
o
o b je t iv o
de
com p reen d er
os
d is cu rs o s (Foucault, 1979) que se instauravam sob os p ro je to s
e políticas públicas daquela adm inistração m unicipal. Um dos
lemas de propaganda da adm inistração fazia parte do títu lo de
meu p ro je to "Ilha de Santa Catarina, a C onstrução d o P araíso
Internacion al". Neste período eu realizei várias visitas a setores
da adm inistração pública m unicipal e a institu ições a elas
vinculadas com o o b je tiv o de coletar textos, dados, p r o je to s , e
en trevistas para a pesquisa. O material resultante desta etapa
era
bastante
denso,
mas
apontava
qu estões
que
não
se
encaixavam
a
um
"modelo"
de
d is c u rs o
ou
p rática
adm inistrativa.
Haviam
uma
série
de
opiniões
d iv e rg e n te s,
práticas
aparentem ente
con tra ditória s,
con flitos
in tern os
e
relações estabelecidas sob os mais d iferen tes critérios. Mais do
que o fe re ce r-m e resposta s, esta prim eira etapa
me
p rop orcion ou
dúvidas.
A alternativa escolh id a por mim para a p rofu n d a r as
q u estões
levantadas
pelas
visita s
à
adm inistração,
foi
esta belecer um con tra pon to, p ro cu ra n d o o u v ir não só as falas
que vinham da adm inistração, mas aquelas qu e estavam "con tra "
ela. Passei então a acompanhar v á rio s d os g ru p os q u e se
reuniam com o o b je t iv o de d iscu tir e con testa r os p r o je to s da
p refeitu ra . Nos p eríod os mas ten sos ch eg u ei a particip ar de
qu atro ou c in co reuniões p or semana. Bastava ir numa delas
para saber de mais duas ou três q u e iriam a con tecer. Eram
reuniões de partid os p olíticos, de a ssocia ções de m oradores, de
sindicatos, de p esq u isa d ores, de v e re a d o re s e de
g ru p o s que
se mesclavam. Algumas se realizavam nas u n iv ersid a d es, ou tras
em
sindicatos,
na
Câmara
de
V erea d ores,
na
Assembléia
L egislativa
etc.
As
pessoas
qu e
delas
participavam
se
renovavam constantem ente, m antendo porém um pequ en o g ru p o
fixo em cada co n ju n to de reuniões. Haviam também algumas
pessoas que se encontravam em qu ase todas elas. Eu passei a
ser olhada como estan do neste último g ru p o , sen do recon h ecida
por muitos de seus participan tes com o fa zen d o p a rte dos
contestadores dos p ro je to s da adm inistração.
Nestas muitas reuniões era comum a p resen ça de
fu ncion ários da p refeitu ra e de vária s ou tras in stitu ições
governam entais
orien tando
as
d is cu s s õ e s
ou
escla recen d o
a spectos de determ inadas políticas e p ro je to s adotados pela
adm inistração. Não eram reuniões da p re fe itu ra , e no in ício eu
fiqu ei meio con fu sa sob re a con d içã o em qu e aqueles técn icos
ali estavam. Eles diziam: "q u a n do elaboram os este p ro je to ..." e
ao mesmo tempo diziam "a ideologia d os p r o je to s do Amim
Além disto, fu i p e rce b e n d o que apesa r dos con v ites exten sivos
a todos, determ inadas pessoas só iam a determ inadas reun iões e
haviam polêmicas p rivilegia d a s en tre determ inados g ru p o s . Na
época selecionei 9 pessoas en tre os p articipan tes daquelas
reuniões,
os
quais
pude
en tre v ista r
posteriorm ente.
Nas
en trevistas
p ro cu re i
saber
sob re
os
g ru p o s
que
ali
se
encontravam , suas histórias e sua relação com a adm inistração
local. Esta foi a segu nda etapa dar p esq u isa . A través dela, uma
nova problem ática se con fig u rou , qual seja a da relação en tre
aquela adm inistração esp ecífica e os
movimentos populares
e
comunitários
que a .estavam contestan do. Esta nova problem ática
me possibilitou a p rofu n d a r muitas das q u estões colocadas no
prim eiro momento.
No final d e 1990, quando eu já havia d a d o por
e n cerra d o meu trabalh o d e campo, e com eçava a sistem atizar os
dados coletados, su rg iu _ a ...op ortu n id a d e de _ acompanhar um
p ro c e s s o de n egociação en tre adm inistração m unicipal e um
g ru p o de ocu pan tes qu e haviam se instalado num te r re n o da
p refeitu ra . T odo o p r o c e s s o de n egocia çã o estava sen do m ediado
p or g ru p os d o movimento p op u la r/com u n itá rio e sindical, além
de algumas ig r e ja s e partidos políticos. Estavam reun idos, numa
situação de con flito d ireto, praticam ente tod os os "p e rs o n a g e n s ”
da trama qu e eu com eçava a montar com os dados d e minha
pesqu isa. Era uma oportun idade m uito rica e que, ao mesmo
tempo, me
colocava
numa
situação
q u e
se
assem elhava
a
am biguidade da situação dos
técnicos
da p refeitu ra . Naquele
momento eu estava, ao mesmo tempo, realizando minha pesq u isa
e represen tan d o um dos gru p os qu e fazia parte d o co n ju n to de
m ediadores nas n eg ocia ções com a p refeitu ra . Este p e río d o foi
relativam ente cu rto (dois m eses), porém bastante in ten so e se
transform ou no qu e h o je chamo de terceira etapa da p esq u isa ,
possibilitada pela "p r o rr o g a çã o " do trabalho de campo.
A quarta
etapa,
p or sua v ez,
se con stitu i
num
p ro fu n d o
distanciam ento,
con tra sta d o
pela
p re se n ça
avassaladora do "o b je to de estu d o" em minhas rela ções de
em prego e amizade. O ano de 1991 foi o p eríod o em qu e me
afastei quase que completam ente do trabalho da d isserta çã o. Em
fu n çã o do término da bolsa de financiam ento, ced id a pela
CAPES, comecei a trabalhar com d edicação in tegral no CECA/SC
(C en tró de A ssessoria Popular e A lternativa), uma pequ en a
"organ ização não governam ental" de Florianópolis, da qual eu
fazia parte. Esta orga n iza çã o p ro p u n h a -se p resta r "a sse sso ria "
aos
movimentos
sociais
locais,
principalm ente
na
área
de
"cidadania e p olítica s p ú b lica s". O CECA/SC iniciava, naquele
ano, sua entrada no cen á rio das relações en tre m ovim entos e
adm inistração,
e
eu,
como
uma
das
"rep resen ta n te s"
do
CECA/SC
passei
a
me
en con trar
com
muitos
de
meus
en trevista d os, re v isita r várias in stitu ições e me co lo ca r nos
p ro c e s s o de n egocia ções e conflitos en tre os gru p os e p essoa s
sob re as quais _eu estava a e screv er. Do ponto . de__ v ista da
pesqu isa este foi um momento de perplexidade e agonia.
A retomada da d issertação d e u -s e no in ício de 1992,
com a redu ção de minha carga horária no CECA/SC para meio
período, e a carinhosa insistência de Rafael, meu o rien ta d or,
para que eu e s c re v e s s e enfim meu trabalho. A escrita , última
etapa da pesquisa, re a liz o u -se entre in ício de 1992 e a g o s to de
1993, quando enfim con clu í o trabalho. Estes dois últimos anos,
incorporaram muitas das reflexões d o trabalho que d e se n v o lv i
no CECA/SC,
principalm ente
no
que
se
r e fe re as
nossas
p rópria s
am biguidades,
nossas
múltiplas
iden tid ad es,
n osso
encantos e d esen ca n tos. A ordem de ap resen tação dos capítulos
da d issertação não segue, contudo, o caminho d e se n v o lv id o pela
pesquisa. O trabalh o escrito p rocu ra coloca r o leitor, lo g o de
início, no meio da cena, in teira n d o-o do o b je t o da p esq u isa e
suas problem áticas.
Foi também durante a e scrita qu e tiv e a p reocu p a çã o
de garantir no texto a "polifonia" (Caldeira, 1988) do trabalh o
de campo. As prim eiras versões dos textos e scrito s se dividiam
e n tre a tentativa de minha quase com pleta _ ausência, on de
ou tras falas bu rbulhavam no texto, e a p resen ça esm agadora de
minhas
von ta d es,
relações
pessoais,
m edos
e
d ú v id a s.
A
d ificu lda d e d e uma relação mais equ ilibrad a com os dados da
p esqu isa parecia ainda maior em fu n çã o d as d iferen cia d a s
relações qu e esta b eleci durante o trabalho de campo. No
prim eiro momento, por exemplo, minhas op in iões divergiam por
com pleto daquelas apresentadas por meus e n trev ista d os, no
segu n d o minha reação era de com preensão e cum plicidade. A
reflexão
sob re
este
p rocesso,
auxiliada
pela
d iscu ssã o
m etodológica trazid a pela antropologia, se deu principalm ente
durante
a
elab ora çã o e
reelaboração
dos
textos
e s c rito s ,
quando, de ce rta forma, eu também p recisa va me coloca r
distante e me analisar em campo, tal qual meus en trevistados^ .
1. Os c o m e n t á r io s d e C a ld e ir a (1 9 8 8 ) s o b r e o l i v r o d e V ic e n t e C r a p a n z a n o (W a itin g ) e o s d ile m a s d o s a n t r o p ó l o g o s n a " P ó s - m o d e r n i d a d e " ; o l i v r o "A P o lít ic a d o s O u t r o s " (1 9 8 4 ), d e s t a m esm a a u t o r a , com s e u d e t a lh a m e n t o e c u id a d o no t r a b a l h o d o s s i g n i f i c a d o s d a p o lít ic a , d o " p o d e r " e d o s g o v e r n a n t e s ; e a c o l e t â n e a o r g a n iz a d a p o r C a r d o s o (1 9 8 6 ) c o m p r e c i o s a s r e f l e x õ e s p r in c ip a lm e n t e n o c a m p o d a a n t r o p o l o g i a u r b a n a , f o r a m a lg u m a s d a s l e i t u r a s q u e c o n t r i b u í r a m n e s t a s r e f l e x õ e s .
O texto final da d isserta çã o estabeleceu assim sua
p róp ria ordem. O prim eiro capítulo, um dos últimos a ser
escrito, p rocu ra adiantar ao leitor elementos e ca ra cterística s
sob re a Zliia e seus habitantes, "p in ta n d o" o cen ário on d e se
d esen volv e a trama. A história da iïfia é usada como um
re cu rs o que possibilita uma /visão dinâmica d o contexto e dos
p ro ce sso s
que envolvem as
relações
en tre adm inistração e
"p op u la çã o",
in trod u zin d o a
problem ática
das
situações
de
con flitos de terras na J/faa. Esta problem ática é o p retexto
sob re o qual se desenvolvem os acontecim entos d escritos no
segu n d o capítulo. O capítulo dois, in trod u z o leitor no tema
propriam ente dito da d issertação, a partir de uma situação
esp ecífica de
negociação
e con flito em
torno
da
ocupação
de um
terren o da p refeitu ra por um g ru p o de famílias p ob res. Com
ele, p r o c u r o m ostrar ao leitor uma situação on de movimento e
adm inistração se constituem como "p ó lo s" relacionais com plexos,
perm eados
p or um co n ju n to de rela ções inform ais
que os
aproximam mas que são con sidera da s, p or ambos os "p ó lo s ",
relações "p e r ig o sa s".
A partir d o te r ce iro capítulo, cada um d estes "p o io s"
passam
a
ser
tratados
separadam ente.
O
capítulo
trê s,
apresenta a adm inistração m unicipal d e 1989, com alguns de
seus p rin cip a is p ro je to s. Neste cap ítu lo estão con cen tra d os
basicam ente
os
dados
da
prim eira
etapa
da
p esq u isa ,
in corp ora n d o con tu d o, a reflexão s o b re a redefin ição d o re co rte
do o b je to . Parte d o con teú d o dos p ro je to s, a polêmica gerada
em torn o deles e algumas das ca ra cterística s d o funcionam ento
da adm inistração,
são aqui trabalhadas. O capítulo q u a tro
aprofunda o te rce iro , in corp ora n d o na d iscu ssã o alguns autores
que ajudam a r e fle tir as transform ações da adm inistração em
su a relação com a "p op u la çã o” e as tensões en tre as duas
"ética s" estabelecidas nesta relação: a "ética b u ro crá tica " e a
"ética h ierá rq u ica ". Neste capítulo é in trod u zid o o u tr o "p ólo"
da relação, a p resen ta n d o o movimento p op u la r/com u n itá rio como
uma
nova
form a
da
"população"
re la cio n a r-se
com
a
adm inistração.
O
q u in to
capítulo
d e d ic a -s e
basicam ente
ao
movimento, p ro cu r a n d o a p resen ta -lo de forma plural e, com o no
caso
da
adm inistração,
dinâmica.
Para
isto
u tilizo
q u a tro
histórias de r e fe rê n cia através das quais p ro cu ro manter a
pluralidade das v is õ e s sob re o movimento, seus d iv e rso s g ru p o s
e as relação com a adm inistração no d e co r re r de sua h istória.
Neste capítulo id e n tific o conceitos e c o n ce p çõ e s que foram se
esta b elecen d o nas rela ções en tre estas pessoas e g ru p o s com a
adm inistração, d e n tre os quais, a idéia de autonomia. Por fim, o
sexto
e
último
capítulo.
Nele
falo
dos
dois
p rin cip a is
in terlocu tores da adm inistração em 1989/90 - no que se re fe r e
ao
movimento
pop u lar/com u n itário
local
- ,
a
União
Florianopolitana de Entidades Comunitárias e o Movimento dos
Sem Teto. B usco nos relatos as d iferen ça s e semelhanças d estes
dois g ru p os em suas relações com a adm inistração. A leitura
dos dois últimos cap ítu los permite com parar as relação en tre
movimento e adm inistração em dois p eríod os d ife re n te s, com
duas eq u ip es adm inistrativas diversas. A prim eira, assum iu em
1985 e tinha como p artido p olítico de referên cia o PMDB
(P artido
do
Movimento
Democrático
B rasileiro),
a
segu n d a
assumiu em 1989 e tinha como referên cia o PDS-PFL (C oligação
do P artido Dem ocrático Social com o P artido da Frente L iberal).
Ai novamente aparecem com parações sig n ifica tiv a s no qu e se
r e fe r e a idéia de
autonomia
e a co n stru çã o de uma iden tid ad e
con tra stiv a em relação a adm inistração.
Quanto
a
forma
de
a p resen ta çã o
d o
texto
propriam ente dito cabe uma pequena o b s e rv a ç ã o sob re o uso do
itálico. Optei, na medida do p ossível, p or manter as categoria s
nativas em itálico, u tilizan do-as em meu texto na forma como
meus en trevistados a utilizam, nomeando com elas aqu ilo que é
p o r eles assim nomeado. Algumas das ca teg oria s, no d e co r re r do
p r ó p r io
texto,
vão
sen do
explicitadas
em
seus
m últiplos
sig n ifica d o s, outras, merecem de minha p arte pequenas notas de
roda pé que ajudam o leitor a situá-las em seu contexto. Este é
o caso, por exemplo das ca tegoria s
Ilha, liderança, autonomia,
E s t a d o m o v i m e n t o popular
e
movimento comunitário.
Aos
p ou cos, o p róp rio texto (con tex to?) p ossib ilita ao leitor a
com preen são de seus sig n ifica d os. Particularm ente no ca so das
duas últimas categorias citadas, ainda que as tenha utilizado da
mesma forma que as demais categoria s, criei com elas um termo
de referên cia, que não é uma categoria nativa, ainda qu e delas
tenha se originado: movimento pop u lar/com u n itário. Este termo,
freqüentem ente utilizado p or mim no d e co r r e r d o texto, r e fe r e -
se, em con ju nto, aos g ru p o s do
movimento popular
e aos
g ru p o s do
movimento comunitário
.
2. 0 u s o d a c a t e g o r i a Estado, com l e t r a m a iú s c u la , r e f e r e - s e a o p r ó p r i o s i g n i f i c a d o q u e lh e é d a d o p o r m eu s e n t r e v i s t a d o . 0 Estada (c o m m a iú s c u la ) n ã o é s im p le s m e n t e a a d m in is t r a ç ã o p ú b l i c a , n em t ã o p o u c o o g r u p o d e n o v o s a d m i n i s t r a d o r e s q u e s e r e n o v a m a c a d a e l e i ç ã o , n ã o é ta m b é m o E s t a d o d e S a n ta C a ta r in a - ta m b ém u s a d o com m a iú s c u la p o r e x i g ê n c i a d a g r a m á t ic a p o r t u g u e s a - e , n o e n t a n t o , tem a v e r co m t u d o i s t o . £ a l g o m ais, d o t a d o d e v o n t a d e p r ó p r i a , c a r a c t e r í s t i c a s e s p e c í f i c a s e c o n t r a o q u a l s e c o n s t i t u i u o m o v im e n to .
S O B R E O C O N T E X T O : U M A P E Q U E N A I N T R O D U Ç Ã O
Antes de iniciar o trabalho de campo propriamente dito, refiz algumas leituras sobre a
Ilha.
Na época, preocupei-me mais com os dados sobre a administração pública e o "planejamento urbano", deixando de lado os textos mais históricos. No entanto, a medida que avançava nas entrevistas e observações, percebi que muitas referências me remetiam a um passado não tão recente. Categorias, lembranças, distinções e mesmo processos importantes revelavam lacunas em meu olhár tão contemporâneo.Ainda que um resgate da história dá
Ilha
não me parecesse necessário para atingiroá
objetivos da pesquisa, a seleção de algumas informações, guardadas ña história escrita, mostraram-se importantes. Era preciso, ainda que sem aprofundá-los, explicitar determinados processos de caracterização étnico-espãciais^ daIlha,
inscritos nos acontecimentos históricos. As origens de alguns mecanismos administrativos daIlha,
a "modernização" da Primeira1. 0 termo “étnico-espaciais", que utilizo sem maiores preocupaçSes conceituais, tea como objetivo chañar atençSo para o aspecto étnico dos conflitos de determinação dos usos e valores dos espaços, visíveis tanto - nos acontecimentos históricos, como em alguns dos processos que pude acompanhar durante o trabalho de campo. A inspiração para o uso deste termo, deu-se através da leitura da introdução do livro "Farra do Boi" escrita por Meneses Bastos (1993), na época ainda datilografada, na qual chama atenção para o caráter fricativo da Farra. Ao desenhar o mapa de ocorrência da Farrá, por exemplo, o autor mostra que suas áreas de exclusão na _ Ilha são justamente “áreas propriaænte urbanas, cujo solo sofre apropriação e uso de serviços, residencial e turísticos" / e no Continente, seus limites são “os 'paredSes' italiano, alemão e gaúcho" (p.8)', o que faz apontar um "nexo fundasiantal" da geografia do Boi, qual seja, "... sua pertinência diacrítica ft identidade açoríano- catarinense e aí, tipicamente ilhoa (nasculino, ilhéu)" (p. 8-9), com suas formas de apropriação e de uso do solo altamente distintivas.
República e a intensificação do fluxo migratório na segunda metade do século XX, por exemplo, foram processos que introduziram elementos nas questões com as quais eu estava diretamente envolvida na pesquisa.
Nas poucas leituras que fiz em busca das referências acima, foi possível descortinar outras
Ilhas,
outras práticas administrativas, outras revoltas e grupos de contestação. No entanto não me cabe resenhar aqui toda esta história, minha incursão no passado escrito foi breve demais para isto. Não resisti contudo à tentação de selecionar das histórias, pequenos fragmentos que pudessem apresentar o contexto da pesquisa de forma mais densa. Este capítulo, introdutório, tem assim o objetivo de fornecer ao leitor pequenas noções histórico-culturais sobre aIlha
e seus habitantes. Estas noções, por mim selecionadas, pretendem chamar a atenção do leitor, sobre como foram se inscrevendo, ao longo do tempo, espaços, conflitos, e poderes que parecem hoje tão eternos e cristalizados.1 .1 - Fragmentos
A Ilha de Santa Catarina localiza-se a meia altura do litoral do Estado. Possui uma forma alongada no sentido longitudinal com aproximadamente 60 Km de extensão e uma área de 410 K m 2 . Além disto possui 19 pequenas ilhas que estão a sua volta. Em se tratando de tempos geológicos, seu formato
•
atual é bastante recente, originada de um pequeno arquipélago, ela foi se constituindo através da expansão de cordões
arenosos acomodados por processos de sedimentação eólica e aluvial (Rohr, 1977). Este tipo de formação geológica configurou uma paisagem bastante peculiar. Duas cristas de montanhas se estendem por todo o cumprimento da
Ilha
rodeada? por extensas planícies sedimentares, duas grandes lagoas, baías, manguezais, rios e vastas e pequenas praias arenosas alternadas por enseadas, pontais rocnosos “¡e diques. Nos morros, predominava a mata cropical atlântica, antigamente rica em caça. A vegetação litorânea, por sua vez, foi formada por vários cipos de mangues, vegetação que geralmente está associada a diversas espécies de moluscos e crustáceos. Atualmente a mata tropical atlântica está restrita à parte mais alta de alguns morros. Enquanto os mangues, também bastante prejudicados pelos processos de ocupação humana mais recentes, mantêm ainda hoje um importante papel no ciclo alimentar da população daIlha (Beck, 1979).
Os primeiros conflitos étnico-espaciais que se tem notícias na
Ilha,
deram-se entre europeus e populações tupi guaranis por eles aqui encontradas^. Ainda que não se tenha notícia de qualquer forma de hostilidade dos guaranis para com os europeus, à medida que estes últimos começaram a aprisioná- los, para vendê-los como escravos nos mercados de São Vicente e Bahia de todos os Santos e, à medida que os processos de contato foram se generalizando, estes grupos indígenas foram2. Sabe-se porém que os primeiros ocupantes da Ilha de Santa Catarina não foram os guaranis, nas os “hosens do Sambaqui”, que aqui chegaram a aproximadamente 5.000 anos (Santos, 1977), e que eram assim chamados em função dos casqueiros de conchas que deixavam aaontoados após extrair deles sua alimentação e nos quais foram encontrados ossos humanos e fragmentos de utensilios (Rohr, 1960: 7).
levados ao quase total desaparecimento do litoral catarinense, já no final do século XVII (Santos, 1974)^.
0 processo de colonização e desenvolvimento da Ilha de Santa Catarina, nos dois séculos que se seguiram ao
"descobrimento do novo mundo", estiveram intimamente ligados a sua posição geográfica. A
Ilha
f©i eleita, p®r Portugal e Espanha, ponto estratégico para apoiar a movimentação de navios com destino ao pacífico e ao próprio Prata. 0 que fez dela, motivo de grande disputa entre as duas, coroas4 . Apesar de aIlha
ter sido visitada desde o século XVI, geralmente para o abastecimento dos navios, a primeira tentativa significativa de colonização, foi a de Francisco Dias Velho, entre 1673 e 1675, quando aqui fundou o povoado de Nossa Senhora do Desterro^, nome que manteria até alguns anos após a Proclamação da República (Cabral, 1979).Com a fundação da Colônia de Sacramento, em 1680, situada na entrada do Rio do Prata, Desterro consolidou sua importância estratégica para Portugal. No início do século XVII foi elevada à categoria de vila, separando-se da jurisdição da vila de Laguna. Isto aconteceu em 23 de março de
3. Sobre a organização social e política dos Tupi Guaranis, as mudanças ocorridas em função da colonização européia e, principalmente, sua relação com o. litoral, ver Terra sea mal: o profetisao Tupi Guarani (Clastres, 1978).
4. Para resolver as diferenças diplomáticas em relação â divisão das terras a serem exploradas - principalmente "as índias" -, Portugal-e Espanha assinaram o Tratado de Tordesilhas em 1494. Entretanto, não havia ficado claro a fixação efetiva dos limites. Após o “descobrimento" da América, a Ilha tornou-se motivo de polêmica entré os dois reinos, acreditando cada um que ela lhe pertencia. A briga sobre a posse da Ilha teve uma pequena trégua entre os anos de 1580 e 1640, durante o período de unificação das duas coroas, sob o reinado de Felipe II de Espanha. Com a restauração da coroa portuguesa, Portugal reinicia seus planos para a conquista do extremo sul do Brasil (Santos, 1974).
5. Tem-se conhecimento de dois outros nomes que foram anteriormente atribuídos a Ilha pelos Tupi Guaranis, eram eles:"Meiembipe" = lugar acima do rio e"Jurer@ Mirim" ou "Juru Hirim" = boca pequena, fazendo alusão ao estreito que a separa do continente.
1726, quando foi eleita a primeira Câmara Municipal, qual seja, o podér municipal local que na época reunia as autoridades que hoje dividimos em três poderes (executivo, legislativo é judiciário)®. Logo em seguida, a
Ilha,
tornou-se sede da capitania de Santa Catarina, para onde foi enviado o primeiro governador que iniciou uma série de construções para abrigar a sede do governo, entre elas a igreja matriz, a casa do governador e quatro fortalezas que deveriam proteger aIlha
(Cabral, 1979)^.. Estas construções, seguidas de outras, posteriores, que vieram a sediar a representação do governo imperial na capital da província, centralizando em torno da praça os poderes terrenos e celestiais, estabeleceram um grande contraste entre aIlha
e as cidades criadas pelos novos migrantes europeus, principalmente alemães, vindos nas intensas migrações da segunda metade do século XIX, onde a estrutura espacial da cidade não caracteriza uma centralidade pontual (Popini Vaz, 1991: 44).Como não era possível força militar suficiente para proteger a
Ilha, a
coroa portuguesa resolveu consolidar seu6. Segundo Jali Meirinho (1991: 128-30), o primeiro poder de âmbito local da Ilha foi constituido de u m Juiz Ordinário (presidente), um vereador, um procurador e um escrivão, todos eleitos pela assembléia dos "homens bons e povo", ou seja, aqueles que já haviam ocupado cargos na municipalidade, clérigos e oficiais militares, incluindo aqueles que estavam ocupando os cargos. Na época, a Câmara incumbia-se de todos os assuntos de ordem local, fossem eles administrativos, judiciais ou policiais.
7. Para o sistema defensivo da Ilha foram erguidas 4 fortalezas, sendo 3 ao norte e uma ao sul. No entanto, elas em nada protegeram a Ilha, pois o sistema defensivo de fogo cruzado não funcionou - os canhões não tinham potencia suficiente para alcançar os navios que entravam na baia. Em fevereiro de 1777, por exemplo, quando a esquadra espanhola chegou à praia de Canasvieiras, o exército português nâo pSde resistir e a população fugiu para o continente. Cómicamente, o exército espanhol nao tinha como manter seu domínio já que todo o seu contingente destinava-se à colônia de Sacramento, reembarcou entSo suas tropas e seguiu seu destino, deixando novamente a Ilha nas mãos de seus antigos moradores. Longe de serem usadas para a defesa da população, as fortalezas serviram como prisões, lazaretos e porto de quarentena nas épocas de epidemias. Além disto, no início da república, serviram também como local de execução daqueles que se rebelaram contra os governantes.
domínio realizando o maior empreendimento migratório que se tem notícia nesta época, com objetivos de colonização. Ela determinou, através do Conselho Ultramarino, a vinda de famílias açorianas e madeirenses® para a Ilha de Santa Catarina, litoral fronteiro e Rio Grande do Sul. Entre 1748 e 1756 devem ter chegado a
Ilha
cerca de 5.000 pessoas, estabelecendo aqui, por definitivo, a "colonização açoriana". Os colonos açorianos, seguindo as instruções da metrópole, se agruparam em pequenas povoações, chamadasfreguesias.
As. t . '
freguesias
se caracterizavam por uma praça em quadro, com 500 palmos de face, numa das quais se localizava uma pequena capela, tal o modelo do núcleo do poder administrativo naIlha
(Santos, 1974). Ao longo da estrada foram distribuídas as tirrâs entre as, famílias. Contudo a distribuição dás terras
f q
não foi satisfatória3 , pois o terreno era pequeno e a qüaiidade do solo ruim, para os propósitos daqueles colonos. Desta forma, a pesca, qué era uma atividade complementar, corribináda ao cultivo de pequenas hortas destinadas ao consumo próprio, passa a ser uma atividade de igual ou maior importância.
A administração da
freguesia
reproduzia em pequena escala a estrutura de poder encontrada em volta da principal praçâ daIlha.
Nesta época, a Câmara nomeava, entre os8. Desde o século XV, o Arquipélago dos Açores e Madeiras fora povoado pelos portugueses e, na época da migração para Desterro, as ilhas vinham apresentando uma densidade demográfica muito elevada. Com a migração para a Ilha de Santa Catarina, Portugal resolvia dois problemas de uma só vez (Santos, 1974).■
9. Sobre a distribuição de terras na liña, Laura Hübner (1981:16) cita uma carta escrita pelo Vice Rei Marqués de Lonradio em 1779: H__A ilha se repartia de tal codo que todos fica vau
desacomodados porque, na exceçSo de alguns poucos, aos sais, deraa porções de terras nui to
pequenas, e m i t o s ficaram sea ter nenhuma". Sobre as dificuldades do projeto colonizador em Desterro, ver também o livro Hegro em Terra de Branco (Pedro et alii, 1988).
moradores de cada
freguesia,
as autoridades necessárias à manutenção dá ordem naquele local-*-®. Com a colonização açoriana foram furidadas asfreguesias
dé Lagoa da Conceição, Nossa Senhora das Necessidades, hoje Santo Antônio de Lisboa(1750), Nòssa Senhora da Lapa do Ribeirão (1809), São João Batista do Rio Vermelho (1831), São Francisco de Paula de Canasvieiras (1835 )-^. As demais
freguesias
foram fundadas à medida que os açorianos foram ampliando suá ocupação naIlha,
totalizando, ao final do século XIX, dez
fregues
i a s ^ .
a
divisão administrativa da
Ilha
emfreguesias
foi posteriormente incorporada pelas administrações modernas com o nome de distritos, sob administração dasintendências.
Quanto as autoridades locais permanecem o padre, a polícia e o*
administrador (na figura do
intendente).
Até o final do século XVIII, mesmo com o aumento da população e o início de uma atividade agrícola mais regular - ainda que bastante precária para comercialização -, a
Ilha
serviu apenas para atender às necessidades estratégicas e administrativas de Portugal, ficando sua população subordinada à administração dos comandantes militares da província. Este
Í0. Sobre a administração das freguesias nos fala Jali Meirinho (1991: 129):
"Desdobrava-se o uunicípio nas freguesias para onde a CSnara nomeava as autoridades locais, assis denominadas: Alœatacôs - espécie de inspetor de aplicação exata dos pesos e e a tazaçSo dos gêneros alimenticios ; Juiz de Vintena - adtainistrava a justiça ea usa área que englobasse 20 fogos, isto é 20 residências; Juiz Padaneo - una espécie de Juiz de pequenas causas, porque atendia as partes de pé e proferia o julgaisento rápido; os Quadrilheiros - guardas de policia. Ainda nas freguesias existia os Juizes de Oficio para as diferentes categorias profissionais cono das tecedeiras, dos carpinteiros, sapateiros, ferreiros, serralheiros, etc."
11. Ha época da colonização açoriana já havia a freguesia de Hossa Senhora do Desterro, que compreendia o núcleo inicial da população ilhoa e algumas familias espalhadas pela Ilha morando próximo as fortificações construídas por Silva Paes (Beck, 1979).
12. As demais freguesias criadas foram: Cachoeira do Bom Jesus, Ingleses do Rio Vermelho, Pântano do Sul e Ratones.
MAPA NO 1: ILHA DE SANIA CATARINA
LOCALIZAÇÃO DAS INTENDENCIAS
quadro só se altera no século seguinte, quando Desterro passa à assumir funções comerciais mais significativas.
1.2 - As cidades: Desterro e Florianópolis
Em 20 de março de 1823, Desterro é elevada á categoria de cidade, tendo seu perímetro urbano definido, processo que ocorreu com a maioria das capitanias e vilas após a Proclamação da Independência do Brasil. A administração da cidade sai das mãos dos altos comandos militares e passa para as mãos dos comerciantes, classe mais abastada de Desterro (Hübner, 1981).' Na época, a
Ilha
possuía o principal porto de Santa Catarina, exercendo funções de intermediária no comércio exportador a nível local e escoando a maior parte da produção litorânea*3 . O fortalecimento de uma "burguesia comercial" começa a aparecer na cidade, conforme registram Popini Vaz (1991) e Coradini (1992), através de sua intervenção na paisagem urbana. Na cidade surgem os sobrados e as chácaras, o bonde puxado a burros‘*e a iluminação nas ruas. Passa a ocorrer então uma influência significativa do modelo de cidade europeu.Nesta época, Desterro já apresentava uma concentração populacional significativa-*-^ o que fazia com que,
13. A posição de porto roais importante foi mantida por Desterro até o final do Império. A partir deste periodo, coa o avanço tecnológico, as embarcações aumentam o seu calado e, devido à profundidade do canal de acesso ao porto de Desterro, as embarcações com Biais de 13,5 palmos <2,97 metros), não conseguiam chegar ao porto. As obras de drenagem só vieram a acontecer em 1907, guando outros portos de Santa Catarina já haviam assumido bem mais importância (Hübner, 1981:23-42).
14. A estimativa de população para 1866 era de 6.474 habitantes, conforme o governo provincial, passando a 11.400, no censo de 1890 (Popini Vaz, 1991: 34).
como outras cidades, tivesse uma série de problemas décotrentes do modo de vida desta população. As epidemias e doenças desconhecidas eram constantes e causavam muitas mortes 1 entre os d e s t e r r e n s e s . Era comum nesta época, jogar-se o lixo
e os despejos humanos nas praias, local onde também chegavam e eram expostos os alimentos comercializados
na Ilha,
além disto, os quintais e ruas também eram lugares de despejo dev'
dejetos e águas servidas, o que facilitava a propagação de várias doenças. A isto se acrescentava o fato de que, na época, muito pouco se sabia sobre os processos de transmissão e contágio-*-^.
As tentativas de remediar os problemas enfrentados pelâs cidades, aliadas às necessidades de fortalecimento da Republica recém proclamada (no final do século), caracterizaram-se no Brasil por uma série de tentativas de profundas reformas urbanas e sociais, marcadas por um forte discurso modernizante. Estas políticas de saneamento e modernização, tiveram na capital federal, Rio de Janeiro, seu principal alvo (Araújo, 1989). Em Desterro, as "reformas", se comparadas às demais capitais, foram significativamente pequenas. Entretanto, também por aqui, a administração da cidade passou a desenvolver suas principais políticas com a justificativa de "higienizar" e "modernizar" a cidade,
15. Nos séculos XVIII e XIX as praias nSo disfrutavam do menor prestigio entre as cidades litorâneas, ao contrário, era o lugar do lixo e do despejo dos vasilhames com material fecal (Cabral, 1979). Acreditava-se em Desterro, assim como- em muitos outros povoados, que as doenças eram transmitidas pelo "miasma", substância que estava no ar, se propagava com os ventos e exalava estranhos odores. Em 1955, por ocasião de uma epidemia de cólera, a Câmara Municipal indicou a construção de 4 pontes sobre diferentes pontos da marina para o despejo dos dejetos e, além disso, um serviço de carroça para recolher o lixo nas casas, de forma que ao soprar dos ventos, a população não fosse tomada de estranhais doenças (p. 180).
estabelecendo uma série de leis que procurava atingir diretamente os hábitos da população.
Ao falar das reformas urbanas aqui ocorridas durante a primeira república Araújo (1989), procura mostrar que a partir do final do séculó XIX e início do XX, se instala na
Ilha,
assim como nas demais capitáis do país, "imagens", "discuréos", "valores" e "práticas" que visavam basicamente o "controle" dos hábitos e espaços da população. A conseqüência mais visíveis deste péríodo, segundo Araujo, foi a segregação dos setores mais pobres da população, com sua progressiva expulsão do perímetro urbano-^. -Se por um lado, Araújo'mostra com detalhes as inúmeras leis e proibições das tentativas de "remodelar" Desterro, a forma como apresenta este período, parece encobrir os conflitos que, com certeza, uma "remodelação" de costumes e espaços deste nível, acarretou. Na busca de alguns elementos destes conflitos, encontrei na leitura dé Cabral (1979 ), uma constante recusa da população em aceitar as leis e as proibições. Este autor demonstra no decorrer de seu livro, que apesar das constantes insistências da câmara, das prisões e das multas, os ilhéus só atendiam os ditames da lei, nos períodos das violentas epidemias, quando o medo tomava conta daIlha,
e o perigo, para tudo servia de desculpa-*-7 . Cito aqui um "pequeno" trecho:"Não obstante as providências e as sugestões, continuou o vezo de se ir jogando o lixo por toda a parte e, anos seguidos e variados - 1870, 1884, 1885 e outros r as mesmas reclamações de
16. Segundo Araújo, a expulsão da população pobre do perímetro urbano deu-se através da demolição de suas casas - consideradas insalubres -, da proibição do acesso aos espaços públicos - praças, parques e bondes - e da erradicação de seus meios de subsistência da cidade - proibição da criação de galinhas e outros animais no perímetro urbano.
17. Sobre o século XIX, falando especificamente sobre as mulheres de Desterro, Joana Maria Pedro (1992), mostra também que mais do que de "ordem", este século viveu da "transgressão".
senpre se repetiam: a junta de Saúde, pedindo efetivas medidas sobre os despejos, ainda feitòs em lugares fora dos indicados; a Câmara, publicando e divulgando o eternamente desobedecido artigo 30 do código de posturas, que multava em 5 mil réis os que fizessem as suas desfeitas fora dos referidos e chamados lugares apropriados; o Inspetor de Saúde, dr. José do Rego Raposo, reclamando sobre os montes de matérias fecais existentes da Praia do Mercado; da imprensa, denunciando parte disso tudo, porque não lhe era possível denunciar tudo. E
et cet
eras,
muitos etcet
eras.
A municipalidade poderia ter ficado rica se aplicasse as sanções previstas - que ninguém parecia temer e, se houve multas, eram elas relaxadas, pois a politicagem se metia no meio - e os processos de ludibriar a autoridade iam caía vez mais se aperfeiçoarido. A única maneira de ver a coisa melhorar um pouco eraaparecer
üma epidemia ... Epidemia braba mesmo - cólera, febre amarela, febrè cerebral - pois isso de bexigas ou coisas parecidas já não assustava a quem quer que fosse. Epidemia que matasse, quando já estivesse ceifando vidas na cidade. Al toda a gente punha a boca no mundo, tomada de temores mais que justificados, para reclamar, para acusar as autoridades pelas conseqüências da sua ignorância, da Sua má vontade, da sua inconsciência, isoladamente ou aliadas umas as outras."{Cabral, 1979: 181-2)Penso que as contribuições, tanto de Araújo como de Cabral, devem ser olhadas em conjuntó, procurando com elas, compor a visão sobre o tão conturbado final do século XIX e começo do XX. A determinação dos espaços e dos costumes, a meu ver não se dá unicamente pela imposição de uma determinada ordem ou pela sua transgressão, também pensada num único sentido, mas, justamente pela resultante das relações estabelecidas entre as várias ordens, modelos, costumes e práticas que se tentam impor. Assim, a implantação de determinados hábitos se dão a partir de tensões "negociadas" em conflito e cuja resultante é aquilo que permanece, já negociado, modificado pelo próprio conflito, parcialmente aceito pelas forças que antes se degladiavam.
Neste sentido, parece-me apropriada a idéia de "acontecimento" explicitada por Foucault (1979). Para ele, o "acontecimento" - seja ele um momento, um conjunto de normas
ou a instituição de determinadas concepções - é "uma relação de forças que se inverte ... uma dominação que se enfraquece, se distende, se envenena e uma outra que faz sua entrada, mascarada". 0 "acontecimento" é a resultante de um conflito añteriór, que nem sempre aparece quando o olhamos apenas como um fato já estabelecido, como se apenas uma das forças houvesse se imposto. Como se a regra ou a lei fosse vontade apenas daqueles que governam e como se as práticas pudessem ser lidas apenas pelo que está escrito na lei.
Em Desterro, as muitas tentativas de mudanças tiveram uma espécie de "coroamento simbólico", homenageando a República, com a mudança do nome da cidade. Após a Proclamação da República, aconteceram várias revoltas, entre elas a "Revolução Federalista", um dos episódios mais controvertidos do estado, e um momento de profunda cisão entre as elites brasileiras. Tendo sua origem no Rio Grande do Sul, em 1893, o movimento se estendeu para Santa Catarina e, em pouco tempo, os revoltosos do "Governo Federalista Catarinense", declararam Desterro "capital do estado separado da união enquanto o Marechal Floriano Peixoto se achasse no exercício da presidência da república" (Pereira. 1976: 95). Porém, com a chegada da força militar republicana na Ilha de Santa Catarina, a revolução não durou muito. Quase 200 pessoas foram levadas à fortaleza de Anhatomirim, onde foram sumariamente fuziladas {Santos, 1974: 92)-^®.
18. Entre os fuzilados estavam vários "cidadãos ilustres" de Desterro, pessoas que ocupavam cargos importantes e bea relacionados na sociedade local (Cabral, 1979: 567-72). Muitas famílias perderam seus filhos e pais. Esta história ficou gravada na memória dos ilhéus, e ainda hoje se encontram administradores cujos antepassados foram fuzilados na Ilha de Anhatomirim.